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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.9 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006

 

 

Psicologia hospitalar: um olhar interdisciplinar no atendimento a crianças e adolescentes

 

 

Daniela Rosa Cachapuz*

 

 


RESUMO

O presente artigo busca caracterizar a ação dos profissionais em psicologia nas equipes interdisciplinares responsáveis pelo atendimento hospitalar a crianças e adolescentes nos diferentes hospitais do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), situado na cidade de Porto Alegre. Para estabelecer relações entre teoria e prática, aborda-se aspectos teóricos relacionados à interdisciplinaridade, equipes interdisciplinares atuantes na assistência a crianças e adolescentes e à psicologia hospitalar. A pesquisa foi desenvolvida através do método qualitativo. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com seis psicólogos pertencentes a equipes de profissionais que trabalham com crianças e adolescentes nos diferentes hospitais do GHC. Os dados foram trabalhados a partir de análise de conteúdo. A partir disso, foram elaboradas dez categorias de análise dentre as quais estão as atividades específicas da psicologia realizadas com determinadas equipes, participação da psicologia em atividades junto à equipe de profissionais, sentimentos em relação à inserção da psicologia nas equipes, procedimentos realizados em suspeita/confirmação de situações de maus-tratos e perfil do psicólogo para atuação com crianças e adolescentes na instituição hospitalar. Ao longo do trabalho são trazidos relatos das entrevistas relacionados com questões teóricas como dispositivo para reflexão a respeito da prática dos psicólogos nos hospitais.

Palavras chave: Psicologia hospitalar, Equipes interdisciplinares, Crianças e adolescentes.


ABSTRACT

The article features the action from the professionals em psychology on the staffs cross-disciplinary responsible at atendimento hospital the children & adolescents on the different hospitals of the bunch Hospital Concept GHC ), situated on city of Port Joyful. To establish relations among theory & practice , approach - if appearances theoreticians related on the interdisciplinaridade, staffs cross-disciplinary acting on aid the children & adolescents & on the psychology hospital. The search has been developed via the method qualitativo. Have been realized interviews semi - structure with six psychologist belonging the staffs of professionals what they work with children & adolescents on the different hospitals of the GHC. The dice have been wrought as of this date analysis of content. THE part about that , have been in-depth ten cetegories of analysis in the midst of whom estão the activities specific from psychology realized with she determines staffs, participation from psychology em activities close to the staff of professionals, feelings in relation to on the insertion from psychology on the staffs, procedures realized em suspicion / affirmation of situações of evils - tract & profile of the psychologist about to multi-skilled with children & adolescents on institution hospital. Through the year I work são brought accounts from the interviews related with questions abstract I eat device about to reflection the respect from practice from the psychologist on the hospitals.

Keywords: Psychology hospital, Staffs cross-disciplinary , Children, Adolescents.


 

 

A promoção de ações planejadas através da integração entre os diferentes profissionais da saúde é fator primordial na busca de maior efetividade no atendimento hospitalar. À medida que se pretende pensar a respeito do atendimento a crianças e adolescentes, percebe-se que a complexidade envolvida no trabalho cresce significativamente, tendo em vista as peculiaridades que envolvem a assistência a esse público.

As modificações trazidas pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) no ordenamento jurídico brasileiro acarretaram significativas transformações quanto à percepção da infância em nossa sociedade A partir do ECA, crianças e adolescentes passaram de meros objetos de intervenção à condição de sujeitos de direitos inseridos em um contexto legal que garante com que exerçam pleno exercício de sua cidadania. De acordo com Cury (2003), isso produziu efeitos significativos no imaginário social, alterou as noções anteriores acerca da infância e da adolescência e exerceu forte influência nas instituições.

Saraiva (2003) ressalta que a conquista, que elevou crianças e adolescentes ao status de titulares de direitos e obrigações próprias de uma pessoa em estágio peculiar de desenvolvimento, não foi atingida rapidamente. Foi fruto de muitos questionamentos, lutas e debates, relacionados diretamente ao processo de aquisição de direitos humanos na história da sociedade em geral. É impossível dissociar o direito da criança do conjunto dos direitos fundamentais, já que os princípios básicos implicados no constitucionalismo moderno refletem um longo processo de construção de um sistema de direitos humanos.

Para Toledo (2003), a Constituição Brasileira de 1988 é instituínte do sistema de proteção aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, já que se baseia no reconhecimento desses como seres humanos em condição peculiar de desenvolvimento. Isso permitiu diferenciar, em termos legais, a personalidade adulta da infantil e reconhecer a vulnerabilidade dessa população, assim como seu potencial de ação transformadora.

No momento em que apontamos relações entre questões psíquicas e as diferentes fases de desenvolvimento dos sujeitos, torna-se necessário repensar a lógica de funcionamento das diferentes instituições que trabalham com crianças e adolescentes. É importante enfatizar, no entanto, que a construção de uma nova realidade requer transformações profundas na cultura social.

Apesar da exigência de adaptação das instituições às novas regras legais, devemos pensar que as mudanças estão apenas iniciando. No processo de transformação, Adorno (1993) chama a atenção, entre outras coisas, à necessidade de um olhar, por parte dos profissionais, a partir de diferentes pontos de vista para a formulação e implantação de ações.

As atuais diretrizes da política de atendimento exigem a construção de práticas integradas a partir de áreas diversas do conhecimento. O trabalho em equipe baseado na comunicação entre os profissionais das instituições é freqüentemente apontado como alternativa para a integração. Quando a instituição em cena é o hospital, as melhorias nos níveis de comunicação entre os profissionais tornam-se ainda mais valiosas, pois repercutem diretamente na qualidade do atendimento ao paciente.

O alto grau de complexidade presente na prestação de serviços no ambiente hospitalar é inegável. Cecílio e Merhy (2003), ao abordarem a questão do Sistema Único de Saúde, criticam a noção de sistema que traz consigo a idéia implícita de harmonia entre as diferentes partes. Os autores caracterizam o sistema de saúde como sendo um campo atravessado por múltiplas lógicas de funcionamento, circuitos e fluxos. Enfatizam que a idéia de sistema harmônico deveria ser substituída pela de uma rede móvel, assimétrica e incompleta de serviços. Uma das conseqüências desse funcionamento, segundo os autores, é a dificuldade em atingir a integralidade do cuidado, quando tomamos como ponto de observação o usuário. Nesse sentido, ressaltam a possibilidade de transversalidade como alternativa.

Não há integralidade radical sem a possibilidade de transversalidade. A integralidade do cuidado só pode ser obtida em rede. Pode haver algum grau de integralidade focalizada quando uma equipe, em um serviço de saúde, através de uma boa articulação de suas práticas, consegue escutar e atender, da melhor forma possível, as necessidades de saúde trazidas por cada um. (2003, p. 199).

ara que a integralidade seja possível é necessária a articulação entre os profissionais, bem como entre os diferentes conhecimentos envolvidos na práxis. No momento em que a instituição hospitalar presta atendimento à infância e adolescência, deve contemplar não apenas questões relacionadas à saúde de forma geral, mas também às diretrizes legais1 de atendimento que norteiam o trabalho com esse público. Vale observar que elas podem ser relacionadas ao conceito de integralidade citado por Cecílio e Merhy (2003) e implicam na presença de técnicos preparados para intervenções que considerem a singularidade presente no atendimento a crianças e adolescentes na área da saúde.

As intervenções de cada profissional, independentemente da especificidade na qual ele se insere, devem partir de um planejamento que contemple diferentes conhecimentos pertinentes à dada realidade. A complexidade presente nos fenômenos contemporâneos nos leva a pensar na importância da busca constante por conhecimentos que transcendam as sólidas barreiras disciplinares. Como alternativa, surge a proposta da interdisciplinaridade na tentativa de corrigir as falhas advindas do excesso de compartimentalização e da falta de comunicação entre as disciplinas. Mas perguntamos como isso ocorre no hospital?

O cenário hospitalar é habitado pela diversidade de profissionais que devem dar conta das diferentes esferas implicadas na complexidade dos sujeitos atendidos. O atendimento no hospital implica na atuação de médicos de especialidades diversas, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos, entre outros profissionais. Nessa ampla gama de profissionais, encontra-se o psicólogo. A respeito de sua inserção e atuação no hospital que buscamos, nesse momento, dirigir nosso olhar.

Sabe-se que o profissional em psicologia, há algum tempo, já não se dedica apenas à clínica particular tradicional. Ele encontra-se inserido em diferentes campos de trabalho, instituições variadas e integra o quadro de funcionários responsáveis pelo atendimento ao paciente em inúmeros hospitais do país.

Mas quais são as ações dos psicólogos na instituição hospitalar? Como se dão as intervenções da psicologia quando nos referimos ao trabalho em equipe no hospital?

Para conhecer mais a respeito das ações da psicologia nessa instituição, foi realizada, no decorrer do ano de 2006, uma pesquisa qualitativa nos Hospitais do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), que resultou na elaboração de Monografia do Curso de Especialização em Direito da Criança e Adolescente cursado na Fundação Escola Superior do Ministério Público de Porto Alegre. O estudo teve como objetivo conhecer como se constituem as intervenções dos profissionais em psicologia nas equipes interdisciplinares responsáveis pelo atendimento a crianças e adolescentes nos hospitais do GHC.

O método de pesquisa qualitativo foi escolhido já que, de acordo com Kude (1997), ele presta-se à descoberta de forma mais geral, orientada para processos sociais, revela maior preocupação com o contexto, constitui-se de forma mais ampla e descritiva e permite levar em conta o ponto de vista das pessoas que participam do estudo, em detrimento das perspectivas presentes no pesquisador.

A pesquisa foi realizada através de entrevistas semi - estruturadas com seis psicólogos que trabalham no atendimento a crianças e adolescentes nos hospitais do GHC. Como ponto de partida para compreensão das práticas desses profissionais nos hospitais foram pesquisados aspectos teóricos relacionados ao conceito de interdisciplinaridade, ao trabalho em equipe na assistência a crianças e adolescentes e à psicologia hospitalar. Isso nos permitiu relacionar a teoria e a prática dos profissionais descrita ao longo das entrevistas.

A análise de conteúdo, através da análise de categorias, foi considerada a melhor forma de trabalhar os dados obtidos nas entrevistas realizadas. Segundo Moraes (1999), a análise de conteúdo é a metodologia de pesquisa utilizada na interpretação de classes de documentos e textos, pois auxilia a reinterpretar as mensagens e a compreender os fenômenos. A análise de categorias também é tida pelo autor como instrumento útil para a descrição e interpretação dos dados.

A partir do material obtido nas entrevistas e da literatura visitada foram elaboradas dez categorias de análise:

1. Atividades realizadas; 2. Diferenciais no atendimento a crianças e adolescentes; 3. Formas de encaminhamento de pacientes à psicologia; 4. Atividades específicas da psicologia realizadas com equipes; 5. Participação da psicologia em atividades realizadas junto à equipe de profissionais; 6. Sentimentos em relação à inserção da psicologia nas equipes; 7. Procedimentos realizados em suspeita/confirmação de situações de negligência, maus-tratos, abuso sexual; 8. Dificuldades no trabalho com o crianças e adolescentes na instituição hospitalar; 9. Vantagens no trabalho com crianças e adolescentes na instituição hospitalar; 10. Perfil do psicólogo para atuação com crianças e adolescentes no hospital.

Ao longo do presente trabalho, trazemos breves relatos dos entrevistados que nos proporcionaram alguma forma de questionamento e serviram como dispositivo para reflexão acerca do trabalho do psicólogo na instituição hospitalar.

Todos os entrevistados relataram a realização de avaliação e acompanhamento psicológico de pacientes internados em suas respectivas instituições hospitalares, assim como atendimento em nível ambulatorial com diferenças apenas nas formas de encaminhamento dos pacientes ao serviço de psicologia em cada local. A intervenção da psicologia com os pais dos pacientes crianças e adolescentes em caráter individual foi considerada uma atividade fundamental no cotidiano dos seis entrevistados. Já a realização de grupo com pais de pacientes foi relatada por apenas dois entrevistados. Com relação a atividades em equipes interdisciplinares, a participação dos psicólogos em reuniões de equipe do serviço de psicologia foi citada por cinco dos entrevistados, assim como a participação em reuniões de equipe multidisciplinar de profissionais atuantes no atendimento a crianças e adolescentes. Apenas dois entrevistados citaram a realização de trabalho específico da psicologia com algumas equipes nas diferentes instituições hospitalares, as quais, em momentos anteriores, solicitaram, ao serviço de psicologia, uma atividade específica com a equipe de trabalho.

Foi relatada a existência, no Grupo Hospitalar Conceição (GHC), de uma Comissão de Proteção à Criança até o ano de 2005. Ela se organizava a partir de reuniões mensais entre os membros da comissão, visitas a conselhos tutelares, interlocução entre os profissionais das diferentes áreas para melhor encaminhamento dos casos, assim como momentos de estudo sobre o assunto. Segundo relato dos entrevistados, atualmente, a Comissão não está mais em funcionamento. Hoje em dia, existe o Grupo de Enfrentamento à Violência composto por profissionais de diferentes áreas, que atuam tanto nos hospitais, como na Saúde Comunitária. Segundo os relatos, nem todos os psicólogos entrevistados participam, no momento, desse grupo.

A formação da Comissão de Proteção à Criança, assim como do Grupo de Enfrentamento à Violência vêm ao encontro da valorização do trabalho em equipe como alternativa eficaz para obtenção do cuidado mais integral, enfatizado na política de atendimento descrita do Estatuto da Criança e do Adolescente. Diversos autores contemporâneos valorizam o diálogo constante com outras formas de conhecimento e consideram a interdisciplinaridade uma alternativa para o enriquecimento do trabalho nas instituições. Mesmo assim, ainda há muito a ser questionado sobre as práticas de fato. Sobre como se dão as práticas dos profissionais em seu cotidiano de trabalho, Adorno propõe uma interessante questão:

...os quadros profissionais existentes estão dispostos e habilitados, inclinam-se mesmo a promover essa mudança radical de mentalidade?... Como operará a interdisciplinaridade, rompendo-se barreiras corporativas solidamente incrustadas? (ADORNO, 1993, p. 110)

Nesse sentido, os entrevistados abordaram a importância da preparação de técnicos no que tange às diretrizes presentes no ECA, assim como da construção de espaços que permitem planejamento de atividades e integração de saberes. Nas situações que envolvem suspeita ou confirmação de negligência, maus–tratos ou abuso de crianças e adolescentes os profissionais participantes do Grupo de Enfrentamento à Violência, segundo os entrevistados, são acionados como forma de melhor encaminhamento diante da complexidade do caso.

Para falar sobre o papel dos profissionais da saúde na proteção da criança e adolescente vítimas de maus-tratos, recorremos ao ECA (Direito à Vida e à Saúde):

Art 13º Os casos de suspeita ou confirmação de maus –tratos contra a criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade sem prejuízo de outras providências legais.

A notificação, de acordo com Azambuja (2004), refere-se a uma informação fornecida ao Conselho Tutelar por parte dos setores de saúde. Ela permite que os profissionais da área da saúde reconheçam as demandas urgentes e chamem o poder público à responsabilidade, visando a proteção da criança e o adolescente vítimas de maus-tratos. Foi introduzida em nosso ordenamento jurídico em 1990 e promoveu a exigência de uma postura protetora dos profissionais da saúde e da educação, em favor de seus pacientes e alunos. Nos casos de abuso, a obrigatoriedade de comunicação ao Conselho Tutelar visa a identificação precoce da situação de abuso, promovendo um sistema de registro que possibilite a adoção de medidas de proteção. Vale lembrar que a não-comunicação, por parte dos profissionais da saúde, a respeito dos casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos, gera infração administrativa, o que está descrito no artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Azambuja (2004) destaca a presença de dificuldades relativas à falta de preparação dos profissionais para fazerem as notificações ao Conselho Tutelar. A autora ressalta a importância dos profissionais, antes de fazerem a notificação, conversarem amplamente com a família, informando a respeito da obrigatoriedade da comunicação. Isso possibilita alternativas de acompanhamento e apoio ao grupo familiar, tendo em vista que a comunicação ao Conselho Tutelar da suspeita de maus-tratos praticados contra a criança causa forte impacto no grupo familiar. Assim, é recomendado que a notificação seja realizada somente a partir de suspeitas consistentes.

A complexidade que envolve o tema do abuso sexual da criança alerta à necessidade ainda maior capacitação dos profissionais que integram o sistema de proteção e de justiça, de saúde e de educação. Uma notificação de suspeita de abuso sexual, precedida de uma avaliação precipitada e um procedimento de revelação conduzido de forma inadequada podem acarretar resultados extremamente negativos à criança e seus familiares. Nesse sentido, Azambuja (2004) ressalta a importância da capacitação permanente aos profissionais da saúde e educação, para realização de diagnóstico, notificação e encaminhamento previstos em lei, de forma a sensibilizar a formação de parcerias com a rede de atendimento.

Um dos entrevistados colocou em questão o papel da psicologia em situações de denúncia e trazemos seu relato como forma de questão a ser refletida pelos psicólogos em sua prática:

Tem todo o movimento de Conselho Tutelar, relatório, fichas, um monte de burocracia. Tem coisas direto com o Conselho Tutelar, coisas de registro e denúncias, mais é o serviço social que encaminha. Como nós fazemos mais a parte de seguir acompanhando a criança ou a família fica complicado fazer essa parte. Se fizermos a denúncia, delatar, a gente deleta mesmo, não tem mais confiança. Então fica mais para os serviço social. Mas existem discussões com relação a isso.

Alguns diferenciais presentes no atendimento ao público infantil foram apontados pelos entrevistados, que ressaltaram a complexidade presente no trabalho com crianças. Nesse sentido, utilizar outros recursos que não apenas a palavra, fazer uso da criatividade, de jogos e brincadeiras para proporcionar às crianças outras possibilidades de expressão foi bastante valorizado.

O contato com os pais das crianças e adolescentes internados foi apontado, por todos os entrevistados, como algo extremamente importante para o trabalho da psicologia com tais pacientes. Os entrevistados, assim como os teóricos pesquisados, consideram importante intervir junto aos pais na busca de um trabalho eficaz com a criança.

Tem a questão de que não tem como deixarmos os pais de fora desse trabalho. Em muitos casos, a criança é um sinal, um pedido de socorro, porque a família está muito mal. Eu não consigo trabalhar só com a criança. É preciso trabalhar com os pais e é ali que está o mais difícil de ser trabalhado porque a criança está denunciando alguma coisa que os pais não estão muito a fim de mexer, de mudar.

Menezes de Mello (1992) aborda a necessidade de perceber as queixas e sintomas trazidos como resultantes da problemática da criança como um todo, o que exige o entendimento da dinâmica familiar envolvida. Para autores como Camon (2003) e Leitão (1993), o esclarecimento, por parte da psicologia, a respeito das implicações geradas pela internação no sistema familiar, assume papel fundamental no restabelecimento emocional do paciente. Trabalhar com os pais foi citado como possibilidade de construir um espaço para obtenção de informações a respeito dos pacientes, para maior entendimento da dinâmica de funcionamento familiar, assim como para questionamentos que propiciem modificações em prol dos pacientes.

Faço um trabalho de entrevistas com os pais e algumas situações se evidenciam nesse momento. Tentamos abrir um pouco a possibilidade de questionamento da situação que essas pessoas e a criança está vivendo. Tem que, de alguma forma, trabalhar alguma coisa que faça questão para a mãe, para a família, para modificar.

A necessidade de um trabalho de caráter mais educativo com os pais foi citada por um dos entrevistados como alternativa eficaz para possíveis transformações no funcionamento familiar. Leitão (1993) valoriza a criação de trabalhos de orientação e apoio aos familiares que acompanham o paciente na internação, considerando os temores e angústias que a hospitalização pode proporcionar à família. Nesse sentido, um dos entrevistados comentou a importância de fornecer esclarecimentos a respeito do funcionamento familiar e suas possíveis relações com o estado do paciente.

Com os pais também, uma coisa bem explicativa. Eu explico qual a função do pai, qual a função da mãe, qual a importância do limite na estruturação do paciente. Eu fico referendando o lugar de cada um para que o paciente possa ter o seu lugar. Eu acho que isso é o principal. Tem que fazer todo um trabalho de que a criança não é um doente, que tem que ter o espaço dela, que a doença não tem que ser maior que tudo na casa.

Apenas um dos profissionais relatou a realização de grupo de pais com a participação de profissionais de áreas diversas como alternativa eficaz de intervenção da psicologia. Vale apontar que, nesse caminho, Camon (2003) julga importante realizar alguns atendimentos em conjunto com outros profissionais, no objetivo de que esses também recebam esclarecimentos referentes às questões emocionais dos pacientes. Um dos entrevistados comentou realizar grupo de pais de caráter apenas informativo, tendo em vista a variação da população e das problemáticas trazidas por cada família.

No que se refere à elaboração das atividades que serão realizadas pelo psicólogo no ambiente hospitalar, destacamos a importância de manter o olhar dirigido ao todo da instituição, de modo a observar as diferentes demandas que possam aparecer. Não se pode construir trabalhos relacionados apenas ao desejo do profissional e livres que qualquer relação com as necessidades institucionais. Camon (2003), chama a atenção à importância de realizar uma análise institucional prévia à definição das atividades do psicólogo no local, para que se possa elaborar instrumentos adequados à realização de um trabalho efetivo. Um dos entrevistados ressaltou a necessidade de localizar a origem da demanda que é solicitada ao profissional da psicologia, de modo a intervir diretamente nela.

Quando a pessoa quer ajuda, ai sim. O difícil é quando não querem, quando os outros querem por eles. Se a gente não localiza quem está demandando ajuda e interfere junto a essa pessoa, somente atenua. Se a gente consegue localizar e intervir com quem está disposto, acho que mesmo em situações graves se consegue algo.

No que tange às formas de encaminhamento de pacientes ao serviço de psicologia dos hospitais foram descritos diferentes caminhos que vão desde a interconsultoria até mesmo solicitação de familiares dos próprios pacientes.

A interconsultoria é descrita por Capobianco (2003) como o instrumento freqüentemente utilizado no trabalho dos diferentes profissionais em hospitais e tem como objetivo de fornecer recursos de compreensão do paciente e familiares à equipe. Ela foi citada pelos entrevistados como uma forma comum de encaminhamento de pacientes aos serviços de psicologia nos diferentes hospitais. Quatro deles relataram que os pacientes internados nas instituições hospitalares são encaminhados ao serviço de psicologia pelos médicos especialistas e por outros profissionais da equipe de atendimento das respectivas unidades de internação.

A equipe nos solicita também. Faz os pedidos dos casos que eles acham importante a nossa avaliação, o nosso parecer. Os profissionais que encaminham da internação são da equipe médica, enfermagem, serviço social, fisioterapia e outros serviços de apoio que, às vezes, nos solicitam para fazer alguma troca: "observei tal coisa, o que tu acha?... seria interessante também vocês fazerem uma avaliação, um acompanhamento paralelo". Da equipe médica tem o pediatra, e todos os outros especialistas que nos encaminham bastante.

Três entrevistados comentaram que o atendimento da psicologia em nível ambulatorial acontece apenas em casos de pacientes egressos da internação hospitalar nas respectivas instituições. Outros entrevistados relataram que os pacientes atendidos em ambulatório são encaminhados via central de marcação municipal, postos de saúde, encaminhamento de outros profissionais da instituição. Também existem casos de procura espontânea pelo serviço de psicologia por parte do paciente ou familiares.

Para melhor análise, as ações dos psicólogos em equipes de profissionais nos hospitais foram divididas em trabalhos específicos da psicologia com determinadas equipes dentro dos hospitais e trabalhos da psicologia junto a equipes de profissionais nas quais o psicólogo encontra-se inserido como membro da equipe.

No que se refere a intervenções específicas da psicologia com equipes, Camon (2003) destaca a importância de ações da psicologia com a equipe de saúde no objetivo de propiciar discussões a respeito das atitudes relacionadas ao atendimento ao paciente e à relação entre a equipe e o paciente que interferem no seu cuidado.

Quatro entrevistados realizam alguma forma de trabalho específico da psicologia com a equipe de atendimento seja ele de caráter informal ou sistemático. Vale ressaltar que as principais formas de acompanhamento a outros profissionais trazidas referiram-se a orientações e suporte à equipe em momentos informais durante o cotidiano de trabalho, sem o estabelecimento de um momento formal para tais ações.

Em alguns casos, é necessário dar suporte à equipe de trabalho, fornecendo, muitas vezes, orientações sobre o manejo da situação. Por exemplo, em situações mais graves, os pacientes solicitam muito as mães, que acabam solicitando a equipe também. A equipe acaba percebendo a mãe como vilã e não consegue compreender a ansiedade dessa mãe. Nesse sentido, converso com os profissionais. Principalmente, com a enfermagem, para dar suporte a essas situações. Mesmo conversando, muitas vezes, a coisa não muda.

Atividades da psicologia já estabelecidas de forma sistemática com equipes de trabalho foi citada apenas por dois entrevistados. Ambos ressaltaram a importância de levar em conta o desejo das equipes em realizarem um trabalho nesse sentido, bem como a diferença existente entre as diversas unidades quanto à abertura dos profissionais para esse tipo de intervenção.

Achamos que é complicado pensar num trabalho sem algum tipo de demanda e que a equipe esteja imbuída de um desejo de querer fazer um trabalho com a psicologia. Temos, no momento, um trabalho com uma unidade. Durante esse tempo, eles falam do que está angustiando, pedem alguma orientação sobre algum paciente e trazem alguns casos. É inevitável.

Para abordar as atividades dos psicólogos em suas equipes de trabalho, gostaríamos de fazer um breve apanhado sobre questões teóricas relativas ao trabalho em equipe.

Romano(1999), ao falar sobre o trabalho em equipe de profissionais na instituição hospitalar, considera que o primeiro aspecto que identifica a presença de uma equipe de profissionais é o reconhecimento dos profissionais integrantes quanto à impossibilidade de conhecimento através do isolamento e fragmentação dos saberes. A autora reconhece que o real é sempre mais integrado e multifacetado do que se pode apreender, o que torna necessário buscar conhecimento em áreas diversas.

Entra em cena, então, a idéia de interdisciplinaridade como possibilidade de embasamento para a construção de trabalhos em equipes de profissionais de diferentes âmbitos. Muito se fala sobre o termo interdisciplinaridade na contemporaneidade, no entanto, ainda observa-se pouca clareza sobre a expressão tanto em termos teóricos quanto práticos. Para promover uma discussão mais consistente, recorremos a alguns autores que abordam o assunto.

Ao analisarmos o termo interdisciplinaridade, percebemos que ele remete à palavra disciplina, que tem seu surgimento e desenvolvimento intimamente ligados a determinado momento histórico. A difusão da disciplina tal como hoje a conhecemos, de acordo com Santomé (1998), encontra suas raízes no modelo econômico trazido pela Revolução Industrial e sua influência no cenário intelectual. As indústrias necessitavam da especialização da mão de obra para atender melhor às demandas específicas da produção. Como conseqüência, maiores parcelas de disciplinaridade do conhecimento apareceram. Com o desenvolvimento crescente da tecnologia, ramos ainda mais específicos do saber humano, com metodologias e técnicas próprias, foram surgindo. Aos poucos, esses obtiveram maior grau de autonomia e consolidação, e tornaram-se especialidades. A fragmentação do trabalho na esfera da produção industrial e comercial, aos poucos, estendeu-se à ciência, e permitiu o aparecimento de um novo estatuto de saber: o positivismo e o cientificismo.

Morin (2003) relaciona a organização disciplinar à formação das universidades modernas no século XIX. A disciplina, para ele, refere-se a uma categoria organizadora do conhecimento científico que, apesar de estar inserida em um contexto mais amplo, institui a divisão e especialização do trabalho. Ela tende naturalmente à autonomia através da delimitação de fronteiras estabelecidas por meio das técnicas específicas que faz uso, das teorias na qual baseia-se e da linguagem em que se constitui.

Não se pode negar os benefícios trazidos pela disciplina em determinado momento histórico. Para Santomé (1998), a subdivisão dos campos tradicionais de conhecimento exerceu papel fundamental em determinado momento social, pois possibilitou o incremento significativo na produção científica, através da delimitação e precisão dos problemas a serem estudados. A cultura positivista disseminou a ênfase na precisão e imposição de determinadas metodologias de pesquisa e formas de legitimação do conhecimento que permitiram seguir direções mais precisas, entretanto mais reducionistas.

Morin (2003) apesar de valorizar a disciplina no processo de aquisição de conhecimento, chama à atenção ao riscos que se corre quanto à coisificação do objeto estudado, à medida que ele é destacado do seu contexto e, de certa forma, construído. Quando o objeto passa a ser auto-suficiente e suas ligações com os objetos de outras disciplinas e, até mesmo com seu contexto, não são devidamente considerados, devemos pensar no perigo da hiperespecialização. A linguagem e conceitos próprios da disciplina podem representar a fronteira disciplinar que leva ao isolamento. A disciplina permanece, então, distante dos problemas que sobrepõem às disciplinas.

A conceituação da interdisciplinaridade constitui uma questão típica de nosso século, entretanto é preciso reconhecer que algumas tentativas de integração do conhecimento foram realizadas em outros momentos históricos. De acordo com Santomé(1998), Platão pode ser considerado um dos primeiros pensadores que abordou a necessidade da integração dos conhecimentos, através dos programas de ensino integrados de letras e ciências: trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Posteriormente, o posicionamento estruturalista e a teoria geral dos sistemas representaram um impulso dado ao movimento interdisciplinar.

No Brasil, conforme Fazenda (2001), nas décadas de 70 e 80 existia apenas um número reduzido de bibliografia referente ao tema da interdisciplinaridade. A partir das décadas de 80 e 90, começaram a surgir alguns centros de referência que reuniram pesquisadores em torno do assunto e influenciaram reformas do ensino em deferentes instituições.

Vale ressaltar que o cenário contemporâneo enfatizou o papel da interdisciplinaridade. Mesmo assim, ainda observamos falta de clareza conceitual a respeito do termo interdisciplinaridade, o que permite que ele seja confundido com outros conceitos e tenha seu uso banalizado. Primeiramente, cabe ressaltar que pertencer a uma equipe de diferentes profissionais não significa exercer um trabalho interdisciplinar de fato. É fundamental estabelecer certas diferenciações, já que formas diversas de trabalho em grupo são possíveis.

Como diferenciação remetemos a Santomé (1998) que define a interdisciplinaridade existente a partir da associação entre as disciplinas com intercâmbio baseado em reciprocidade e enriquecimento mútuo. Isso ocorre através da colaboração de diferentes especialistas que estabelecem estudos complementares dentro de um contexto de estudo de âmbito mais coletivo. O que define a presença de interdisciplinaridade é a colaboração, intercomunicação e, acima de tudo, a flexibilidade para transformar conceitos e metodologias de pesquisa, na busca de um equilíbrio maior de forças. A multidisciplinaridade ocorre em equipes de trabalho nas quais se percebe a busca de informação em outros saberes, entretanto, não se estabelece uma relação entre esses conhecimentos, dando-se um nível inferior de integração. Já a transdisciplinaridade refere-se à construção de um sistema total sem fronteiras entre as disciplinas, uma forma de relação entre elas que as supere.

Nenhum dos profissionais entrevistados citou a participação em equipes interdisciplinares de fato, relatando que na maioria das equipes existem apenas momentos em que apresenta um forma de funcionar interdisciplinar, mas que a integração real entre os profissionais ainda está longe de acontecer. Cinco entrevistados relataram participar sistematicamente em reuniões de equipe de discussão de casos.

Fazemos discussão de casos, momentos de estudo, reuniões de equipe mensais da Pediatria nas quais participam o pediatra que atende no local, assistente social, enfermeira da unidade, psicóloga e o médico responsável pela especialidade que motivou a internação do paciente. Além disso, realizamos reuniões semanais da equipe para tratarmos do funcionamento da unidade e discutirmos os casos dos pacientes internados.

A importância de valorizar o papel de cada área do conhecimento, através da participação dos diferentes profissionais em discussões, é enfatizada por Santomé (1998), já que a riqueza do trabalho interdisciplinar está diretamente relacionada aos níveis de conhecimento e experiência dos profissionais integrantes da equipe a respeito de sua própria disciplina. Dessa forma, esses poderão contribuir para a constituição de um trabalho consistente de natureza interdisciplinar. Para Fazenda (2001), somente por meio de uma leitura disciplinar cuidadosa, se pode obter um amadurecimento prático e intelectual de caráter interdisciplinar.

Fazenda (2001) enfatiza que o exercício da interdisciplinaridade implica na escuta do diferente livre de preconceitos, assim como na disponibilidade de perceber os limites existentes nas próprias disciplinas. A presença de obstáculos no trabalho em equipe, no entanto é inegável e foi trazida pela maioria dos entrevistados.

A dificuldade é nesse cuidado em saber que a historia contada por um, nem sempre está de acordo exatamente com aquela que o outro conta. Muitas vezes, aparecem discrepâncias. Algumas coisas ditas são tomadas imediatamente como verdades. Ás vezes, tem que dar uma freada nisso, investigar um pouco mais, saber que verdade é essa, porque é uma verdade parcial, no sentido de que, às vezes, ela é muito mais incrementada por uma certa opção da pessoa, seu comprometimento psíquico, sua estrutura. Então, tem essa dificuldade pela posição que as pessoas tomam frente ao que escutam.

Os espaços grupais estimulam a troca entre os profissionais, a construção e a reconstrução de conhecimento, mas também propiciam o surgimento de conflitos sócio-cognitivos, através da reunião de experiências, exposição de diferenças e aparecimento de pontos de vista diversos. Para Capobianco (2003), é importante que o trabalho da psicologia se torne mais abrangente por meio de um olhar direcionado ao cotidiano hospitalar como um todo e as relações estabelecidas no local, ultrapassando a restrita análise do mundo psíquico do paciente.

Obstáculos presentes no trabalho com a equipe foram mencionados como uma das principais dificuldades no trabalho da psicologia com crianças e adolescentes, assim como as discrepâncias presentes entre a teoria e a prática do trabalho em equipe interdisciplinar.

As coisas não são muito fáceis no trabalho em equipe. Quando a gente estuda, na teoria, parece fácil, bonito, transdisciplinar, multidisciplinar, mas, na prática, é bem complicado. O que eu posso enfatizar é que, apesar das dificuldades das equipes, de conseguirmos conquistar um espaço, existem dificuldades nas trocas, nas diferenças entre as disciplinas e as áreas, na fronteira. Lá pelas tantas fica assim: o que compete a quem... é da psicologia, do serviço social, do médico? Isso realmente não é fácil de lidar.

Os entrevistados comentaram a presença de inúmeras dificuldades quanto ao entendimento teórico, por parte dos profissionais, sobre a interdisciplinaridade. Isso se torna ainda mais deficitário quando nos reportamos ao cotidiano de trabalho. Santomé (1998) alerta às peculiaridades de cada disciplina, às relações de poder entre as mesmas, à forte tendência ao pensamento disciplinar, assim como à territorialização do conhecimento, tidos, para o autor, como obstáculos que promovem a exclusão e reforçam a separação entre as diferentes áreas.

A percepção da confusão de papéis entre os profissionais das equipes foi trazida pelos entrevistados como um dos problemas enfrentados. Dentro disso, Etges (1999), critica a concepção generalizadora atribuída à interdisciplinaridade, a qual não contribui para compreensão mais aprofundada da realidade e acaba por promover confusões na pretensão de reduzir as ciências a um denominador comum. Tanto Etges (1999) quanto Santomé (1998) ressaltam a importância da disciplina e sua especificidade, como forma de contribuição às discussões interdisciplinares. Assim, a interdisciplinaridade assume o papel de transposição do saber do exterior para cada pessoa, através da criação de uma linguagem comum que permita a compreensão.

Na busca pela prática interdisciplinar, não podemos subestimar os obstáculos a serem enfrentados nem os perigos que corremos quanto à possibilidade de desvirtuar a filosofia da interdisciplinaridade realizando somente um trabalho em equipe com o rótulo de interdisciplinar. É impossível pensar na interdisciplinaridade de forma ingênua.

O exercício de uma prática interdisciplinar, de acordo com Fazenda (2001), provoca questionamentos da racionalidade dos ensinos e didáticas, analisa os processos, as dimensões sociais e institucionais, a articulação dos saberes e as estratégias organizacionais, mobilizando os afetos, o efeito da força e a força dos efeitos. Mesmo valorizando o papel da interdisciplinaridade na construção do conhecimento, a autora alerta que para o desenvolvimento de uma atitude interdisciplinar na prática é fundamental conhecer o lugar de onde se fala. A formação à, pela e para a interdisciplinaridade precisa ser concebida sob bases específicas, apoiadas por trabalhos desenvolvidos na área, através de um processo de clarificação conceitual. Isso pressupõe um intenso amadurecimento tanto prático quanto intelectual.

Nesse caminho, destacamos as idéias de Romano (1999) quanto ao trabalho em equipe. Para a autora, trabalhar em equipe não significa que todos devam saber tudo. A equipe refere-se, apenas, a um campo de subjetivação, local de acolhimento no qual cada profissional pode ter seu papel. Na viabilização desse processo, duas questões são fundamentais: a escuta do diferente e humildade. A primeira remete à necessidade de oferecer condições para que seja possível executar a escuta do diferente livre de preconceitos. A segunda diz respeito à disponibilidade para constatar limites nos próprios referenciais e experimentar intervenções diferenciadas, alterando referenciais individuais na busca de novas ações geradas a partir de proposições conjuntas.

Azambuja (2004) aborda a necessidade de discussão dos erros praticados entre os membros de uma equipe de trabalho, mediante uma atuação baseada na interdisciplinaridade. Ressalta, no entanto, a impossibilidade da presença de uma equipe interdisciplinar permanente em algumas instituições. Diante disso, o autor recomenda que o profissional busque a contribuição de colegas com os quais possa discutir aspectos que fogem à sua especificidade. Nesse sentido, todos os entrevistados comentaram a presença de constantes discussões de caso com os demais profissionais da equipe realizadas informalmente.

Sempre que possível, quando a equipe nos solicita para um atendimento da internação, uma criança que está sendo acompanhada, que está sendo investigado o diagnóstico, a gente procura sempre dar algum retorno para a pessoa da equipe que fez a solicitação e procura fazer alguma troca com a equipe, dar um retorno nosso do que nos pareceu, escutar um pouco eles também, o pessoal da enfermagem e os técnicos que estão ali mais próximos: Perguntamos: "o que pareceu para vocês?... como é que essa criança reage?" Procuramos fazer essa troca não com só os médicos. Quando estamos acompanhando um caso que é mais delicado, que a gente acha que é importante também uma troca maior com a equipe, a gente procura participar do round que é o momento em que os médicos estão ali e vão discutir o caso. Os estagiários tem como rotina participarem nas unidades que eles já estiverem. É um momento de troca, da equipe nos solicitar ajuda.

Devemos ressaltar que, apesar das dificuldades no trabalho em equipe apontadas pelos entrevistados, a maioria deles relatou a possibilidade de trabalho em equipe como uma das vantagens em trabalhar com crianças e adolescentes.

A vantagem do trabalho com a equipe é a possibilidade de um olhar mais amplo da criança. Por exemplo, as atividades de vida diária, um dos aspectos explorados pela terapia ocupacional na avaliação inicial do paciente, permite perceber questões a respeito da autonomia da criança, entre outras coisas. Muitas vezes, não estamos atentas a essas coisas e a troca com os profissionais ajuda bastante nisso. A grande vantagem é o trabalho em equipe, o trabalho integrado que tu tens. Isso para mim é uma das melhores coisas que tem aqui.

O atendimento ao público infantil e adolescente também foi destacado pelos entrevistados como uma vantagem presente em seu trabalho.

É complexo. Já ouvi que trabalhar com criança é mais fácil. Não... não é. Às vezes é mais difícil. Para quem gosta é muito gratificante. A gente aprende muito com as crianças. Se colocando no lugar de poder escutá-la, e de um olhar para eles de que eles tem um saber. A gente aprende muito com eles. É muito interessante. É uma coisa que dá uma alegria, uma satisfação. Vejo que algumas poucas coisas que permitem a entrada de um terceiro e abrem a possibilidade de que o outro tome uma certa distância para enxergar o que está acontecendo, faz com que, rapidamente, se possa tomar outra posição diferente. O próprio adolescente pode pensar sobre como ele está enxergando o modo dos pais e da família agir com ele. Muitas vezes, ele está achando que tem que se submeter, que não tem outro caminho que não seja um que gere agressão. Se pode possibilitar, às vezes, que ele consiga enxergar de outro modo a situação e isso, às vezes, rapidamente reorganiza algumas situações que pareciam caóticas.

Ao trabalho em equipe foram também atribuídos sentimentos de valorização e satisfação por parte da grande maioria dos entrevistados.

Eu acho que é uma equipe em que há uma consideração pelo que eu tenho a contribuir. Valorizam quando eu intervenho a respeito de alguma coisa. Esclarecer algum caso, algum funcionamento, poder apontar algumas questões que tem a ver com um certo funcionamento e estruturação daquele paciente, às vezes, ajuda a outro profissional a se posicionar melhor. Alguns casos são uns dramas que a gente escuta que tendem a mobilizar as pessoas a se identificarem com alguma posição, ou se penalizarem com outra. Se pode ajudar a reconhecer que aquilo faz parte de todo um modo de funcionar. O espaço da reunião é importante e é valorizado. Existe uma boa relação entre os profissionais. Sinto que o que se está dizendo é valorizado.

A capacidade do profissional em expor suas capacidades é fundamental, para Romano (1999), no que se refere à valorização e aceitação do profissional por parte da instituição. Dentro disso, a autora ressalta a importância da presença constante do psicólogo nas equipes, demonstrando sua habilidade no manejo de situações complicadas e discussão de casos. A conquista do espaço profissional na instituição foi considerada uma constante pelos psicólogos.

É um trabalho muito bonito. Isso de estarmos sempre tentando conquistar, não estar pronto, também é uma coisa própria da vida, de seguirmos tendo objetivos e mantendo o entusiasmo, para não ficar no marasmo, pensar que não precisamos fazer mais nada, que o lugar está garantido, tendo certeza que a forma está certa e que não teriam outras formas, outras coisas para se fazer. A gente está constantemente preocupado com isso. O que nós estamos fazendo? Tem outras coisas que se poderia fazer?

Alguns entrevistados relacionaram seus sentimentos com relação à inserção da psicologia nas equipes das quais fazem parte a diferentes momentos da instituição hospitalar na qual trabalham assim como as diferentes unidades nas quais atuam dentro do hospital.

Nesses anos, eu tenho sentido um crescimento grande de demanda, de nos chamarem, de sentir que a psicologia é necessária. Mas é sempre um trabalho de conquistar um espaço, de poder fazer esse trabalho de tentar se aproximar, de tentar mostrar que também de alguma forma nosso objetivo é colaborar para um crescimento do paciente. Ficamos com uma coisa persecutória: "ah psicologia ... mas o que vocês querem... por que tu queres saber disso... ". Tem profissionais e profissionais. Cada unidade tem suas características. Tem unidades que são receptivas à psicologia e outras que são mais fechadas. Tem profissionais que demandam bastante, que gostam de vir discutir, de saber a nossa opinião, de trocar e tem outros que são mais resistentes, mais fechados. É uma coisa que nunca está pronta. Sempre tem alguma coisa para conquistar.

Romano (1999) alerta à necessidade do psicólogo investigar a respeito da concordância entre seu potencial e a demanda da equipe, tendo em vista que de nada serve constituir o trabalho da psicologia em direção diversa à demanda da equipe e da instituição.

O trabalho interdisciplinar é tido, por Almeida (2000), como possibilidade de diálogo entre disciplinas vizinhas com temáticas em comum. Ela acredita que o papel do psicólogo pode ser ampliado nessa perspectiva, quando o profissional atua como facilitador da interlocução entre os diferentes saberes e da comunicação entre os membros da equipe interdisciplinar da qual faz parte.

Devemos considerar que o trabalho do psicólogo no hospital implica em conviver com as interferências e variáveis presentes na instituição que exigem, muitas vezes, modificações na postura profissional. Nesse sentido, Leitão (1993) comenta que o profissional deve exercer sua criatividade na tentativa de adaptar o atendimento psicológico ao cotidiano da instituição e suas interferências. Já Camon (2003) enfatiza a necessidade de estar atento a possíveis vertentes de atuação que possam surgir no local, mantendo uma postura diferente da clínica privada. Dentro disso, dois dos entrevistados apontaram a necessidade de uma postura mais ativa por parte do psicólogo no atendimento ao público infanto – juvenil, considerando os diferenciais presentes no trabalho da psicologia com tal população.

Algumas considerações a respeito da postura do psicólogo com relação à equipe foram ressaltadas, assim como a importância de estabelecer uma comunicação eficaz com os demais profissionais através de uma abertura da psicologia. Para Camon (2003), é fundamental constatar que o trabalho em uma instituição implica em ultrapassar a prática isolada de um profissional. Torna-se de suma importância observar as expectativas quanto ao trabalho da psicologia no hospital para a elaboração de instrumentos de efetivação dos objetivos de seu trabalho no local. O psicólogo deve abandonar uma atitude isolada em busca do espaço na instituição, no entanto, não precisa destituir-se de suas características profissionais.

A relação com a equipe, conforme Leitão (1993), é uma variável importante a ser considerada pelo psicólogo que atua no hospital, já que o trabalho exige interação constante com profissionais de diferentes áreas. A inserção do psicólogo depende, de acordo com Camon (2003), de sua capacidade de estabelecer atitudes em harmonia com a realidade da instituição. Fazer uso de uma linguagem mais objetiva na relação com a equipe pode contribuir para estabelecer uma relação de confiança entre os profissionais da equipe e o psicólogo.

O meu referencial é psicanalítico, mas eu abandonei isso no sentido do discurso psicanalítico. Aqui eles não gostam disso. Aliás, é uma crítica que eu tenho. Eu acho que a psicologia fica muito no discurso e não existe coisa mais chata que discurso de psicólogo. Eu não suporto. Imagina as pessoas que não tem nada a ver com isso. A coisa é muito objetiva: eu vou e falo com o médico o que ele tem que saber: olha o risco desse paciente é esse e por isso e por aquilo. Eu tento ser objetiva porque é um local que exige. Ser objetivo não significa tu sair fora do teu trabalho. É tu dizer o que é importante para que eles entendam. Então, eles começaram a confiar muito no meu trabalho.

De acordo com Camon (2003) o psicólogo deve abandonar uma postura defensiva e isolada. Ele deve estar disponível a despojar-se de posições anteriores e defrontar-se com novas e desafiadoras circunstâncias de trabalho. Através da observação das expectativas a respeito do trabalho da psicologia no local, ele pode elaborar instrumentos de trabalho em acordo com a realidade da instituição, sem destituir-se de suas características profissionais.

Os entrevistados relacionaram a postura do psicólogo nos espaços de reunião e a sua inserção na instituição.

Hoje as discussões de caso são interessantes porque eles dizem: "é tudo contigo porque tudo que a gente podia fazer já foi feito, é um questão emocional e tem que trabalhar isso". Então tem esse lugar. Eles te ligam, perguntam o que dá para fazer. Eu consigo, de certa forma, fazer um plano de trabalho, ai eu ligo para eles e digo: "vamos fazer assim" e eles aceitam. Tem um espaço que eu nunca pensei que pudesse ter. Mas é uma conquista nossa. A gente destrói de quiser também.

Capobianco (2003) reforça que a subjetividade abarca não só o paciente e seus familiares, mas também as instituições que os acolhem. De acordo com esse deslocamento, a autora pretende analisar o efeito de seu trabalho com o paciente e familiares. Além disso, busca criar espaços no cotidiano hospitalar que permitam a vivência complexa da experiência do adoecer, apontando a necessidade de uma clínica voltada à criação de novos modos de existência.

A atuação dos psicólogos, segundo Almeida (2000), não pode constituir apenas uma atividade a serviço da docilização dos pacientes submetidos à prática médica. A ação do psicólogo integrante de uma equipe de saúde não deve limitar-se à resolução de conflitos em situações específicas de pacientes. È importante pensarmos em ações da psicologia adequadas à nossa realidade. O psicólogos que atuam no hospital devem basear suas intervenções a partir da práxis nessa instituição, constatando os limites, sofrimentos e injustiças nelas presentes.

Nesse ponto, Almeida (2000) destaca que a inserção do psicólogo nas instituições públicas de saúde deve estar pautada na promoção de saúde a partir de uma reflexão da situação concreta do sistema público da saúde no Brasil. È imprescindível que os profissionais procurem conhecimentos mais amplos da realidade social na qual a instituição hospitalar insere-se, para que possa perceber a articulação de todos os fatores envolvidos no processo de saúde e doença.

Tanto o material trazido pelos entrevistados ao longo da pesquisa, como as formulações teóricas abordadas nos levam a pensar acerca da complexidade existente no atendimento hospitalar, principalmente, quando se trata de crianças e adolescentes. Saberes relacionados ao direito, à saúde, ao trabalho em equipe, entre outros, são necessários. Nesse sentido é imprescindível construir trabalhos integrados nas instituições hospitalares a partir de diferentes ramos do saber. Sabemos, entretanto, dos obstáculos enfrentados na prática do trabalho em equipe. Conviver com a diversidade, incerteza, questionamento e reflexão constante sobre a prática exige dos profissionais algo que transcende o conhecimento técnico e atinge a esfera pessoal de cada um. Concordamos que isso não constitui uma tarefa fácil.

Sobre as formas pelas quais o profissional em psicologia pode contribuir nas equipes de trabalho em que está inserido é que buscamos, através do presente trabalho, refletir. Nesse sentido, reforçamos a possibilidade do profissional não focalizar sua atenção e intervenção apenas no paciente, estendendo seu olhar à instituição como um todo. Isso permite pensar o psicólogo como profissional que facilita a comunicação entre os diferentes profissionais, ultrapassando barreiras disciplinares em prol da construção de novas práticas.

 

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* Psicóloga do Grupo Hospitalar Conceição (GHC); Especialista em Direito da Criança e do Adolescente - FMP 1 ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 86º A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

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