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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.29 Canoas jun. 2009
ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO
Estresse pós-traumático em pacientes vítimas de queimaduras: uma revisão da literatura
Post-traumatic stress in burn victims: literature review
Letícia Galery MedeirosI; Christian Haag KristensenII; Rosa Maria Martins de AlmeidaIII
I Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC-SMO)
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
III Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
RESUMO
Atualmente, há um crescente interesse no estudo das sequelas psicológicas em vítimas de queimaduras. Este artigo faz uma revisão da literatura com a finalidade de examinar quais são os danos psicológicos e psiquiátricos mais relevantes apresentados por indivíduos que sofrem acidentes com queimaduras. Os transtornos mais comuns foram o transtorno depressivo (13 a 23%) e os transtornos de ansiedade (27%), entre estes o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A prevalência do TEPT entre esta população tem sido estimada em 24,8%, mas diversos autores sugerem critérios para o diagnóstico de TEPT parcial nestes pacientes. Sendo o TEPT uma entidade nova e pouco conhecida, são necessárias mais pesquisas na área para conhecimento de seu curso e definição de um tratamento mais eficaz em vítimas de queimaduras.
Palavras-chaves: Queimaduras, Transtorno de estresse pós-traumático, Depressão.
ABSTRACT
There is an increasing interest in the assessment of psychological damage in burn victims. The treatment of these patients is quite long and painful, and it encompasses attention to both physical and emotional impairments. This article reviews the relevant literature in order to assesses what are the most relevant psychological injuries in patients who had burns. In this population of burn victims, depression (13 to 23%) and anxiety disorders (27%) including post-traumatic stress disorder (PTSD) are the most relevant conditions. The prevalence of PTSD for burn patients has been estimated to be ca. 24.8%, but several researchers have suggested to expand the criteria for a partial-PTSD diagnosis. PTSD is a relatively newly studied disorder, and it requires a better definition when it is applied to burn victims. Moreover, studies for a more efficacious treatment of this disorder are required for this population.
Keywords: Burns, Post-traumatic stress disorder, Depression.
Introdução
No Brasil, não há dados estatísticos que possam comprovar o número de acidentes ou eventos por queimaduras. No entanto, estima-se que, em média, por ano aconteçam 1.000.000 de acidentes, dos quais, aproximadamente 100.000 procuram atendimento médico e cerca de 2.500 pessoas morrem tendo como causa direta ou indireta as lesões por queimaduras (Crisóstomo, Serra & Gomes, 2004; Gomes, Serra & Pellon, 1995; Nasi, 2005).
As lesões por queimaduras encontram-se entre os tipos de traumas mais dolorosos e nos últimos anos, avanços no atendimento às vítimas aumentaram a expectativa de vida destes pacientes, mas lamentavelmente, ainda não os poupam de experiências traumáticas e dolorosas (Altier, Malefant, Forget & Chonière, 2002; Frenay, Faymonville, Devlieger, Albert & Vanderkelen, 2001; Latarjet, 2002). Geralmente, a dor do paciente queimado está relacionada às atividades específicas do tratamento tais como limpeza da ferida, desbridamento, troca de curativos e fisioterapia (Huren, 1993; Latarjet & Chonière, 1995; Rossi, Barruffini, Garcia & Chianca, 2000).
O grau do dano causado por uma queimadura é extenso e a lesão física é caracterizada por um ferimento e perda de pele (Alvarenga, 1981; Artz, Moncrief & Pruit, 1980). As consequências desta lesão, frequentemente, são cicatrizes que podem causar deformidade e limitações funcionais (Franulic & González, 2000; Gilboa, 2000; Huren, 1983). O dano psicológico é igualmente considerável, pois há os efeitos do trauma original que podem deixar marcas persistentes após o acidente, mas também ocorrem profundas alterações psicológicas consequentes do desfiguramento e das limitações funcionais (Franulic, González, Trucco & Vallejos, 1996; Huren, 1983; Kildal, Willebrand, Anderson, Gerdin & Ekselius, 2004).
As respostas emocionais apresentadas por pacientes com queimaduras durante o período de hospitalização têm sido foco de estudos (Altier & cols., 2002; Huren, 1993; Partridge & Robinson, 1995; Patterson, Everett, Bombardier, Questad, Lee & Marvin, 1993; Zor, Deveci, Bozkurt, Dikkatli, Duman & Sengezer, 2005). Inicialmente, reações emocionais como medo, ansiedade, angústia e até comportamentos psicóticos têm sido observadas, seguidas pela manifestação de sintomas depressivos. As reações emocionais, acrescidas das manifestações de dor secundárias às lesões ou aos procedimentos tornam o cuidado destes pacientes extremamente estressante para a equipe, similar aos cuidados em uma equipe de unidade intensiva (Altier & cols., 2002; Kamolz, Andel, Schmidtke, Valentini, Meissl & Frey, 2002; Königová, 1992; Loncar, Bras & Mickovic, 2006).
A importância de reconhecer e de estudar as alterações psicológicas dos pacientes vítimas de queimaduras tem sido enfatizada (Franulic & cols., 1996; Malt, 1983; Partridge & Robinson, 1995; Tarrier, Gregg, Edwards & Dunn, 2005; Van Loey & Van Son, 2003; Willebrand, Low, Dyster-Aas, Kildal, Anderson & Ekselius, 2004). Apesar de muitos pacientes recuperarem-se dos efeitos agudos do trauma, da ansiedade e da depressão após a alta hospitalar, uma proporção significativa desenvolve tardiamente sintomas pós-traumáticos (Blank, 1992; Bryant, 1996; El hamaoui, Yaalaoui, Chihabeddine, Boukind & Moussaoui, 2002; Van Loey & Van Son, 2003; Willebrand, Anderson & Ekselius, 2004; Yanagawa, Saitoh, Sakamoto & Okada, 2005).
Ferimentos por queimaduras são considerados um acontecimento traumático suficientemente severo para ser classificado como um evento estressor na etiologia do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Este transtorno é caracterizado pelo DSM-IV-TR (APA, 2002) como um conjunto persistente de reações incluindo a revivência, a evitação e o entorpecimento, e sintomas persistentes de excitabilidade aumentada, secundário à experiência de um evento estressor traumático.
Para se ter uma ideia do número de pessoas que sofrem esse tipo de problema, somente no Hospital Municipal de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS), por exemplo, entre os meses de fevereiro de 2005 a fevereiro de 2006, foram atendidos 2.743 casos de queimaduras; dos quais 221 pessoas foram internadas e 19 foram a óbito. Entre 2002 e 2004, verificou-se que a média de internações hospitalares por queimaduras no HPS foi de 268 internações por ano, com uma média anual de 32 óbitos (Nasi, 2005).
Estima-se que 22 a 45% dos pacientes com queimaduras após a hospitalização venham a desenvolver TEPT (Altier & cols., 2002; Bryant, 1996; El hamaoui & cols., 2002; Franulic & González, 2000; Gilboa, 2000; Huren, 1993; Lawrence & Fauerback, 2003; Partridge & Robinson, 1995; Patterson & cols., 1993; Van Loey & Van Son, 2004), um percentual significativamente maior do que aquele identificado na população geral (APA, 2002). Além dos pacientes que manifestam o transtorno, outro grupo expressivo em torno de 29% apresenta uma forma subsindrômica de TEPT, com predomínio de comportamentos evitativos (Keane, Marshall & Casey, 2006; Mylle & Maes, 2002). Notavelmente, a incidência de TEPT ocorre com maior prevalência aos doze meses após o acidente do que na hospitalização (Altier & cols., 2002; Bryant, 1996; Gilboa, 2000; Huren, 1993).
Este estudo visou realizar uma revisão da literatura sobre as consequências psicológicas e psiquiátricas decorrentes de acidentes com queimaduras; tais como: presença de delírio, depressão, transtornos de ansiedade, entre eles o transtorno de estresse pós-traumático.
Sequelas psicológicas e psiquiátricas
Existem boas evidências sobre o número de sequelas psicológicas decorrentes das queimaduras (Altier & cols., 2002; El hamaoui & cols., 2002; Franulic & cols., 1996; Huren, 1993; Patterson & cols., 1993; Taal & Faber, 1997). Uma queimadura induz efeitos psicológicos devido a uma série de razões. Em primeiro lugar, é geralmente através de um evento traumático que a queimadura ocorre. Em segundo lugar, há os efeitos do trauma físico e da internação hospitalar. Finalmente, há as consequências estéticas e funcionais das cicatrizes (Gilboa, 2000; Van Loey & Van Son, 2003). O impacto psicológico depende de uma série de fatores, tais como: estado emocional prévio, personalidade, habilidade de lidar com situações novas, condição psiquiátrica subjacente, ajuste psicológico prévio, influência da própria lesão; incluindo extensão, severidade, áreas atingidas e presença de dor (Partridge & Robinson, 1995; Tarrier & cols., 2005). A capacidade psicológica prévia de adaptação tem sido descrita como o melhor preditor da subsequente capacidade de adaptação do que a severidade da lesão (Altier & cols., 2002; Tarrier, Gregg, Edwards & Dunn, 2005). Embora tenha sido determinado que a presença de sintomas está relacionada ao tamanho da queimadura, Franulic e González (2000) descreveram que os pacientes com pequenos ferimentos também estão sujeitos a desenvolver profundas complicações psicológicas. Há as consequências do trauma original e as alterações psicológicas consequentes ao desfiguramento e às limitações funcionais (Fried, Gupta & Gupta, 2005; Van Loey & Van Son, 2003).
Os sintomas psiquiátricos mais comuns são delírio, seguido por ansiedade (especialmente transtorno de estresse pós-traumático), depressão e vários problemas de comportamento (Huren, 1993; Patterson & cols., 1993; Van Loey & Van Son, 2003). Dois estudos descritivos recentes sugerem que um pobre ajustamento e complicações psiquiátricas ocorrem em 50% a 65% dos pacientes queimados hospitalizados (Altier & cols., 2002; Wiechman, Ptacek, Patterson, Gibran, Engrav, & Heimbach, 2001). Nos dois estudos, a dificuldade de ajustamento esteve relacionada com psicopatologias pré-mórbidas e a área total de corpo queimada (TBSA).
Delírio
O delírio e as reações psicóticas transitórias são descritos juntos, pois estas síndromes são clinicamente similares e podem possuir causas semelhantes. Moderada desorientação, confusão, ilusões ou alucinações podem representar condições funcionais causadas por super estimulação do sensório, por privação sensorial, privação de sono ou devido ao choque dos eventos extremamente ameaçadores (Fried & cols., 2005). O delírio e as reações psicóticas podem ser vistos como mecanismos de defesa psicológicos de adaptação durante uma fase de estresse intenso (Lawrence & Fauerback, 2003). Distintas mudanças no estado mental, entretanto, são mais comuns como resultantes de causas fisiológicas, como infecções, abstinência de álcool ou complicações metabólicas (Haum & cols., 1995). Há uma grande variação nos relatos sobre a incidência de delírio em pacientes queimados. Os estudos descritivos mais recentes relatam faixas de delírio em torno de 30% a 57% (Tarrier & cols., 2005; Van Loey & Van Son, 2003; Wiechman e cols., 2001). O delírio está associado às fases iniciais da recuperação, grandes TBSA e idade avançada (Altier & cols., 2002).
Depressão e ansiedade
Os problemas psiquiátricos mais frequentemente encontrados em pacientes após acidentes com queimaduras são a depressão e os transtornos de ansiedade, principalmente TEPT (Loncar & cols., 2006; Tarrier & cols., 2005; Van Loey & Van Son, 2003; Willebrand & cols., 2004).
A literatura (DSM- IV-R) classifica a depressão de acordo com sua gravidade, em leve, moderada ou grave. Estudos revelam que a depressão leve ocorre em 58% dos pacientes queimados (Partridge & Robinson, 1995), a depressão moderada ocorre em 23% a 61% dos pacientes queimados (Loncar & cols., 2006), e a prevalência de depressão severa ocorre em 19% a 30% (Wiechman & cols., 2001). A severidade da depressão correlaciona-se ao suporte empregado para o manejo da dor (Loncar & cols., 2006) e a problemas familiares ou conjugais (Partridge & Robinson, 1995). Observações de caso sugerem que o aumento nos sintomas depressivos está associado ao tempo de internação superior a um mês (Huren, 1993) e involuções médicas (Willebrand & cols., 2004). Em relação à depressão, empregando uma medida de rastreio de sintomas depressivos comumente utilizada, como o Inventário Beck de Depressão (BDI), Jiménez e cols. (1994) observaram, no período de um mês após a alta hospitalar que 28% dos pacientes vítimas de queimadura estavam moderadamente deprimidos e 26% estavam severamente deprimidos. Neste mesmo estudo, 43% dos pacientes ainda apresentavam sintomas de depressão moderada à grave aos dois anos após a alta hospitalar. Loncar e cols. (2006) em seu estudo entrevistou setenta pacientes duas semanas após o trauma, onde os níveis de ansiedade e depressão foram medidos através do Inventário Beck de Ansiedade e Depressão. Os resultados demonstraram que um número significativo de pacientes apresentou sintomatologia de ansiedade (27%) e depressão (30%). Altos índices de ansiedade e depressão foram associados a altas taxas de dor. O percentual de área corporal queimada esteve associado com os escores de dor, ansiedade e depressão. Estima-se que, em geral, a prevalência de depressão entre os pacientes queimados varie entre 13 a 23%, sugerindo a necessidade de investigação diagnóstica desta patologia entre as vítimas de queimaduras.
A prevalência dos sintomas de ansiedade parecem decrescer através do tempo de permanência no hospital, de 47% dos pacientes que ficam ansiosos durante a primeira semana para 13% na quarta semana (Williams & Griffiths, 1991). Sintomas de ansiedade autorrelatados em pacientes queimados são comparáveis com os relatados por pacientes clínicos e cirúrgicos, mas menos severos do que aqueles relatados pelos pacientes psiquiátricos (Altier & cols., 2002). Neste estudo, somente 27% dos 33 pacientes tiveram escores de ansiedade, no State-Trait Anxiety Inventory, maiores do que os pacientes neuropsiquiátricos. A ansiedade mostrou-se significativamente correlacionada com a persistência da dor (Altier & cols., 2002).
Transtorno de estresse pós-traumático
Devido ao TEPT ser uma entidade clínica pouco conhecida merece uma apresentação mais detalhada. Keane e cols. (2006) em uma revisão da literatura sobre TEPT relataram que somente após a I e II Guerras Mundiais os estudos sobre o sofrimento psicológico dos combatentes de guerra e dos sobreviventes dos campos de concentração marcaram o início dos estudos sobre os efeitos negativos da exposição a traumas. Porém o impacto psicológico de outros eventos traumáticos recebeu reconhecimento na revisão da literatura quando Ann Burgess (1974) observou o impacto do estupro em mulheres (Burgess & Holmstrom, 1974).
Na atualidade, o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR) (APA, 2002) define TEPT como necessariamente provindo de um evento em que a pessoa foi exposta a uma grave ameaça ou morte, experimentando sentimentos de medo, desamparo ou horror. Três grupos de sintomas definem o transtorno, sendo eles o agrupamento da revivência, evitação, e excitabilidade aumentada. Somando-se às recorrentes e intrusivas recordações e sonhos sobre o evento, o grupo das revivescências inclui sofrimento e reações psicológicas à exposição a insinuações sobre o trauma ou a episódios de flashback em que experiencia a no mínimo uma parte do trauma.
Desde que o TEPT foi introduzido como uma categoria nosológica no Manual Estatístico e Diagnóstico para Transtornos Mentais, terceira edição (APA, 1980), pesquisas têm sido realizadas sobre a epidemiologia do TEPT e sobre a validade dos critérios diagnósticos. Apesar da edição revisada (APA, 1987) e quarta edição (APA, 1994) o conceito de TEPT continua um tema de debate. Uma questão acordada foi o limiar de critérios mínimos do número de sintomas que devem estar presentes para um diagnóstico positivo. De acordo com o DSM-III-R e o DSM-IV, o TEPT é definido como uma síndrome, seguida a um evento traumático (critério A), que apresenta no mínimo um sintoma de intrusão (critério B), três de evitação e sintomas de entorpecimento (critério C), e dois sintomas de hiperexcitação (critério D). Estes sintomas devem persistir por no mínimo um mês (critério E). De acordo com o DSM-IV, a intensidade dos sintomas deve ser suficiente para causar significativo prejuízo clínico no funcionamento da vítima em pelos menos um importante aspecto da vida (critério F). A decisão por esta regra restringiu o número de vítimas uma vez que nem todos preenchem todos os critérios, embora eles possam sofrer de sintomas de TEPT. Ao em vez de resolver este problema, alguns autores (Mylle & Maes, 2002; Willebrand & cols., 2004) propuseram a concepção de “TEPT subsindrômico” para a condição na qual o limiar para o critério C e/ou D não é atingido, mas ao menos um sintoma de cada critério está presente e TEPT Parcial para a condição na qual os sintomas para um critério (B, C ou D) estão ausentes, mas o critério F está presente. Apesar das altas prevalências dessa síndrome terem sido relatadas, esta concepção não foi aceita pelo DSM-IV. O transtorno de ajustamento no DSM-IV é o equivalente próximo dessa condição. Uma das formas de definir o transtorno de ajustamento é que é uma condição com um evento traumático subliminar (critério A) ou com uma resposta subliminar (B à E).
A prevalência do TEPT na população em geral, entretanto, pode variar conforme a operacionalização dos estudos. Revisando a literatura, dois principais perfis podem ser encontrados. O primeiro assume que ao menos um dos sintomas deve estar presente para cada critério B, C e D. Por exemplo, Weiss, Marmar, Schlenger e Fairbank (1992) consideram que ao menos dois sintomas pertencentes ao critério C devem estar presentes. O segundo perfil de TEPT considera que a combinação de dois dos três critérios B, C e D devem estar presentes. Deve ser enfatizado que não é sempre claro se o critério E e F continuam sendo usados no diagnóstico do TEPT. Por exemplo, Koss, Koss e Woodruff (1991) consideram as formas BC e BD. Parson (1990) usa sete classes de TEPTP: B, C, D, BC, BD, CD e uma inespecífica para os que são compostos por números de sintomas que não satisfazem nenhum critério (exemplo, dois sintomas de C e um de D).
Inicialmente, quando foi descrito no DSM-III, o TEPT foi considerado um transtorno raro, e eram considerados eventos traumáticos os eventos estressores que estavam fora do espectro normal das experiências humanas (APA, 1980). Desde que o TEPT foi incorporado à nomenclatura diagnóstica, estudos epidemiológicos têm documentado alta prevalência de exposições a eventos traumáticos na população em geral e confirmado que o TEPT ocorre seguido a uma ampla série de extremos eventos de vida. Uma das mais importantes considerações, é que consistentes achados indicam que apesar da exposição a eventos traumáticos ser muito comum, o desenvolvimento de TEPT é raro. A elucidação dos fatores responsáveis por explicar o motivo pelos quais porque algumas pessoas desenvolvem TEPT enquanto outras expostas a situações similares não, talvez possam informar ou elucidar as chaves das variáveis envolvidas na etiologia dessa condição.
Dois estudos avaliaram pacientes queimados para TEPT. Perry, Heidrich e Ramos (1981) descreveram que 41% dos 104 pacientes hospitalizados por queimaduras fecharam critério para TEPT pelo DSM-III. Comparando com pacientes sem esta síndrome, pacientes com TEPT sentem mais dor, apresentam maiores áreas de queimaduras, e expressam mais culpa sobre a causa do acidente mesmo que não tenham sido diretamente responsáveis pela sua queimadura. Pacientes com TEPT são mais propensos a desenvolverem delírio. Patterson e cols. (1993) acompanharam 54 pacientes queimados, admitidos consecutivamente, para sintomas de TEPT. Neste estudo 63% dos pacientes relataram memórias intrusivas e recorrentes sobre o evento da queimadura, mas somente 30% fecharam todos os critérios do DSM-III-R para TEPT. O TEPT mostrou-se positivamente correlacionado com TBSA, tempo de internação e sexo feminino. Trabalhos recentes têm mostrado, inclusive, a necessidade de ajustar o TEPT ao caso de pacientes queimados, aludindo ao conceito de “estresse traumático crônico”, que faria referência não só à experiência da queimadura como também à experiência constante de dor, ao difícil período de hospitalização e tratamento e ao temido encontro com seu meio após alta (Franulic & González, 2000).
Fauerbach e Lawrence (2000), revisando a literatura, identificaram a prevalência de TEPT entre 8 a 45% dos pacientes queimados. A dor foi referida por todos os pacientes e relatada como insuportável por 58.3%. A depressão apareceu em 55% do levantamento, sendo que a análise dos dados mostrou que há uma relação significativa entre idade e TEPT. O tempo de internação dos pacientes com TEPT foi mais longo (142,7 dias) do que os sem TEPT (103,1 dias). Em adição, foi encontrada relação significativa positiva entre TEPT e depressão. Nenhuma relação ficou estabelecida entre TEPT e gênero, nível de escolaridade ou severidade da queimadura. Van Driel e Op den Velde (1995) relataram que 22% dos pacientes queimados apresentam TEPT. Neste estudo, o TEPT esteve significativamente relacionado com a idade, depressão e baixo nível social. Por outro lado, não foi encontrada nenhuma relação significativa entre TEPT e gênero, nível de educação, tempo de internação e severidade da queimadura. Noble, Gomez e Fish (2006) também relataram não haver nenhuma relação significativa entre TEPT, severidade da queimadura e tempo de internação. Neste estudo houve mais depressão no grupo com TEPT, com altos escores representando intensos sintomas de depressão. Estes dados são consistentes com os que foram relatados por Kildal, Willebrand, Anderson, Gerdin, e Ekselius (2004).
No estudo de Fauerbach, Lawrence, Schmidt Jr., Munster, e Costa (2000), encontra-se um número considerável de vítimas que apresentaram TEPT subsindrômico (8,7%) ou parcial (60,7%). De um ponto de vista clínico, parece razoável aceitar somente as síndromes parciais que satisfizeram o critério F porque somente estas podem necessitar de tratamento profissional. 16,7% de todos os sujeitos sofreram de síndromes parciais e ao mesmo tempo preencheram o critério F, apesar de nenhum destes ter satisfeito o critério de tempo E. Assim, o grupo relatou a síndrome parcial e distúrbios clinicamente significativos no funcionamento psicossocial num período menor do que a presença dos sintomas (em menos de um mês). Existem algumas evidências de que a síndrome subsindrômica ou parcial do TEPT difere do TEPT. O TEPT apresenta um modelo sintomatológico típico (BC e BD) diferindo do TEPTP. Noble e cols. (2006) mostraram que o TEPT e o TEPTP usam diferentes mecanismos de defesa. Por exemplo, ambos usam projeção, somatização e conversão, mas as vítimas de TEPTP usam mais repressão, negação e splitting (Noble & cols., 2006). Vinte e oito pacientes (43,1%) tinham história psiquiátrica prévia: dependência de álcool (n=9), transtornos do humor (n=7), transtornos crônicos psicossomáticos (n=1), transtorno de personalidade (n=2), esquizofrenia (n=1), transtorno de ansiedade generalizada (n=1), tentativa de suicídio (n=1) e epilepsia (n=1). A média da área total queimada foi de 16,9%, com valores entre 1 e 70%. Trinta (46,2%) pacientes tiveram envolvimento da face. Razões para referir foram: queimaduras causadas por tentativa de suicídio, sete (10,8%); síndrome de dependência de álcool ou heroína, oito (13,5%); e transtornos do comportamento, 50 (75,6%).
Efeitos a longo prazo dos ferimentos por queimaduras
Investigações sobre os efeitos a longo-prazo dos ferimentos por queimaduras envolvem períodos de avaliação que variam de uns poucos meses a muitos anos após a hospitalização. A presença de sintomas psiquiátricos e de fatores psicossociais de adaptação tem sido avaliado em distintos períodos de evolução, durante a hospitalização, na alta, e em evoluções posteriores de seguimento (Franulic & González, 2000; Huren, 1993). Estes últimos apontaram as consequências psicopatológicas, funcionais e ocupacionais das queimaduras, no médio e longo prazo. É comumente observado, entretanto, que o primeiro ano após a hospitalização é, psicologicamente, um período no qual os pacientes reportam maiores disfunções (Jimenez & cols., 1994; Wiechman e cols., 2001). Durante este primeiro ano, os pacientes continuam lidando com estressores secundários, como memórias do acidente, tensão familiar ou alterações na rotina diária causadas pelas sequelas decorrentes das queimaduras. A ansiedade e a depressão comumente ocorrem juntas (Altier & cols., 2002; El hamaoui & cols., 2002; Franulic & González, 2000; Williams & Griffiths, 1991), com índices de prevalência entre 25% a 65% em um ano ou mais após as queimaduras (Wiechman & cols., 2001). Uma exceção foi apresentada por Ward, Moss, Darko, Berry, Anderson e Kolman (1987) onde observou que ocorre um aumento com o tempo na depressão clinicamente significativa. Entretanto, estes autores também relataram que a psicopatologia pré-mórbida foi o melhor indicador de depressão pós-queimadura, sugerindo que para muitos pacientes de suas amostras, a depressão pós-queimadura seria mais uma continuação de uma condição pré-mórbida e crônica do que uma sequela das queimaduras. Um estudo encontrou que a ansiedade e a depressão aumentavam quando havia lesão de mãos e face (Wiechman e cols., 2001), enquanto dois outros (Franulic & González, 2000; Willebrand & cols., 2004) não encontraram nenhuma relação entre ansiedade ou depressão com TBSA e deformidades. Gilboa (2000) acrescentou que problemas psiquiátricos pós-queimaduras estiveram negativamente relacionados à perda de consciência e ausência de memórias do trauma. Isto sugere que diminuição da preocupação e recordação de circunstâncias do evento estressor pode proporcionar um efeito protetor contra o desenvolvimento de sequelas psicológicas adversas.
Franulic e cols. (1996) desenvolveram um estudo de seguimento com pacientes com área de superfície corporal queimada de 20% (TBS) e que necessitaram internação hospitalar. Os pacientes foram avaliados na alta, no 3o mês e no 6o mês após a alta com o Questionário Tridimensional de Personalidade de Cloninger, Escalas de Hamilton de Depressão e Ansiedade, GHQ-30 e Questionário de Adaptação Psicossocial. Um total de doze pacientes cumpriu todos os requisitos de ingresso no estudo; 9 deles apresentaram durante a hospitalização algum diagnóstico psiquiátrico segundo o DSM-IV. Ao término do seguimento dois deles apresentaram TEPT e uma paciente, fobia a fogo.
Muitos pacientes com queimaduras podem esperar carregar marcas evidentes de seu acidente, as quais têm implicações psicológicas, sociais e econômicas. Keane e cols. (2006) descreveram a forma como pacientes com fortes sintomas depressivos, no momento em que deixam o hospital, tendem a apresentar maiores complicações durante sua fase de reabilitação e sua subsequente adaptação. Portanto, ressalta-se a importância do manejo psicológico dos pacientes quando ainda estão internados no hospital.
A duração da internação após a queimadura tem diminuído muito nos últimos anos, devido ao aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas, da analgesia, do controle das infecções e dos sistemas nutricionais. Entretanto, em contraste com os variados motivos para internação, os pacientes queimados podem não estar tão ansiosos para irem para casa. A unidade de queimados e todo o hospital tornam-se um local de conforto e de acolhimento no qual as cicatrizes e os ferimentos não são objetos de curiosidade, comentários ou perguntas. O mundo fora do hospital, do qual o paciente vê-se isolado, comporta-se de forma diversa. Burges e Holmstrom (1974) observaram que 52% dos pacientes que obtiveram altas hospitalares relataram que gostariam de ter recebido algum tipo de aconselhamento antes e após a alta. A equipe como um todo precisa concentrar-se em providenciar um suporte emocional, aconselhamento prático e continuidade dos cuidados para os pacientes que deixam à unidade de queimados. O confronto com as cicatrizes após a queimadura pode não causar muito impacto até o paciente ir para casa. Sem os funcionários da unidade de queimados e as constantes visitas, a casa pode parecer um local quieto em demasia. A crença da equipe profissional da unidade de queimados é de que a maioria dos pacientes queimados será permanentemente afligida por deficiências funcionais, incluindo transtornos psicológicos (Patterson & cols., 1993).
Considerações finais
O dano causado por uma queimadura é extenso e além das sequelas físicas, há os danos psicológicos, consideravelmente preocupantes. Neste estudo foi possível conhecer os tipos de transtornos psicológicos que acometem os pacientes que sofrem de queimaduras. A depressão e os transtornos de ansiedade encontraram-se entre as patologias mais citadas. O TEPT apareceu como o transtorno de ansiedade mais comum, com uma prevalência significativa. No Brasil, há uma carência de estudos sobre os aspectos psicológicos entre pacientes vítimas de queimaduras. Foram encontrados apenas três estudos brasileiros: (a) da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (Rossi & cols., 2000); (b) do Hospital Municipal de Andaraí (RJ) (Ferreira, Schlüter, Gusmão, Gomes, Guimarães, Serra e cols., 2004) e (c) um do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (Alvarenga, 1981). Nenhum destes estudos fez referência aos aspectos psicológicos dos pacientes vítimas de queimaduras. Sendo assim, sugere-se que sejam realizados mais estudos sobre a recuperação dos pacientes vítimas de queimaduras no Brasil, para auxiliar esta população no processo de recuperação e.reabilitação, buscando minimizar as sequelas emocionais.
O TEPT é uma entidade que tem sido negligenciada pelas equipes de saúde e consequentemente subdiagnosticada. Pela importância da reabilitação e qualidade de vida dos pacientes vítimas de queimaduras faz-se necessário, tão cedo quanto possível, iniciar um trabalho para avaliação dos sinais e sintomas de TEPT. A partir do diagnóstico deste transtorno, seria possível desenvolver uma abordagem mais precisa junto aos pacientes queimados, incluindo estratégias de prevenção do TEPT e planos de tratamento específicos e eficazes.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: christian.kristensen@pucrs.br
Recebido em junho de 2008
Aprovado em abril de 2009
Letícia Galery Medeiros: mestre em Psicologia Hospitalar pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); professora da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC-SMO).
Christian Haag Kristensen: mestre e doutor em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS); professor adjunto (PUCRS).
Rosa Maria Martins de Almeida: pós-doutora em Psicologia Experimental (Tufts University- TUFTS-EUA); professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).