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Construção psicopedagógica
versão impressa ISSN 1415-6954
Constr. psicopedag. vol.18 no.17 São Paulo dez. 2010
ARTIGOS
Mito de Eros e Psiquê um caminho possível para pensar a docência
Eros and Psyche Myth: a possible way to think teaching skills
Lídia Lacava*
Universidade Paulista, Campinas, SP
RESUMO
O presente artigo é resultado de pesquisa feita em Dissertação de Mestrado e tem com objetivo repensar e discutir a prática docente por meio da análise do Mito de Eros e Psiquê, trabalhado em Oficinas de Sensibilização. O foco de análise consiste no estudo das múltiplas formas de expressão Mito e Arte como possibilidade para uma reflexão-ação-reflexão sobre o ser e o fazer(-se) do professor. A pesquisa apresenta um estudo feito em Escola Particular, situada na cidade de São Paulo, com um grupo de nove professoras do Ensino Fundamental I. A metodologia adotada foi a de pesquisa-ação, em um estudo de caso com análise de conteúdo, na qual se buscou priorizar a categoria subjetividade envolvida na relação ensino-aprendizagem. Faz-se um paralelo entre as tarefas de Psiquê para resgatar o amor de Eros, com as tarefas do professor para uma práxis pedagógica que amplie a consciência de ser-si-mesmo para poder ser com o(s) outro(s). A fundamentação teórica vem, basicamente, de Lev Vygotsky, Carl Jung, Fayga Ostrower, Madalena Freire, Carlos Byington e Edgar Morin que trazem a importância das diferentes linguagens como elemento fundamental para se aliar a afetividade à razão, o subjetivo ao objetivo, o pensamento simbólico ao racional e lógico. Busca-se abrir espaços para uma ação docente criativa, crítica e compromissada com o momento sociocultural em que se vive.
Palavras-chave: Mito; Linguagem; Arte; Subjetividade; Educação; Formação docente.
ABSTRACT
The following article is the result of a Master Dissertation research intends to rethink and discuss the teaching practice trough the analysis of the Eros and Psyche Myth worked on Awareness Workshops. The focus of the analysis consists on the study of multiple ways of expression including the Myth and the Art as a possibility for a reflection-action-reflection about being and becoming a teacher. The dissertation presents a study made at a private school, based in São Paulo/SP, with a group of nine teachers from elementary school. The methodology used was the research-action, at a study case with subject analysis, on which was sought to prioritize the category subjectivity involved on the teaching-learning relation. A parallel is done between Psyche's tasks to rescue Eros' love with the tasks of the teacher for a pedagogical praxis that increases the awareness of being yourself to be able to be with the other(s). The adopted theoretical support is mainly from Lev Vygotsky, Carl Jung, Fayga Ostrower, Madalena Freire e Edgar Morin who brings the importance of the different languages as a fundamental element to ally affectivity to reasonability, subjectivity to objectivity, symbolic thinking to rational and logical thinking. The present project pursues to open spaces for a creative teaching action, critical and committed with the sociocultural moment where one is living.
Keywords: Myth; Language; Art; Subjectivity; Education; Teaching development.
Introdução
Em minha atuação profissional, questionamentos sempre se fizeram presentes em relação à dinâmica da aprendizagem e aos sujeitos nela envolvidos: ensinante/professor e aprendente/aluno. São singularidades, autorias de pensamentos e ações que, a partir de vivências únicas e significativas, ganham corpo e espaço deixando aflorar o self no processo (psico)pedagógico.
O professor, ao se reconectar com seu ser, com sua modalidade de aprendizagem, instaura novas qualidades na dinâmica relacional entre subjetividade e objetividade, real e ideal, razão e emoção interferindo na dinâmica do ensinar e do aprender. Este é um dos movimentos fundantes que marcam a aprendizagem humana, é um dos caminhos que venho percorrendo já há algum tempo e que, agora, surge como possibilidade para novas ampliações e ressignificações.
Através do contato com o Mito de Eros e Psiquê, trabalhado em Oficinas de Sensibilização, as professoras/sujeitos desta pesquisa foram convidadas a se encontrarem como protagonistas da sua própria história, dentro da história do Mito, com todos os riscos, incertezas e acertos que a descoberta poderia lhes trazer. As vivências tiveram como objetivo a ampliação da consciência, pois através delas chegou-se a questões, conscientes ou não, implícitas na prática pedagógica que, se tocadas e reordenadas, poderiam ser transformadas em novas posturas no exercício da docência.
Em pleno século XXI, vivem-se momentos de mudanças rápidas e atordoantes que colocam em conflito questões relacionadas à Educação, ao papel do professor, às reivindicações dos alunos gerando um clima de insegurança e contradições. Como lidar com tudo isso? Como não sucumbir ao medo, à paralisação? Uma nova concepção de sujeito se faz necessária, pois a época em que se privilegiava a racionalidade técnica já não basta, a visão de ser humano cindido e fragmentado também não pode ser mais aceita. Evidencia-se uma nova subjetividade, uma nova possibilidade de ser, na qual se busque uma maior integração entre atividades cognitivas, afetivas, sociais, éticas e políticas.
Neste momento, o Mito e a Arte podem ganhar um espaço de significação maior, oferecendo possibilidades para "poder participar de maneira mais integrada em um dos grandes saltos do espírito humano para o conhecimento, não só da natureza exterior, mas também do nosso próprio e profundo mistério interior". (CAMPBELL, 1990, p.XIII)
O pensamento de Carl Jung se fez presente nesta pesquisa, pois em seus estudos, afirma que o autoconhecimento e a adaptação ao mundo são dois polos em torno dos quais devem girar a Educação. Sugere que educar é um processo relacional, em que não é a ciência ou a técnica que está em jogo, mas a personalidade do educador é que se torna fundamental para a formação da consciência e da personalidade do educando. (JUNG apud TEIXEIRA s/d, p.26)
O estudo da relação professor-aluno sempre se fez presente na história da Educação, pois nela pode estar constelada a dimensão de uma dinâmica simbólica e arquetípica, no sentido de que não são somente conteúdos pessoais que são projetados no professor e no aluno. Afloram, também, conteúdos simbólicos que veiculam uma energia psíquica que poderá ser encontrada entre outros seres humanos, que também vivenciaram esses papéis desde o início dos tempos.
Jung (1964) amplia essas questões ao trazer a importância da linguagem simbólica e dos símbolos como registros da história do desenvolvimento da consciência, cujo processo poderia ser representado através dos mitos, contos de fada, obras de arte de todas as épocas e lugares. Desse modo, a cultura surge como mediadora para o entendimento da história do sujeito e dos processos de simbolização dando vez ao homo symbolicus esta é uma de suas grandes contribuições para a Educação. Perceber(-se) e (re)criar(-se) através dos símbolos são vivências significativas para que o homem possa (re)organizar suas experiências e ações. Surge daqui toda força e reconhecimento do estudo da linguagem simbólica, do Mito e da Arte.
Um olhar e escuta psicopedagógicos, aliando a Pedagogia à Psicologia e tendo a Arte como elemento mediador para se trabalhar o Mito, foi o foco central da pesquisa. Neste tipo de análise, a função da palavra, tomada em suas significações, é fundamental e deve-se levar em consideração aquilo que está por trás dela, aquilo que está implícito na mensagem que é desvelada através da produção artística. É um exercício de figura/fundo, buscando tirar a palavra de sua opacidade, deixando aflorar seu sentido mais preciso para o momento. Buscou-se realçar, nesse contexto vivencial em que as tarefas de Psiquê foram trabalhadas, as prováveis analogias com o ser e fazer do professor podendo, àquilo que fora evocado durante as vivências, ser direcionado para situações de vida pessoal e profissional das professoras.
Ao se analisar o papel da(s) linguagem(ns) e da Arte na formação e ampliação da consciência, tornam-se significativos os estudos de Lev Vygotsky (1989) ao analisar a relação homem/mundo. Postula que esta é mediada por sistemas simbólicos e a linguagem, vista como instrumento e produto social e histórico, se articula com significados objetivos, abstratos, metafóricos, abrindo possibilidades para uma atividade criadora e ao mesmo tempo racional, onde subjetividade e objetividade se entrelaçam.
O que este pesquisador traz em sua linha de pensamento, e enriquece este estudo, é o fato de que o homem se torna humano na relação com os outros que lhe são significativos e as emoções se constituem, também, em outro mediador importante nessa dinâmica. Afirma, ainda, que uma compreensão plena e verdadeira do pensamento de outrem só será possível quando entendermos sua base afetivo-volitiva. (VYGOTSKY, 1989, p.129)
As ideias de Vygotsky se atualizam, quando Edgar Morin fala da necessidade de se unir ciências e humanidades e romper com a oposição entre natureza e cultura. Em sua obra Os Sete Saberes Necessários à Educação (2000), este último educador e filósofo alerta para a complexidade das relações, para a importância do exercício da solidariedade, para o ensino da condição humana e para a não fragmentação do conhecimento. Ele faz uma reviravolta nos pressupostos antigos da Educação, que primava por um ensino compartimentado, fragmentado, cindindo e afastando a relação professor-aluno. Fala em unidade e diversidade humanas; fala em unidade mental, física, psíquica, afetiva e intelectual do sujeito e da cultura em que está inserido; afirma que não há "sociedade humana, arcaica ou moderna, desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim existe a cultura nas culturas". (MORIN, 2000, p.56)
É a abertura para um maior entendimento do Pensamento Complexo que o autor traz como uma das bases de sua pesquisa "complexo" do verbo latino "complectere", que significa "aquilo que é tecido em conjunto". Traz, assim, sentimentos e posturas que, embora contraditórias e opostas, (con)vivem dentro do ser. Como exemplo, tem-se: homem sábio e louco; trabalhador e lúdico; econômico e consumista; prosaico e poético, manifestando-se no cotidiano da vida pessoal e social.
Percebo quantos movimentos são vividos pelo professor sendo ora ator, ora autor de sua prática pedagógica. Ao experienciar situações de ensino e aprendizagem; ao lidar com amor e ódio, ação e intenção na relação com seu aprendiz; ao alavancar a importância da análise entre subjetividade e objetividade presentes na aquisição do conhecimento; ao buscar uma tentativa de síntese entre o uno e o múltiplo, a parte e o todo na ampliação do conteúdo a ser trabalhado, ele busca aguçar o olhar de seu aluno e o seu próprio, contribuindo para uma nova visão de realidade!
Abrir espaços para educar-a-ação a fim de transformar-a-ação do professor é fundamental, possibilitando a criação de oportunidades para que os sujeitos envolvidos (professor e aluno) em seu objeto de estudo (a busca pelo conhecimento) possam, em uma interação dialógica, vivenciar sua historicidade de maneira crítica, criativa e consciente, relacionando-a com sua comunidade, suas crenças e mitos questões que poderão contribuir de maneira significativa para o "ofício de ser e fazer(-se) do professor".
Ao refletir sobre a linguagem simbólica dos mitos e seu papel na Educação, os estudos de Carlos Byington, representante da Pedagogia Simbólica, também se fizeram importantes. Este educador e analista junguiano mostra o valor da formação e ampliação da consciência através do estudo do símbolo que, sob este enfoque, surge como uma forma de se contatar com a arqueologia da psique, de recuperar os vestígios da história do desenvolvimento da consciência pela utilização de vivências grupais com recursos expressivos, tendo no Mito o papel desencadeador de um sentido mais criativo para a ação, atendendo a compromissos da essência do ser humano. "Uma pedagogia centrada no ecossistema corpo humano/meio, dentro de um processo emocional, cognitivo e existencial do indivíduo, da cultura, do Planeta e do Cosmos. Esta é a Pedagogia Simbólica.". (BYINGTON, 1996, p.11)
1. Mapeando o caminho... a trilha encontrada
O percurso metodológico aqui empregado foi o de "pesquisa-ação" que visa auxiliar a reflexão dos sujeitos aliando à assessoria o desenvolvimento de modelos relevantes para o fenômeno estudado. (SPINK, 1979, p.31)
Até que ponto o vivenciar uma história através da Arte pode atuar como elemento mobilizador para expressar o universo pessoal do sujeito, servindo de ponte para contatar a realidade da qual faz parte? A "relação ativa" com a proposta, o contato com o material/experimento e o fazer artístico possibilitaram a criação de imagens, símbolos que deram sentido a significados, exteriorizando formas que desvelaram a singularidade de seus autores/atores. A ação de criar, "des-criar" e tornar a criar com outra qualidade, transforma-se em um desafio, alimentada pela emoção que essa prática deixa aflorar. Fazendo eco a essas palavras, Rollo May (1982, p.143) afirma que "no fazer arte, o sujeito sente regozijo, emoção que acompanha o mais alto grau de consciência. Um novo estado de espírito nasce da experiência de realizar as suas potencialidades".
As Oficinas de Sensibilização receberam esse nome, pois buscaram facilitar, nas professoras, um contato/com-tato diferenciado consigo próprias e com o outro, tendo como suporte a percepção do próprio eu e dos objetos e pessoas que as cercavam. Busquei estimular, através da linguagem simbólica do Mito e dos canais sensoriais, uma reflexão que viesse permeada por sentimentos, sensações e imaginação povoada pelos habitantes de seus mundos internos.
A fundamentação teórica desse trabalho baseia-se nos estudos de Kagin e Lusebrink, pesquisadoras na Universidade de Louisville, USA, que realizaram, em 1978, um estudo trazendo o valor e a contribuição do trabalho denominado ETC (Continuum das Terapias Expressivas), como um modelo de pensamento para a elaboração de propostas em oficinas de criatividade e/ou de sensibilização, nas quais se trabalha o fazer artístico como expressão do ser.
Dentro dessa perspectiva, aguça-se o olhar para buscar entender não só como o sujeito representa a experiência e a expressão com a Arte (em qualquer nível e possibilidade), como também ele opera sobre o ambiente, interagindo através da linguagem. São ajustamentos criativos que facilitam o processo de awareness (conceito gestáltico, sem tradução em nossa língua), mas definido por Yontef (1998) como um processo de estar em contato atento com todas as situações que surgem no campo indivíduo-meio, acrescido do apoio sensório-motor, emocional, cognitivo e energético.
Para este estudo, a coleta de dados surgiu durante a elaboração das atividades plásticas propostas após a leitura de cada tarefa que deveria ser realizada por Psiquê. Com o término do trabalho plástico nas oficinas, foi entregue às professoras um questionário semidirigido, para que nele ficassem registradas as impressões, reflexões e possíveis relações do que fora vivenciado com o ofício de "ser e fazer(-se) do professor".
O grupo tornou-se uma entidade em si mesma e propiciou a criação de situações em que afloraram momentos de questionamentos, emoção, humor, espontaneidade e ajustamentos criativos. Este fato vem corroborar as palavras de Fagali (2005, p.27):
Quando falo daquele que recebe o acolhimento terapêutico, refiro-me à instituição, aos grupos, ao profissional, aos alunos (crianças, adolescentes, adultos). Todos pedem essa acolhida, que os permite ser recebidos na sua singularidade de estar no mundo, de se emocionar e pensar com suas feridas, fantasias e poderes de criar. Os próprios professores e terapeutas, como aprendizes, necessitam desse olhar para desenvolver a auto-estima e a autoconfiança, para criarem e transformarem, exercendo seja a função do ensinar, seja a de curar.
2. Acertando o passo com os passos da história
A escolha do Mito de Eros e Psiquê foi intencional, pois em se falando de ensino e aprendizagem, é fundamental que essa dualidade se concretize em uma relação de encantamento, de amorosidade entre o saber e o conhecimento a ser buscado e apreendido. O Eros Pedagógico se manifesta quando os alunos vão à busca do conhecimento nas palavras e exemplos de seu professor e este, igualmente, vai ao encontro de suas aprendizagens se mobilizando de tal maneira que consiga motivar seus aprendizes, criando uma relação permeada pelo respeito e acolhimento ao(s) outro(s).
É importante buscar uma união/integração entre alma (Psiquê) e amor (Eros), entre razão (Psiquê) e emoção (Eros). O próprio Mito já diz que o ser humano não existe sem o afeto, a emoção, o amor. Psiquê só se entrega à realização das tarefas (como possibilidade de crescimento e autoconhecimento) depois que conhece Eros, ela precisa reconquistá-lo para poder sentir-se mais plena, precisa do seu afeto. Mas... o deus do amor também percebe a importância da racionalidade de Psiquê e vai ao seu encontro.
É através dos processos de simbolização que o homem assume sua humanidade, tomando consciência de sua condição de ser no mundo. Neste sentido, a linguagem simbólica ocupa um papel significativo no desenvolvimento da consciência, pois na medida em que o ser humano atribui sentido às coisas e ao mundo é que ele se torna humano! O símbolo nunca é precisamente definido ou de todo explicado. Ele é uma possibilidade de reflexão e de caminho, é um jeito de dar sentido às ações humanas e faz parte de um processo que pode tornar explícito o implícito, visível o invisível...
O exercício da linguagem mítica instaura outro tipo de reflexão, abre novos caminhos para se chegar a novas paragens... é através do diálogo e da força que uma história mobiliza, da força que o Mito consegue alavancar que se busca tocar na complexidade do ser... do ser professor!
Martin Buber conta a experiência vivida ao se ouvir as histórias:
E, todavia, não era o relato de tempos e lugares distantes que a história contava, mas sob o toque de suas palavras a melodia secreta de cada pessoa era despertada [...]
A narração falava para cada um, só para aquela pessoa, não havia outra; aquela pessoa era todo o mundo, ela era a história. (BUBER, in MACHADO, 2004, p.23)
Foi com esse sentimento que busquei trazer o olhar (psico)pedagógico sobre o Mito de Eros e Psiquê, sobre as tarefas realizadas pela heroína da história que foram vivenciadas pelas "heroínas/professoras". O Mito foi um dos fios/guias para poder percorrer esse caminho, repleto de desafios e surpresas, buscando cenários de transformação para a docência.
Essa proposta tem sua inserção em uma visão mais humana e construtivista de educação, onde se busca aliar a competência criadora à coerência pedagógica.
Tarefa difícil, pois ao entrar em contato com o novo, com o diferente, sentimentos contraditórios podem gerar medo, insegurança, descobertas sobre nosso mundo interno, que muitas vezes nos intimidam e paralisam nossas ações. Entretanto, quando se acena com outro jeito de se contatar com essas questões, surge um novo clarão no meio do caminho, que acaba motivando e acenando como uma nova possibilidade... por que não tentar?!
Para este artigo, faço uma síntese de cada tarefa que Psiquê teve que realizar para resgatar o amor de Eros. Essas tarefas lhe foram impostas pela rancorosa Afrodite, mãe do deus grego. Tem-se, assim:
• Primeira tarefa: Antes de reencontrar o noivo, Psiquê teve que separar milhares de grãos que estavam misturados uns aos outros, no espaço de uma noite. As formigas, que conheciam tão bem as tarefas pequenas e intermináveis, ajudaram a jovem.
Exercício: saber discriminar.
Em uma leitura simbólica, a jovem teve que exercitar a discriminação, isto é, começar a diferenciar os seus desejos, o sentido das coisas, suas necessidades, o bem do mal, o prazer do desprazer.
As professoras também tiveram que separar as sementes que lhes foram oferecidas para organizar e harmonizar em um círculo. Confiar na capacidade do ser humano para selecionar, analisar e avaliar as situações/desafios que surgem durante a caminhada pessoal e profissional se faz necessário. Quantas situações surgem no cotidiano do professor que o faz sentir-se confuso, não conseguindo vislumbrar uma saída para determinado fato, uma vez que tudo parece indiferenciado, sem lógica, causando uma sensação de impotência!
Quando se possibilita ao fazer criativo e artístico ampliações na ressignificação da própria identidade e da prática docente, faz-se uma integração entre a organização do trabalho escolar com a formação pessoal, buscando-se uma contextualização de significados/ação.
Encerrando a breve síntese dessa primeira tarefa e servindo como reflexão que deverá permear a análise de todas as outras, Fayga Ostrower (2002, p.53) enriquece esta ideia ao afirmar que:
É isso que cala tão profundamente em nós. Compreendemos que todos os processos de criação representam, na origem, tentativas de estruturação, de experimentação e controle, processos produtivos onde o homem se descobre, onde ele próprio se articula na medida em que passa a identificar-se com a matéria. São transferências simbólicas do homem à materialidade das coisas e que novamente são transferidas para si.
• Segunda tarefa: Afrodite pediu um novelo dos fios de ouro das ovelhas ferozes. Mas o dócil caniço de bambu, que veio em sua ajuda, disse-lhe para não se aproximar das ovelhas enquanto o sol estivesse a pino, pois elas ficam muito enfurecidas por causa do calor. Psiquê deveria aguardar o calor diminuir e assim, mais calmas, as ovelhas iriam descansar e os flocos de lã ficariam presos nas árvores e, bastando sacudi-las, ela conseguiria colher a quantidade que quisesse. Seguindo os conselhos do caniço, a jovem volta para o palácio tendo realizado o pedido feito pela deusa.
Exercício: saber esperar.
A grande mensagem desta tarefa consiste em se poder olhar para além de si próprio, compreendendo que o universo é maior do que o nosso próprio mundo e que a solução não consiste na luta, no confronto de forças, mas no estabelecimento de um contato fecundo entre o masculino e o feminino. Como relacionar a essência dessa tarefa com o trabalho docente? Como equilibrar a força do masculino, do logos, da razão com a sensibilidade e afetividade do feminino? Forças opostas que necessitam de um equilíbrio e que permeiam o cotidiano do professor.
A atividade mobilizou questionamentos quanto à dificuldade em se lidar com as questões da agressividade, do equilíbrio entre razão e emoção, amor e agressão, entre demandas vindas da instituição (escola e família) e da realidade concreta da sala de aula!
• Terceira tarefa: Afrodite entregou para Psiquê um vaso de cristal e ordenou que ela subisse em um rochedo íngreme, guardado por perigosos dragões que lá viviam e deveria encher esse vaso com a água de uma fonte que era guardada dos dois lados por perigosos ladrões. Veio em seu auxílio a águia, que abrindo suas asas, passou rapidamente por entre os dentes dos dragões e conseguiu encher o vaso, entregando-o à jovem mortal.
Exercício: saber conter a essência.
Depois de Psiquê ter aprendido a discriminar suas necessidades e cooperar com as necessidades alheias, agora o desafio consiste em adquirir uma "visão" mais abrangente (representada pela visão da águia) para conseguir alcançar o que deseja. Trazer a água da fonte é uma variante da água da vida, quer dizer, daquilo que se necessita efetivamente para uma realização maior, não importando a qualidade da água, mas sim, a habilidade para se obter aquilo que é fundamental para viver.
Como relacionar essa tarefa com a atividade docente? Seria uma atuação em sala de aula com uma didática que motivasse os alunos e os instigasse para irem à busca de novos conhecimentos? Seria refletir sobre a própria prática e torná-la uma ferramenta de consciência política e pedagógica? Como atuar visando à essência desse papel? Várias são as possibilidades...
• Quarta tarefa: A deusa inconformada, deu para Psiquê uma caixinha e mandou que ela buscasse um pouco da beleza imortal guardada no fundo do Hades. A torre orientou a jovem como deveria proceder durante esse caminho até conseguir seu objetivo. No entanto, a curiosidade e a vaidade se apossaram dela e, já quase terminando a tarefa, não resistiu e abriu a caixinha que não continha a beleza imortal, mas o sono infernal. Entorpecida, a princesa caiu em profundo sono.
Exercício: saber lidar com a transformação.
Esta última tarefa representa a morte simbólica de um momento, para poder recomeçar nova etapa. É a possibilidade de vivenciar a transformação no sentido de mudanças necessárias para um maior esclarecimento e autoconhecimento. Eis alguns direcionamentos feitos para as professoras: em quais situações de sua vida pessoal e profissional, você se deparou com momentos de muita frustração, sentindo chegar em seu limite, experienciando extremo sentimento de perda e, depois de um contato com o problema bem de frente, conseguiu sair-se bem, descobrindo uma solução criativa e pessoal? Lembra-se de já ter vivido alguma situação em que efetivamente achasse que teria chegado "ao fim do túnel"? Muito medo, insegurança, mas... depois de um tempo você foi se contatando com seu próprio poder, conseguindo resgatar sua força!
Esta última tarefa, efetivamente, acabou fechando um ciclo de caminhadas facilitadas pelas Oficinas de Sensibilização que permitiram, a mim e às parceiras da jornada, vivenciar não só a "consciência" e a "sensibilidade" no ofício do ser professor, mas buscar sentidos e encantamentos para mobilizar uma nova identidade docente, em um mundo globalizado, regido pelas incertezas, onde o importante é aprender a pensar, a pensar a realidade, buscando "pronunciar-se sobre essa realidade que deve ser não apenas pensada, mas transformada". (GADOTTI, 2003, p.53)
Pelos depoimentos feitos pelas professoras, constatei que novas descobertas do ser refletiram-se também no fazer... surgiram movimentos em busca de novas aprendizagens, libertando olhares viciados ou paralisados, permitindo o diálogo com o novo!
Fazendo parte do processo de transformação do ser humano, é necessário assumir a natureza instintiva. Esta, evocada na pesquisa, por meio dos elementos simbólicos do Mito, que ajudaram Psiquê a cumprir cada uma das tarefas, representou metáforas que serviram de suporte para o trabalho interior de cada professora.
Foram vivenciados movimentos de idas, paradas, voltas e retomadas... muitas paisagens foram (re)vistas nesta caminhada e puderam trazer novas possibilidades para a práxis docente. E quem forma o formador? Para responder a este questionamento, seguem as palavras de Antônio Nóvoa:
O formador forma-se a si próprio, através de uma reflexão sobre os seus percursos pessoais e profissionais (autoformação); o formador forma-se na relação com os outros, numa aprendizagem conjunta que faz apelo à consciência, aos sentimentos e às emoções (hetero-formação); o formador forma-se através das coisas (dos saberes, das técnicas, das culturas, das artes, das tecnologias) e da sua compreensão crítica (eco-formação). (NÓVOA, apud JOSSO, 2004, p.17.)
3. Retornando ao ponto de partida... deixando pegadas, disseminando sementes...
Quando esta etapa da pesquisa terminou, já se avistava o local do início da caminhada e olhando-o novamente... é como se o visse pela primeira vez!
Agora, mais concretamente, se justifica o porquê da escolha do Mito de Eros e Psiquê trabalhado em Oficinas de Sensibilização, uma vez que para ressignificar o momento sociocultural no qual estamos inseridos, somente o saber diferenciar, através do olhar de águia, o essencial do secundário, saber aguardar o momento para a ação certa e precisa, é que mobilizará transformações no ser e fazer do ser humano, no ser e fazer do professor que, certamente, se revelarão no ser e fazer do aluno!
A ação impulsionadora e motivadora do professor deve estar calcada em dois movimentos que funcionam como linhas/guias conduzindo-o por duas vias: a da afetividade e da cognição, do sentimento e da razão de Eros e Psiquê permeando suas ações... movimentos que se cruzam, se distanciam, novamente se misturam, pois são eles, aliados à sensibilidade e à criatividade, a valores morais e éticos, que ajudarão na configuração de um(a) novo(a) educador(a).
Entretanto, há necessidade de não se ficar com uma ideia por demais frágil e piegas de que basta somente que se desenvolva um "apaixonamento", uma ampliação da consciência ainda linear e simplista para que tudo acabe dando certo... o aprender dói, como diz Madalena Freire, pois exige o contato com a falta, com a incompletude que irá, em muitas vezes, acompanhar os passos durante a caminhada e o pensar sobre a prática, o resgate da memória de nossas andanças pessoais e profissionais é "um diálogo mesmo que travamos, solitários, com os mil outros que vivem dentro de nós". (FREIRE, 2008, p.204)
Mito de Eros e Psiquê... docência... linguagens... oficinas... sentimentos... sensações... imaginação..., buscando reunir os fios para montar essa trama, ressignificações se fazem presentes e tudo dependerá do interesse e da crença do pesquisador/viajante, daquele que cansado da mesma paisagem busca outros cenários... outros caminhos...
Neste momento, tenho a certeza de que meu estudo não chegou ao fim... quando já desfeita a ambiência que mobilizou a vivência do Mito e conseguindo avistar as professoras/parceiras desta jornada chegando aos seus cantos...
"Busco afagar a terra... conhecer os desejos da terra...
cio da terra que propicia fecundar o chão..."
Assim, espalho sementes... deixando pegadas... que ficarão no aguardo de outros viajantes... e mais outros... na eterna busca por novas paragens... novas aprendizagens...
Referências
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Endereço para correspondência
Lídia Lacava
E-mail:lidialacava@terra.com.br
*Educadora, Psicopedagoga Clínica e Institucional, Arteterapeuta. Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Professora em cursos de Pós-graduação em Psicopedagogia e Arteterapia. Palestrante do Sieeesp (Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo). Atua em consultório particular com crianças, adolescentes e adultos.