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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.18 no.3 São Paulo dez. 2016
https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v18n3p30-40
ARTIGOS
PSICOLOGIA CLÍNICA
Aspectos subjetivos da dor física: mapeamento das primeiras contribuições metapsicológicas freudianas
Subjective aspects of physical pain: mapping of freud's first metapsychological contributions
Aspectos subjetivos del dolor físico: mapeo de las primeras contribuciones metapsicológicas freudianas
Bárbara Aparecida Leal dos SantosI; Rodrigo Sanches PeresII
IUniversidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG - Brasil
IIUniversidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG - Brasil
RESUMO
A dor física, sobretudo crônica, passou a afigurar como um tema de maior interesse para a Psicologia apenas a partir do reconhecimento da subjetividade inerente a tal fenômeno. O presente estudo objetiva discutir as primeiras contribuições metapsicológicas freudianas para a compreensão dos aspectos subjetivos da dor física. Em linhas gerais, Freud qualifica a dor física como uma pseudopulsão, situando-a no limite entre o somático e o psíquico. Ademais, a relaciona à melancolia e, como consequência, à privação de um objeto libidinalmente investido. Outrossim, preconiza a existência de uma ligação apenas indireta entre a dor - independentemente de sua natureza psíquica ou física - e o prazer no masoquismo e no sadismo. Portanto, ainda que não tenha atingido uma teorização completa sobre o assunto nos textos contemplados nesta oportunidade, o autor estabeleceu coordenadas conceituais que dialogam com seus desenvolvimentos posteriores e fornecem elementos proveitosos para a clínica psicanalítica.
Palavras-chave: psicanálise; metapsicologia; Freud; dor; corpo.
ABSTRACT
Physical pain, mainly when chronic, turned into a major theme of interest to Psychology only when the subjectivity inherent in this phenomenon was acknowledged. This study aims to discuss Freud's first metapsychological contributions to the understanding of the subjective aspects of physical pain. In general terms, Freud qualifies physical pain as a pseudo-drive, at the threshold between the somatic and the psychic. In addition, Freud relates it with melancholy and, hence, with the deprival from a libidinously invested object. Furthermore, the existence of an only indirect link between pain - independently of its psychic or physical nature - and pleasure in masochism and sadomasochism is established. Therefore, although no complete theory was developed on the theme in the texts considered on this occasion, the author established conceptual coordinates that dialogue with their further development and provide fruitful elements for the psychoanalytic clinic.
Keywords: psychoanalysis; metapsychology; Freud; pain; body.
RESUMEN
El dolor físico, sobretodo crónico, se volvió un tema de mayor interés para la Psicología solamente a partir del reconocimiento de la subjetividad inherente a tal fenómeno. La finalidad del presente estudio es discutir las primeras contribuciones metapsicológicas freudianas hacia la comprensión de los aspectos subjetivos del dolor físico. En general, Freud califica el dolor físico como una seudo-pulsión. Además, lo relaciona a la melancolía y, consecuentemente, a la privación de un objeto libidinalmente embestido. Además, preconiza la existencia de una ligación solamente indirecta entre el dolor - independientemente de su naturaleza psíquica o física - y el placer en el masoquismo y en el sadismo. Por lo tanto, aunque no haya alcanzada una teorización completa sobre el tema en los textos contemplados en esta ocasión, el autor estableció coordinadas conceptuales que dialogan con sus desarrollos posteriores y fornecen elementos provechosos para la clínica psicoanalítica.
Palabras-clave: psicoanálisis; metapsicología; Freud; dolor; cuerpo.
Introdução
Conforme Teixeira e Okada (2009), a dor constitui uma preocupação para o ser humano desde seus primórdios, visto que há muitos registros, incluindo da Pré-história, de variadas tentativas de compreendê-la e controlá-la. Os referidos autores asseveram que, na Antiguidade, o fenômeno em questão, à luz das teorias mágico-animistas então vigentes, era associado essencialmente à punição de alguma entidade divina ou demoníaca. Já na Idade Média, começam a surgir explicações racionais acerca da dor baseadas nos conhecimentos greco-romanos sobre anatomia que foram resgatados no mundo árabe, sendo que tal processo não evoluiu da mesma maneira no Ocidente devido, sobretudo, à influência da Igreja. Somente no início do século XIX, face aos avanços da fisiologia, foi possível um melhor entendimento das sensações em geral e da dor, de modo que se constatou que a dor poderia se originar de diversas fontes, inclusive psíquicas.
Na esteira dessa constatação, também, levando em conta, os desenvolvimentos empíricos e teóricos posteriores na atualidade, a dor, de acordo com a International Association for the Study of Pain (IASP), é enquadrada como um fenômeno invariavelmente subjetivo e definida basicamente como "uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a uma lesão real ou potencial dos tecidos, ou descrita em termos de tal dano" (Task Force on Taxonomy of the International Association for the Study of Pain, 1994, p. 210, tradução nossa). Conforme observa Nasio (2008), a referida definição, embora permeada por certas ambiguidades, tem o mérito de reconhecer a relevância de fatores psíquicos na gênese da dor, o que, per se, assinalaria que a oposição "dor real" versus "dor emocional" encerra uma falácia.
Segundo Teixeira e Siqueira (2009), a dor representa uma importante questão de saúde pública, na medida em que se mostra cada vez mais recorrente devido, principalmente, à emergência de novos hábitos e ao aumento da longevidade. Os autores esclarecem que a dor aguda acomete praticamente todas as pessoas em algum momento da vida, ao passo que a prevalência da dor crônica pode variar de 7% a 40% em populações não clínicas. Cumpre assinalar que, de acordo com o critério temporal, a dor usualmente é classificada em aguda e crônica, sendo que a dor aguda possui limitação de duração e é revertida com a interrupção do estímulo que a desencadeou, ao passo que a dor crônica persiste mesmo após o tempo necessário para a cura de uma eventual lesão e/ou se mantém por um período de no mínimo seis meses, contínua ou recorrentemente (Duval Neto, 2009). A função subjetiva e pessoal da dor ocuparia um lugar de destaque entre os determinantes de sua cronificação, como destacam Gaspard, Abelhauser, Doucet e Zanotti (2015).
É preciso sublinhar que as considerações precedentes concernem especialmente aquilo que optaremos por nomear como dor física para aludir a dor que acomete o corpo em sua concretude ou, em outras palavras, o organismo em sua dimensão material. Esta designação não deixa de ser um tanto quanto artificial, pois a dor física está relacionada, de diversas maneiras, a questões de ordem emocional, em termos de suas causas ou efeitos. Além disso, a Psicanálise pressupõe, desde a ruptura epistemológica introduzida por Freud a partir de suas descobertas sobre a histeria, que o psíquico e o somático se entrecruzam. Porém, entendemos que a referida opção se justifica para tornar patente que, no presente estudo, não nos ocuparemos diretamente de um tipo de dor que se expressa primordialmente no plano mental e, assim, ser qualificada como dor psíquica. Em contraste com a dor psíquica, a dor física, sobretudo crônica, passou a se afigurar como um tema de maior interesse para a Psicologia apenas a partir do reconhecimento da subjetividade inerente a tal fenômeno, o que evidencia a relevância do recorte estabelecido nesta oportunidade.
A exemplo de Besset (2014), Minatti (2012), Cardoso e Paraboni (2010) e Taylor (2008), dentre outros autores, entendemos que a Psicanálise é capaz de fornecer elementos proveitosos tanto para a apreensão teórica quanto para o manejo clínico dos aspectos subjetivos da dor física. É interessante observar que a exploração das relações entre o funcionamento psíquico e o funcionamento orgânico foi crucial para o desenvolvimento do pensamento freudiano. Contudo, o próprio criador da Psicanálise não dedicou nenhum de seus estudos especificamente à dor física, tendo abordado o assunto apenas pontualmente em diferentes publicações com outras temáticas. De qualquer maneira, é possível afirmar que Freud estabeleceu pressupostos essenciais para o entendimento do fenômeno em questão pela ótica da chamada "ciência dos processos mentais inconscientes" (Freud, 1996e, p. 254).
Justamente por essa razão, tanto no contexto nacional quanto internacional, autores como Santos e Rudge (2014) e Rocha (2011), por um lado, e Nasio (2008) e Fleming (2003), por outro, vêm se dedicando ao estabelecimento de um panorama das formulações de Freud a esse respeito, privilegiando, nessa empreitada, alguns de seus textos em detrimento de outros. Assumindo tais premissas, o presente estudo tem como objetivo sintetizar e discutir as primeiras contribuições metapsicológicas freudianas para a compreensão dos aspectos subjetivos da dor física. Diante desse objetivo, nos deteremos aos textos "Sobre o narcisismo: uma introdução", "Repressão", "Os instintos e suas vicissitudes" e "Luto e melancolia". Tal opção se deve a três motivos principais: em primeiro lugar, porque, embora tenha contemplado a temática antes da publicação das referidas obras, Freud o fez recorrendo a uma terminologia neurológica, pois ainda não havia estabelecido os postulados psicanalíticos fundamentais. Em segundo, porque os textos selecionados para esta oportunidade não foram objeto de um exame pormenorizado em publicações prévias. Por fim, em terceiro lugar, porque foram redigidos originalmente no mesmo período, entre 1914 e 1915, pelo que veiculam formulações que se articulam entre si.
Antes de prosseguir, porém, julgamos pertinente esclarecer que, ao longo do presente estudo, mencionaremos os títulos dos referidos textos conforme constam da Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, a qual adotamos devido à sua ampla difusão no país. Porém, quando nos reportarmos ao conteúdo das mesmas, nos alinhando a Laplanche e Pontalis (2000), privilegiaremos "pulsão" e "recalcamento" ao invés de "instinto" e "repressão" como tradução para os verbetes alemães "Trieb" e "Verdrängung", respectivamente. Com isso buscaremos contornar distorções decorrentes da tradução do autor a partir do inglês e, como consequência, conferir maior precisão conceitual ao presente estudo.
Desenvolvimento
Em "Sobre o narcisismo: uma introdução", Freud (1996a) reitera que, como já apontado anteriormente por outros autores, a dor ocasionada por uma doença orgânica - o que nos leva a crer que o mesmo alude nomeadamente à dor física no texto em pauta - tende a provocar o desinteresse do sujeito pelo mundo externo. Mais precisamente, o indivíduo redirecionaria a libido anteriormente investida em um certo objeto para o próprio ego, o que apenas seria revertido com a recuperação de sua saúde. Portanto, Freud identifica a redistribuição libidinal como um possível efeito da dor física. Ademais, acrescenta que um movimento semelhante, embora em um sentido distinto, poderia ser observado na hipocondria, condição psicopatológica em que predominam sensações corpóreas desagradáveis provocadas por uma sensibilidade somática acentuada.
Contudo, Freud (1996a) esclarece que, na hipocondria, não estariam em causa lesões subjacentes, em contraste com o que ocorre tipicamente na vigência de uma doença orgânica. Até mesmo por essa razão, a libido seria dirigida a uma parte do corpo que não se encontraria "doente", mas funcionaria para o sujeito como substituta dos órgãos genitais e, assim, se tornaria "dolorosamente delicada". Logo, tal parte do corpo, poderia ser designada como uma zona erógena. O autor, assim, sugere que, ao menos na hipocondria, a dor física estaria intimamente associada a um movimento narcisista de retirada libidinal, o que evidenciaria sua natureza psicogênica. E ressalte-se que, ainda em "Sobre o narcisismo: uma introdução", a erogenicidade passa a ser reconhecida como uma prerrogativa do corpo humano como um todo, o que representa a ampliação de um posicionamento freudiano anterior.
Já em "Repressão", Freud (1996b) pontua que estímulos externos eventualmente poderiam ser internalizados por meio de um processo que resultaria em uma elevação da tensão vivenciada pelo sujeito, posto que implementaria uma fonte de excitação contínua. Como resultado, emergiria uma pseudopulsão que seria experienciada como dor. E tal processo não se restringiria à hipocondria ou qualquer outra condição psicopatológica em particular, o que coloca em relevo a existência de uma importante dimensão subjetiva da dor, quer seja física ou psíquica, na medida em que o autor não diferencia uma da outra nesse texto. Aprofundando essa linha de raciocínio, Freud esclarece que, quando eliminada, a dor não provocaria qualquer espécie de prazer, mas, sim, apenas a interrupção do desprazer por ela causado até então. Adicionalmente, cogita que a dor, devido a seu caráter imperativo, somente seria suprimida por algum "agente tóxico" ou "distração mental". Ou seja, defesas "externas" seriam naturalmente privilegiadas em detrimento de defesas "internas", das quais o recalcamento seria emblemático.
Podemos hipotetizar que essa formulação se aplicaria principalmente à dor física, pois Freud sugere que o recalcamento, de uma forma ou de outra, operaria nas diferentes psiconeuroses. Além disso, esclarece que tal defesa seria mobilizada nas situações em que o desprazer proporcionado pela satisfação de uma pulsão se sobrepõe em relação ao prazer, o que ocorreria quando da incompatibilidade desta com outras exigências (Freud, 1996b). É válido, também, esclarecer que o recalcamento, ainda conforme concebido no texto em pauta, consiste essencialmente no afastamento da consciência de representantes psíquicos das pulsões, razão pela qual não incidiria diretamente sobre as pulsões.
A propósito, quando, na teorização freudiana, a dor é equiparada a uma pseudopulsão, o uso do radical que encerra a ideia de falsidade parece-nos se legitimar por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque a satisfação de uma pulsão tende a provocar sensações agradáveis.
Em segundo, porque a dor, como já mencionado, teria como origem a internalização de estímulos externos, sendo que as pulsões surgiriam do interior do próprio organismo. Esse argumento é desenvolvido em "Os instintos e suas vicissitudes", texto em que Freud (1996c) igualmente assevera que a pulsão atuaria como uma força constante perante a qual nenhuma ação de fuga poderia prevalecer. As características em questão se estenderiam à dor enquanto pseudopulsão.
Por fim, cumpre assinalar que a referida comparação igualmente sugere que a dor se situaria no limite entre o somático e o psíquico, visto que o autor atribuiu às pulsões tal lugar fronteiriço neste texto, como ilustra a seguinte afirmação, ainda que nela o termo "instinto" seja utilizado - inapropriadamente - em detrimento de "pulsão" na tradução para a língua portuguesa: "[...] um 'instinto' nos aparecerá [...] como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo" (Freud, 1996c, p. 127).
Contudo, "Os instintos e suas vicissitudes" preconiza a existência de uma ligação apenas indireta entre a dor - independentemente de sua natureza psíquica ou física - e o prazer no masoquismo e no sadismo, em contraste com o que sugere o senso comum. Ocorre que, em tal obra, Freud sustenta que "as sensações de dor, assim como outras sensações desagradáveis, beiram a excitação sexual e produzem uma condição agradável" (1996c, p. 134). Seria, portanto, em busca de uma excitação sexual que o masoquista aceitaria se submeter à dor. Por sua vez, o sádico sentiria prazer ao experimentar a excitação sexual oriunda, especificamente, da identificação com a pessoa à qual inflige dor. E esta formulação parte do princípio, de que haveria, no masoquismo, um direcionamento do sadismo ao próprio ego.
Já em "Luto e melancolia", Freud (1996d), reafirma a possibilidade de enquadramento da dor como um fenômeno que não se reduziria a uma dimensão meramente somática. Afinal, aponta a existência de uma "disposição dolorosa" no luto, sendo este conceito definido essencialmente como a reação a uma perda objetal. Ou seja, a necessidade de remanejar para um novo objeto toda a libido anteriormente investida no objeto perdido - o que equivaleria à execução do chamado "trabalho de luto" - seria acompanhada de dor. Embora o autor não o especifique, julgamos razoável propor que a natureza dessa dor seria, sobretudo, psíquica, visto que adverte-se que o luto poderia provocar um desânimo profundo e um abandono generalizado do interesse pelo mundo externo. Ainda assim, o luto não deveria ser considerado uma condição psicopatológica.
Referendando nossa hipótese segundo a qual, ao defender que haveria uma "disposição dolorosa" no luto, Freud alude, em particular, à dor psíquica. É interessante mencionar que, no fechamento de "Luto e melancolia", o autor afirma que um exame pormenorizado da mania demandaria uma melhor compreensão da "natureza econômica, primeiro da dor física, depois da dor mental análoga a ela" (Freud, 1996d, p. 263). Afinal, esta afirmação sugere a existência de alguma diferenciação entre a dor física e a dor psíquica, embora consideradas intrincadas. A mania, na referida obra, é apontada como o oposto da melancolia, sendo que ambas se afigurariam como condições psicopatológicas, diferentemente do luto. A melancolia ocasionaria uma degradação na autoestima em função de um empobrecimento do ego, sendo que, no luto, o mundo externo é que se tornaria pobre para o sujeito. A mania, por sua vez, equivaleria a um subproduto da regressão ao narcisismo da libido anteriormente direcionada ao objeto perdido, porém sem a devida elaboração da perda.
Mas por que Freud teria sublinhado que haveria uma "disposição dolorosa" no luto, sendo que não afirmou o mesmo acerca da melancolia? Em nosso entendimento, o autor não foi suficientemente claro a esse respeito. Porém, sendo o desinvestimento objetal desencadeado por uma perda necessariamente acompanhada de dor, e, conforme nossa hipótese, sendo tal dor essencialmente psíquica, podemos ensaiar uma resposta à pergunta precedente ao salientar que, na melancolia, a despeito da perda concreta, ou até mesmo em função dela, o sujeito continuaria, a rigor, empreendendo investimentos libidinais no objeto perdido. Ocorre que, para Freud (1996d), o melancólico inconscientemente passaria a direcionar para o próprio ego os investimentos objetais, o que resultaria de um processo por meio do qual se estabeleceria uma identificação com o objeto perdido.
O empobrecimento do ego típico da melancolia seria implementado justamente devido a essa situação, dado que sobre o sujeito pesariam também as recriminações antes direcionadas ao objeto, ainda que de forma inconsciente. Afinal, Freud (1996d) aponta que certa ambivalência em relação ao objeto perdido, associada à existência de uma marcante fixação anterior à perda, comumente se destaca como um fator predisponente de tal condição psicopatológica. E isso explicaria por que as perdas que antecedem a melancolia, mas não o luto, seriam removidas do plano da consciência. Em suma, parece-nos possível depreender que, na melancolia, a inexistência de uma "disposição dolorosa" seria correlativa da obliteração do processo de formação de sintomas mentais, a qual, por sua vez, poderia potencializar a eclosão de sintomas somáticos, dentre os quais a dor física.
Com o intuito de recapitular e discutir, dentre os pontos contemplados até aqui, aqueles que consideramos de maior relevância, é válido reforçar que a dor física causada por uma mudança orgânica conduziria ao remanejamento da libido do mundo externo para o próprio ego, conforme proposto por Freud em "Sobre o narcisismo: uma introdução". Por outro lado, especificamente na hipocondria, um movimento equivalente poderia demarcar a psicogênese da dor física quando da inexistência de comprometimento orgânico basal, o que constitui uma tese inédita até então. Já em "Repressão", Freud qualifica a dor, em um sentido mais amplo, como uma pseudopulsão, sendo que, ao fazê-lo, circunscreve um possível fator psicológico da dor que não seria próprio de uma única condição psicopatológica: a internalização de estímulos externos. Porém, sustenta que tal processo ocasionaria a emergência de uma fonte de excitação contínua. E, em nosso entendimento, se aplicada à dor física, esta formulação não poderia ser generalizada tanto à dor crônica quanto à dor aguda, na medida em que, a julgar pelas características próprias de cada uma delas, aparentemente seria mais compatível com a primeira, por seu caráter recorrente ou persistente, do que à segunda.
Em "Luto e melancolia", Freud relaciona a dor física à melancolia e a dor psíquica ao luto. Como consequência, compreendemos que, ao menos quando associada à privação de um objeto libidinalmente investido, a dor física seria disparada por uma perda que ultrapassou a capacidade de elaboração psíquica do sujeito e, por essa razão, inviabilizou a formação dos sintomas mentais que seriam esperados a partir do desapego em relação àquilo foi perdido. E encontramos respaldo para tal compreensão na seguinte afirmação de Laplanche e Pontalis (2000, p. 510): "a noção de trabalho de luto deve ser aproximada da noção mais geral de elaboração psíquica". Outrossim, em "Os instintos e suas vicissitudes", Freud, demonstrando originalidade, esclarece a relação entre dor e prazer. Em primeiro lugar, ao asseverar que, quando eliminada, a dor somente conduziria à eliminação do desprazer vivenciado durante sua vigência. Em segundo lugar, ao sustentar que infligir dor a si mesmo ou a outra pessoa, a rigor, não provocaria qualquer tipo de prazer, inclusive no masoquismo e no sadismo, uma vez que, em ambas as condições psicopatológicas, a dor não seria fruída diretamente, mas, sim, apenas a excitação sexual que seria concomitante a ela.
Portanto, Freud, no período compreendido entre 1914 e 1915, redige obras que colocam em relevo certos aspectos subjetivos da dor física principalmente sob o ângulo do registro econômico da metapsicologia, posto que trata do assunto considerando a circulação de uma energia psíquica dotada de mobilidade e passível de quantificação, sujeita, assim, aos mais variados tipos de investimentos. No entanto, o próprio autor sustenta que, à época, não chegou a um desenvolvimento plenamente satisfatório a respeito. Além disso, ressalte-se que o registro econômico, conforme Laplanche e Pontalis (2000), se afigura como o mais hipotético da metapsicologia freudiana, mesmo quando leva em conta os registros tópico e dinâmico, e concerne a modelos conceituais, em maior ou menor grau, afastados da experiência. Logo, não causa surpresa o fato de a "economia da dor", proposta por Freud, se reveste de um caráter mais conjetural.
Não obstante, entendemos que, nos textos selecionados para os fins do presente estudo, Freud veicula pontos de vista que não serão rejeitados posteriormente, nem mesmo a partir do advento da segunda tópica, ainda que não tenham sido explicitamente incorporados pelo próprio autor às suas novas teses. E nosso posicionamento parece se alinhar àquele adotado por autores que apresentam um panorama das formulações de Freud em sua obra como um todo acerca dos aspectos subjetivos da dor física, como Santos e Rudge (2014) e Fleming (2003), ou aproximam algumas delas de aportes psicanalíticos pós-freudianos, como Marblé (2011). Consequentemente, as primeiras contribuições metapsicológicas freudianas acerca da temática em pauta não seriam de interesse apenas a partir de uma perspectiva histórico-reconstrutiva, por meio da qual se buscaria identificar reformulações teóricas introduzidas ao longo do tempo com o propósito de substituir teses anteriores.
Para conferir maior sustentação à nossa argumentação, consideramos relevante mencionar que, em "Inibições, sintomas e ansiedade", algumas ideias introduzidas nos textos contemplados nesta oportunidade são aprofundadas em um processo que denota continuidade, e não ruptura. A seguinte afirmação é ilustrativa no seguinte sentido: "A dor é assim a reação real à perda do objeto, enquanto a ansiedade é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto" (Freud, 1996e, p. 167). Ocorre que, em nossa compreensão, o autor alude aqui especificamente à dor física, o que é compatível com a nossa hipótese de que a "disposição dolorosa" que estaria presente no luto, conforme salientado em "Luto e melancolia", diria respeito à dor psíquica.
Ademais, em "Inibições, sintomas e ansiedade", Freud reitera o enquadramento do luto como reação a uma perda objetal, porém salienta que se trataria de um tipo específico de reação na medida em que conduziria a um redirecionamento da libido para um novo objeto. E isso diferenciaria o luto da dor enquanto reação à perda do objeto que poderia ser qualificada como "real" no sentido de que, como consideramos possível presumir, não promoveria movimentação libidinal equivalente, e tampouco perpetuaria os investimentos no objeto perdido. Afinal, o autor, na obra em questão, ainda esclarece que "a transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança da catexia narcísica para catexia de um objeto" (Freud, 1996e, p. 168). E, ao fazê-lo, retoma algo que já havia proposto em "Sobre o narcisismo: uma introdução" ao destacar que a dor física faria com que a libido se voltasse para o próprio ego. Ao mesmo tempo, com o referido esclarecimento aparentemente Freud, considerando que a Psicanálise postula a existência de uma interação entre o mental e o somático, talvez tenha ido tão longe quanto possível na distinção entre a dor física e a dor psíquica.
Com relação à guisa de conclusão, embora incompatível com o escopo do presente estudo (pois este não faz um aprofundamento a respeito desse tema) é oportuno comentar que as primeiras contribuições metapsicológicas freudianas para a compreensão dos aspectos subjetivos da dor física, em nosso entendimento, podem se desdobrar em importantes implicações para a prática clínica junto a pacientes que vivenciam tal fenômeno, na medida em que apontam que este não constituiria um mero sintoma a ser eliminado, mas sim uma forma de expressão que demanda inserção em um código linguístico. É nesse sentido que Minatti (2012) defende que a dor física há que ser recoberta pela fala e, consequentemente, traduzida em sofrimento na situação analítica. Todavia, como alertam Cardoso e Paraboni (2010), em muitos casos a dor física, sobretudo crônica, protege o sujeito de uma dor psíquica que, se vier à tona sem a devida sustentação, pode se revelar extremamente destrutiva. E as autoras salientam, não obstante, que, ao apresentarem insistentemente uma queixa, ainda que relativa à dor física, a maioria dos pacientes se dirige a alguém, o que já sinalizaria uma tentativa de entrar em contato com questões que, em um momento anterior, se revelaram refratárias à representação, mas não seriam, necessariamente, irrepresentáveis.
Conclusão
O presente estudo coloca em relevo a complexidade inerente às primeiras formulações metapsicológicas de Freud acerca da dor física. Afinal, como mencionamos anteriormente, o autor situa tal fenômeno no limite entre o somático e o psíquico ao qualificá-lo como uma pseudopulsão. Depreende-se, a partir disso, a internalização de estímulos externos como uma de suas possíveis origens, pelo que o apelo a ações de fuga ou a utilização de defesas "internas" se mostrariam improdutivos em seu enfrentamento. Ressaltamos ainda que uma marcante retração libidinal narcisista resultaria da dor física promovida por uma doença orgânica, assim como, especificamente na hipocondria, tornaria certas partes do corpo "dolorosamente delicadas" a despeito da existência de qualquer lesão capaz de justificá-lo, conforme Freud. Compreendemos com base na relação estabelecida pelo mesmo entre a dor física e a melancolia, que a privação de um objeto libidinalmente investido, quando excede os recursos psíquicos de que um indivíduo dispõe para elaborá-la, pode se afigurar como o disparador de sintomas que acometem o corpo em sua concretude.
Salientamos, outrossim, que nas obras redigidas entre 1914 e 1915 Freud não atingiu uma teorização completa sobre o assunto, mas estabeleceu coordenadas conceituais que dialogam com seus desenvolvimentos posteriores e fornecem elementos proveitosos para a clínica psicanalítica com pacientes que padecem de dor física. O presente estudo se diferencia, sobretudo, porque ampara tal constatação no exame de textos freudianos que não haviam recebido atenção especial até então em outras publicações. A propósito, as referidas coordenadas conceituais, podem, ainda, ser aproveitadas no contexto de uma abordagem multidisciplinar comprometida com a oferta de uma escuta dirigida à subjetividade do indivíduo e que também considere as dimensões biológicas e sociais do fenômeno em questão.
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Endereço para correspondência:
Rodrigo Sanches Peres
Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia
Avenida Pará, 1720, Bloco 2C, Campus Umuarama
Uberlândia - MG - Brasil. CEP: 38405-320
E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br
Submissão: 17.12.2015
Aceitação: 14.9.2016