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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.13 n.1 São Paulo  2005

 

 

Trajetória de vida e representações sociais acerca da prostituição juvenil segundo suas participantes

 

Trajectory of life and social representations about juvenile prostitution according its participants

 

 

Ana Maria Ricci MolinaI; Sérgio KodatoII

I Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo - Brasil
II Departamento de Educação e Psicologia - Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A prostituição juvenil tem sido representada como um acontecimento social que gera condições de vulnerabilidade psíquica, social e institucional. Esta pesquisa está baseada no referencial teórico-metodológico das representações sociais (Moscovici, 2002), com o intuito de se compreender as significações que emergem e circulam a respeito da prostituição, a partir das próprias profissionais do sexo. Foram entrevistadas 10 profissionais do sexo e, para a análise das informações, utilizou-se a técnica de associação de idéias (Spink,1996). Como resultado, pode-se afirmar que a prostituição é representada como um “mal necessário”: vista como um trabalho rendoso, que provê as necessidades materiais de subsistência do grupo familiar, mas também como um dispositivo simbólico de transgressão, por romper com as referências de assepsia do corpo e da alma, no social. Como conclusão, pode-se afirmar que a prostituição juvenil configura-se como uma opção política e “do desejo” no grupo social investigado.

Palavras-chave: Prostituição juvenil, Representação social, Sexualidade.


ABSTRACT

Juvenile prostitution has been addressed to as a happening that takes place due to the prostitute’s own will, as well as to a condition of self, social, and institutional vulnerability. This research is based on the theory and methodology (Moscovici, 2002) and seeks to understand the social representations concerning prostitution that emerge from the prostitutes themselves. The subjects were 10 (ten) female prostitutes. Data analysis was done using the technique of association of ideas (Spink, 1996). The interviewed prostitutes represent prostitution as a “necessary evil”: prostitution is seen as a job once it provides money to supply material needs, but it is also seen as a symbolic device due to transgression made to asepsis of the body and the soul, according to discourses from society. Concluding can be affirmed that juvenile prostitution takes shape as a desired political option of searched social group.

Keywords: Juvenile prostitution, Social representation, Sexuality.


 

 

Na antigüidade, na Europa, nas diversas concepções religiosas, essencialmente as politeístas, como a doutrina cátara, existiam as sacerdotisas como representantes legítimas da deusa da fertilidade. Estas ofereciam-se sexualmente, cujo objetivo era aumentar tanto a virilidade política quanto a econômica dos homens participantes. Em troca, esses ofertavam presentes e alimentos ao templo pela intermediação realizada. De acordo com Chevalier (1999, p. 746), “...prostituição sagrada (...) é destinada a assegurar a fertilidade da terra, dos animais, etc. Ela não era apenas um rito de fecundidade. Simbolizava a união com a divindade...”.

Na Idade Média, segundo Bauer (2001), esta relação entre espiritualidade e sexualidade também aparece. Entretanto, o discurso cristão endurece a idéia de que o corpo não era passível de sentir prazer através da relação sexual, por esta ser considerada uma prática pecaminosa. O corpo deveria manter-se limpo, purificado, sendo o sexo uma forma de sua contaminação.

Estas concepções se intensificam ao se configurar a instituição do casamento, que, é uma das técnicas a regularizar as atividades sexuais e sociais de nossa sociedade. Sua institucionalização viabilizou o controle econômico e político sobre o corpo e a herança entre as famílias, assim como a organização e a manutenção das relações sexuais para fins estritamente reprodutivos.

Na Idade Moderna, vê-se um efeito da institucionalização do matrimônio, que foi a consolidação de um ideal de família. Nesta época, o papel da mulher em nossa sociedade deveria o de manter-se sempre casta, pura e destinada à vida doméstica, enquanto para a prostituta permaneceu o estigma do pecado, identificando-a num território onde se produzem prazer e doenças. Esta representação, entretanto, produz um outro viés retratado por vários autores que colocam a sua utilidade social à medida que serviam para a reprodução da ordem vigente.

Por serem considerados essenciais na composição da ordem social, os serviços das “profissionais do prazer” eram tolerados, pois, com os homens reservando seus desejos e fantasias a estas profissionais, as donzelas e as mulheres casadas teriam sua virtude e sua higiene preservadas e protegidas. A prostituta não passava de um objeto que se poderia comprar, vender ou alugar como qualquer outra mercadoria comerciável. Utilizar-se de seus serviços não era vergonhoso, existia liberdade moral para isso, principalmente para os mais jovens.

No Brasil, Bauer (2001) comenta que, durante o período de colonização, o exercício da sexualidade deu-se por meio de um afrouxamento da repressão sexual, ou seja, o sexo acontecia entre brancos (europeus), índios e negros. Os jesuítas intervieram nesta situação autorizando a vinda de mulheres européias, principalmente as prostitutas e criminosas, para servirem aos homens sem suas famílias.

Dando um salto na história, e ao mesmo tempo comparando-a com um outro momento vivenciado na Europa, encontramos, no Brasil da década de 20 – 30, um processo de industrialização e, com isto, a valorização da produção de conhecimento localizado nas especialidades médicas e jurídicas, ou seja, os cuidados com o corpo e, assim, de uma pedagogia sobre as condutas a serem aprendidas principalmente por meio da rotina familiar (Costa, 1983). Esta nova ordem correspondia aos anseios da vida em comunidade dada a partir dos agenciamentos institucionais a favor da manutenção de uma determinada ordem social, que era a produção de capitais (Foucault, 1996).

Segundo Mazzieiro (1998, p. 7), o “...controle e repressão à prostituição se deram através da regulamentação policial-sanitária do meretrício...”1. Conseqüentemente, os sentidos sobre a prostituição ecoavam como o lugar do mal e dos perigos da carne, enfim, extremamente pecaminosos, devendo, portanto, ser regulamentados e controlados por meio dos diversos dispositivos dispostos à ordem do social, bem como de suas técnicas de exame e punição à assepsia pública de um acontecimento privado.

Atualmente, em geral, os estudos sobre a prostituição feminina relacionam-na como uma delinqüência social, na forma de desvio sexual (Sakuraba et al, 2001), ou, então, como resultante dos efeitos pós-traumáticos da pobreza e violência sobre a vida do sujeito (Simmons, 2000). Encontram-se, também, pesquisas indicando que a inserção do indivíduo na profissão “mais antiga do mundo” ocorre buscando sobrevivência material, ou para obtenção de substâncias consideradas ilícitas (Jones-Kosa, 1997).

E, a exploração do comércio sexual com crianças e adolescentes, constitui-se num campo de análise sobre a temática prostituição. Porém, segundo Gomes, Minayo e Fontoura (1999), há escassa literatura sobre o assunto, incluindo a inexistência de dados estatísticos confiáveis para legitimar as proposições e politizar a sociedade a respeito da questão.

No entanto, diante de um cenário social onde se articulam diversos fatores histórico-culturais, a prostituição infanto-juvenil fundamenta-se na comercialização do corpo por coerção/escravidão ou para atender a necessidades básicas de sobrevivência. Segundo Gomes, Minayo e Fontoura (1999), as representações sociais e relações estruturais, em torno dos relatos prestados à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre essa problemática, no Brasil, mostram a estreita relação entre os aspectos sociais, políticos e econômico-familiares.

Nesse sentido, Farinha (2001) aponta a crise econômica e social que atravessam as mulheres, ao optarem pelo comércio sexual ainda na adolescência e encontrarem, nesse espaço, uma possibilidade real de geração de renda suficiente e rápida. Tal escolha teria, como fortes influências, a necessidade de sustentar a família, devido à auto-responsabilização pela manutenção do grupo doméstico (o próprio, o dos filhos e de outros membros da família), e o baixo nível de escolarização, que dificulta sua entrada no mercado de trabalho.

É preciso, também, considerar as questões de saúde pública, relacionadas a esse segmento, que promovem vulnerabilidade pessoal e social por meio das DST-AIDS. Segundo Castillo (1999), há uma prevalência de portadores do vírus HIV em populações com exposições sexuais de risco, como as prostitutas. Além disso, ocorre o risco social e psicológico, como as marcas da exploração, coerção, tráfico e turismo sexual envolvendo crianças e adolescentes (Lorenzi, 1985).

 

Objetivo

Buscou-se, nessa pesquisa, realizar uma leitura compreensiva sobre as representações sociais que as participantes fazem sobre a prostituição, além de conhecer suas trajetórias de vida a partir do relato que realizam. Pretendeu-se produzir um conhecimento pautado na referência que a participante apresenta em relação à realidade que vivencia, de modo a contribuir para uma compreensão plural e múltipla sobre o fenômeno.

 

Método

Moscovici (apud Sá, 1993, p. 28) apresenta o fenômeno das representações sociais a partir do entendimento de que os indivíduos, “...mediante inumeráveis episódios cotidianos de interação social, produzem e comunicam incessantemente suas próprias representações e soluções específicas para as questões que se colocam a si mesmo...”.

Assim, diante de uma realidade social, procura-se tornar um novo objeto em familiar, incorporá-lo ao repertório interpretativo que o sujeito ou o grupo possui sobre o modo como explica as vivências do cotidiano. Dessa forma, buscará classificar e denominar o objeto; atribuir-lhe uma significação, enquanto mecanismo de ancoragem, e materializar a palavra por meio de uma equivalência não-verbal, ou seja, uma imagem que possa conter os sentidos sobre esse objeto incorporado – mecanismo de objetivação.

 

Procedimento

Sujeitos

Foram participantes desta pesquisa 10 (dez) profissionais do sexo, do gênero feminino, maiores de 18 anos, que se encontram em região pública de meretrício – a rua, especificamente nas Avenidas Nove de Julho e Brasil, na cidade de Ribeirão Preto - e que se iniciaram na prostituição com idade inferior a 18 anos.

Escolheram-se participantes do gênero feminino por ser a prostituição reconhecida, predominantemente, como um campo de exercício da sexualidade feminina. A quantidade de sujeitos, limite de 10, justificou-se devido à abordagem qualitativa que permite, por meio das histórias, uma visualização do que se repete, enquanto reincidência ou saturação das informações. Foram eleitos sujeitos com maioridade civil devido à dificuldade de acesso e de tempo hábil para esse contato ser realizado com jovens, que estão em condições de clandestinidade no exercício da prostituição.

Dessa forma, a amostra constituída foi a de mulheres com idade entre 18 e 24 anos, solteiras, apresentando evasão escolar em torno de 4ª.- 6ª. séries, além de não residirem com suas famílias desde quando se iniciaram na prostituição, em torno dos 12-17 anos, quando algumas já eram mães.

Coleta de Informações

A técnica para coleta de informações utilizada foi a da entrevista semi-dirigida, com jovens que se expõem para a comercialização sexual nas seguintes avenidas da cidade de Ribeirão Preto/SP: Nove de Julho e Brasil. Dessa forma, pode-se contar, para a análise do contexto social no qual ocorre o fenômeno, também com as impressões suscitadas pelas incursões ao campo de investigação, visando o primeiro contato com as possíveis participantes da pesquisa. Enfim, respeitaram-se alguns passos para coleta de informações e dados:

1) Autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP-USP (processo no. 064/2002 - 2002.1.898.59.0);

2) Apresentação da pesquisa (para uma profissional do sexo, que foi a intermediária entre pesquisadora e participantes);

3) Negociação (intermediação realizada e convite para sua participação);

4) Apresentação do Termo de Consentimento Informado;

5) A coleta de informações propriamente dita (entrevista na residência da participante).

A entrevista semi-dirigida foi composta por questões que norteavam o diálogo entre a participante e a pesquisadora. Levou-se em conta a trajetória de vida da participante (informações sobre família e escola), incluindo o momento de sua entrada na prostituição e o modo como explica essa atividade em relação a sua vida (em termos de para que serve e por que existe).

Análise das Informações

A análise das informações foi realizada por meio da técnica de associação de idéias, um processo de interpretação proposto por Spink (2000), por meio dos seguintes passos:

1) leitura das entrevistas e busca de familiarização com as bases teóricas sobre a temática;

2) para cada entrevista, empregou-se a técnica da árvore de associações de idéias. Compreende a decodificação das falas da participante e da pesquisadora, em esquemas semânticos que reproduzem o conteúdo promovido no contexto discursivo;

3) a partir dessa árvore associativa, buscou-se a regularidade entre as entrevistas, de modo a possibilitar a constituição de classes de equivalência semântica em função do enunciado realizado.

 

Resultados e Discussão

Para essa amostra, a família, a escola e a prostituição aparecem não como um momento segmentar na trajetória de vida das participantes, mas como espaços onde protagonistas e ações registram importância, por meio de cenas discursadas pela sua memória. A respeito da família, relatou-se: a existência de uma figura paterna ausente; de ser um grupo chefiado pela mãe que, em geral, é ou foi prostituta; apresentaram-se episódios de violência (física, sexual e psicológica) e uma condição sócio-econômica de baixa renda.

Questões de poder e de gênero articulam-se no enredo familiar, possibilitando uma leitura sobre o espaço nuclear como um campo para lutas e confrontações das forças que agenciam desejos, contextos e materialidades, lembrando que esse se encontra envolvido em um sistema cultural, simbólico e de infraestrutura precária.

Nesse sentido, a mulher assume a manutenção do grupo doméstico e ainda continua responsável pela educação dos seus filhos. Não foi só a saída do homem do grupo doméstico que possibilitou isso. Socialmente, a mulher foi conquistando, por meio do movimento feminista, um outro papel na sociedade, implicando numa mudança de postura e valores acerca de sua condição, inclusive na família.

Mas, quando se visualiza o exercício da sexualidade materna, registrado pela rotatividade de parceiros ou a prostituição e os benefícios disso para a manutenção do lar: “...os homens a buscavam em casa. Ela voltava com dinheiro. Com as coisas de comer, pagava o aluguel. Não deixava faltar nada...” (E04), questiona-se sobre como isso poderia influenciar na formação de sua filha.

Essa influência poderia ser a autorização para a possibilidade de manutenção do esquema familiar, que cotidianamente foi legitimado pela mãe, implicando a representação da negociação sexual como um agente de reprodução da vida. Outro agenciamento é relativo à flexibilização moral do sujeito frente ao exercício de sua sexualidade, pois a proximidade com o universo da prostituição pela participante, na figura de sua mãe, torna-se uma fonte de legitimação e referência no momento de resolverem-se conflitos existenciais e materiais. O comércio de corpos já está representado no imaginário da filha.

Mas, apesar dessas colocações, tem-se, por outro lado, mães que não foram apresentadas como profissionais do sexo ou com alta rotatividade de parceiros; sobre isso, o que pode ser discorrido?

E a respeito da violência familiar? Um acontecimento comum nos grupos familiares é o fato dos filhos presenciarem as brigas dos seus pais e até agressões físicas do parceiro ou companheiro com relação à mãe. Porém, dependendo da intensidade e da forma como ocorrem, podem gerar sentidos desfavoráveis ao desenvolvimento do sujeito, inclusive quando as agressões migram de protagonistas e contextos: “...nós vivíamos jogados de casa em casa. Madrasta judiava. Cansei...” (E06). “Jogados de casa em casa” relaciona-se com o destino migratório de suas moradias, sendo entendido como uma violência pelo próprio tom e ruído do discurso: “jogados”, de modo a representar o “eu” com desejos mudos e sem identificação, como um objeto para apropriação do outro.

Outro tipo de violência cometida em contexto familiar, nessa amostra, foi a sexual. Nesse contexto, a mãe rivalizou com a filha quando esta foi abusada pelo seu parceiro. E, ao invés de protegê-la, rejeitou-a, de modo a gerar sentimentos que permitiram sua exclusão do seio familiar: “...ele passou a mão em mim (...) contei pra ela. Ela disse que eu queria dar pra ele (...) minha família toda virou contra mim...”(E05).

Além disso, retrataram a escola como um espaço onde não desejavam estar, pois a rua, a “bagunça” e o estar com outros propiciavam mais sentido do que o aprender: “...mas eu via gente na rua. Eu queria estar ali...” (E01). Afinal, aprender o quê e para quê? São questões que perpassam o espaço institucional escolar, com sua formação e princípios educacionais a capturar o sujeito na lógica de sua cultura pedagógica.

Essa vivência de liberdade encontrada em outros espaços que não o da escola, como a rua, desdobra-se nas dificuldades que a própria instituição encontra para lidar com sujeitos que escapam de sua ordem. Então, é mais fácil produzir uma demanda de evasão escolar: “...a professora falou pra minha mãe, pode mudar sua filha de escola...” (E01).

Mas, antes mesmo da evasão escolar ocorrer, na adolescência, os relacionamentos amorosos que as participantes empreenderam possibilitaram o exercício de experiências sexuais, culminando em alguns casos de gravidez. A maternidade, nesse momento, tornou-se multiplicadora para outro posicionamento no social, agenciando a responsabilidade e a busca pela sobrevivência de seu filho.

Assim, diante dessas situações que culminaram em exclusões grupais, na família e na escola, buscaram alternativas de sobrevivência frente às angústias e dificuldades suscitadas. As fugas de casa tornaram-se uma estratégia para “respirar” diante do sufoco vivenciado, podendo ser esse momento de travessia para a prostituição: “...certo dia eu cansei. Eu não suportava mais. Eu peguei e fui morar na rua, com 12, 13 anos...” (E06).

Não é possível uma “visão escatológica” sobre a existência dos sujeitos que foram influenciados por esse conjunto de acontecimentos, se seriam encaminhados à prostituição ou não. Mas, sim, pode-se verificar que o modo como representam a prostituição possibilita um entendimento de como foi esse objeto construído ao longo de sua trajetória de vida influenciou o resultado encontrado.

Enfim, “...as representações sociais devem ser estudadas articulando elementos afetivos, da linguagem e da comunicação, a consideração das relações sociais que afetam as representações e a realidade material, social e ideal sobre as quais elas vão intervir...” (Lane, 1993, p. 61). Portanto, a prostituição foi, para essa amostra, uma estratégia de intervenção sobre a vida, que possibilitou toda uma transformação de sua realidade pessoal e social.

Nota-se que todas as participantes dessa pesquisa iniciaram-se na prostituição na fase adolescente de suas vidas, não sendo coagidas ostensivamente para tanto. Isso provoca uma discussão sobre o desejo investido na prostituição, tornando esse dado de extrema relevância para se pensar a questão da exploração sexual de jovens para fins comerciais e formas de intervenção.

Quando elas enveredaram-se pela prostituição, realizaram uma opção política e do desejo. Opção política porque foi por meio dos rendimentos auferidos pela prostituição que conseguiram modificar sua posição no grupo familiar: se tornaram chefes ou arrimo de família, conseqüentemente, passaram a ter poder econômico e, assim, político em relação às decisões e destinos de sua família, mesmo não residindo com seu grupo doméstico. Opção do desejo porque a prostituição, com seus códigos, vale para qualquer idade: seja criança, adolescente ou adulta, a mulher será subjetivada e passará a proceder conforme a cultura dessa instituição, implicando numa dimensão ética e estética sobre sua existência, pessoal e social.

“...como foi a decisão de ir pra rua? Ao invés de dar de graça. Dou por dinheiro...” (E01). Para se inserirem na prostituição, as participantes foram mediadas por facilitadores desse território, geralmente outras prostitutas. A discursividade “...pelo menos não ficava saindo com um e com outro e não ganhava nada...” (E02), produzida durante a mediação social da participante com a prostituição, por meio do facilitador, “...geram as representações sociais (...) revelam, em maior ou menor grau, a aventura da busca humana para dar sentido e entender sua própria existência no mundo...” (Jovchelovitch, 2000, p. 28).

Assim, ao ingressarem na prostituição, as participantes estão diante de uma instituição, com um sistema cultural e simbólico, e a adaptação se faz por meio do mecanismo de ancoragem, com a assimilação das regras dessa nova realidade: do nojo inicial para a frieza da negociação: “...eles param o carro. Perguntam o preço. Se eles pagarem. Você vai...” (E01). Portanto, a prostituição possui todo um movimento cultural e territorial para a subjetivação do sujeito, legitimando práticas coerentes à coesão psíquica daquele que nela se insere.

Ao se inserirem, apropriam-se de novas estratégias que lhes permitem a familiarização com essa situação e a representação da prática como inevitável e legítima: “...você opta por isso. Você tira a roupa porque? Por dinheiro...”(E05). A objetivação de uma nova interpretação moral se faz mediante a troca dos significantes: “gratuito” por “pago” e “amor” por “sexo”, o que vai naturalizando a cultura do comércio do prazer. O dinheiro é o objeto que possibilita esse movimento por meio do agenciamento da realidade social articulada com a sexualidade do sujeito. A naturalização ocorre através de um processo contínuo para a manutenção do posicionamento do sujeito, em que o cotidiano da prostituição gera conquistas com a realização do “programa”: “...comprava roupa, sapato, dinheiro para o filho...”(E01).

Na amostra dessa pesquisa, os discursos das participantes evidenciaram processos de exclusões que resultaram em uma baixa escolaridade, na falta de apoio familiar ou em oportunidades precárias de trabalho, como o doméstico: “...por causa do desemprego, falta de escolaridade...”(E06). Então, qual foi a saída encontrada? Numa dimensão simbólica sobre o processo de construção das representações sociais, a prostituição se apresenta como um território possível para a inclusão social, por ser este um espaço favorável à articulação do exercício da sexualidade com os benefícios materiais e de prazer: “...mulher gosta. Ou porque precisa...” (E04).

Assim, a prostituição não se apresenta do nada em suas vidas, é um objeto a ser compreendido e vivenciado a partir das referências construídas ao longo de suas histórias, por meio das representações sociais diluídas no cotidiano, provenientes de “murmúrios anônimos”, incorporadas ou recriadas, construindo um repertório interpretativo em relação à prostituição, o de se apropriarem desse fenômeno em suas vidas.

Nesse sentido, pontua-se, para discussão do encontro eu/objeto, compreendendo os seguintes valores atribuídos à prostituição pelas participantes:

1) Desfavorável: o uso do corpo para fins sexuais mercantilizados e a discriminação social, “vozes que registram pecado”: “...carrego o peso por não cuidar do corpo. Maior pecado do mundo...”(E09);

2) Favorável: ganhar dinheiro rápido e fácil e relacionar-se com vários homens, “vozes que enunciam posicionamento”: “...fica com um hoje. Com outro amanhã. Ao invés de ficar dando de graça. Lá eu ia ganhar dinheiro...”(E06).

Para que esse encontro (sujeito/prostituição) pudesse ocorrer, houve um diálogo entre esses dois sentidos norteadores citados acima. Surge, então, a representação central que as participantes dessa pesquisa construíram sobre a prostituição em suas vidas: a de um “mal necessário”. Reconhecer a prostituição como um “mal” foi uma nomeação dada diante dos valores diluídos no social, em relação ao fenômeno, lidos e ditos pelas participantes da pesquisa. E, como “necessário”, devido às possibilidades materiais que gera no cotidiano. “...você não pensa no prazer. Pensa no financeiro. É indecente. É maravilhoso...” (E06).

 

Considerações finais

Quem são as participantes que se incluíram nessa instituição, segundo essa pesquisa? Foram pessoas que se engajaram à prostituição como um “mal necessário”.

1. “Mal”, por reconhecerem as representações de marginalidade que, do social, emergem sobre o fenômeno, realizando o seu registro como um território que vai atentar contra a ordem pública: por ser caracterizada como uma perversão social pela ciência, uma prática delinqüente pela polícia e um ato pecaminoso pela religião e pela família.

As jovens envolvidas são como “profanadoras” do social, porém a serviço do mesmo, ao propiciar a manutenção da ordem social e familiar. São marginais e, paradoxalmente, plenamente integradas, freqüentando com a mesma desenvoltura o “shopping-center” e o “inferninho”.

Além disso, elas encontram-se tuteladas por uma “doutrina integral de proteção”, estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA tem fundamentos e princípios que responsabilizam os pais e a sociedade pela condição dos sujeitos dessa amostra. Contrapondo-se a essa noção, a pesquisa apresentada pode evidenciar, segundo sua amostra, o quanto as participantes desejaram estar fora de casa, buscando na prostituição uma estratégia de enfrentamento do cotidiano.

2. “Necessário”, por ser o discurso que narraram de suas vidas marcado pela vivência do sofrimento, do “abismo” formado entre realidade e idealização; e evidenciar uma das formas de enfrentamento dessa condição articulada com a possibilidade de geração de renda, por meio do único potencial que enunciam possuir, “dou a b... e ganho dinheiro”. Nesse caso, a prostituição seria uma estratégia de sobrevivência, por meio do corpo e do desejo.

Quem pode ir contra a força que essas jovens empenharam para resolver suas histórias e, assim, continuarem existindo? Entende-se que a prostituição torna-se uma estratégia para o enfrentamento do cotidiano, devido ao modo como os sujeitos lidam com o exercício de sua sexualidade: “dinheiro rápido e fácil”. Esse exercício “livre”, que rompeu com as representações sobre corpo purificado, amor romântico e monogamia, agenciou a singularidade de seu posicionamento, “ao invés de dar de graça dou por dinheiro”, discurso articulado pela junção sexo/dinheiro, como elementos que potencializaram sua história pessoal e social. Assim, a prostituição e essas jovens tornaram-se analisadoras da ética envolvida nas relações e nos códigos de conduta, assim como a respeito da sociedade e de suas instituições.

Ao se incluírem na prostituição, reconheceram a exclusão no social que iriam vivenciar (do preconceito e da discriminação), por participarem da vida social e dos discursos dominantes que circulam sobre o fenômeno, como de um ato pecaminoso e desviante. Mas flexibilizaram esse acontecimento pelas benesses dessa junção (sexo/dinheiro), circunscritas à viabilidade de geração de renda como potência para mobilidade de suas existências: pela mudança de seus posicionamentos na estrutura e dinâmica familiar, pela capacidade e poder de consumo que exercem e pela autonomia que evocam sobre seu corpo e seus desejos.

Enfim, a trajetória de vida dessas participantes foi analisada a partir da tentativa de se compreender a infindável busca humana por uma parcela de dignidade que lhes qualifique o cotidiano. Nesse sentido, pode-se dizer que a opção das jovens pela prostituição aponta para a busca, a procura de potência, poder, realização de desejo de consumo, às custas da venda de um pedaço do corpo. A apropriação de seus desejos implica expropriação de seus corpos, configurando-se numa ética-estética sobre a vida que redimensiona sua existência para a manutenção e a transcendência do corpo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Maria Ricci Molina
e-mail: aricci_molina@hotmail.com

Sérgio Kodato
e-mail: skodato@ffclrp.usp.br

Enviado em Maio/2004
Revisado em Abril/2005
Aceite final em Fevereiro/2007

 

 

1Artigo que analisa o período de 1870 a 1920, no Brasil, sobre a criminalização da sexualidade e estratégias para seu controle e punição tanto na esfera da repressão policial quanto na esfera dos cuidados com o corpo pela medicina.

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