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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.28 Canoas dez. 2008
ARTIGOS DE PESQUISA
Expectativas e sentimentos de mulheres em situação de reprodução medicamente assistida
Expectations and feelings of women in the context of assisted reproduction
Paula Munimis Spotorno*; Isabela Machado da SilvaI,**; Rita Sobreira LopesI,***
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Programa de Pós-Graduação em Psicologia
RESUMO
O presente estudo investigou as expectativas e sentimentos de mulheres em situação de reprodução medicamente assistida. Participaram do estudo seis mulheres com idades entre 22 e 37 anos. As participantes, selecionadas em um hospital público, responderam a uma entrevista semi-estruturada. Os dados foram analisados através da análise de conteúdo qualitativa e revelaram que a infertilidade é uma experiência dolorosa para o casal, gerando sentimentos de incapacidade, frustração, vergonha, baixa auto-estima, ansiedade e tristeza. As participantes demonstraram solidão frente à longa duração do tratamento, reclamando do pouco envolvimento do cônjuge no processo de tratamento. Os resultados sugerem a necessidade de se incluir profissionais de saúde mental nos serviços de reprodução assistida, pois se observa que esta experiência abala o narcisismo dos sujeitos envolvidos, evidenciando a importância dos aspectos inconscientes relacionados ao desejo de ter um filho.
Palavras-chave: Infertilidade, Reprodução assistida, Fertilização in vitro.
ABSTRACT
The present study investigated womens expectations and feelings in the context of assisted reproduction. Six women, aged 22 to 37, took part in the study. The participants, selected from a public hospital, answered a semistructured interview. Data were analyzed through qualitative content analysis and revealed that infertility is a painful experience for couples, generating feelings of being incapable, frustration, low self-esteem, anxiety and sadness. Participants showed loneliness because of the long duration of the treatment, complaining about the partners little involvement in the treatment process. The results suggest the need to include mental health professionals in the assisted reproduction services, since this experience affects the narcissism of those involved, showing the importance of unconscious aspects in the desire to have a child.
Keywords: Infertility, Assisted reproduction, In vitro fertilization.
Introdução
O desejo de ter filhos habita o ser humano desde muito cedo. Diversos autores afirmam que esse desejo é alimentado por muitos motivos e impulsos diferentes, tanto de ordem consciente como inconsciente (Brazelton & Cramer, 1992; Maldonado, 1997; Szejer & Stewart, 1997). No entanto, para muitas mulheres, nem sempre o desejo de ser mãe pode ser concretizado facilmente. As tentativas de engravidar se sucedem, o tempo vai passando, o filho não vem e elas se defrontam com um quadro de infertilidade. Surge, então, a necessidade de embarcar no caminho de diagnósticos e tratamentos, por vezes longos, desgastantes e cheios de frustrações.
Define-se infertilidade como a impossibilidade para alcançar uma gravidez ou mantê-la a termo, que persiste por um período superior a um ano, apesar de o casal manter relações regulares sem o uso de contraceptivos (Passos & cols., 2006). Estudos mostraram que cerca de 10% dos casais se deparam com a existência de algum problema de infertilidade (Maldonado, Dickstein & Nahoum, 1996). A partir de levantamento realizado (Passos, Freitas, Facin, & Cunha-Filho, 1997), constatou-se que, dos casos que chegam ao ambulatório do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), 66,6% são de causa feminina. O restante divide-se entre causas masculinas (18,3%), a combinação de causas masculinas e femininas (3,3%) e causas desconhecidas (11,6%). No entanto, de acordo com dados apresentados por autores estrangeiros (Kumar, Ghadir, Eskandari & DeCherney, 2007), a predominância de causas femininas não seria, de forma geral, tão elevada e os fatores femininos e masculinos responderiam por parcelas semelhantes de casos.
Segundo Burns (2007), existem atualmente mais de 40 tipos de tratamentos voltados à infertilidade. A fertilização in vitro (FIV) é um desses métodos, sendo indicada quando há comprometimento da função tubária, endometriose e infertilidade por causa masculina ou desconhecida (Gratão e cols., 2003). Geralmente, quando chegam para se submeter a esse tratamento, os casais já vivenciaram uma série de procedimentos diagnósticos e de tentativas para engravidarem, de forma que esse momento é mais uma parte da longa trajetória percorrida até então (Hammarberg, Astbury, & Baker, 2001). Por alguns desses casais, a FIV pode ser vista como a última possibilidade de ter um filho biológico (Callan, 1987, Hammarberg & cols., 2001; Verhaak & cols., 2007).
Embora os diversos tratamentos disponíveis permitam aos casais atingidos por algumas formas de infertilidade vislumbrarem uma gravidez, também apresentam a eles uma série de desafios, tais como as injeções diárias, as amostras de sangue, as coletas de esperma e as ultra-sonografias (Eugster & Vingerhoets, 1999). Viagens para a realização do tratamento, custos elevados, falta de privacidade e reorganização da rotina são outras questões com que esses casais necessitam lidar (Redshaw, Hockley, & Davidson, 2007). A FIV tem sido descrita, portanto, como um estressor multidimensional, uma vez que envolve tanto questões características da própria experiência de infertilidade como aquelas referentes ao tratamento em si (Verhaak & cols., 2007). Constitui-se, assim, um contexto em que é difícil separar o impacto da infertilidade das reações ao tratamento (Eugster & Vingerhoets, 1999).
Ao constatarem a infertilidade, os casais se deparam com uma situação inesperada, que representa a perda do controle de parte de suas vidas (Daniluk, 2001; Leiblum & Greenfeld, 1997) e um obstáculo à realização de metas pessoais (Melamed, 2006). O impacto da infertilidade tem sido relacionado a sentimentos de sofrimento (Borlot & Trindade, 2004; Miranda, Larrazábal, & Labán, 1995; Palácios, Jadresic, Palácios, Miranda, & Dominguez, 2002), raiva (Miranda & cols., 1995; Palácios & cols., 2002), ansiedade (Miranda & cols., 1995), menos-valia (Melamed, 2006; Palácios & cols., 2002), desesperança (Miranda & cols., 1995), medo e insegurança (Melamed, 2006; Miranda & cols., 1995), culpa (Melamed, 2006; Miranda & cols., 1995; Palácios &cols., 2002), fracasso (Ulrich & Weatherall, 2000) e frustração (Palácios e& cols., 2000). A esses sentimentos, somam-se, ainda, as cobranças sociais (Callan, 1987). Esses casais tendem a perceberem-se como diferentes daqueles com quem convivem (Borlot & Trindade, 2004; Ulrich & Weatherall, 2000), o que pode favorecer sentimentos de inveja (Miranda e cols., 1995), vergonha (Borlot & Trindade, 2004; Redshaw & cols., 2007) e solidão (Leiblum & Greenfeld, 1997; Palácios & cols., 2002). No entanto, dadas todas as questões envolvidas, Ulrich e Weatheral (2000) destacam que esses sentimentos são uma resposta adequada àquilo que esses indivíduos vivenciam.
Alguns estudos têm se voltado à investigação das diferenças demonstradas por casais inférteis, comparando-os a grupos controles ou normas (Greil, 1997). A partir de uma ampla revisão, Greil (1997) constatou que os resultados obtidos por esses estudos os quais, em sua maioria, utilizaram escalas e análises quantitativas sugerem que casais inférteis de fato tendem a apresentar maiores índices de sofrimento emocional, explicitados principalmente através de medidas de depressão, ansiedade e auto-estima. No entanto, essas dificuldades não atingiriam, na maioria das vezes, níveis de significância clínica, de forma que os efeitos da infertilidade relatados por esses estudos não se mostram tão impactantes como os observados em estudos descritivos. Ao iniciarem o tratamento, esses casais mostram-se, de forma geral, bem ajustados, apresentando poucas diferenças em relação à população em geral (Eugster & Vingerhoets, 1999; Holter, Anderheim, Bergh & Möller, 2006; Verhaak & cols., 2001; Verhaak & cols., 2007). No entanto, o posterior contato com o fracasso das tentativas tenderia a afetar seu bem-estar psicológico (Verhaak & cols., 2007).
Sugere-se, no entanto, a existência de uma grande variabilidade nas formas como cada indivíduo reage à experiência da infertilidade (Leiblum & Greenfeld, 1997). Questões como gênero (Jordan & Revenson, 1999), causa da infertilidade (Lee, Sun, & Chao, 2001), auto-estima e ocorrência de conflitos interpessoais (Abbey, Andrews, & Halman, 1992), locus de controle (Abbey & cols., 1992; Sabatelli, Meth & Gavazzi; 1988), estratégias de coping empregadas (Sabatelli & cols., 1988) e relação conjugal (Andrews, Abbey & Halman, 1991) são alguns dos fatores que parecem influenciar essas respostas. Autores identificaram, inclusive, possíveis benefícios que podem surgir em decorrência da experiência da infertilidade. Uma maior união do casal, o fortalecimento da relação (Schmidt, Holstein, Christensen & Boivin, 2005) e a percepção de aumento no apoio emocional oferecido pelo parceiro (Sabatelli & cols., 1988) seriam alguns deles.
O impacto da infertilidade na relação conjugal é justamente um dos maiores exemplos dessa variabilidade, de forma que se afirma que o casal tanto pode vivenciar aumento nos conflitos como maior união (Borlot & Trindade, 2004; Sharf & Weinshel, 2001). A vivência conjunta de toda essa experiência e a necessidade de tomar uma série de decisões podem favorecer aspectos como a sensibilidade ao outro, a comunicação e o comprometimento, embora os cônjuges possivelmente tenham que lidar com diversos desapontamentos (Leiblum, 1997). Em estudo do qual participaram 117 casais que realizavam sua primeira FIV, Holter e cols. (2006) constataram que a maioria dos participantes avaliou positivamente a compreensão e o apoio oferecido pelo parceiro, assim como o impacto do tratamento na relação. No entanto, os autores destacaram a existência daqueles que relataram uma piora da relação e que necessitam do apoio dos profissionais.
Considerando que o próprio tratamento exerce impacto sobre os indivíduos, estudos (Daniluk, 2001; Hammarberg & cols., 2001; Redshaw & cols., 2007) investigaram como essa experiência é vivenciada, a partir de análise qualitativa de entrevistas realizadas com indivíduos que já haviam terminado seu tratamento. O início desse processo foi descrito como um período de grande otimismo, em que os casais sentem estar se movimentando rumo à solução de seu problema (Daniluk, 2001). Com o passar do tempo, sentimentos de medo, incerteza, perda de controle, frustração, despersonalização e angústia, assim como alterações no humor podem ser experienciados (Redshaw & cols., 2007). Os participantes referiram sentirem-se presos a essa situação e impulsionados a não desistir (Daniluk, 2001). No entanto, os casais também relataram ganhos advindos dessa experiência, tais como a percepção de seu crescimento pessoal e o sentimento de superação das dificuldades (Redshaw e cols., 2007). De forma geral, esta tende a ser uma experiência que muda a vida dos casais e que, muitas vezes, mostra-se mais desgastante emocionalmente do que fisicamente (Redshaw & cols., 2007), em função dos altos e baixos vivenciados através da sucessão de expectativas e frustrações (Daniluk, 2001).
Portanto, para os casais inférteis e suas famílias, a biologia da reprodução não é um processo simples, pois pode envolver perda e tristeza traumáticas, sentimentos de inadequação e inveja, além de um período quase sempre longo de interação com médicos, que se tornam extremamente envolvidos com a vida do casal (McDaniel, HepWorth & Doherty, 1994). A sexualidade perde um pouco de sua espontaneidade e de seu sentido lúdico de prazer em meio aos gráficos de temperatura, testes e tratamentos. Os tratamentos intensificam a perda do controle sobre um aspecto privado da vida do casal: a sua relação sexual.
Os casais que experienciam dificuldades com a reprodução enfrentam dilemas complexos e desafiadores que, muitas vezes, abalam o núcleo da vida familiar. Embora as novas tecnologias de reprodução sejam métodos modernos e científicos de luta contra a infertilidade, o impacto psicossocial da infertilidade ainda precisa ser muito investigado no sentido de compreender melhor as repercussões dessa experiência. Nesse sentido, o presente estudo buscou examinar os sentimentos de mulheres em situação de reprodução medicamente assistida.
Método
Participantes
Participaram desse estudo seis mulheres, com idades entre 22 e 37 anos, casadas, sem filhos, que se encontravam em diferentes momentos do processo de FIV no HCPA. O nível de escolaridade variou desde o Ensino Fundamental incompleto (uma participante), passando pelo Ensino Médio completo (três participantes) e pelo Ensino Superior (duas participantes). As mulheres residiam em diferentes cidades do interior do estado do Rio Grande do Sul e trabalhavam fora de casa. As causas para a infertilidade dividiam-se em feminina (três), masculina (uma), combinada (uma) e de causa desconhecida (uma).
Delineamento e procedimentos
Realizou-se um estudo de caso coletivo (Stake, 1994), em que se examinaram as semelhanças e particularidades presentes nas falas das mulheres sobre os sentimentos vivenciados na situação de reprodução medicamente assistida. Após autorização do chefe do Setor de Reprodução do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do HCPA, as pacientes foram abordadas na sala de espera enquanto aguardavam a consulta. Nessa ocasião, a entrevista era agendada para um horário anterior à próxima consulta. As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora responsável, numa sala reservada para este fim e tiveram duração de, aproximadamente, uma hora e trinta minutos. Na entrevista, foram dadas informações sobre o objetivo do estudo e procedimentos. Diante disso, as participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que informa os objetivos do estudo, os procedimentos de coleta e tratamento dos dados e os direitos da participante. Em seguida, responderam à Entrevista de dados sócio-demográficos (NUDIF UFRGS, 1998) e, posteriormente, à Entrevista sobre as expectativas e sentimentos de mulheres em situação de reprodução medicamente assistida (Munimis & Lopes, 2003). Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo qualitativa (Bardin, 1979; Laville & Dione, 1999), sendo que as categorias de análise foram definidas a priori a partir de temas determinados pela revisão da literatura: projeto de ter um filho, expectativas em relação à maternidade, tentativas de gravidez, tratamento da infertilidade, sentimentos em relação ao tratamento, vida conjugal e rede de apoio. O presente estudo foi submetido à avaliação do Comitê de Ética do HCPA e aprovado em seus aspectos éticos e metodológicos.
Instrumentos
A Entrevista de dados sócio-demográficos (NUDIF-UFRGS, 1998) obteve informações tais como idade, escolaridade, profissão, estado civil, religião e salário. A Entrevista sobre as expectativas e sentimentos de mulheres em situação de reprodução medicamente assistida(Munimis & Lopes, 2003) consiste de uma entrevista semi-estruturada, adaptada da Entrevista sobre o desejo de ter filhos e o impedimento da gestação (Krahl & Piccinini, 2002) e da Entrevista sobre a gestação e as expectativas e sentimentos das gestantes (NUDIF-UFRGS, 1998). Esse instrumento teve como objetivo investigar a história do casal em relação ao desejo de ter filhos (ex: decisão de ter filhos, representação do filho, opinião do marido frente à decisão de ter filhos), as expectativas e os sentimentos em relação à maternidade (ex: significado da maternidade, expectativas de sua relação com o bebê, modelo de maternidade), as tentativas de gravidez (ex: tentativas anteriores, alternativas frente à impossibilidade de gravidez), o tratamento da infertilidade (ex: método adotado, motivo da escolha do método, causa da infertilidade), os sentimentos em relação ao tratamento (ex: preocupações relativas ao tratamento, sentimentos em relação aos procedimentos, dificuldades relacionadas ao tratamento), além de questões sobre o relacionamento conjugal (ex: sentimentos do marido frente à decisão de tratamento, percepção de mudanças no marido e no relacionamento) e a rede de apoio (apoio recebido, reação dos familiares frente ao tratamento).
Resultados e discussão
Através do contato com essas mulheres, foi possível observar o quanto a infertilidade é uma experiência extremamente dolorosa, que gera sentimentos de incapacidade, vergonha, baixa auto-estima e ansiedade, afetando todos os aspectos da vida do indivíduo. A falta da capacidade de procriar é vivenciada como um verdadeiro drama para a mulher, porque ela vive tal circunstância como uma falha no papel que ela própria e a sociedade esperam que seja designado à parte feminina do casal.
A vergonha sentida pela dificuldade em conceber impele, muitas vezes, as mulheres a omitirem a realização do tratamento. Em função da certeza do resultado, as duas participantes que passavam por essa experiência pela primeira vez compartilharam a situação com outras pessoas, ao passo que aquelas há mais tempo em tratamento preferiram manter segredo. A cobrança pela falta de filhos era sentida pelas participantes. Relataram que as pessoas queriam saber o motivo pelo qual elas ainda não tinham filhos. Sentiam-se invadidas e tristes por terem que conversar sobre esse assunto. Aquelas que estavam há mais tempo em tratamento, optaram por não comentar com familiares e amigos, pois sentiam-se desconfortáveis com o fato de as pessoas perguntarem sobre o resultado do tratamento e elas contarem que não obtiveram sucesso. Isto pode ser ilustrado nas seguintes vinhetas: “As pessoas querem saber demais da tua vida, querem saber por que tu não tem filho, ficam perguntando muito” (Marcela); “Todo mundo pergunta (...) e isso machuca bastante. Fica uma coisa difícil, é uma cobrança muito grande, então por isso que eu preferi esconder de todo mundo” (Juliana). A situação de infertilidade parece promover ou reativar uma profunda ferida narcísica nos casais, revelada por intensos sentimentos de inferioridade diante dos outros, de vergonha e baixa auto-estima. Tais sentimentos estão presentes neste tipo de paciente, já que o projeto de ter um filho é carregado de investimentos narcísicos (Ribeiro, 2004). A decisão pelo segredo se deve ao fato de que a informação sobre a incapacidade de conceber é considerada muito privada e embaraçosa, em parte porque a infertilidade envolve o comportamento sexual, assunto que nem todas se sentem confortáveis para discutir com familiares e amigos. Somado a isso, as expectativas e pressões dos familiares para que o casal tenha um descendente são recorrentes e promovem desconforto, que se sentem incomodadas por qualquer forma de questionamento a respeito de filhos. A pressão familiar pode estar relacionada ao desejo de se transmitir a herança genética aos descendentes de modo a dar continuidade à existência da família através das gerações.
As entrevistadas revelaram diversos sentimentos desencadeados pela decisão de realizar o tratamento, tais como: ansiedade, frustração, nervosismo, grande expectativa de gravidez, vontade desesperada de ter um filho, tristeza frente aos resultados, ter de lidar com a dor do marido e familiares. Diversas manifestações emocionais associadas com a condição de infertilidade, como as apresentadas pelas participantes, são apontadas na literatura (Borlot & Trindade, 2004; Daniluk, 2001; Kusnetzoff, 1997; McDaniel & cols., 1994; Miranda & cols., 1995; Palácios & cols., 2002; Redshaw & cols., 2007; Serafini & cols., 1998). Estas podem ser verificadas no relato das participantes, como por exemplo: “Ansiosa, essa é a palavra (...) tem que ficar tranqüila, mas a gente fica bastante ansiosa, né” (Maria); “É que é meio frustrante, né. Tu faz, faz, faz, aí dá tudo certinho, tudo ok, fica esperando o resultado, né(...)ele é frustrante. Não é que o tratamento seja frustrante, os resultados são frustrantes. Não, agora pronto, agora vai dar tudo ok, tudo certinho, vai dá né. E não acontece”...; “Tu tens que abdicar de algumas coisas tuas para estar aqui. É mais um cansaço físico!” (Elaine). Quanto ao tratamento, destaca-se a expectativa quanto ao sucesso do mesmo, como por exemplo: “Eu me sinto feliz, eu me sinto realizada só de poder estar aqui fazendo. Estou mais tranqüila, mais confiante” (Clara); “Eu acho que eu tô na expectativa e esperando que tudo dê certo e se não der, bola pra frente, a gente vai tentar tudo de novo” (Marcela).
Apesar dos sentimentos negativos, perceberam-se mudanças significativas desde a tomada de decisão pelo tratamento. Dentre essas, destaca-se uma diminuição da irritação e das dores corporais: “Eu fiquei mais calma, parou a minha dor de cabeça, a minha dor muscular. Eu tinha muita dor aqui (ombros) (...) irritação, muitas vezes eu descontava nas pessoas, nas crianças da escola e agora eu já tô mais calma” (Marcela); além de uma maior preocupação por parte da família, mais vontade de viver: “Eu notei que agora eu tenho mais vontade de viver porque eu quero esse filho mesmo. Porque antes eu andava assim, sem motivo, andava triste e tudo”. (Juliana); modificações quanto à idéia da adoção: “E daí se não acontecer, vou partir para adoção, que é uma forma de preencher, mas sabe é uma coisa que vai ficar meia (...). Daí quando chega da metade para o final tu já vai pensando que adotar não é tão ruim assim” (Elaine) e uma sensação de tranqüilidade por saber o diagnóstico correto. A fala de uma das participantes traduz esses sentimentos: “Eu tô me sentindo bem melhor agora do que quando eu tava lá na minha cidade que eu ia de médico em médico, cada um me dizia uma coisa, e ninguém sabia me orientar direito. Eu ficava perdida sem saber, sem ter um caminho, sem saber que caminho seguir, daí agora eu sei que caminho que eu tenho que seguir” (Marcela). Depoimentos como este podem ser relacionados à idéia de que o tratamento é visto como um movimento em direção à solução do problema da infertilidade (Daniluk, 2001).
No que se refere aos procedimentos inerentes ao tratamento, as participantes mencionaram incômodo com o uso excessivo de medicamentos e cansaço físico. Por outro lado, relataram aceitar a necessidade de afastarem-se de casa para comparecer às consultas e estarem acostumadas com os inúmeros procedimentos realizados. Uma participante mencionou uma sensação de perda da liberdade sexual, ilustrada na seguinte vinheta: “Quando vai fazer coleta a gente fica meio assim, a gente perde um pouco a liberdade sexual” (Elaine). Essa verbalização corrobora a literatura existente. Kusnetzoff (1997) destaca que os procedimentos diagnósticos costumam ser vividos como invasivos da intimidade pessoal ou do casal, mobilizando sentimentos primitivos de vergonha e humilhação que, muitas vezes, são fontes de estresse e conflitos. Em um caso, a entrevistada transmitiu uma sensação de cansaço “suportável”, no sentido de mostrar que a busca incessante pelo filho vale a pena: “É um monte de coisa, mas, sabe, consola saber que a gente vai poder ter um filho passando por isso tudo. Isso é um cansaço assim diferente, mas vai valer a pena tudo, com certeza vai ser muito gratificante” (Clara) ou “Acho que a gente só sente o que a gente sente passando mesmo, tendo essa dificuldade, lutando, só assim pra gente saber o que é esse significado de ser mãe mesmo. Quem tá de fora não imagina o quanto isso é difícil, as chances são poucas” (Elaine).
Neste estudo, constatou-se que as duas mulheres que estavam na primeira tentativa de gravidez acreditavam de tal forma no resultado positivo que as informações dadas pelos médicos eram irrelevantes. Essa confiança aparece no discurso das mulheres apenas na primeira tentativa de tratamento: “Mas eu acho que eu consigo, eu tenho pensamento positivo, tenho fé que eu vou conseguir. A gente tem que vir com esse pensamento” (Clara). Aquelas que já estavam há mais tempo em tratamento se mostraram desesperançosas quanto à possibilidade de gravidez. Isso pode ser observado na fala de uma delas: “Porque logo que tu inicias, tu já começas cheia de esperança, que daí tu, bah, fecundou! Porque, assim, a gente nunca sabe onde é que tá falhando...” No entanto, mesmo essas participantes ainda traziam, em seus relatos, confiança e esperança quanto à possibilidade de gravidez, acreditando na capacidade de conceberem um filho biológico. Em todos os casos, percebeu-se uma crença mágica de que se o pensamento for positivo o tratamento dará certo. O controle mágico e onipotente da situação aparece, tentando dar conta do desespero, do impensável. Esse afã por um filho biológico, às vezes buscado por anos a fio, com sacrifícios extremos, pode exibir uma supervalorização da herança genética que está fixada no narcisismo (Freud, 1914), e denota o desejo de se reproduzir, custe o que custar. A busca pelo filho vem motivada pelo desejo da mulher de dar continuidade a sua existência através da criança. Essa idéia pode ser ilustrada com a fala de uma das participantes: “A vontade de ter um filho é maior do que tudo. Não pensamos em gasto, não pensamos em nada, somente, sabe, em ter um filho. Eu já me sinto mãe!” (Clara)
O resultado negativo, por sua vez, é considerado o momento mais difícil do tratamento. Sem dúvida, a decepção é mais evidente quando se trata da primeira tentativa de gravidez via FIV. Geralmente, as pacientes chegam com uma expectativa de obter sucesso logo no início. “É difícil (...) que nem quando deu a primeira vez errado, né. É um baque pra gente, é uma decepção assim” (Juliana). O resultado negativo obtido a cada tratamento remete essas mulheres ao fato de que o corpo é um obstáculo para a concepção do filho. A cada nova tentativa, elas depositam todas as expectativas no médico, aquele de quem se espera saber sobre o mistério do corpo e da vida, acreditando que este lhes dará o filho esperado. No entanto, a infertilidade envolve fatores imunológicos, psicológicos, sociais e biológicos, também responsáveis pelo sucesso do tratamento.
A ausência do marido no tratamento parece ser uma reclamação constante da maioria das participantes. Embora a compreendam e a justifiquem em função do trabalho, na realidade gostariam que eles pudessem estar mais presentes. Em cinco casos, os maridos não participavam do tratamento. Em apenas um caso, foi mencionado o envolvimento do marido, que acompanhava a mulher freqüentemente nas consultas e pesquisava alternativas para o problema do casal. Tubert (1996) sugere que a presença dos maridos se impõe fundamentalmente através do silêncio. Habitualmente eles só se fazem presentes no processo da FIV para trazerem o sêmen no momento necessário. Para eles, a infertilidade é um problema da mulher, diante do qual se situam quase como observadores passivos, juntando-se às iniciativas que tomam suas esposas. É notável a vontade por parte das mulheres de terem uma presença mais constante dos maridos no tratamento, pois se sentem muito sozinhas. A fala de uma delas traduz este sentimento: “Ele se preocupa comigo, mas ele tem o trabalho dele, né. Não que fica só mais comigo, (...) mas ele tem as coisas dele” (Lídia). Atualmente, o pai tem sido solicitado a se envolver mais no cuidado de filhos desde a gestação (Piccinini, Silva, Gonçalves, Lopes & Tudge, 2004). No entanto, os dados revelaram que não há uma participação dos cônjuges no que se refere à concepção assistida de um filho, evidenciando pouca disponibilidade emocional para esta experiência. É possível que esta apareça diante da possibilidade de um bebê real. O não envolvimento no tratamento parece ser uma forma de negar sua participação nesta experiência, uma vez que a infertilidade pode estar relacionada à impotência sexual, tabu que ameaça a sua masculinidade e virilidade. Segundo Costa (2001), a paternidade instaura uma nova condição de homem adulto e provedor que é rompida, nos casos de infertilidade, impedindo o homem de perceber-se produtivo e criativo.
Apesar desse sentimento de solidão, as participantes notaram outro tipo de mudanças em seus maridos frente ao tratamento. Elas os perceberam como mais confiantes e esperançosos quanto à possibilidade de ter um filho, além de mais atenciosos no dia-a-dia. Observaram que eles estavam mais carinhosos, organizados e que essa situação promoveu uma melhoria na relação do casal. Por exemplo: “Eu acho que ele quer, ele faz de tudo para me agradar daí agora. Ele tá cuidando pra não brigar comigo, entendeu, não discutir e tal. Acho que ele mudou mesmo” (Juliana). Tem-se afirmado que a experiência da infertilidade tanto pode favorecer a aproximação do casal como seu distanciamento (Borlot & Trindade, 2004; Sharf & Weinshel, 2001). Alguns autores (Kraft, Palombo, & Mitchell, 1980; McDaniel & cols., 1994; Ribeiro, 2004; Schaffer & Diamond, 1994) salientaram os efeitos negativos que essa experiência pode exercer sobre a relação conjugal. Enfatizaram o potencial da infertilidade para danificar ou arruinar a intimidade de um casal, podendo causar tensões sexuais, financeiras, emocionais e até mesmo comprometer o próprio vínculo matrimonial. O casamento pode ser atingido, especialmente se estiver fortemente sustentado pelo conceito de parentalidade, isto é, quando o “tornar-se pais” passa a ser uma meta prioritária compartilhada pelo casal, a impossibilidade de gerar filhos pode levar a um rompimento da relação conjugal por não conseguir realizar este desejo construído ao longo de suas trajetórias de vida. As participantes deste estudo, no entanto, relataram mudanças positivas nos companheiros, bem como no relacionamento conjugal frente ao tratamento. Os resultados revelaram que o relacionamento conjugal tornou-se mais fortalecido após o diagnóstico de infertilidade, devido a uma maior aproximação do casal para enfrentar a situação. Parece evidente que a presença do cônjuge proporcionaria maior confiança para as mulheres se manterem em tratamento, fortalecendo o senso de responsabilidade do casal (Leiblum, 1997).
A adoção foi citada como uma das alternativas para a infertilidade, mas somente viria após o que a paciente considerasse um limite para continuar tentando um filho biológico, ou seja, é preciso elaborar a impossibilidade do filho biológico, para que o filho adotivo encontre um lugar de pertencimento e não de estranheza. Algumas participantes afirmaram considerar a idéia de adoção frente à impossibilidade de gravidez: “(...) Se eu não puder ser mãe assim naturalmente, vou partir pra adoção, porque eu acho que eu vou ter um período que vai faltar, sabe, então eu vou preencher aquela lacuna” (Elaine). Tubert (1996) refere que o discurso das mulheres que esperam a FIV mostra que elas oscilam entre as posições subjetivas (paixão e renúncia), considerando em certos momentos a possibilidade do fracasso e de substituir a exigência inquestionável do filho próprio para dar lugar ao recurso da adoção de uma criança. Observa-se claramente na fala dessas mulheres esperança quanto a ter seu próprio filho e dúvida constante sobre partir logo para a adoção. Elas demonstram um desejo de esgotar as tentativas possíveis, para, a partir daí, se permitirem pensar em adotar uma criança.
Os resultados obtidos a partir deste estudo demonstram a complexidade da experiência da infertilidade e de seu tratamento. Sentimentos tais como incapacidade, vergonha, baixa auto-estima, ansiedade e solidão convivem lado a lado com a percepção de melhorias na relação conjugal, de maior preocupação por parte da família e de esperança e otimismo. Tais dados demonstram a necessidade de os profissionais evitarem a realização de julgamentos a priori e perspectivas unidimensionais.
Cabe destacar algumas limitações do presente estudo, as quais podem contribuir para a elaboração de outras pesquisas sobre essa temática. A realização da coleta de dados em apenas um encontro não favorece o desenvolvimento de uma relação de confiança entre duas pessoas, o que pode ter feito com que as participantes não se sentissem à vontade para exporem suas questões mais íntimas. Examinar sentimentos e expectativas é complicado, pois o ser humano utiliza muitas defesas em seu discurso, principalmente tratando-se de um tema extremamente complexo. Um maior número de encontros entre as mulheres e o pesquisador propiciaria o estabelecimento de um vínculo mais estreito, contribuindo para que elas pudessem falar de sua situação de maneira mais espontânea. Esse contato mais íntimo também permitiria ao pesquisador ter acesso a representações e sentimentos mais profundos, bem como fazer inferências mais sistemáticas, viabilizando uma melhor compreensão dos casos.
Outro ponto importante é que talvez um maior número de participantes neste estudo pudesse trazer resultados mais abrangentes e consistentes, esclarecendo outros aspectos relevantes para o entendimento das expectativas em relação à parentalidade. Nesse contexto, a inclusão dos maridos também permitiria obter uma outra perspectiva.
Por se tratar de um assunto ainda pouco difundido no Brasil, sugere-se a realização de mais pesquisas na área que abordem o relacionamento entre pais e filhos nascidos através de reprodução assistida. Nesse sentido, seria interessante investigar os estilos parentais, as práticas educativas maternas, a interação mãe-bebê, o papel do marido no tratamento, entre outros.
A variabilidade de efeitos que a experiência da infertilidade pode provocar sobre a relação conjugal é outro assunto que merece maiores estudos. Alguns autores (Schimidt & cols., 2005), por exemplo, investigaram quais fatores podem favorecer a experiência de fortalecimento da relação e de maior união entre os cônjuges em decorrência da infertilidade, constatando que o segredo, as estratégias de coping e a comunicação do casal são questões que podem fazer diferença na percepção dos homens, mas não na de suas esposas. Pesquisas que busquem ampliar a compreensão dessa questão, considerando fatores como a história dos próprios indivíduos e do casal, têm muito a contribuir.
Considerações finais
Nos últimos anos, houve um grande progresso na área de reprodução humana, decorrente das novas técnicas de reprodução assistida. Vários casos de infertilidade, antes insolúveis, podem agora ser tratados com sucesso. As Técnicas de Reprodução Assistida, como a FIV, supõem uma tentativa de satisfazer a demanda da mulher que manifesta querer ter um filho e não pode. A medicina da procriação responde, reduzindo o fenômeno a uma manipulação de substâncias. É dada uma atenção ao casal e seu projeto parental, desconsiderando os aspectos inconscientes relacionados ao desejo de ter um filho.
A parentalidade geralmente é um dos mais importantes projetos de vida para o indivíduo e para o casal, e um dos alicerces a partir do qual se constrói o relacionamento. Devido a sua importância, a infertilidade pode ser uma situação potencialmente traumática, estimulando e/ou reativando conflitos estruturais do psiquismo, promovendo um forte abalo na estrutura psíquica dos casais. Na situação de infertilidade, as defesas podem se tornar menos efetivas, em virtude do excesso de angústia mobilizado (Ribeiro, 2004).
A vida das mulheres fica limitada às sucessivas tentativas de engravidar. Tudo fica direcionado para esse projeto, de modo que as outras conquistas tornam-se desinteressantes. A situação de infertilidade promove um tipo de concentração de todos os investimentos pessoais, ficando a vida da paciente mobilizada, na espera de um desenlace. Sentimentos de inferioridade diante dos outros, baixa auto-estima e vergonha são freqüentes, já que o projeto de ter um filho é carregado de investimentos narcísicos. O fato de o casal não conseguir ter filhos sem intervenções médicas, como seus pais, reabre e intensifica a ferida narcísica associada ao desejo de ter um filho (Ribeiro, 2004). Conceber e ter um filho podem ser uma nova oportunidade de elaborar conflitos experimentados na infância.
Por outro lado, este estudo também corroborou a idéia apresentada por alguns autores (Borlot & Trindade, 2004; Leiblum, 1997; Redshaw & cols., 2007; Sharf & Weinshel, 2001) de que a experiência da infertilidade e de seu tratamento, apesar de todo o sofrimento e das dificuldades envolvidas, não é necessariamente portadora de significados exclusivamente negativos. A maior proximidade do casal em decorrência dessa vivência foi um aspecto destacado pelas participantes.
Dada a complexidade da experiência da infertilidade, parece imprescindível que se ampliem os espaços de atendimento para essa população. Sem dúvida, não se pode pensar na infertilidade somente pelo vértice biológico e desconsiderar sua configuração psicossexual. O tratamento da infertilidade requer a atuação de um profissional da saúde mental para avaliar todos os aspectos psicológicos que possam contribuir ou atrapalhar o caminho do casal. As pesquisas vêm demonstrando que um número significativo de homens e mulheres desejaria mais apoio e informação durante os tratamentos prolongados de infertilidade.
Assim, os programas de atendimento precisam incluir uma cuidadosa preparação psicológica, com detalhada discussão sobre os aspectos médicos, pessoais e psicossociais (Daniluk, 1988; Schaffer & Diamond, 1994). Quando a concepção de um filho não é possível, há um rompimento na cadeia de gerações, ruptura acompanhada de um intenso sofrimento, vivido pela impossibilidade de realizar o mais comum dos desejos: ter um filho.
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Endereço para correspondência
E-mail: paulamunimis@yahoo.com.br
Recebido em março de 2008
Aceito em agosto de 2008
* Paula Munimis Spotorno: psicóloga, especialista em Psicoterapia da Infância e Adolescência.
** Isabela Machado da Silva: psicóloga, mestranda em Psicologia pela UFRGS.
*** Rita de Cássia Sobreira: doutora em Psicologia (Universidade de Londres), professora do PPG-Psicologia da UFRGS e Pesquisadora do CNPq.