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PsicoUSF
versão impressa ISSN 1413-8271
PsicoUSF v.10 n.1 Itatiba jun. 2005
ARTIGOS
Autoconhecimento e liberdade no behaviorismo radical
Self-knowledge and liberty in radical behaviorism
Olivia Justen Brandenburg*; Lidia Natalia Dobrianskyj Weber**
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
O presente artigo corresponde a um estudo teórico sobre o conceito do autoconhecimento e da liberdade no behaviorismo radical, com o objetivo de discutir a relação entre esses conceitos. Após a discussão sobre a definição do autoconhecimento e sobre sua origem social, a visão de Skinner sobre liberdade é abordada. A existência da liberdade depende do autoconhecimento, e esta é a ligação entre os dois termos. Conclui-se que ninguém pode se libertar do controle, mas com o autoconhecimento é possível modificar o ambiente e trocar controles coercitivos por reforçamento positivo, atingindo melhor qualidade de vida.
Palavras-chave: Autoconhecimento, Liberdade, Behaviorismo radical.
ABSTRACT
The present article corresponds to a theoretical study on the concept of self-knowledge and freedom in radical behaviorism, with the objective to argue the relation between these concepts. After discussing the definition of self-knowledge and its social origin, Skinner's vision of freedom is approached. The existence of freedom depends on the self-knowledge, and this is the linking between the two terms. The conclusion is that nobody can free of this control, but with self-knowledge, it's possible to modify the environment and change coercive controls for positive reinforcement and thus, achieve a better quality of life.
Keywords: Self-knowledge, Freedom, Radical behaviorism.
Autoconhecimento
"Há em geral muito o que desaprender em nos-sos primeiros contatos com a ciência do comportamento" (Skinner, 1993, p. 27). Discutir autoconhecimento sob o ponto de vista do behaviorismo radical implica certa "desaprendizagem", pois se trata de um modelo de explicação diferente do utilizado no cotidiano e nas teorias mentalistas. Este assunto está intimamente ligado a termos como subjetividade, introspecção e consciência, conceitos considerados por muitos como negligenciados por Skinner. Inúmeros equívocos têm sido cometidos em relação ao behaviorismo radical, não apenas por leigos, como também por profissionais na própria área da psico-logia, que acabam acarretando prejuízo na formação de estudantes (Weber, 2002). Ressalta-se a importância da dedicação de cientistas ao estudo de eventos encobertos, assim como a preocupação com estes assuntos na forma-ção dos psicólogos, para que equívocos e mitos não se perpetuem. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo discutir os conceitos de autoconhecimento e de liberdade sob a perspectiva do behaviorismo radical, buscando a ligação existente entre tais conceitos.
Definição de autoconhecimento
O campo da consciência está no conhecimento de si (Skinner, 1993). Se o autoconhecimento está relacionado à consciência, é preciso verificar como o behaviorismo radical aborda a consciência. Em primeiro lugar, "consciência" é uma metáfora (Matos, 1995), os termos mais corretos seriam comportamentos conscientes. A palavra "consciência" remete à idéia de uma instância psíquica, um self decisor, enquanto "comportamento consciente" aproxima-se mais à noção behaviorista.
Skinner define consciência como um comporta-mento encoberto. Diferencia-se dos behavioristas meto-dológicos, que não acreditavam na possibilidade de uma abordagem científica dos acontecimentos encobertos, ao contrário do que postula o behaviorismo radical (Skinner, 1982). Também se diferencia dos psicólogos mentalistas, que abordam a consciência como uma instância mental, com características próprias, e como causa de comportamentos. Já Skinner considera a consciência como um comportamento que ocorre no universo "encerrado dentro da pele de cada um", ou seja, encoberto. Importante é esclarecer que eventos encobertos não apresentam natureza diferente dos eventos abertos, apenas são de mais difícil acesso, sem proprie-dades de originar comportamentos (Skinner, 1993).
Consciência corresponde a um comportamento verbal de autodescrição (Weber, 2003). Trata-se da capaci-dade de descrever ou relatar seus próprios comportamentos ou, mais dificilmente, as variáveis que o controlam (Rose, 1982). Skinner (1982) afirma que a pessoa está mais consciente quando está mais sensível ao controle do ambiente, ou seja, aumenta sua capacidade de discriminar e assim descrever seus comportamentos.
Ter consciência de si corresponde ao compor-tamento de discriminar comportamentos próprios e variáveis que os controlam. O autoconhecimento é autoconsciência, então, autoconhecimento é autodis-criminação de comportamentos e estímulos a eles relacionados. Autoconhecimento é um comportamento verbal discriminativo; expressa um conhecimento sobre o próprio comportamento (Skinner, 1993).
Discriminação corresponde a um processo de reforçamento diferencial, que torna uma dada resposta mais provável diante de um estímulo específico (Catania, 1999; Skinner, 1993). Assim, o indivíduo emite comportamento verbal de descrição de seu próprio comportamento diante de estímulos discriminativos, por receber um reforço. Adianta-se aqui que este reforço é social, como será visto adiante.
O prefixo "auto" designa o objeto de conheci-mento. O que inclui o conhecer a si? Em parte, eventos abertos e, em parte, eventos encobertos. Na obra de Skinner, algumas vezes o autoconhecimento é tratado como discriminação de estados encobertos, e em outras, como discriminação de comportamentos do próprio indi-víduo, incluindo todo e qualquer comportamento, mesmo o aberto (Tourinho, 1993, citado em Marçal, 2003). Ressalta-se que, quando o indivíduo se auto-observa e autodescreve comportamentos encobertos, não está acessando com-teúdos já existentes dentro de si num lugar imaterial. O autoconhecimento não é um jeito ensinado para buscar algo no interior, também não é um caminho percorrido para atingir as profundezas do ser, é sim a descrição de comportamentos (Gongora & Abib, 2001).
Se autoconhecer-se é um comportamento verbal descritivo, difere do comportamento descrito. Skinner (1982) diferencia o comportamento e o relato deste ou de suas causas: os comportamentos são produtos de contin-gências ambientais, mas a descrição de comportamentos abertos ou encobertos é produto de contingências especí-ficas, verbais e organizadas por uma comunidade.
Vale abrir um parêntese aqui e lembrar que as contingências ambientais, relações de dependência entre dois eventos, controlam comportamentos independente-mente da "consciência" do indivíduo, por isso o compor-tamento operante é basicamente inconsciente (Rose, 1982). "As relações controladoras entre o comportamento e as variáveis genéticas e ambientais são todas inconscientes, de vez que não são observadas..." (Skinner, 1982, p. 133). Além de muitos de nossos próprios comportamentos não serem conscientes, as razões de sua ocorrência também não o são. Nem sempre as pessoas estão atentas às condições que antecedem seu comportamento, ou às conseqüências que ocorrem no ambiente, ou seja, não se discrimina a contingência. Assim, muitas vezes pergunta-se o porquê de uma atitude e o próprio indivíduo não consegue responder, acaba-se inventando razões para explicar o comportamento (Skinner, 1982). A falta de consciência das ocorrências ambientais, rela-cionadas ao próprio comportamento, facilita a crença de que as causas são internas ao organismo.
Voltando à diferença entre o comportamento descrito e o descritivo, existe uma dificuldade em se reconhecer que, ao descrever um comportamento, dois comportamentos ocorrem - o comportamento descrito e o comportamento de descrever. Comer uma fruta como resposta ao estômago vazio é uma coisa e descrevê-lo é outra, porque se demonstra saber que se está com fome. Esses dois comportamentos estão sob controle de variáveis diferentes, um não dependendo necessariamente do outro (Sério, 2001). As conseqüências do comportamento verbal descritivo são diferentes e especiais, por serem sempre mediadas por outras pessoas (Skinner, 1978).
O papel da sociedade (comunidade verbal)
Enquanto o senso comum e o saber religioso transmitem a regra de que o isolamento é necessário para se atingir o autoconhecimento, Skinner (1993) defende que isso só pode ocorrer na interação social. A origem da palavra consciência vem do latim com-science e significa co-conhecimento, ou seja, "conhecendo com outros" (Skinner, 1990). Sendo autoconhecimento consciência de si, então significa conhecimento de si com os outros. "Auto" indica apenas o objeto do conhecimento, não que o conhe-cimento seja produzido por si mesmo (Batitucci, 2001).
No behaviorismo radical o outro é necessário e imprescindível para o autoconhecimento. Isso só reafirma o caráter social do ser humano. "Não nos devemos surpre-ender com o fato de que quanto mais soubermos sobre o comportamento alheio, melhor nos compreendemos a nós mesmos" (Skinner, 1982, p. 148). O comporta-mento dos outros diz muito sobre quem cada um é, pois muitas vezes é nele que se encontram as condições antecedentes ou as conseqüências dos comportamentos.
Como, então, a comunidade pode proporcionar o autoconhecimento? Reforçando diferencialmente o com-portamento verbal de autodescrição. Assim, a comunidade verbal é a responsável pelo processo de discriminação, que torna o comportamento de autodescrição contingente a um estímulo discriminativo e a um reforço social.
O comportamento verbal surgiu na história da espécie humana como um marco diferencial. Trouxe di-versas vantagens, como maior possibilidade de cooperação, benefício do que os outros já aprenderam ao seguir regras, conselhos e instruções etc. (Skinner, 1978), sendo a mais importante, aqui, o surgimento do autoconhecimento.
Com a habilidade verbal, o ser humano passou a descrever seu próprio comportamento e tal descrição foi selecionada ao ser reforçada pela comunidade. Todo comportamento verbal é resultado de um processo de modelagem; os arranjos de contingências verbais numa comunidade são responsáveis pela construção do repertório verbal dos membros (Gongora, 2003).
Dentre os tipos de comportamento verbal defini-dos por Skinner (1978), o tato é de especial interesse na presente discussão. O tato compreende um conjunto de verbalizações controlado por objetos e acontecimentos do meio físico; corresponde a descrições de eventos físicos. Trata-se de um operante verbal que não especifica um refor-çador, podendo ser considerado apenas informativo (Baum, 1999). A criança aprende a dizer "isto é uma cadeira" diante da cadeira ou dizer "hoje o céu está azul" diante do céu azul, e é reforçada pela comunidade verbal ao emitir estes comportamentos verbais. Assim, a comunidade ensina todo o repertório operante verbal discriminativo que é usado para descrever o mundo (Gongora & Abib, 2001).
O tato pode descrever comportamentos abertos e encobertos do próprio indivíduo; é o autotato. Para reforçar discriminações de comportamentos abertos não há dificuldade, já que tanto o indivíduo quanto a comunidade compartilham do objeto descrito. O pro-blema evidencia-se no momento em que a comunidade precisa ensinar discriminações de estímulos aos quais ela não possui acesso. Tal obstáculo precisou ser em parte superado, pois sem o reforço social o indivíduo nunca conheceria seus comportamentos encobertos. "Só quando o mundo encoberto de uma pessoa se torna importante para as demais é que ele se torna importante para ela própria" (Skinner, 1982, p. 31).
Dessa forma, a comunidade verbal utiliza estratégias para ensinar autotatos. Skinner (1982, 1993) descreve três estratégias da comunidade para acessar indiretamente o mundo encoberto: a primeira delas é observar acompanhantes abertos correlatos (é o caso de falar "dói" diante de um corte na mão); a segunda, inferir um comportamento encoberto por meio de respostas colaterais (exemplo, dizer que a criança está com fome ao vê-la comendo vorazmente); a terceira é utilizar metáforas, ou seja, por generalização passa-se a usar palavras que designam características de eventos abertos para descrever os encobertos (como quando se diz sentir uma "dor aguda" ou "estômago vazio").
Há um esforço para desenvolver repertórios de autotatos, mas as estratégias possuem um alcance limi-tado, prejudicando a precisão da descrição de comporta-mentos encobertos (Marçal, 2003). Infelizmente, é uma limitação que não pode ser superada. A comunidade não possui maneiras de acessar diretamente o mundo encoberto para ensinar as discriminações adequadas. Nas palavras de Skinner:
nada é diferente enquanto não fizer diferença e, no que diz respeito aos acontecimentos do mundo dentro da pele, a comunidade verbal não foi capaz de tornar as coisas suficientemente diferentes. (1982, p. 31)
O autoconhecimento fica, assim, de certa forma, prejudicado, nunca será totalmente preciso. Esta limitação gera também outra conseqüência, a descon-fiança. Há tendência de suspeitar de dados acerca da estimulação encoberta, particularmente quando a des-crição tem outras conseqüências (Skinner, 1982; 1993).
A comunidade especializa-se em contingências autodescritivas, além de treinar a auto-observação insti-gando os membros a pensarem sobre si mesmos (Skinner, 1983). "Tanto os repertórios verbais autodescritivos como a auto-observação, elementos indispensáveis para o auto-conhecimento, são instalados a partir de contingências providas pela comunidade verbal" (Marçal, 2003).
A comunidade organiza as contingências para uma pessoa descrever o mundo aberto ou encoberto onde vive (mediante estímulos antecedentes - as perguntas, ou por meio de conseqüências) e então gera aquela forma muito especial de comportamento chamada "conhecimento" (Skinner, 1982). Assim, a comunidade verbal ensina o indiví-duo a se auto-observar e a descrever seus comportamentos, construindo o autoconhecimento. Como cada comunidade possui interesses diferentes, a maneira de uma pessoa se explicar aos outros e o tipo de autoconhecimento serão diferentes de uma comunidade para outra (Skinner, 1982).
Skinner (1982) afirma que o autoconhecimento é inicialmente útil para a comunidade e, mais tarde, para o próprio indivíduo. Tal utilidade está relacionada à previsibilidade e à obtenção de reforços. A comunidade pode prever a obtenção de reforços com o autotato. Há maximização das possibilidades de reforços e isso mantém a construção do autoconhecimento (Rose, 1982). Os com-portamentos são reforçados pelo seu efeito nas outras pessoas, e, sabendo o que ela sente, pode-se aumentar a eficácia do efeito (Skinner, 1982). Além disso, o próprio indivíduo é reforçado ao descrever seus comportamentos, quando consegue o que quer.
Ainda sobre o papel da sociedade para a construção do autoconhecimento, vale ressaltar que ela dispõe de um contexto especial em que o autoconhecimento se dá de forma mais sistemática e objetiva: o ambiente terapêutico. É certo que qualquer tipo de psicoterapia promove, de alguma forma, uma maior consciência de si no cliente. No entanto, a terapia comportamental se diferencia.
Tornar o cliente capaz de discriminar seus pró-prios comportamentos e as variáveis que o influenciam não é o objetivo da terapia, faz parte do processo, sendo necessário para capacitar o indivíduo a solucionar sozinho seus problemas (Batitucci, 2001). Com o auto-conhecimento, é possível partir para a construção de novos repertórios comportamentais.
Liberdade
Quando o indivíduo se torna consciente de seus comportamentos, e talvez também dos fatores determinantes, surgem diversas vantagens, como o verdadeiro "ser livre", o autocontrole e a possibilidade de modificar o seu comportamento.
Ser livre é um sentimento que vem sendo defendido há tempos, com o erro de ser enfatizado como "estado de espírito associado ao fato de fazer o que se quer fazer" (Skinner, 1993, p. 29). Um homem livre seria aquele que pode agir segundo sua vontade e pode realizar as escolhas de acordo com o que pensa. Esta realização das vontades, e propósitos, só é possível quando não há obstáculos. Assim, ser livre é estar longe de empecilhos que o impeçam de exercer a liberdade.
O ser humano vem lutando pela sua "liberdade" para evitar situações ou pessoas aversivas, ou seja, a sensação de ser livre está relacionada à fuga ou à esquiva de estímulos adversos (Skinner, 1993). Ninguém faz o que quer, e sim, o que tem que fazer para evitar a punição ou escapar dela (Skinner, 1982). Na verdade, são comporta-mentos selecionados pelo valor de sobrevivência, e a luta pela liberdade do ser humano tem sua funcionalidade. "É possível que a herança genética do homem favoreça esta espécie de luta pela liberdade" (Skinner, 1993, p. 27).
Nota-se que há uma falsa noção de liberdade, pois, analisando segundo a ciência do comportamento, o "sentir-se livre" está sendo mantido por reforço negativo (ausência de conseqüências punitivas), ou seja, o controle continua presente. Na verdade, todo comportamento hu-mano é controlado por uma variável ambiental, mais especi-ficamente pela história de reforçamento, não há alternativa.
A pessoa que afirma sua liberdade dizendo: "Eu resolvo o que farei a seguir" está falando de liberdade numa situação comum: O eu que assim parece ter uma opção é o produto de uma história da qual não está livre e que, de fato, determina o que ele fará agora. (Skinner, 1982, p. 145)
Como as pessoas não percebem o controle? Não há nenhum antecedente imediato que possa servir como causa plausível para o comportamento operante sob reforço positivo, o que faz as pessoas atribuírem a causa à vontade, ao livre-arbítrio (Skinner, 1982). Assim, as pessoas "fazem o que querem", e, conseguindo o resultado, o re-forço positivo fortalece tanto o comportamento emitido quanto a regra de que é uma vontade interna que determinou o comportamento.
Além disso, o sentimento de liberdade é reforçado pela comunidade porque quando as pessoas estão sob efeito do reforço positivo não exercem contracontrole. "Sentir-se livre é um importante sinal distintivo de um tipo de controle que se singulariza pelo fato de não produzir contracontrole" (Skinner, 1982, p. 169), sendo esse tipo de controle o reforço positivo. Skinner fornece o exemplo de um governo que, ao precisar levantar fundos, ao invés de obrigar as pessoas a pagarem taxas, organiza uma loteria; o controle existe nos dois casos, mas no segundo as pessoas "sentem-se livres" e não protestam.
Autoconhecimento e liberdade
Apesar de o ser humano ser reforçado a "sentir-se livre", ele não o é até o momento da tomada de consciência (Skinner, 1993). O que Skinner quer dizer, é que a liberdade só existe quando o indivíduo discrimina seus comportamentos e as variáveis que os controlam, ou seja, a liberdade depende do autoconhecimento. Como já foi visto, o autoconhecimento só ocorre na relação com a comunidade, e assim é a interação do indi-víduo com a comunidade que proporciona a liberdade. No entanto, o ser humano vem buscando o sentimento de liberdade em seu interior, e por isso Skinner (1982) afirma que o homem só vai conseguir sentir-se verda-deiramente livre quando reconhecer o que é, o que sempre fracassou por ele buscar a solução no lugar errado.
O extraordinário papel do meio ambiente abre a perspectiva de um futuro muito mais bem sucedido, no qual ele será muito mais humano e humanitário e no qual ele se conduzirá com maior habilidade porque se conhecerá mais acuradamente. (Skinner, 1982, p. 204)
Sendo a liberdade, segundo o ponto de vista skinneriano, possível a partir do autoconhecimento, ela sempre será limitada quanto aos eventos encobertos, tanto respostas quanto estímulos. A comunidade não é capaz de modelar a discriminação precisa de todos os comporta-mentos encobertos, e por isso o ser humano nunca se autoconhecerá totalmente e nem será livre totalmente. A liberdade total, como ausência de controles ou como autoconhecimento completo, não é possível.
Esta possibilidade desagrada a muitas pessoas por se opor a uma tradição de longo tempo, que encara o homem como um agente livre, cujo comportamento é o produto, não de condições antecedentes específicas, mas de mudanças inte-riores espontâneas. (Skinner, 1993, p. 20)
A inexistência da liberdade como ausência de controle e movida por vontades e desejos internos é difícil de ser aceita. Skinner (1993) explica esta dificuldade de aceitação não pela vaidade humana ferida: Freud afirmou que o narcisismo humano teria sofrido três reveses, com as teorias de Copérnico, de Darwin e a sua. A quarta perda poderia ser com a teoria de Skinner, como relata Weber (2003), mas, em verdade, o que ocorre é o fato de a formulação científica destruir alguns reforçadores aos quais o ser humano estava acostumado. "A desagradável responsabilidade da ciência tem sido a de pintar um quadro mais realista" (Skinner, 1993).
O maior conhecimento do real conceito de liberdade, dentro do behaviorismo radical, mostra que, em verdade, não há perdas e sim ganhos. A questão não está na possibilidade de sentir-se livre ou não. O impor-tante não é "libertar os homens do controle, mas sim analisar e modificar as espécies de controle a que se acham submetidos" (Skinner, 1993, p. 37). Esta visão é muito mais otimista, pois permite manipulação de variáveis com o objetivo de mudança tendo por base o autoconheci-mento e a liberdade. A nova forma de Skinner ver o homem não como um ser predeterminado, e sim em cons-tante aperfeiçoamento e de forma ativa, não passiva (Batitucci, 2001), permite muito mais o exercício da liber-dade do que em outros pressupostos teórico-metodológicos em que se seguem determinações anteriores e definitivas.
Já se dizia na literatura da liberdade, antes do behaviorismo radical, da importância de tornar as pessoas conscientes das situações adversas em que viviam, mas não se ofereciam alternativas para sair dessas situações (Skinner, 1993). Skinner cita um exemplo sobre "melhor ser escravo consciente do que escravo feliz", mas melhor ainda seria deixar de ser escravo, e é isso que o behaviorismo radical possibilita. Aí está a verdadeira liberdade, saber qual é o problema, poder manipular as variáveis e modificar seu comportamento e, conseqüentemente, a situação.
Tratar a liberdade como um sentimento que possibilita fazer as vontades pessoais é um erro, porque este ponto de vista impede de se lidar efetivamente com técnicas de controle (Skinner, 1993). A utilidade do autoconhecimento e, portanto, da liberdade, está justa-mente na previsão e no controle do comportamento (Skinner, 1982). A própria pessoa pode prever seu comportamento e fazer algo para fortalecê-lo ou evitá-lo, como ocorre no caso do autocontrole.
Skinner (1993) descreve diversas técnicas de autocontrole, como a restrição física, a mudança de estí-mulos, privação e saciação, uso de estimulação aversiva e assim por diante. Uma pessoa é capaz de controlar estímulos para modificar seu próprio comportamento. O autoconhecimento se comporta como ferramenta auxiliar para mudança de comportamento por meio do autocontrole, sendo uma condição necessária, mas não suficiente, para a aquisição de autocontrole (Beckert & Rodrigues, 2002). Ressalta-se que a probabilidade de modificação do meio é maior quando o autoconhecimento é mais elaborado, não sendo apenas a discriminação dos próprios comportamentos, mas também a discriminação das condições nas quais faz o que faz (Batitucci, 2001).
No autocontrole pode-se dizer que o compor-tamento é proposital. O propósito não é causa, é apenas o indício de que uma pessoa age com consciência das conseqüências reforçadoras. As razões são, segundo Skinner (1982), as conseqüências reforçadoras que mantêm o com-portamento; quando o indivíduo tem consciência dessas razões, pode-se dizer que o comportamento é proposital (Rose, 1982). Com isso, percebe-se como o autoconhecimento possibilita comportamentos propositais e, assim, maximização de reforçamento positivo para o indivíduo.
O controle por reforçamento positivo é o único tipo de controle não coercitivo (Sidman, 2001). A coerção, que envolve reforçamento negativo e punição, está muito presente na vida do ser humano sem que ele a perceba. Skinner demonstra isso ao descrever o controle exercido pelas agências controladoras (governo, escola, família, religião). Certamente, o controle coercitivo também promove autoconhecimento, mas tem seu lado negativo pelos pro-dutos colaterais que o acompanham, como comporta-mentos de fuga e esquiva que prejudicam o desenvolvi-mento de repertórios no indivíduo (Sidman, 2001).
Com o autoconhecimento, o ser humano pode planejar sua vida. Não pode ser totalmente livre, mas pode manipular o ambiente, trocando controles coercitivos por menos coercitivos (Carvalho Neto, 2000). Esta mudança contribuiria para um relacionamento interpessoal mais positivo.
Conclusões
Com o presente artigo, pôde-se esclarecer os conceitos de autoconhecimento e de liberdade. São termos importantes de serem discutidos, pois são muitas vezes mal interpretados, denegrindo a imagem do behaviorismo radical, visto como uma abordagem que não se importa com a subjetividade nem com a autonomia do ser humano. Comprovou-se que o behaviorismo radical estuda os eventos internos e possibilita a liberdade do indivíduo, mas de uma forma diferente.
Percebeu-se que o behaviorismo exige mudança drástica na forma de pensar sobre o ser humano (Skinner, 1982). O autoconhecimento é definido como comportamento verbal descritivo que permite a liberdade. Esta é a relação entre os dois conceitos, para o indivíduo controlar seu próprio comportamento precisa necessariamente se autoconhecer.
Skinner proporcionou um avanço científico. Os conceitos de autoconhecimento e liberdade são ferramen-tas que podem ser utilizadas na melhora da qualidade de vida do ser humano, e os psicólogos podem fazer uso delas. Seja qual for a área de atuação, o psicólogo está sempre trabalhando com outros indivíduos. Por um lado, ele deve se autoconhecer para agir da melhor forma com os outros, sempre atento para ser o menos coercitivo possível; por outro lado, pode proporcionar autoconhecimento na comunidade.
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Endereço para correspondência
Rua José Muggiatti Sobrinho, 83
82130-090 Curitiba-PR
E-mail: oliviajb@onda.com.br
Recebido em dezembro de 2004
Reformulado em maio de 2005
Aprovado em junho de 2005
Sobre as autoras:
* Olivia Justen Brandenburg é aluna do quinto ano do curso de Psicologia da Universidade Federal do Paraná e monitora da disciplina Análise Funcional do Comportamento.
** Lidia Natalia Dobrianskyj Weber é mestre e doutora em Psicologia Experimental pela USP, professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná e coordenadora do Núcleo de Análise do Comportamento.