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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.3 São Paulo dez. 2015

 

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Coerência local em crianças de 10 a 13 anos

 

Local coherence in children aged 10 to 13

 

Coherencia local en niños de 10 a 13 años

 

 

Ariane Cristina Ramello de CarvalhoI; Renata de LimaVelloso I; José Salomão SchwartzmanI
I Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo – SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A coerência local é caracterizada pela produção de inferências entre uma sentença e outra a partir da leitura de um texto. Aplicou-se o Local Coherence Inference Test, traduzido para a língua portuguesa, em 40 crianças normais do ensino fundamental, de 10 a 13 anos, com o objetivo de avaliar o desempenho delas. Consideraram-se o número de acertos e o tempo gasto na realização do teste, e avaliaram-se os seguintes aspectos: quociente intelectual (QI), idade e nível escolar. Os resultados mostraram que a escolaridade e a idade se correlacionam significativamente com o maior número de acertos e a velocidade de execução do teste. O nível intelectual se correlacionou significativamente com o número de acertos, porém não houve correlação significativa entre QI e velocidade na execução do teste. Este estudo contribui para o entendimento do processo de coerência local e sugere pesquisas posteriores nessa área, como a elaboração de um instrumento que avalie mais processos específicos envolvidos na compreensão textual.

Palavras-chave: Local Coherence Inference Test; coerência local; inferência; leitura; compreensão textual.


Abstract

Local coherence is characterized by the production of inference between two sentences in a reading passage. A Portuguese version of the Local Coherence Inference Test was applied to 40 normal children aged 10-13 in basic education, to evaluate their performance in this instrument by correlating the number of correct answers and time spent doing the test according to age, intelligence quotient (IQ) and scholar grade. The results showed that both educational level and ages correlated significantly with the highest number of correct answers and test time performance. The intellectual level was also significantly correlated with the number of correct answers, whereas there was no marked correlation between IQ and speed in performing the test. This study contributes to the understanding of local coherence process as well as suggests subsequent research in this area, as building an instrument to assess more specific processes involved in reading comprehension.

Keywords: Local Coherence Inference Test; local coherence; inference; reading; reading comprehension.


Resumen

La coherencia local se caracteriza por la producción de inferencias entre una oración y otra a partir de la lectura de un texto. Se aplicó el Local Coherence Inference Test traducido al portugués en 40 niños normales de 10 a 13 años de edad, de la enseñanza primaria, con el objetivo de evaluar el desempeño de los niños en este instrumento, teniendo en cuenta el número de respuestas correctas y el tiempo empleado en la realización del test, evaluando aspectos como: edad, coeficiente de inteligencia (CI) y grado de escolaridad. Los resultados mostraron que el grado de escolaridad y la edad se correlacionan significativamente con mayor número de respuestas correctas y con la velocidad en la ejecución del test. El nivel intelectual se correlaciona significativamente con el número de respuestas correctas, sin embargo, no hubo correlación significativa entre CI y velocidad en la ejecución del test. Este estudio contribuye a la comprensión del proceso de coherencia local y sugiere una mayor investigación en esta área, como la construcción de un instrumento para evaluar procesos más específicos implicados en la comprensión de textos.

Palabras clave: Local Coherence Inference Test; coherencia local; inferencia; lectura; comprensión de texto.


 

 

O estudo das habilidades cognitivas envolvidas na leitura contribui significativamente para o aprofundamento do aparato teórico sobre os aspectos envolvidos na compreensão textual. As habilidades implicadas na leitura compõem um processo complexo que necessita da integridade de estruturas cerebrais, do bom funcionamento de diversos aspectos cognitivos interdependentes – como percepção, inteligência, linguagem, memória operacional e de longo prazo – e de exposição ao estímulo (Corso & Salles, 2009).

Para ler este texto, por exemplo, são necessárias operações mentais que vão desde a discriminação visual de símbolos gráficos – por meio de um processo de decodificação que exige atenção seletiva e, consequentemente, a identificação dos sons (fonemas) correspondentes a esses símbolos – até a abstração da ideia global do texto (Pestun, Ciasca, & Gonçalves, 2002). Todo o processo que envolve o aparentemente simples ato de leitura envolve também a construção de inferências, a integração dos conceitos apresentados e o uso adequado de habilidades metalinguísticas, com processamento lexical, sintático, semântico e de aspectos pragmáticos e discursivos, por meio de um processo de análise e tradução, síntese e comparação que culminarão na produção de um significado (Coscarelli & Novais, 2010). Cavalcante e Santos (2012) propõem ainda que a leitura constitui-se de uma tarefa estratégica de elaboração de hipóteses, de acordo com objetivos específicos, de forma que ocorra associação entre o código linguístico e conhecimentos prévios.

Para a adequada aquisição da leitura e escrita, é necessário que a linguagem e as habilidades metalinguísticas se desenvolvam, sendo muito relevantes para esse processo a consciência fonológica e o conhecimento da correspondência entre grafemas e fonemas (Seabra & Dias, 2011).

Para Kintsch e Magalath (2011), compreender é construir um modelo mental por meio de um processo que envolve a integração e construção de ideias explícitas em um texto e um conhecimento relevante previamente adquirido. A partir desse modelo de construção-integração, os autores propõem dois processos no ato de compreender: um de nível básico e outro de alto nível. O nível básico resume-se ao processamento lexical e sintático, e o de alto nível, à habilidade de fazer inferências a despeito de informações que são apenas sugeridas no texto ou que envolvem uma gama de conhecimentos anteriores sobre o tema e a capacidade de monitoramento do que está sendo apreendido (Kintsch, 1998). Em outras palavras, todo esse processo é imprescindível para que o leitor alcance uma compreensão coerente do texto.

Van Dijk (1981) propõe dois tipos principais de coerência: local e global. A coerência local é caracterizada pela relação entre uma oração e outra em um texto, enquanto a coerência global é determinada pelo sentido do texto como um todo, ou seja, é a ideia geral que pode ser extraída do texto.

Para o cumprimento do objetivo do presente artigo, será utilizado apenas o conceito de coerência local, que se refere a partes de um significado que, posteriormente, irão compor o corpo semântico do texto, possibilitando, então, a produção de inferências. Dessa maneira, a forma literal do texto é excluída da memória, permanecendo apenas o significado estabelecido (Coscarelli, 2002). Com isso, pode-se dizer que a coerência local tem a função de estabelecer uma inferência, ou seja, uma ponte entre um evento antecedente e seu desfecho, apresentado em uma sentença posterior (Jolliffe & Baron-Cohen, 1999).

Diversas variáveis podem interferir nessa habilidade, entre elas o conhecimento do leitor sobre o assunto lido, a clareza do tópico central, a presença de metáforas incomuns, ambiguidade semântica e a contradição entre aspectos do texto com o mundo externo. A compreensão da leitura exige também o conhecimento sobre a linguagem e o mundo (Kintsch, 1988).

Buscando compreender a capacidade de estabelecer coerência local, fator fundamental que precede a capacidade que um indivíduo tem de produzir uma inferência a partir da leitura de um texto, Jolliffe e Baron-Cohen (1999) avaliaram um grupo de adultos com Transtornos do Espectro Autista (TEA), e outro, grupo-controle, de adultos normais (ambos com idades entre 18 e 49 anos). Foi realizado, então, um experimento no qual se aplicou o Local Coherence Inference Test, com o objetivo de avaliar a habilidade de coerência local. Esse estudo foi utilizado como referência para a presente pesquisa.

Para a criação do Local Coherence Inference Test, considerou-se o fato de que a coerência local tem ganhado destaque na psicologia da linguagem e serve para estabelecer conexões entre uma oração atual e o discurso anterior. O teste é composto por um parágrafo que mede a velocidade de leitura, duas questões que avaliam a capacidade de compreensão do texto lido, itens para ensaio do teste e 18 itens de avaliação que compõem o teste. Esses itens de avaliação são pequenas estórias com um par de orações (a primeira conta uma situação e contexto e a segunda revela uma consequência), e logo abaixo existem três opções de resposta. Os indivíduos avaliados leram essas orações e precisaram escolher qual das três opções se encaixava melhor no meio da estória que continha apenas um início e fim, realizando assim uma inferência.

Os resultados desse experimento mostraram que os 17 participantes do grupo-controle (adultos normais) acertaram a maioria dos itens, obtendo uma média de 15 respostas corretas. Além disso, eles eram mais rápidos tanto para ler o parágrafo de leitura como para responder a cada um dos itens. O grupo clínico obteve menos êxito em selecionar uma inferência coerente com as afirmações concorrentes. Outro achado importante é que os indivíduos com TEA apresentaram menor acurácia nas respostas e levaram muito mais tempo para responder. Os indivíduos com autismo infantil foram menos capazes de selecionar uma resposta coerente do que os indivíduos com síndrome de Asperger, apesar de terem levado aproximadamente o mesmo tempo para emitir uma resposta. Além disso, observou-se, nesse experimento, que os indivíduos com TEA apresentam déficits na integração de informação linguística.

Jolliffe e Baron-Cohen (1999) referem a importância de estudos sobre a coerência local e a identificação de como esse processo ocorre, ressaltando que a integração das ideias no texto, assim como a compreensão das inferências nele, depende tanto das informações oferecidas nas sentenças quanto de informações advindas da experiência do leitor. Portanto, uma falha em selecionar uma inferência coerente poderia ser decorrente de uma integração inadequada no uso do conhecimento geral durante a leitura ou de um comprometimento na própria base de conhecimento.

A partir do estudo supracitado, a presente pesquisa tem como objetivo avaliar o desempenho de crianças com desenvolvimento típico no Local Coherence Inference Test traduzido e adaptado para a língua portuguesa (Braga, Velloso, Duarte, & Schwartzman, 2012). Trata-se de um estudo preliminar que possibilita futuras pesquisas com diferentes grupos e faixas etárias sobre a habilidade de coerência local. Este estudo também se diferencia daquele proposto por Jolliffe e Baron-Cohen (1999), uma vez que o grupo pesquisado é composto por crianças, em vez de adultos, possibilitando a avaliação de coerência local em outras faixas etárias.

Em face da escassez de instrumentos que avaliem a habilidade de coerência local no Brasil, considerando que até o presente momento não há um teste devidamente validado em língua portuguesa que avalie especificamente o desempenho de crianças na habilidade de estabelecer coerência local, trata-se de um estudo recente e relevante que possibilita a realização de futuras pesquisas com evidência de validade do teste utilizado ou a construção de outros instrumentos que avaliem essa habilidade.

 

Método

Participantes

Para a composição do grupo de participantes deste estudo, foram selecionados 40 sujeitos em uma escola da rede de ensino regular do município de Guarulhos. No processo de seleção, adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: não apresentar diagnóstico de qualquer transtorno; não apresentar deficiência visual ou auditiva; quociente de inteligência (QI)  90, estimado a partir dos subtestes “Vocabulário” e “Cubos da Escala de Inteligência Wechsler para crianças – terceira edição – Wisc – III”; ter idade entre 10 e 13 anos; estar matriculado no ensino regular; ser do sexo masculino; e apresentar leitura e compreensão necessárias para a realização do teste, comprovadas no item de teste de velocidade de leitura do Local Coherence Inference Test para verificação da habilidade de leitura.

Instrumentos

Para a avaliação da habilidade de leitura, utilizou-se o item de teste de velocidade de leitura do Local Coherence Inference Test composto por 143 palavras. Para avaliação do nível de inteligência, utilizaram-se os subtestes “Vocabulário” e “Cubos” como forma reduzida da Escala de Inteligência Wechsler para crianças, terceira edição – Wisc III. Esse modelo tem sido indicado e amplamente utilizado para triagem e pesquisa (Mello et al., 2011). Para a conversão, adotou-se a tabela de “Escores do QI Estimado” (Strauss, Sherman, & Spreen, 2006).

Para o objetivo da pesquisa, foi utilizado o Local Coherence Inference Test (Jolliffe & Baron-Cohen, 1999) devidamente traduzido e adaptado para a língua portuguesa (Braga et al., 2012), seguindo as fases indispensáveis para esse tipo de tradução e adotando os mesmos critérios do estudo de tradução e adaptação realizado por Velloso (2012) e Velloso, Duarte e Schwartzman (2013).

Esse teste é composto por um cartão de ensaio que verifica se o indivíduo compreendeu a tarefa. Ele é constituído por um par de orações e três opções de resposta, e somente uma delas corresponde à inferência esperada. A primeira oração conta uma situação e a segunda revela uma consequência. O participante deve ler e escolher uma entre as três opções de oração que estabelece uma relação coerente entre a situação e a consequência apresentadas. Por fim, o teste apresenta 18 itens avaliativos que seguem o mesmo modelo do cartão de ensaio, sendo cada item apresentado em um cartão separadamente. Um cronômetro foi utilizado para registrar o tempo gasto pelo participante para responder aos itens e também para marcar a velocidade da leitura.

Procedimentos

A coleta de dados foi realizada em uma escola da rede de ensino regular do município de Guarulhos, seguindo a aplicação do teste já descrito. O local tinha uma sala de atendimento silenciosa e equipada com mobiliário adequado. Para registro das informações, utilizaram-se folhas de registro de respostas, caderno de aplicação, conjunto de cubos do Wisc III e caneta. Para análise estatística, foram utilizados os softwares SPSS V22, Microsoft Excel e Word 2011.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie via Plataforma Brasil e aprovado (Parecer n. 460.267 e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (Caae) n. 16904313.4.0000.0084). Em seguida, as cartas contendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e as informações sobre a pesquisa foram encaminhadas aos responsáveis pelas crianças.

Durante todo o processo, os participantes foram atendidos individualmente em uma sala livre de distrações e submetidos à aplicação do Local Coherence Inference Test traduzido para a língua portuguesa, após a aplicação e apuração dos resultados obtidos na forma reduzida da Escala de Inteligência Wechsler – Wisc III. O conjunto de cartões do Local Coherence Inference Test foi colocado com a frente para baixo sobre a mesa em frente ao experimentador.

Primeiramente, aplicou-se o parágrafo de teste de velocidade de leitura. Nesse momento, o participante foi instruído a ler com atenção, pois, em seguida, seria questionado sobre o texto lido. O tempo começou a ser cronometrado a partir do momento em que a criança começou a leitura.

Em seguida, foram feitas duas perguntas para os participantes a fim de avaliar a compreensão da leitura do texto. Nas duas questões sobre o parágrafo, o tempo não foi cronometrado. Também não foi permitido que a criança lesse o parágrafo novamente para responder a essas duas questões. Isso foi feito para verificar se a criança havia prestado atenção ao que tinha lido e armazenado as informações para emitir respostas corretas sobre o texto.

Em seguida, aplicou-se o item de ensaio. O participante foi informado de que veria alguns pares de frases, acompanhados de uma afirmação sobre cada par de frases, juntamente com três opções de resposta. Foi explicado também que todo o item deveria ser lido em voz alta.

Então, foi entregue ao participante o cartão de ensaio sobre a explicação dos requisitos da tarefa, para que se tivesse certeza de que o participante havia compreendido o que deveria ser feito. Em seguida, foi informado ao participante que a primeira frase de cada par sempre descrevia uma situação e a segunda descrevia uma consequência. Cada sujeito foi advertido de que havia uma sentença faltante, que deveria estar no meio do par, e que esta estabelecia uma relação coerente entre a situação e a consequência. Enfatizou-se que o sujeito deveria escolher a sentença mais coerente entre as três opções apresentadas. No item de ensaio, o experimentador ofereceu toda a ajuda necessária, explicando cuidadosamente por que uma resposta é mais coerente do que outra ou por que uma resposta é simplesmente incoerente. Após garantir que o participante houvesse compreendido todos os requisitos da tarefa, o experimentador prosseguiu para os itens do teste.

Nessa fase, os sujeitos foram informados de que o teste teria sequência, com o início da realização dos próximos itens do teste, e de que o procedimento seria o mesmo, porém, dessa vez, com tempo marcado. Eles foram instruídos de que não havia um tempo limite, porém, em algum momento, teriam que escolher uma resposta: a primeira, a segunda ou a terceira opção. Se o participante realmente não soubesse a resposta correta, seria solicitado que ele desse um palpite na tentativa de acertar a resposta. Foi mostrado um cartão de cada vez. O tempo de resposta de cada criança em cada um dos itens foi cronometrado, assim como o tempo total gasto na execução do teste.

Eis um exemplo de um item (estória) do teste utilizado:

• Alberto disse que nunca mais voltaria ao restaurante. Ele saiu sem dar gorjeta. Alberto saiu sem dar gorjeta, por que:.

1. Ele só tinha dinheiro suficiente para pagar a refeição.

2. Ele estava insatisfeito com o serviço.

3. O restaurante estava fechado quando ele chegou.

Cada resposta correta recebeu um ponto. Além disso, foi cronometrado o tempo de cada indivíduo em cada questão, com o fim de comparar a velocidade de leitura entre as idades.

 

Resultados

Conduziram-se análises de correlações bivariadas entre o desempenho no Local Coherence Inference Test (número de acertos e tempo gasto na execução do teste) e os fatores “idade”, “nível escolar” e “nível de inteligência”. Dessa forma, foi possível verificar o grau de relacionamento entre os fatores supracitados e o desempenho no instrumento testado, bem como a probabilidade real de que tal relacionamento exista.

A Tabela 1 sumaria a análise descritiva da amostra e indica a frequência de crianças por idade e para cada uma das outras variáveis analisadas, assim como a média e o desvio padrão para cada variável.

 

 

A Tabela 2 sintetiza os resultados das análises de correlação entre o desempenho no Local Coherence Inference Test (número de acertos e tempo gasto na execução do teste) e os fatores “idade”, “nível escolar” e “nível de inteligência”, com dados do coeficiente de correlação r e da probabilidade p entre parênteses.

 

 

Conforme demonstrado na tabela, a idade e o nível de escolaridade apresentaram forte correlação linear com o número de acertos e o tempo gasto na execução do teste. Isto é, a correlação entre a idade/ano escolar e o número de acertos obtidos no Local Coherence Inference Test é significante e positiva, de modo que as crianças com mais idade e mais escolaridade obtiveram melhor desempenho no teste. Além disso, as análises apontam para uma correlação negativa e significante entre idade/ano escolar e o tempo gasto na execução do teste, indicando que as crianças mais velhas e com maior nível escolar foram mais rápidas para realizar o teste inteiro. Qualitativamente, é possível observar que a escolarização e a idade influenciam no adequado processo de coerência local, denotando que o vocabulário e o conhecimento que o leitor tem dos assuntos tratados em cada item implicaram maior número de acertos..

Outro resultado relevante é que o nível de inteligência (QI) está diretamente relacionado ao melhor desempenho no teste, isso quer dizer que quanto maior o QI, maior o número de acertos. No entanto, o QI não se correlacionou com o tempo gasto na execução do teste, o que indica que o tempo utilizado para responder ao teste não implica melhor ou pior desempenho, mas talvez o nível de inteligência e a melhor performance estejam mais relacionados com o treino recebido durante os anos escolares.

 

Discussão

Este estudo buscou avaliar o desempenho de 40 crianças entre 10 e 13 anos, no Local Coherence Inference Test traduzido para a língua portuguesa, considerando o número de acertos e o tempo gasto na realização do teste, de acordo com nível intelectual, idade e nível escolar. A idade, o nível de escolaridade e o QI mostraram-se fatores fundamentais para a capacidade de compreensão textual e de estabelecimento de coerência local, que consiste em ser capaz de fazer inferência entre uma oração e outra.

Os resultados revelaram que o nível de escolaridade foi o fator mais fortemente correlacionado ao melhor desempenho no teste, tanto com relação ao número de acertos quanto ao tempo de execução, o que corrobora a teoria de Kintsch (1998), que afirma que a habilidade de fazer inferências a despeito de informações que são apenas sugeridas no texto depende de uma gama de conhecimentos anteriores sobre o tema e da capacidade de monitoramento do que está sendo apreendido.

Segundo Cavalcante e Santos (2012), os conhecimentos prévios envolvem os conhecimentos textual, linguístico, enciclopédico, intertextual e contextual. O primeiro refere-se à capacidade de reconhecimento do tipo de texto que está sendo lido; o segundo é pautado na experiência linguístico-discursiva, como construção de frases e valores semânticos; o terceiro, o conhecimento enciclopédico, é tudo aquilo que aprendemos no decorrer da nossa vida; o quarto tipo, o conhecimento intertextual, é a habilidade de identificação de referências a outros textos; e, por fim, o conhecimento contextual se apoia na capacidade de associação do texto a ser lido com seu contexto e com sua produção.

A idade e o nível de inteligência também apresentaram uma correlação positiva e significativa com o número de acertos e tempo gasto na execução do teste. As crianças mais velhas eram mais rápidas e conseguiam escolher com maior precisão a sentença que melhor se encaixava entre a sentença da situação e a da consequência.

Logo, como as crianças com mais idade também se encontram em ano escolar mais avançado e ainda apresentam maior QI, supõe-se que os resultados encontrados neste estudo estão de acordo com o esperado. Estudos sobre a aquisição e o desenvolvimento da capacidade de leitura mostram que, a partir do 5º ano, o padrão de desempenho dos estudantes revela estratégias mais consolidadas quando comparadas aos anos anteriores (Capovilla & Dias, 2007). Isto é, quanto mais consolidadas estão as rotas de leitura e mais conhecimento o leitor tem sobre o assunto lido (Coscarelli, 2002), maiores são as possibilidades de uma boa habilidade na construção de coerência local.

Quanto maior for o nível de escolarização, maior será a bagagem de conhecimentos prévios envolvendo também as experiências advindas pelo leitor e o adequado uso destas. Considerando que esse leitor apresenta melhor habilidade de leitura, melhor a criança será na capacidade de integração de informações linguísticas para o estabelecimento de inferências e coerência local. Além do uso das experiências anteriores para a integração das ideias do texto a partir das informações oferecidas, é necessário que habilidades metalinguísticas se desenvolvam adequadamente, o que ocorre cada vez melhor com o passar dos anos e desenvolvimento das habilidades cognitivas. A criança consegue ao longo dos anos, portanto, fazer melhor uso das habilidades de consciências fonológica, sintática, lexical, semântica e pragmática para melhor compreender, entre outras coisas, inferências em um texto, assim como compreender o texto como um todo analisando seu contexto (Snowling & Frith, 1986; Seabra & Dias, 2011). Tais afirmações corroboram os resultados indicados, uma vez que a idade e escolaridade influenciaram nas respostas.

Em comparação ao estudo realizado por Jolliffe e Baron-Cohen (1999), referente ao Local Coherence Inference Test, os adultos normais avaliados, de idades entre 18 a 49 anos, apresentaram uma média de 15 acertos nos 18 itens do teste. Embora a versão final do teste contenha 19 itens, as crianças avaliadas no presente estudo obtiveram uma média de 11,2 acertos, o que indica que elas conseguem estabelecer coerências locais, porém de forma um pouco mais limitada, talvez em função da pouca bagagem de conhecimento adquirida sobre os temas ou pela dificuldade em aplicar esses conhecimentos durante a execução do teste. Outro aspecto muito relevante refere-se ao fato de, na presente pesquisa, o teste traduzido ter sido aplicado em crianças, diferentemente do teste original que foi aplicado em adultos. Considerando que indivíduos com maior idade e escolarização conseguem apresentar melhores respostas, há a expectativa de que as crianças apresentem respostas inferiores em um mesmo teste aplicado em adultos. Tal resultado sugere que esse teste seja padronizado para adequada comparação de resultados de acordo com a idade do indivíduo avaliado, assim como dá subsídio para que outros testes com linguagem mais simplificada sejam elaborados para avaliação de coerência local em crianças.

Com relação às médias atingidas, as crianças de 13 anos se aproximaram ainda mais da média obtida pelo grupo-controle no estudo citado, já que obtiveram média de 12 acertos no Local Coherence Inference Test, apresentando uma diferença de apenas três pontos.

Os dados revelam que crianças de 10 a 13 anos já conseguem estabelecer conexões contextualizadas e significativas entre informações linguísticas. Contudo, quanto maior for a idade, maior será o nível de conhecimento, e, consequentemente, mais competência haverá no estabelecimento de coerência local.

O presente estudo é um levantamento preliminar para possíveis estudos de evidência de validade e padronização para a população brasileira do instrumento Local Coherence Inference Test. Dessa forma, os dados apresentados são apenas orientativos e sugestivos, e não podem ser generalizados para todos os indivíduos. Sendo uma das limitações deste estudo a amostra reduzida, a avaliação com uma amostra maior para cada grupo etário e ano escolar poderá possibilitar uma análise de dados mais precisa para verificar a consistência interna do instrumento utilizado.

De acordo com Alegria, Leybaert e Mousty (1997), é necessário desenvolver testes capazes de avaliar diferentes componentes que integram a habilidade mais geral de leitura, de modo que se identifiquem as possíveis dificuldades específicas apresentadas pelas crianças.

O teste utilizado nesta pesquisa mostrou-se eficaz para a avaliação da habilidade de coerência local no grupo avaliado. Este estudo ressalta a necessidade de um instrumento que avalie a habilidade de coerência local, uma vez que não existem instrumentos específicos para tal avaliação no Brasil. É de extrema importância que essa habilidade seja avaliada, uma vez que envolve a capacidade do leitor de realizar inferências e consequentemente compreender um texto, essencial para o adequado acompanhamento pedagógico e social.

 

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Endereço para correspondência:
Ariane Cristina Ramello de Carvalho
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Departamento de Ciências Biológicas e da Saúde
Rua T29, 358, sala 704, 7º andar, Bueno Medical Center, Setor Bueno
Goiânia – GO – Brasil. CEP: 74215-050
E-mail: ariane.ramello@gmail.com

Submissão: 10.12.2014
Aceitação: 10.8.2015

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