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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.29 Canoas jun. 2009

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

O corpo como objeto: considerações sobre o conceito de sublimação através da Arte Carnal de Orlan

 

The body as an object: thoughts about the concept of sublimation through the Carnal Art of Orlan

 

 

Giselle Falbo; Ana Beatriz Freire

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo das questões suscitadas pelos autorretratos talhados em carne viva pela artista francesa Orlan, o objetivo deste texto é discutir em que medida o conceito de sublimação é suficiente para responder por criações que – tal como em suas performances cirúrgicas – se afastam do plano da representação. Em oposição ao véu produzido pela fantasia, estas obras afirmam um “realismo” que desconsidera a moldura constituída pela operação significante. Afirmando o conceito de sublimação como destino pulsional, na contraposição e articulação entre três termos – idealização, sublimação e narcisismo – nossa proposta é aproximar sua vertente mais nitidamente pulsional – um fazer com a pulsão – do processo de escritura. Uma escrita que visa o corte que estabelece a letra: aquilo que constitui a borda do corpo.

Palavras-chaves: Sublimação, Corpo, Objeto.


ABSTRACT

Taking as a starting point the questions brought up by the work of the French artist Orlan – which are self portraits chiseled into raw flash –, the aim of this text is to discuss up to which point the concept of sublimation suffices to answer for creations that, as in its surgical performances, leads to the extreme non-stabilization in the field of fantasy, in favor of a “realism” that disconsiders the frame constituted by the significant operation. Affirming the concept of sublimation as pusional destiny, in the contraposition and articulation: between idealization, sublimation and narcissism, we propose to make its side more clearly pulsional (to make with a pulse), closer to the process of scripture that aims the cut that stablishes the letter: that is, that constitute the limit of the body as a littoral.

Keywords: Sublimation, Body, Object


 

 

Introdução

“As pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”
(Lacan 1975-76)

Desde a sua fundação, com Freud, a psicanálise encontra na arte uma parceira que a auxilia a deslindar os nós da clínica. Obra da ficção que coloca em cena aquilo que transcende o plano da representação, a arte nos fornece solo fértil para a análise de questões fundamentais e muitas vezes difíceis de situar, por serem fugidias tanto na vida cotidiana quanto na experiência clínica. Através desta parceria na qual o poeta está situado, sempre, muitos passos à frente do saber construído pelo psicanalista, neste escrito, a arte nos servirá para cotejar as reflexões da teoria psicanalítica no que concerne ao corpo e ao objeto. Partindo das questões suscitadas pelos autorretratos construídos pela artista francesa Orlan, nossa proposta é interrogar o instrumental teórico de que dispõe a psicanálise para abordar o tema da criação: o conceito de sublimação.

Sabemos que há muito a arte vem desestabilizando o plano bidimensional da tela. Esgarçando o tecido que vela e simultaneamente constitui o objeto, ou desfazendo-se do enquadramento dado pela moldura, a arte afirma uma realidade diversa daquela forjada pela pintura concebida como janela através da qual se vê o mundo. Inumeráveis foram os modos encontrados pelos artistas para quebrar a ilusão que nos acalanta, possibilitando-nos entrever aquilo que se aponta como objeto que sustenta a ficção.

Ao longo do século XX, este esgarçar da cena que se verifica como direção da crise que incide sobre a arte como ciência europeia – crise que caracterizou e constituiu a própria história da Arte Moderna (Argan, 1988) – parece encontrar alguma afinidade com uma tendência que vem inquietando os psicanalistas em sua prática clínica. Referimos-nos aqui ao fato de que, hoje, muitos dos sintomas endereçados à escuta do psicanalista parecem não mais se ordenar através do enquadre fornecido pelo plano da fantasia. Refratárias à interpretação e aproximando-se mais de uma apresentação muda, ao modo do acting out, estas “formações” solicitam a presença do analista por uma via que exige cuidadosa reflexão.

Para abordar o tema proposto, faremos inicialmente uma breve apresentação do trabalho de Orlan, de modo a contextualizá-lo na cena da produção artística contemporânea, com o objetivo de situar as questões que seus autorretratos nos suscitam no que concerne ao corpo, ao objeto e à sublimação. A opção por abordar tais questões a partir da Arte Carnal de Orlan deve-se ao fato de esta porção de sua produção representar o ponto extremo da desestabilização do campo da fantasia em favor de um “realismo” que questiona o conceito de sublimação.

 

Orlan: autorretrato talhado sobre a carne viva

Antes de tecer considerações sobre o trabalho de Orlan1, é necessário localizar sua “Arte Carnal” em relação ao contexto composto pela arte contemporânea. Em primeiro lugar é importante advertir que, em face das torções operadas no campo das artes por volta dos anos 60, não é mais possível propor qualquer análise da arte que se pretenda “integral”. Para fazer uma anotação válida sobre as artes plásticas hoje, faz-se necessário parcialisar, recortar o objeto de interesse, dado que a referência às escolas ou aos movimentos da arte se esfacelou. E mesmo não raras são as circunstâncias em que, para tecer algum comentário legítimo, é necessário se deter em uma obra específica de um determinado artista, visto que este pode recorrer a diferentes estratégias compondo um repertório, muitas vezes, múltiplo.

Esta inclinação foi sendo tecida, ao longo da história da arte, pelo ato de vários artistas. Mas se torna mais nítida – a partir da década de 60 – com a “Arte Conceitual”; arte que representa, de acordo com Roberta Smith (1991), a plena floração das ideias introduzidas por Duchamp, em 1917. Esta designação inclui em seu bojo atitudes diversas: a Body Art, a Arte Narrativa, a Arte Performática, a Land Art, entre outras. Tais manifestações artísticas giram em torno dos problemas ligados à arte e a outros campos, melhor traduzidos por meios não convencionais: propostas escritas, fotografias, vídeos e até mesmo pelo uso do próprio corpo do artista. Ainda que multifacetadas e poliformes, elas encontram um ponto em comum: a rejeição da concepção do objeto artístico como artigo de luxo, permanente, imutável, e portátil. E, recusando sua valorização como um bem passível de ser consumido, caracterizam-se por afirmar, o “conceito”, como elemento primordial da obra.

A partir da psicanálise, é possível dizer que nesta nova configuração, que responde por uma parte significativa da produção artística contemporânea, a ênfase mais uma vez se desloca da vertente imaginária do objeto para o “conceito”; conceito aqui entendido como o espaço aberto – intervalo – que constitui a articulação entre os significantes: o vazio marcado pela Coisa freudiana. Ou, como fora outrora formulado por Da Vinci, “Coisa Mental”. Trata-se aqui da primazia conferida pelo fazer do artista ao que “não engana”, ao real2, em detrimento do recurso a outras vertentes da ficção mais ligadas ao velamento ou ao engodo. Na arte, o ficcional está a serviço desta outra realidade que aponta para o real. Um saber-fazer com a linguagem que, a partir da estética freudiana, poderia ser aproximado da gramática que inscreve o circuito pulsional, contornando o corpo e produzindo restos.

Em decorrência desta torção que implodiu e fragmentou o campo das artes visuais, inicio-se um período de libertação e experimentação sem precedentes. E assim, para o melhor ou para o pior, o fazer artístico se expandiu em um movimento aberto a tudo e a todos, dando ensejo a novos modos de expressão. Nesta via se inscrevem a Body Art e seus desdobramentos: a Body Building, Body Modification e a Arte Carnal de Orlan. Fazendo do corpo o elemento fundamental da obra, o trabalho destes artistas nos possibilita recortar: o interesse da arte pela forma humana e o uso do corpo como matéria ou suporte da obra. Ambos – o corpo como suporte para a inscrição de traços significantes e o fascínio pela forma humana – são tão antigos quanto a presença do humano no mundo, por estarem inequivocamente ligados a fatos estruturais que remetem ao processo de constituição subjetiva: a construção da imagem do corpo unificado, superfície que dá origem ao “eu”; e ao corpo como borda pulsional, recortado pela ação dos significantes que marcam e erogenizam o corpo.

De um lado, a inscrição de traços significantes sobre o corpo pode ser lida – de acordo com Lacan (1964/1979) – como um modo de encarnar, no corpo, o órgão irreal que é a libido. Esta vertente indica, em virtude de sua referência ao falo, uma função erótica. Todavia o trabalho de alguns artistas, dentre os quais tomamos como emblemáticas as performances cirúrgicas de Orlan, parecem colocar em jogo outra dimensão ligada ao modo como o significante afeta o corpo. Na obra em questão, trata-se de uma construção: a construção de um autorretrato, uma versão de si. Mas que se realiza diretamente sobre o próprio corpo3, ou seja, o ato de criação não constitui uma separação entre o corpo e o objeto, não havendo distância entre o objeto modelado e o sujeito que o confecciona. Ato de criação que parece transcender os limites – certamente tênues – que delineiam o conceito de sublimação; noção que geralmente responde, desde o referencial teórico da psicanálise, pelas questões colocadas pela criação artística.

Helaine Posner, crítica de arte, observa que alguns trabalhos designados pelo significante Body Art se apresentam sob a “chocante predominância dos fragmentos do corpo como uma metáfora altamente qualificada para assaltos psicológicos, políticos e sociais ao ser humano (...). O corpo desmembrado é parte de algumas de nossas preocupações mais urgentes: o sexismo, a identidade sexual, os direitos reprodutivos, a homofobia, a desigualdade sexual, a brutalidade, a doença e a morte” (Pôster citado por Gardener, 1996, p. 203).

Desde a perspectiva da psicanálise, podemos dizer que nos casos aos quais se refere Pôster, o corpo é colocado em cena não como unidade e, portanto, em uma vertente mais ligada à beleza e ao narcisismo, mas como corpo despedaçado do autoerotismo.

Nesta direção, alguns artistas – cada qual por razões particulares – tiveram seus corpos mutilados e literalmente revirados de dentro para fora. Dentre os artistas cuja arte é o próprio corpo, no contexto edificado pela arte contemporânea, nenhum deles foi tão longe quanto Orlan. É James Gardener (1996) quem nos informa que antes dela, no entanto, houve Rudolf Schwarzkogler, artista que se supunha haver amputado seu pênis em uma performance; performance que, tempos depois, parece ter sido reconhecida como fraude. Ainda que não incida realmente sobre o corpo e, como fraude, se situe dentro do campo da encenação, o ato de Rudolf ajudou a indicar a existência de um vasto terreno a ser explorado, no qual se inscreve a produção de Orlan. (Falbo, 2003, p. 115).

Em 1990, aos 43 anos, Orlan fez a primeira de suas sete operações performáticas, operações que acabaram por transformá-la completamente. Na versão da artista, ainda que alguns interpretem sua obra – em decorrência de sua nacionalidade francesa – pelo viés da busca da beleza, esta pouco tem a ver com a vaidade. Suas performances são, antes de qualquer coisa, tentativas de alcançar a última fronteira da arte, que é também a primeira: o próprio corpo. Pela remodelagem deste significante único que é o corpo próprio, com o auxílio das modernas técnicas cirúrgicas e da computação gráfica, ela confecciona este ready-made modificado que é o seu autorretrato.

De acordo com a artista, trata-se aí da construção de um autorretrato, entendido no sentido clássico do termo, mas com a diferença de ser talhado com os instrumentos que a contemporaneidade nos aporta. Nota-se que um autorretrato, tal como concebido “classicamente”, é uma figuração, uma espécie de outro de si mesmo, um duplo que se destaca e nos representa; ainda que indicando, para além da ficção, o real da Coisa. Ao confeccioná-lo sobre a própria carne, extingue-se esta dimensão mais próxima da ficção, em favor de um realismo que abole, de maneira radical, a distância entre arte e vida.

Esta construção realizada em carne viva questiona o espelho, não apenas em relação aos mecanismos do narcisismo – em sua pretensa diminuição da agressividade – mas, sobretudo, em sua função de limite: como barreira que não deve ser transposta. Através da desconstrução e reconstrução de sua própria imagem, pelo viés, portanto, da destruição dos bens, Orlan desvela a Coisa em sua potência insistente e cruel. Se considerarmos legítimo nos valer do conceito de sublimação para abordar suas performances cirúrgicas, poderíamos dizer que seu trabalho atesta, mais do que qualquer outro, que a sublimação nem sempre se faz no sentido do belo e do ideal. E que a violência, a crueldade e a carne crua podem ser objeto da arte sem que esta perca sua visada sublimatória. Procede, no entanto, discutir se o conceito de sublimação é suficiente para responder pelo ato de artistas como Orlan, dada a ausência de distância entre o corpo próprio e o significante modelado que é a obra, questão sobre a qual nos deteremos adiante.

Este modo de tomar o corpo como objeto já se insinuava em outros trabalhos da artista, dentre os quais se destaca a obra “Le baiser de l´artiste” (1976). Nela, Orlan oferece seu corpo na interação com o expectador que, tendo depositado cinco francos em um orifício da “obra” – composta como uma espécie de “máquina” com a qual a artista veste seu corpo –, se poderia tanto acender uma vela à “Santa Orlan” quanto usar sua boca, beijando-a. Ato que, segundo a artista4, gerou muita reação e polêmica, e que constituiu um marco dentro de sua obra.

A ideia das performances cirúrgicas (1990-1993) se dá em um segundo tempo, e nasce de um acidente, uma intervenção cirúrgica a qual ela teve de ser submetida em caráter de urgência quando participava de um festival de performances em Lyon. Na ocasião, através do registro em vídeo e fotografia, a artista se apropria do incidente fazendo, do acidente, arte. Deste acontecimento surge a inspiração para a série de performances que se seguirão – até o presente momento sete – através das quais ela inscreve, em seu corpo, traços recolhidos da história da arte.

De acordo com a artista, este modo de interferir sobre o corpo se sustenta nas reflexões de Artaud, do qual se aproxima por partilhar a ideia de que o homem é infeliz por ser mal construído. A solução encontrar-se-ia na desconstrução e reconstrução do corpo próprio. Ambos perseguem a palavra cruel, aquela que não pode ser separada do corpo. Cada um à seu modo pretende transformar o corpo em linguagem. Em Orlan, esta transformação do corpo transpõe a cobertura produzida pela imagem corporal e visa modificá-la completamente, deixando inalterada apenas a voz.

Levando às últimas consequências a proposição do corpo como objeto, como ponto final deste processo antecipa: “eu dei meu corpo à Arte, então, depois de minha morte ele não será dado à Ciência, mas colocado em um museu, mumificado ou revestido por resina, ele será a peça principal de uma instalação interativa com vídeo” (Orlan citada por Falbo, 2003, p. 130). A arte de Orlan, assim, explode as representações que possam capturar o corpo, apresentando-o, consequentemente, como objeto-arte para além dos ideais da cultura ou de um organismo que se quer natural e biologicamente dado.

 

Algumas notas sobre o corpo em psicanálise

Sabemos que, para a psicanálise, o corpo não é dado naturalmente, mas construído. Já em sua metapsicologia, ao definir a pulsão como uma força constante que se satisfaz através de objetos não estabelecidos a priori ou pré-determinados, Freud (1915/1969) apresenta uma concepção de corpo muito distante daquela que poderia ser identificada ao corpo biológico. Ideia que vai progressivamente se radicalizando e que ressurge com força ainda maior em “Além do Princípio do Prazer” (1920/1969), com a introdução do conceito de pulsão de morte. Este conceito recorta um excesso, uma porção irredutível à homeostase ou a qualquer outra regra, e que Lacan (1959-60/1991) posteriormente nomeará gozo: um modo de satisfação estreitamente relacionado ao real do corpo.

No início do ensino de Lacan, o gozo é primeiramente situado como presença que escapa ao imaginário e ao simbólico. Se o corpo do Estagio do Espelho é forma – Gestalt – ou alteridade a partir do qual adquirimos a noção de um em si mesmo, de um eu; o que escapa a essa unidade se apresenta como resto irredutível a qualquer feitio que possa ser especularizável. Neste contexto, a identificação à imagem do corpo unificado constitui “a nova ação psíquica” (Freud, 1914/1969, p. 93) que Freud pressupunha operar na passagem do autoerotismo para o narcisismo. Passagem necessária para que o sujeito possa advir: do informe inerente ao autoerotismo, através desta nova ação psíquica, o sujeito se antecipa como unidade ideal, pela constituição e identificação à imagem do corpo unificado.

No campo do narcisismo, o corpo é apreendido por suas vestes imaginárias e pelos significantes. Nessa vertente, as escolhas amorosas, os ideais e a existência seriam uma busca incessante do narcisismo, dito primário, mito de uma suposta completude perdida. Ainda nessa via, o eu seria “um precipitado de relações objetais abandonadas” (Freud, 1923/1969, p. 43), cemitério de identificações, resultado da incorporação de traços dos que, outrora, nos investiram.

Para que o corpo possa se constituir como unidade, no entanto, faz-se necessária uma perda, a perda de uma porção de si que se destaca como objeto. Tal formulação teórica se explicita, na obra de Lacan, em seu seminário sobre a angústia (1962-63/2005). Nesta versão, o dito “trauma do nascimento” – ao qual se referiram Freud e Otto Rank – remete, não à separação da mãe, objeto que já estaria no plano das relações libidinais, mas de uma parte de si que se destaca: o cordão umbilical e a placenta, restos reais que devem cair para que o corpo se constitua como unidade. Assinalando o lugar fundamental da perda na constituição do corpo próprio, Lacan (1962-63/2005) evidencia, como originário, o corte; corte como constituinte do vivente, através do qual se destaca um resto, nomeado em sua álgebra (Lacan, 1964/1979), objeto a: alteridade que se desprende para que a unidade possa se constituir.

Esta função de corte, delineada por Lacan, é o que lhe possibilita interpretar a frase freudiana “o destino é a anatomia” argumentando que esta máxima só:

... se torna verdadeira se atribuirmos ao termo ‘anatomia’ seu sentido estrito e, digamos, etimológico, que valoriza a ana-tomi, a função de corte. Tudo que sabemos de anatomia está ligado, de fato, à dissecação. O destino, isso é, a relação do homem com essa função chamada desejo, só adquire toda a sua animação na medida em que é concebível o despedaçamento do próprio corpo, esse corte que é o lugar dos momentos de eleição de seu funcionamento (Lacan, 1962-63/2005, p. 258)

O “corpo vivo”, esta porção irredutível ao imaginário e ao simbólico, é o corpo afetado pelo gozo; gozo que se constitui e se destaca em virtude da incidência dos significantes que o recortam e erogenizam. “Substância gozante” (Lacan, 1972-73) que só se articula posteriormente, já como significante, suporte material. Uma matéria que, posteriormente, poderá vir a encarnar imagens, produzir ideais e, por vezes, um eu unificado.

Aqui mais uma vez Lacan reencontra Freud, quando este último postulava a libido intrinsecamente mesclada à pulsão de morte. Noção que se articula ao problema colocado pela repetição como busca de satisfação – inexoravelmente fadada ao fracasso, já que há defasagem entre o que se encontra e o que se procura. Uma busca marcada pelo desencontro e pela não harmonia: o impossível da relação entre o eu e o mim, entre o sujeito e o objeto, entre o sujeito e a alteridade, entre a imagem corporal – i(a) – e o corpo – (a). Daí, o aforisma lacaniano: “não há relação sexual”, pois o que está sempre no mesmo lugar é o real como impossível.

Verifica-se, assim, que a concepção de corpo em psicanálise não se restringe apenas ao que se arquiteta em função dos ideais e da boa forma. Na perspectiva da psicanálise, o corpo é também “saco de pele” (Lacan, 1955-56/1985), um continente que contém as partes e que está sujeito à afetação de traços e letras: o corpo como polo condensador de gozo. Tal maneira de encarnar o corpo, considerando-o irredutível à boa forma, tem consequências clínicas importantes, ao evitar que o analista seja conduzido por julgamentos de valor, como por exemplo, considerar inconstituídos, ou em défict, os corps morcelés inerentes ao infans e a certas psicoses – como a esquizofrenia e o autismo.

 

Breves considerações sobre a sublimação

Obras como as performances cirúrgicas de Orlan, que nitidamente se situam em uma vertente diversa da imagem construída pelo narcisismo, nos enviam às ambiguidades que envolvem os conceitos de sublimação e de idealização nas obras de Freud e Lacan. Remetendo-nos ao processo de constituição subjetiva, lembramos que a imagem edificada pelo narcisismo – i (a) – constitui uma antecipação; um ideal que recobre o corpo despedaçado do autoerotismo, este último designado na notação lacaniana por (a). Neste caso, trata-se de uma operação ligada à idealização e que Freud, em Introdução ao narcisismo (1914/1969)5, faz questão de distinguir da sublimação. Destacamos que estes dois conceitos encontram pontos tanto de aproximação quanto de distanciamento, que procuraremos indicar um pouco adiante.

Como marca Freud, em 1914, a idealização é um processo que concerne ao objeto e está estreitamente ligado ao narcisismo; já na sublimação, vicissitude da pulsão, o que está em jogo não é o objeto – objeto imaginário –, mas a construção de trilhamentos: a criação de trajetórias nas quais se recorta o vazio que constitui o objeto da pulsão. Seguindo ainda com Freud (1914/1969), através de Lacan, ainda que seja indissociável da imagem, a sublimação – tal como edificada na arte – é um destino que não passa pelo recalque e que não visa o imaginário; visto que nela se circunscreve o ponto não especularizável, porção não recoberta pela imagem. Em contrapartida, no entanto, o desenho talhado pelo circuito pulsional só pode ser concebido através do estabelecimento de um contorno. Operação que implica a tensão entre figura e fundo, através da qual – recortando o vazio que constitui das Ding – dá-se, correlativamente, a produção de uma imagem que vela e, simultaneamente, indica o furo que sustenta a imagem.

Poderíamos dizer que a contraposição e articulação entre a idealização, a sublimação e o narcisismo indica a possibilidade de modos diversos de se pensar a construção da imagem de si: uma que encontraria no narcisismo o solo primário de seu fundamento, outra no qual a imagem que configura o eu se produz secundariamente. No caso da imagem construída pelo viés do narcisismo, na medida em que o ponto não especularizável do corpo consegue se separar como objeto “fora do corpo” – falo – é possível que a imagem de si produza uma forma unificada, uma gestalt. Nos termos de Lacan (1958, p. 559, nota de 1966/1998), tal operação concerne à extração do objeto pela qual se forma o quadrângulo da realidade – como uma espécie de banda de moebius do esquema R, para todo sujeito neurótico.

Se em Introdução ao narcisismo (1914/1969) os comentários de Freud acerca da sublimação e da idealização incidem, contudo, sobre os pontos de disjunção entre eles, há outras passagens em que tal distinção se torna menos nítida. Como a sublimação é um conceito no qual está intrinsecamente presente a ideia de valor, e mesmo não visando a imagem narcísica não possa de ela prescindir, sublimação e idealização parecem ser muitas vezes convergentes. Quando interpretamos a referência ao valor como valor de gozo, no entanto, uma nova perspectiva se abre. Embora não tenhamos a pretensão de solucionar os impasses colocados pelo conceito de sublimação, como leitura possível propomos que: na sublimação, a constituição da imagem se faz secundariamente; o que se visa é o trajeto da pulsão, trajetória que recorta o objeto e, consequentemente, delimita um campo que tem, como efeito secundário, a produção de uma imagem.

Acreditamos que este ponto de vista pode ser corroborado pelas articulações teóricas de Lacan no seminário De um Outro ao outro (1968-69/2008), no qual ele retoma o tema da sublimação inicialmente abordado em A ética da psicanálise (1959-60/1997). Depurando seu pensamento sobre a questão, Lacan distingue duas vertentes da sublimação. Na primeira, sublimação e idealização são processos convergentes e encontram, no amor cortês, seu paradigma. Neste viés, ao elevar um objeto qualquer – a Dama – à dignidade da Coisa, conferindo-lhe um valor que enaltece o objeto, sublimação e idealização são convergentes. Na segunda abordagem do conceito, no entanto, destaca-se mais sua dimensão propriamente pulsional: operar com a pulsão. Entendemos que por esta vertente seja legítimo discutir a criação de trabalhos como os talhados por Orlan em sua Arte Carnal.

Tal como se havia indicado em A ética da psicanálise (1959-60/1997), há modos de articulação do discurso que não estão devotados ao engodo, lei que governa o princípio do prazer. Na arte, ao isolar um significante da cadeia e modelá-lo, o que se desvela é a sua vertente ligada à nominação. Não o significante em seu sentido estrito, como aquele que opera em oposição a outros significantes, articulado à cadeia, mas como matéria: letra que faz litoral, corte que indica o vazio – a ausência do objeto. A arte seria um processo de escritura que visa o corte que estabelece a letra, aquilo que constitui a borda do corpo como litoral. Nossa proposta é aproximar esta segunda via da sublimação, sua vertente mais pulsional, ao que posteriormente foi problematizada na obra de Lacan – através da análise que faz de James Joyce – como sinthoma: um modo peculiar de enodamento através do qual se edifica um retrato de si, uma das versões do pai.

Poder-se-ia objetar, em relação à nossa proposição que, em O sinthoma, Lacan (1975-76/2007) não faz qualquer menção ao termo “sublimação”. Em A ética da psicanálise (1959-60/1997), no entanto, ele faz uma observação bastante interessante: “introduzir a função do pai como primordial representa uma sublimação” (Lacan 1959-60/1997, p. 178). Acreditamos que o sinthoma possa ser lido como um modo de sublimação. Ao pluralizar o Nome-do-Pai, abre-se caminho para se pensar outras modalidades de enodamento que prescindam do recalque como operação lógica que estrutura a linguagem, assim como para se propor a sublimação como um modo de civilização do gozo que pode operar pelas duas vias anteriormente mencionadas.

Como processo de nominação que estaria na origem da estruturação da linguagem, a sublimação concerniria a um primeiro tempo, momento em que o significante provoca uma primeira marca, a inscrição de um traço que indica a Coisa. Nota-se que, no texto freudiano, a Coisa marca a instituição do primeiro esboço de alteridade: o próximo. Este, que é o mais próximo do homem, concerne a algo absolutamente primário: o grito; um grito mudo que é o rascunho da alteridade. Vale salientar que o próximo não é equivalente ao Outro, ou seja, não serve para fazer funcionar a presença da articulação significante do inconsciente. Nas palavras de Lacan (1968-69/2008): o “próximo é a iminência intolerável do gozo. O Outro é apenas sua terraplanagem higienizada.” (Lacan 1968-69/2008, p. 219). O Outro é “um terreno do qual se limpou o gozo” (p. 220), é aí que se situa o inconsciente estruturado como linguagem; enquanto que a Coisa é o lugar do gozo.

A sublimação, como modo de operar com a pulsão, concerne à Coisa, como se atesta a partir da satisfação inequivocamente em jogo em alguns modos da arte: uma satisfação que, embora circunscrita, adentra o terreno mais além do princípio do prazer – gozo. Situar as performances cirúrgicas de Orlan como sublimação é, contudo, assumir uma posição controvertida, tendo em vista que há outras versões sugeridas por psicanalistas de orientação lacaniana como Jacques Allan Miller. Tomando a sublimação como um processo de “significantização”, ele propõe outro conceito para responder por atos como os de Orlan: a corporização.

Discernido – na obra de Lacan – duas dimensões que concernem às relações do corpo com o significante, Miller (1999/2004) situa primeiramente o corpo como uma matéria passível de ser “significantizável”. Nesta dimensão, o corpo se oferece como suporte ao significante e, através da construção do falo, torna-se significante do corpo. Tal transformação significante do corpo é por ele interpretada como uma elevação, do real e do imaginário, ao simbólico. Neste caso, a “elevação” dar-se-ia pelo distanciamento da função de uso do objeto que, então, é alçando à categoria de símbolo. Como contraponto à elevação de um objeto ao status da Coisa ou ao símbolo como fallus, haveria a corporização, processo que concerne à entrada do significante no corpo. A este respeito, propõe interpretar a incorporação, não pelo prefixo in de negação, mas como resultado de um processo que inclui o “saber que passa pelo corpo e afeta o corpo” (Miller, 1999/2004, p. 66), sem a intervenção da negativização. Como homólogo a esse acréscimo próprio ao incorporado, Miller propõe o termo corporização para os fenômenos contemporâneos que não pressupõem, como escreve tradicionalmente o esquema da fantasia, uma negação.

No caso da fantasia, temos um objeto que surge como ausente, como (-φ); quadro que nos remete a uma afirmação (Bejahung) que se produz sob fundo de uma negação (Austossung), e que constitui e conforma a tela que configura a realidade. Em contrapartida, no caso da corporização, o corpo seria afetado pelo significante sem passar pela figura sublimatória – interpretada por Miller apenas pelo viés da “significantização”. Por esta vertente, o acontecimento de corpo se apresentaria como um efeito corporal do significante no qual o Outro só comparece porque goza do sujeito e não como tesouro ou sistema articulado de significante – como saber. Uma vez que identifica o processo de sublimação à “significantização”, Miller não considera apropriado utilizar este conceito para obras que se situam no viés indicado pelas performances cirúrgicas de Orlan.

A partir das contribuições de Miller, perguntamo-nos se a Arte Carnal de Orlan não nos indicaria, justamente, uma dupla vertente da sublimação: uma mais nitidamente enlaçada e delimitada pela “beleza” e às coberturas que instituem o objeto – próxima do que ele nomeia “significantização”; e outra, bastante evidenciada pelas produções artísticas contemporâneas, nas quais, operando pelo viés dos bens e pela destruição dos objetos que o recobrem, se rasga o véu, desvelando o ato de criação como corte. Corte que tem, paradoxalmente, a intenção de fazer valer o corpo como corpo significante, significante sem significantização, ou seja, que não opere pela oposição significante, cadeia articulada, mas da letra.

 

Considerações finais

A partir das inúmeras questões que as performances cirúrgicas de Orlan suscitam no que concerne ao narcisismo, à criação, à sublimação e à constituição da imagem de si, verifica-se, mais uma vez, que o artista segue sempre muitos passos à frente do saber construído pelo psicanalista; não apenas iluminando o caminho, mas, sobretudo, interrogando suas construções teóricas, exigindo retificações e nos instigando a avançar. Os enigmas postos pela arte, em alguns casos, além de nos convocar ao trabalho, também nos auxiliam efetivamente a deslindar nós extremamente complicados, como atestam, por exemplo, os estudos que Lacan faz através da arte de Joyce. Um olhar mais cuidadoso pela história da arte, no entanto, nos permite apreender que não é somente a psicanálise que se serve da arte, haja vista a ressonância do discurso psicanalítico na produção de muitos artistas.

Neste espaço delicado que é o litoral no qual se tecem os estudos que articulam psicanálise e arte, muita coisa se produziu; algumas inclusive fortemente criticadas por Lacan como, por exemplo, as “psicobiografias” de artistas. Estas são esforços de elaboração teórica que procuram interpretar a obra de arte a partir da “subjetividade” do artista, e vice-versa. Com relação a esse ponto destacamos um dado curioso: a posição assumida por Lacan em O sinthoma, um dos raros momentos – além do estudo sobre Gide (Lacan 1958/1998) – em que o psicanalista francês se vale da articulação entre a vida e a obra de um artista para sustentar suas teses e tecer seus comentários.

Essa é certamente uma postura que nos equivoca, dada a crítica que Lacan (1964/1985) dirige a Freud (1910), por interpretar a arte de Leonardo da Vinci através de sua fantasia fundamental. Com relação a este momento da teorização de Lacan, o enlace entre a biografia e a obra talvez possa ser explicado pelo fato de que, em Joyce, o que é posto em questão não é tanto a obra, mas a função da obra para o artista; para, através de ela, recortar elementos que lhe permitam discernir e discutir os diferentes modos de enodamento pelos quais um sujeito se sustenta.

Joyce, de certo modo, também constrói seu “retrato”. De acordo com Lacan (1975-76/2007), a inscrição do falo em Joyce é capenga, e é a sua arte que cumpre a função de suprir, de firmeza, o falo. A arte, neste caso, é a fiadora do falo: esse “pedacinho de pau com função de fala” (Lacan, 1975-76/2007, p. 38). Com seu modo de fazer com a língua, o que o savoir-faire do artista atesta é que o quarto termo – o sinthoma – pode estar configurado de muitas maneiras. O pai é um sintoma ou um sinthoma. Estabelecer o laço enigmático do Imaginário, do Simbólico e do Real implica ou supõe a ex-sistencia do sintoma: se estão separados, eles podem ser ligados por um quarto termo. A partir do que se extrai do estudo sobre Joyce, para nós psicanalistas, o problema passa a ser: “como uma arte pode pretender de maneira divinatória substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistencia e em seu furo?” (Lacan, 1975-76/2007, p. 38). Uma pergunta posta por Lacan e que continuará a exigir muito trabalho por parte dos psicanalistas.

Para finalizar, gostaríamos de marcar que não é apenas a arte que interroga e convoca o psicanalista ao trabalho, a psicanálise também tem uma incidência importante no trabalho de muitos artistas. No litoral entre estes dois campos, laços fecundos se estabelecem sem que suponha, no entanto, qualquer ordem de reciprocidade. Lembramos aqui o já clássico desencontro entre Freud e André Breton (Rivera, 2002). O jovem artista, profundamente afetado pela psicanálise, procura o psicanalista para com ele compartilhar suas experiências com o dadaísmo. E, em resposta, é recebido com frieza por um senhor que não se interessa por vanguardas e que estranha a utilização que o artista faz da ciência do inconsciente.

No caso aqui recortado – a Arte Carnal de Orlan – a psicanálise se faz presente de dois modos que precisariam ser distinguidos: em seu trabalho artístico e no seu processo de análise pessoal. Dois planos diversos, mas que acabam interligados devido ao amalgama entre vida e obra sobre o qual se edifica o trabalho de Orlan. De modo público e visível, como parte integrante das performances cirúrgicas, a psicanálise comparece através da leitura de um trecho do livro da psicanalista Eugénie Lemoine-Luccioni, La robe.

Através de Lemoine-Luccioni, Orlan recorta o mal-estar, o estranhamento de todo homem em relação ao seu próprio corpo: “Je n´ai jamais la peau de ce que je suis. Il n´y a pas d´exception à la régle, parce que je ne suis jamais ce que j´ai6  (Lemoine-Luccioni citada por Falbo, 2003, p. 128). As palavras da psicanalista, no entanto, a desagradam muito. Isto porque ela as interpreta na mesma direção que o discurso religioso, como se para a psicanálise o corpo fosse intocável; ideia por ela considerada um tanto anacrônica, tendo em vista os progressos da ciência médica (Miller, 2008). Opondo-se ao programado, à fatalidade genética e ao inexorável, através dos recursos que a medicina estética lhe aporta, ela decide construir seu autorretrato. Assim, valendo-se dos instrumentos que a ciência fornece, Orlan procura remediar a ausência de correspondência com a imagem que nos constitui.

É, portanto, no diálogo com a psicanálise que o empucho para as performances surge. A constatação de que o ser humano é malconstruído é o mote que a incita a realizar sua Arte Carnal e a tentar reduzir a distância entre “o que se tem e o que se é”. Trata-se, portanto, de uma resposta, um sinthoma feito da carência própria de relação entre dois termos: o sujeito e seu corpo. Uma carência que ganha forma através de seu trabalho como artista.

Como no seu caso vida e obra são indissociáveis, é preciso marcar uma outra incidência da psicanálise na construção deste ready-made modificado que é Orlan. Em entrevista concedida à Miller (2008), a artista revela que muito antes de dar início à sua arte carnal, ela se “rebatizou”; e que o nome que ela, a partir de então, usa é um produto de sua análise pessoal. De acordo com a artista, “Orlan” – este significante único que prescinde de outros, inclusive de sobrenome – é uma criação da análise: operação de corte que se realiza, ao que tudo indica, a partir de uma intervenção de seu analista. Nas palavras de Orlan:

A gente procura uma rubrica, a mais bela possível, com a qual vamos nos identificar, na qual nos reconhecemos. Eu me havia feito páginas e páginas de assinaturas, até encontrar a que considerei a melhor, aquela com a qual me identifiquei totalmente (...) as letras saltaram de maneira clara: “Morta”. Nem meus pais, nem meus amigos, nem meus amantes, nem eu mesma havia percebido que eu assinava há anos: morta. (Miller, 2008, p. 8 – tradução nossa)

Tendo percebido que sua rubrica compunha a palavra “morte”, Orlan recolhe algumas letras de seu nome de batismo, as que considerava como “positivas” na sua assinatura inicial, para compor um novo significante. Um trabalho que parece haver reordenado as letras que compunham sua assinatura, esvaziando o sentido que anteriormente selava seu rumo em direção à morte.

Para concluir, podemos dizer que Orlan – com Joyce – nos ensina que a produção deste traço unário – o significante-letra com o qual se enodam os registros para que eles possam se estruturar como cadeia articulada – é algo que se produz no ponto da ausência de relação, em face da qual o sujeito não pode ser representado integralmente por seu corpo. Esta falha, sobre a qual se edifica a per-version – a versão do pai – precisa, no entanto, ganhar forma. Na perspectiva da psicanálise, o percurso da arte de Orlan pode ser pensado nesta direção, sobretudo as obras que ela nomeia como l´Orlans-corps7. Mas, como não há relação de correspondência entre psicanálise e arte, no lugar onde o psicanalista poderia situar “Orlan” como uma versão do pai, a artista nos responde com a figura de Lilith, face noturna da feminilidade, uma mulher que, de modo diverso a Eva, não nasce da costela de Adão.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: freireanab@hotmail.com

Recebido em janeiro de 2008
Aprovado em agosto de 2008

 

 

Giselle Falbo: pós-doutora em Psicanálise pela Universidade Federal Fluminense (UFF); professora visitante do curso de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeira (UFRJ).
Ana Beatriz Freire: doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); professora do curso de pós-gradação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
1 Vale dizer que a artista em questão traz em seu percurso outras obras, inclusive autorretratos, que se situam mais no plano da ficção – “representação”.
2 O real ao qual nos referimos é aquele recortado pela psicanálise, próximo do real da ciência por se decantar através da operação significante, mas distante dela por situar algo que concerne à causa para o sujeito.
3 Destacamos que as performances cirúrgicas são apenas uma face da produção desta artista, produção que também é composta por outros trabalhos, nos quais o retrato se separa do corpo. Citamos aqui aqueles nos quais ela cria outras versões de si mesma recorrendo a uma figuração na qual mescla sua imagem a outras, usando como instrumento o computador.
4 Em entrevista concedida a Jacques Allan Miller em 2008.
5 Reiteramos que, ao longo da obra de sua obra, Freud dá diferentes inflexões para o problema colocado pela relação ou interação entre sublimação e idealização; dentre os quais, para a finalidade estabelecida neste artigo, recortamos e privilegiamos aqueles que nos auxiliam a desenvolver nossas teses.
6 A frase poderia ser traduzida por: Não tenho jamais a pele disto que sou. Não há exceção à regra, posto que nunca sou o que tenho.
7 Que são obras como lê baiser de l´artite ou a série de cirurgias performáticas, nas quais a obra não se descola de seu corpo.

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