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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Moralização sobre o uso de álcool entre agentes comunitários de saúde*

 

Moralization about alcohol use among communitarian health workers

 

Moralización sobre el uso de alcohol entre agentes comunitarios de salud

 

 

Pollyanna Santos da Silveira; Leonardo Fernandes Martins; Telmo Mota Ronzani

Universidade Federal de Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma das condições que mais apresentam uma conotação moralizante no mundo é o uso de álcool. O objetivo do presente artigo é investigar os estereótipos e a atribuição moral de agentes comunitários da saúde sobre a dependência de álcool. Participaram do estudo 197 agentes comunitários de saúde (ACS) de cinco cidades da Zona da Mata Mineira. Os instrumentos utilizados foram: questionário sobre características pessoais dos profissionais e questionário de avaliação sobre estereótipos e moralização do uso de álcool. Verificou-se que, para uso de álcool, o modelo de percepção que os ACS possuíam era moral e que uma das maiores dificuldades destes para lidar com determinados pacientes refere-se aos alcoolistas.

Palavras-chave: Alcoolismo, Estereotipagem, Atenção primária a saúde, Atitude, Agentes comunitários de saúde.


ABSTRACT

One of the main conditions that display a worldwide moralizing connotation is the use of alcohol. The objective of this present article is to investigate the stereotypes and the moral attribution of the Communitarian H ealth Worker (CHW) about the dependence of alcohol. 197 CHW from five cities of the Zona da Mata Region in Minas G erais State, B razil, participated of the study. Two instruments were used: Questionnaire about the personal characteristics of the professionals, E valuation questionnaire about stereotypes and moralization of the use of alcohol. We verified that for the use of alcohol, the perception model of the CHW was moral and one of the biggest difficulties for them dealing with the patients refers to the alcoholics.

Keywords: Alcoholism, Stereotyping, Primary health care, Attitude, Communitarian health workers.


RESUMEN

Una de las condiciones que más presenta una connotación moralizante en el mundo es el uso de alcohol. E ste artículo tiene como objetivo la investigación de los estereótipos y la atribución moral que agentes comunitarios de salud (ACS) hacen a la dependencia del alcohol. Participaron del estudio 197 ACS de cinco ciudades de la Zona da Mata Mineira. Fueron utilizados como instrumentos: cuestionario sobre características personales de los profesionales, cuestionario de evaluación sobre estereotipos y moralización sobre el uso de alcohol. Se constató que para el uso de alcohol el modelo de percepción del cual disponían los ACS era moral y que una de las mayores dificultades de los ACS para lidiar con determinados pacientes se refiere a los alcoholistas.

Palabras clave: Alcoholismo, Estereotipaje, Atención primaria de salud, Actitud, Agentes comunitários de salud.


 

 

Introdução

Em todo o mundo, transtornos relacionados ao consumo de álcool representam uma das dez principais condições de saúde que contribuem para explicar os anos de vida perdidos por mortes prematuras entre a população adulta (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2003). Apesar de diferenças regionais, o consumo per capita de álcool nos continentes americanos é estimado como sendo até 50% maior quando comparado ao consumo médio per capita mundial que é de 5,8 litros de álcool por ano. Além disso, 4,8% do total de mortes e 9,7% dos anos de vida perdidos ajustados por incapacidades poderiam ser atribuídos ao consumo abusivo de álcool em 2000, nos continentes americanos (REHM; MONTEIRO, 2005). Quando analisados apenas os países em desenvolvimento desta região, estima-se que 50,1% da carga de todas as doenças desses países poderiam ser explicadas por transtornos neuropsiquiátricos, e o álcool apresenta-se como maior fator de risco nesse contexto, superando até mesmo o tabaco (REHM; MONTEIRO, 2005). Menéndez e Pardo (2005) afirmam que o alcoolismo e os problemas relacionados ao uso de álcool são um dos principais problemas de saúde pública na América Latina, acarretando diversos prejuízos de ordem biológica, psicológica e social.

No Brasil, o primeiro levantamento nacional acerca do consumo do álcool, representativo da população brasileira, estimou que, entre os adultos, 52% beberam pelo menos uma vez ao ano, destes 60% dos homens e 33% das mulheres consumiram 5 doses ou mais, um padrão de consumo que já pode ser considerado de risco para problemas de diversas ordens. Entre os homens adultos, 11% bebem todos os dias e 28% consomem bebida alcoólica de 1 a 4 vezes por semana, indicadores preocupantes quando condicionados ao consumo de altas doses. O levantamento ainda apontou que cerca de metade dos bebedores relatou apresentar problemas com o uso de álcool (LARANJEIRA et al., 2007).

Apesar de o consumo de álcool estar presente já há milhares de anos na história da humanidade, tendo sua relevância social, política, econômica e religiosa em diversas culturas (DIETLER, 2006), o consumo de forma abusiva pode estar relacionado ao surgimento de mais 60 tipos de doenças e agravos diferentes (REHM et al., 2003), estando também associado tanto a danos diretos à saúde como a problemas sociais, incluindo problemas familiares e interpessoais (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2007).

O conjunto dos fatores relacionados aos problemas que o consumo abusivo de álcool pode acarretar justifica diversos esforços direcionados para a busca de intervenções mais compreensivas e efetivas. Dentre esses esforços, estratégias de intervenção para o problema do uso de álcool incluem desde ações focadas na reabilitação de dependentes até ações preventivas que objetivam reduzir os danos associados a padrões de consumo de risco (ABOU-SALEH, 2006). Um dos aspectos relacionados à efetividade dessas intervenções está ligado à forma como os profissionais envolvidos no processo percebem tais usuários e lidam com eles.

Corrigan (2004) aponta que, mesmo oferecendo uma intervenção adequada, muitas pessoas que poderiam se beneficiar de serviços de atenção à saúde mental, como seria o caso de usuários abusivos ou dependentes de álcool, optam por não buscá-los ou, quando o buscam, não chegam a cumprir o tratamento da maneira proposta. Uma das razões para isso acontecer pode ser a estigmatização dos usuários. Para evitar o rótulo de doente mental e os danos associados, os usuários deixam de frequentar ou até mesmo buscar ajuda nesses serviços, visto que o estigma pode não só afetar negativamente sua autoestima, como também reduzir suas possibilidades de inserção social.

O processo de estigmatização envolve alguns processos cognitivos tais como os estereótipos (CORRIGAN, 2004) e a atribuição moral (PALM, 2006). Estereótipos são crenças acerca de características, atributos e comportamentos de um determinado grupo, bem como teorias de como e por que certos atributos estão relacionados (HILTON; HIPPEL, 1996). Estereótipos são muito eficientes porque permitem a generalização de impressões e expectativas acerca de um indivíduo que pertence a um grupo estereotipado, sendo um processo importante para a cognição social, contudo esses estereótipos quando associados a reações afetivas negativas podem gerar atitudes discriminatórias (CORRIGAN, 2004). Já as atribuições morais estão relacionadas à atribuição de causalidade sobre um comportamento observado (MICHENER; DELAMATER; MYERS, 2005). A atribuição de moralidade para o alcoolismo pode envolver a percepção de que as causas dos problemas com uso de álcool são devidas ao pertencimento do indivíduo a um determinado grupo social, podendo também estar relacionada à atribuição de responsabilidade exclusivamente individual, tanto pelo surgimento do alcoolismo quanto pela resolução desse problema. A principal característica de uma atribuição moral envolverá uma responsabilização do indivíduo em razão de uma fraqueza de caráter (PALM, 2006).

Diante dos importantes problemas relacionados ao uso de álcool e mediante uma alternativa às concepções estereotipadas e moralizantes dos usuários, ações mais gerais, compreensivas e menos estigmatizantes, focadas na redução do padrão de uso de álcool e nos danos associados, apresentam-se com maiores chances de adesão por parte dos usuários (CORRIGAN, 2004). Nesse sentido, a atenção primária à saúde (APS) é um contexto estratégico para intervenções que sejam mais efetivas e menos estigmatizantes para usuários com transtornos por uso de substâncias (ABOU-SALEH, 2006). Nesse nível de atenção, a possibilidade de maior resolutividade dos casos atendidos e diminuição do agravamento dos problemas reduzem gastos com insumos tecnológicos e com hospitalização (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998; STARFIELD, 2002), sendo consequentemente um importante cenário para identificação, prevenção e intervenção para casos de abuso de álcool e outras substâncias, aliando custos reduzidos com a possibilidade de ações menos estigmatizadas.

A APS no Brasil é organizada pelo Sistema Único de Saúde que adota como estratégia prioritária o Programa Saúde da Família, que abrange ações de promoção, prevenção, reabilitação e tratamento. Entre os profissionais que compõem cada equipe desse programa, os agentes comunitários de saúde (ACS) permitem uma comunicação privilegiada entre a equipe e a comunidade. Esses profissionais residem na própria comunidade em que trabalham, o que permite o estreito contato com as famílias. Além disso, a presença do ACS na equipe permite que as necessidades, as potencialidades e os limites dessa comunidade sejam identificados e que recursos existentes sejam potencializados pela equipe (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008; NUNES et al., 2002)

O objetivo do presente artigo é investigar os estereótipos e a atribuição moral de ACS da equipe do Programa Saúde da Família sobre a dependência de álcool. As principais hipóteses deste estudo são de que, apesar do contexto privilegiado da APS, a dependência de álcool é uma das condições de saúde mais moralizadas pelos ACS. Além disso, espera- se ainda que as dificuldades pessoais para lidar com pacientes alcoolistas são maiores do que outros grupos de pacientes e estão relacionadas com o modelo de percepção e moralização dos alcoolistas entre os ACS.

 

Método

Participantes

Participaram da pesquisa 197 ACS dos municípios da Zona da Mata Mineira, distribuídos entre as cidades de Juiz de Fora (31,4%), Ubá (31,0%), Santos Dummont (24,4%), Guarani (10,2%) e Ewbank da Câmara (3,0%). Os participantes foram recrutados em unidades básicas de saúde que possuíam o Programa Saúde da Família, entre os meses de maio e junho de 2007. Após um agendamento prévio, as unidades foram visitadas, quando os profissionais foram convidados a participar do estudo. A participação foi condicionada à aceitação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) pelo Processo n° 4.101/2007.

Delineamentos da pesquisa

O presente estudo foi do tipo exploratório, não controlado, de definição intencional da amostra. Este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla intitulada “Profissionais de saúde de atenção primária: estereótipos e atribuição moral sobre o uso de álcool” da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade de São Paulo. A definição dos municípios que compuseram a amostra foi feita seguindo critério de conveniência; esses municípios participaram do projeto coordenado pelos pesquisadores sobre “Disseminação de práticas de prevenção ao uso de risco de álcool em serviços de APS da Zona da Mata Mineira”, financiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), Edital MCT/CNPq/ MS-SCTIE-DECIT 23/2006 – Estudo da Gestão em Saúde, Processo n° 408753/2006-4. Nos municípios de Ubá e Juiz de Fora, foi feito um recrutamento por meio de contato com os responsáveis pelos serviços. A partir desse contato, agendaram-se as visitadas para coleta de dados.

Para melhor operacionalização das hipóteses de estudo e obtenção de níveis de mensuração mais objetivos, optou-se por definir três aspectos principais a serem avaliados: a moralização da dependência do uso de álcool, o modelo de atribuição de responsabilidade e a dificuldade pessoal do profissional em lidar com dependentes de álcool.

Instrumentos

Foram utilizados como instrumentos questionários autoaplicáveis, administrados em grupo durante o horário de trabalho. Buscou-se intervir o mínimo possível na rotina de trabalho e manteve-se o controle necessário para a padronização da aplicação. Os instrumentos são apresentados a seguir:

  • Questionário sobre características dos profissionais: objetivou caracterizar os participantes da pesquisa por meio de dados sociodemográficos, como escolaridade, gênero, estado civil e tempo de trabalho no Programa Saúde da Família ou em unidades básicas de saúde. Além da motivação para realizar atividades de prevenção em relação ao uso abusivo de álcool, avaliada em uma escala do tipo Likert, que variava de 1 (totalmente desmotivado), passando pelo 3 (neutro), até 5 (totalmente motivado).

  • Escala de moralização sobre uso de álcool: a avaliação da moralização do uso de álcool foi feita por meio de uma escala de estereótipos que relacionava características como falta de força de vontade, fraqueza de caráter e problemas morais ao grupo de alcoolistas. A escala de moralização sobre o uso de álcool foi derivada da escala Marcus, desenvolvida para avaliar crenças e estereótipos sobre usuários de álcool. Dos itens originais da escala, foram utilizados 23 itens retirados do trabalho de Babor et al. (1986). A partir da utilização de tais itens em um estudo mais amplo com profissionais de APS, realizou-se o procedimento de análise fatorial para o agrupamento de itens por fatores. A escala de moralização foi definida então com cinco itens com proposições estereotípicas do tipo “Alcoolismo é sinal de fraqueza de caráter” e respostas do tipo Likert, que variavam de 1 (discordo totalmente) a 7 (concordo totalmente). A escala apresentava variação de pontuação de 5 a 35. Na avaliação de fidedignidade da escala, procedeu-se ao teste de fidedignidade de alfa de Cronbach e observou-se o valor de 0,77 na correlação entre os itens. No Quadro 1, são apresentados os itens da escala de moralização.

 

Quadro 1. Itens da escala de moralização e valores de média e desvio padrão entre os ACS

 

  • Questionário sobre modelo de percepção sobre problemas de saúde: para avaliar o modelo de percepção dos agentes sobre os usuários de álcool, utilizou-se o modelo de percepção de Brickman apresentado por Palm (2006), no qual se definem quatro modelos ideais, baseados na atribuição de responsabilidade pelo surgimento e solução de uma condição de saúde. Esses modelos são apresentados a seguir e esquematizados no Quadro 2:

    a. Modelo moral: a responsabilidade pelo aparecimento e pela solução de determinado problema de saúde é atribuída ao próprio indivíduo. O alcoolismo é visto como mau hábito, a causa do alcoolismo advém de uma fraqueza moral e a falha por resolver seus problemas poderia ser atribuída à falta de força de vontade.
    b. Modelo médico: o indivíduo é minimamente responsável pela causa do problema porque o alcoolismo tem uma etiologia biológica. Sendo assim, a responsabilidade individual por resolver e controlar seu problema é mínima. O alcoolismo é visto como uma doença irreversível e sem cura. O tratamento para o problema seria possível por meio do acompanhamento de um profissional ou programa que auxilie na busca da abstinência.
    c. Modelo compensatório: a responsabilidade individual pelo surgimento ou pela causa do problema é mínima. Entretanto, o indivíduo é responsável por resolver seu problema. Portanto, a metodologia de tratamento articula a conjunção da perspectiva de doença e a abordagem de solução de problemas. O paciente não é culpado diretamente pelo seu problema, mas responsável por lidar com ele, desenvolvendo habilidades de enfrentamento ou adquirindo um melhor sistema de suporte social.
    d. Modelo iluminado: os indivíduos são responsáveis por causar seu problema, porque eles foram levados pelo impulso de beber e perder o controle. Entretanto, os alcoolistas têm um mínimo controle por resolver seu problema. Sendo assim, o tratamento necessita que o alcoolista admita a fraqueza perante a bebida e submeta o seu controle a uma força maior que ilumine seus passos. Essa força poderia ser a comunidade ou outros alcoolistas que estão se recuperando.

O questionário utilizado para construir o modelo foi composto por uma pergunta acerca da responsabilidade dos pacientes com relação ao aparecimento de um problema de saúde e outra sobre a responsabilidade que esse paciente teria para solucionar esse problema. A possibilidade de resposta de concordância numa escala de 1 a 5, em que 1 corresponde a “nada responsável” e 5 a “totalmente responsável”, foi oferecida para as perguntas: “O quanto você acha que o paciente é responsável pelo aparecimento/evolução dos seus problemas de saúde?” e “O quanto você acha que o paciente é responsável pela solução dos seus problemas de saúde?”.

Utilizaram-se dois métodos para a avaliação do modelo entre os ACS, um de classificação individual e o gráfico com finalidade ilustrativa. No primeiro, as respostas de cada participante foram recodificadas retirando-se o neutro da escala e agrupando os resultados entre baixa e alta responsabilidade. O segundo método, o gráfico, utilizou a média das respostas das escalas para cada doença e agravo com a finalidade de definir um ponto (x, y) em um plano cartesiano. A média da responsabilidade pelo aparecimento/evolução definiu o eixo das abscissas (x) e a média de responsabilidade pela solução o eixo das coordenadas (y). O valor 3, considerado o ponto neutro das escalas, foi definido como o ponto de cruzamento entre os eixos x e y. As médias menores que 3 foram consideradas baixas, e as médias maiores que 3 foram consideradas altas.

  • Avaliação de dificuldade pessoal: a avaliação da dificuldade para lidar com pacientes dependentes do uso de álcool foi feita por meio da comparação desta condição de saúde com a hipertensão arterial. Utilizou-se como parâmetro de dificuldade a hipertensão arterial, por considerar que procedimentos de prevenção e tratamento desse problema já estejam incluídos na rotina dos profissionais de APS no Brasil, considerando- a como um parâmetro neutro de comparação. As respostas foram do tipo Likert, que variaram de –3 (menor grau de dificuldade), passando por 0 (equivalendo a grau semelhante de dificuldade pessoal ao lidar com hipertensos), até +3 (maior grau de dificuldade). As respostas foram posteriormente convertidas em números absolutos de 1 a 7 para observar o valor médio das respostas e classificar a dificuldade dos profissionais de APS em lidar com os alcoolistas. Com a finalidade de complementar essa avaliação, outras condições de saúde foram também avaliadas nos termos descritos anteriormente.

 

Quadro 2. Modelo de Brickman baseado na atribuição de responsabilidade pelo aparecimento e pela solução de um problema de saúde

 

Análise dos dados

Os dados foram primeiramente digitados no software estatístico SPSS versão 15.0, com a finalidade de corrigir eventuais erros de digitação e garantir a qualidade dos dados. Todos os questionários foram conferidos novamente com a primeira versão digitada. Por meio desse mesmo software, os dados foram organizados e analisados. Inicialmente, utilizaram-se técnicas de estatística descritiva para apresentar as frequências (n), porcentagens (%), média (M), mediana, desvio padrão (DP), valores mínimos (Mín.) e máximos (Máx.). A partir de então, verificou-se, pelo teste estatístico de Kolmogorov-Smirnov, a hipótese nula de não existência de diferença estatística entre a distribuição amostral das variáveis numéricas utilizadas neste estudo e uma d istribuição normal. A hipótese nula foi rejeitada para todas as variáveis numéricas (com p < 0,05, no teste Kolmogorov-Smirnov), portanto optou-se por prosseguir as análises inferenciais por meio de estatísticas não paramétricas, indicando a mediana como medida de tendência central. O teste de Mann-Whitney foi utilizado para testar a hipótese nula de não existência de diferença estatisticamente significativa entre a média dos postos das variáveis numéricas de duas amostras independentes; quando essa comparação era feita entre mais de duas amostras independentes, utilizou-se o teste de Kurskall-Wallis. Para a análise de existência de relacionamento entre duas variáveis numéricas, utilizou-se a correlação bivariada de Spearman para analisar o coeficiente de correlação entre as variáveis (p, rho de Sperman) e testar a hipótese nula de não existência de relacionamento estatisticamente significativo entre as variáveis analisadas.

O teste do qui-quadrado de Pearson foi utilizado para testar a hipótese nula de não existência de diferença estatística entre a proporção da distribuição de grupos definidos a partir de variáveis nominais relacionadas. O teste exato de Fisher foi calculado para obter valores de significância corrigidos quando violadas as propriedades de número mínimo de observações por célula no teste do qui-quadrado.

Adotou-se para todas as análises inferenciais o intervalo de confiança de 95% (p < 0,05).

Resultados

A maioria dos agentes comunitários era do gênero feminino (88,8%), um participante não informou o gênero. Com relação à faixa etária, esta variou de 18 anos até 59 anos, a idade média foi de 31,9 anos (DP = 10,2 anos) e a idade mediana de 29 anos. O tempo médio de atuação dos agentes comunitários no Programa Saúde da Família ou em unidades básicas de saúde foi de 3,0 anos (DP = 2,3), tempo mediano de 2,2 anos, variando de um único mês de trabalho até 9,8 anos. A maior parte possuía ensino médio completo (63,5%), seguido por ensino superior incompleto (16,2%), ensino superior completo (11,2%) e o restante dos agentes possuía escolaridade inferior ao ensino médio (8,7%); uma participante não respondeu (0,4%). A respeito da motivação para realizar atividades de prevenção do uso nocivo de álcool, uma minoria relatou estar desmotivada ou totalmente desmotivada (7,6%), a maior parte estava motivada de alguma forma (64,4%), seguidas por neutros (27,4%); um participante não respondeu essa questão (0,5%).

A idade dos profissionais se correlacionou positivamente, mas de forma fraca, com a moralização de alcoolistas (p = 0,21; p < 0,01, no teste de correlação de Spearman). O tempo de trabalho na APS não se correlacionou com a moralização. Foi realizada ainda uma análise de correlação entre a escala de moralização do uso de álcool e a dificuldade relatada para lidar com pacientes alcoolistas, porém não foi observada uma correlação significativa no teste de correlação de Spearman (p > 0,05).

Não houve diferença entre gênero na moralização de alcoolistas (p > 0,05, na comparação da média dos postos da escala por meio do teste de Mann-Whitney). Quando se analisou especificamente a moralização entre os níveis de escolaridade, observou-se que houve uma diferença estatisticamente significativa na comparação entre os grupos (X² = 32,72; gl = 4; p < 0,001, no teste de Kruskal-Wallis). O grupo com maior mediana na escala de moralização foi o ensino médio incompleto (26,00), seguido de fundamental completo (23,00), superior completo (21,00), ensino médio completo (17,00) e superior incompleto (13,00).

A Tabela 1 apresenta a distribuição das frequências para cada modelo de percepção para as condições de saúde estudadas. Para todas as condições de saúde, houve uma diferença significativa na distribuição de frequência entre os modelos (p < 0,001 no teste de qui-quadrado). Observou-se que as condições de saúde com maior frequência de modelo moralizante, respectivamente, foram: tabagismo (85%), dependência de maconha/cocaína (84,2%), dependência de álcool (80,1%), obesidade (73,3%), HIV/Aids (71,4%), diabetes (32,2%), depressão (19,1%), hanseníase (11,0%) e esquizofrenia (8,6%). O modelo de percepção moral foi predominante para as cinco primeiras condições. O modelo compensatório foi o predominante para hanseníase (58,3%), depressão (49,9%) e diabetes (42,2%). A esquizofrenia foi a condição de saúde com a percepção com maior frequência de profissionais que atribuíram a situação como modelo médico (64,8%) e menos moralizada. Nenhuma das condições foi observada de forma predominante por meio do modelo iluminado.

 

Tabela 1. Distribuição de frequência e porcentagem sobre a percepção de condições de saúde entre os ACS com modelo Brickman

 

 

Não se encontrou diferença significativa entre a proporção da distribuição da frequência dos modelos de percepção entre os gêneros para as condições de saúde (p > 0,05 no teste do qui-quadrado).

Diferentemente do esperado, não se observou diferença estatística significativa entre a média de moralização e os modelos de percepção para alcoolismo (X² = 2,58; gl = 3; p = 0,461 no teste de Kruskal-Wallis).

Encontrou-se diferença significativa entre os modelos de percepção para depressão com relação ao tempo de serviço no Programa Saúde da Família ou em unidades básicas de saúde (X² = 10,42; gl = 3; p < 0,02, no teste de Kruskal-Wallis).

Os profissionais que se enquadraram no modelo moral foram os que possuíam maior tempo mediano de serviço (37 meses), seguidos por aqueles que se enquadraram nos modelos médico (36 meses) e iluminado (18 meses); apenas um participante apresentou o modelo iluminado para depressão.

A análise do modelo de Brickman, por meio do método gráfico, utilizou os valores da média de cada questão para a construção das classificações. Com base nesse modelo, observou-se que as condições classificadas pelo modelo moral foram tabagismo, dependência de maconha/cocaína, dependência de álcool, obesidade e HIV/aids. Hanseníase, depressão e diabetes foram percebidos pelo modelo compensatório. A esquizofrenia foi a única condição percebida pelo modelo médico. Os resultados obtidos por meio do método gráfico estiveram em concordância com os resultados do método de classificação individual, servindo como um modelo ilustrativo apresentado na Figura 1.

 

Figura 1. Modelo Gráfico de Brickman – ACS

 

Em relação às dificuldades pessoais para lidar com pacientes com determinados problemas de saúde, os dependentes de maconha/cocaína, alcoolistas, esquizofrênicos, fumantes, depressivos, HIV positivos, obesos e hansenianos foram os com maior média de dificuldade respectivamente (Gráfico 1). Não foram observadas diferenças significativas na dificuldade de lidar com pacientes com as condições de saúde estudadas em relação a tempo de trabalho na atenção primária à saúde, idade, escolaridade ou gênero dos profissionais.

 

Gráfico 1. Dificuldades pessoais dos ACS para lidar com pacientescomparados aos hipertensos

 

Discussão de resultados

A hipótese de que a dependência de álcool seria uma das condições mais moralizadas pelos ACS foi comprovada em nosso estudo. O tabagismo e a dependência de maconha e cocaína também foram percebidos de forma semelhante, o que segue em consonância com os outros estudos que apontam evidências de que o uso de álcool e outras drogas é uma das condições mais moralizadas, quando comparadas a problemas de saúde (CORRIGAN et al., 2005; FORTNEY et al., 2004; PALM, 2006).

Considerando a moralização de um problema de saúde como a atribuição de responsabilidade ao indivíduo pelo surgimento do problema e a solução deste, é mais provável que um grupo moralizado seja evitado em seu convívio social ou mesmo não receba ajuda quando necessário (CORRIGAN et al., 2003, 2005). Doenças como câncer ou do coração são percebidas como não controláveis e por isso despertam sentimentos como compaixão e aumentam a disposição para ajudar (CORRIGAN et al., 2003). O fato de a dependência de álcool e outras drogas seguir um modelo moralizado pode ter um impacto negativo na própria disposição dos profissionais de saúde em lidar com esse problema (CORRIGAN et al., 2005; PALM, 2006).

Percebeu-se que a escolaridade foi um fator que influenciava a moralização dos ACS com relação aos dependentes de álcool. Apesar de o conjunto de dados não permitir uma análise detalhada acerca da diferença entre cada grau de escolaridade, pelo fato de os testes não paramétricos não permitirem comparações post hoc, os resultados indicam a necessidade de uma melhor avaliação da influência dessa variável.

A não existência de relacionamento entre moralização de alcoolistas e o modelo moral indica que os grupos de ACS classificados como aqueles que apresentavam outros modelos de atribuição, apesar das diferentes perspectivas acerca da responsabilidade pelo surgimento e pela solução do alcoolismo, possuem estereótipos sobre alcoolistas semelhantes. Esse resultado poderia ser explicado com base na teoria dos estereótipos que os define como crenças culturalmente compartilhadas, que em determinados grupos podem apresentar uma uniformidade (MICHENER; DELAMATER; MYERS, 2005).

Em concordância com o que era esperado, o grupo de alcoolistas e dependentes de maconha e cocaína foi considerado pelos ACS os pacientes mais difíceis para lidar quando comparados aos hipertensos. Apesar de os tabagistas serem um dos grupos mais estigmatizados, a esquizofrenia esteve em terceiro lugar nessa avaliação, à frente dos tabagistas que estavam logo em seguida. Diferentemente do que era esperado, não houve uma correlação entre dificuldade pessoal e a escala de moralização sobre alcoolistas e os modelos de percepção para cada problema. A dificuldade pessoal também não apresentou correlação com características tais como tempo de serviço no Programa Saúde da Família, idade, escolaridade e gênero. O não relacionamento pode ser atribuído a uma avaliação por parte dos ACS muito mais pautada em uma dificuldade técnica do que uma dificuldade baseada na aceitação do problema. Constatou-se que apenas 7,6% dos ACS se mostraram desmotivados para lidar com usuários de álcool, entretanto esses pacientes também estavam entre aqueles com os quais os agentes tinham mais dificuldade para lidar. Tal contradição pode também estar relacionada à forma como tais questões foram mensuradas, representando uma limitação do estudo, diante da possibilidade de construir inferências mais significativas.

A presente pesquisa teve como limitações adicionais o fato de o estudo ter sido conduzido por autorrelato, sem a observação direta do relacionamento interpessoal entre os ACS e os grupos analisados. Outro aspecto a ser ressaltado foi que a amostra se constituiu por uma população muito específica, definida por conveniência, o que dificultou a generalização dos resultados e permitiu que os resultados sejam mais descritivos. A utilização de métodos de coleta de dados de forma semiestruturada ou não estruturada também poderia auxiliar em uma melhor explicação e compreensão do fenômeno, como foi o caso de um estudo sobre as representações sociais de ACS acerca do HIV/aids, em que diversos resultados apontaram para opiniões, crenças, estereótipos e preconceitos que auxiliaram na melhor caracterização das concepções desses profissionais acerca da doença (CASTANHA; ARAÚJO, 2006). Entretanto, vale ressaltar que outros estudos conduzidos em diferentes culturas e populações apontam na mesma direção e dão suporte às conclusões obtidas (CORRIGAN et al., 2003, 2005).

 

Considerações finais

O ACS é um profissional-chave na equipe do Programa Saúde da Família não só pelo elo que faz entre a equipe e a comunidade da qual faz parte, mas também porque pode contribuir na execução de práticas, seja de prevenção de doença, seja de promoção de saúde, de forma mais contextualizada com a realidade comunitária. Para tanto, é importante que a formação desses profissionais envolva conteúdos que estejam aliados às particularidades de uma intervenção no contexto em que estão inseridos (BARROS; PILLON, 2006). Todavia, apenas uma formação técnica não seria capaz de mudar as percepções desses profissionais, o que torna relevante a capacitação continuada, sob uma ótica de educação permanente, que ressalte a potencialidade desse profissional inserido na comunidade. Uma qualificação profissional que ressalte não só o aprimoramento técnico, como também a mudança de crenças e atitudes sobre usuários de álcool e outras drogas, tem maior chance de alcançar melhorias em ações mais compreensivas que visem à implementação de estratégias de prevenção e reabilitação para usuários de álcool e outras drogas (FORTNEY et al., 2004; PALM, 2006; RONZANI, 2007).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Telmo Mota Ronzani
Rua Ministro Amarílio Lopes Salgado, 36/101
Cascatinha – Juiz de Fora – MG
CEP 36033-290
e-mail: telmo.ronzani@ufjf.edu.br

Tramitação
Recebido em agosto de 2008
Aceito em fevereiro de 2009

 

 

* Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minhas Gerais (FAPEMIG), ao Programa de Bolsas de Iniciação Científica (Probic/Fapemig) e à Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (Propesq-UFJF) a concessão de bolsas de iniciação científica.