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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2021
ARTIGOS
Da biopolítica que falta à que excede: a pandemia no Brasil
From the missing biopolitics to the ones that exceeds: the pandemic in Brazil
Pedro de Souza
USC/CNPq/Capes-print
RESUMO
Neste texto, pretendo tomar analiticamente o conceito foucaultiano de biopolítica no sentido de escancarar o movimento que ora inclui ora exclui certas formas de vida no contexto da pandemia de COVID-19. A questão é saber que formas de vida são levadas em consideração quando os desafios a que são confrontados gestores da ordem governamental conduzem medidas pautadas por uma lógica econômica neoliberal. Devo trabalhar metodologicamente sobre atos enunciativos dispersos proferidos em diferentes instâncias de saber. De partida, adoto o pressuposto de que vozes de saber - política, estatística, biomédica - nem sempre coincidem no modo de fazer dizer e significar o fenômeno da pandemia. O dispositivo analítico, portanto, deve alinhar os dizeres sobre a pandemia do novo coronavírus à maneira de compreendê-los. Quero mostrar a atualidade do conceito de biopolítica como operador da análise de um certo jogo de relações de poder historicamente situado no presente de uma pandemia em curso.
Palavras-chave: Biopolítica; Discurso; Governo; Pandemia.
ABSTRACT
In this text I intend to analytically take the Foucaultian concept of biopolitics in order to open the movement that now includes now excludes certain forms of life in the context of the COVID-19 pandemic. The question is to know what forms of life are taken into consideration when the challenges faced by managers of the government order lead to measures guided by a neoliberal economic logic. I must work methodologically on dispersed enunciative acts delivered in different instances of knowledge. From the start, I adopt the assumption that voices of knowledge - politics. statistics, biomedical -, do not always coincide in the way of making the pandemic phenomenon say and signify. The analytical device, therefore, must align the words about the pandemic of the new coronavirus with the way of understanding them. I want to show the currentness of the concept of biopolitics as an operator of the analysis of a certain set of power relations historically situated in the present of an ongoing pandemic.
Keywords: Biopolitics; Speech; Government; Pandemic.
1. Introdução
Meu fito é delinear uma forma de compreender o que se passa agora na grande crise de saúde pública ocasionada pela COVID-19. Proponho rastrear, no presente, vestígios de uma história passada, levando em conta os estudos históricos de Michel Foucault sobre biopolítica. Contudo, conforme o que é protocolar em procedimentos analíticos em análise de discurso, mais do que os fatos narrativamente sequenciados, intento experimentar uma estratégia de análise visando compreender o que acontece no horizonte de um emaranhado de dizeres. Uns negam, outros afirmam. Entretanto, tudo conspira para construções diversas de sentidos de vida e de saúde coletiva. Neste intermitente processo, desfila um mundo em que se a presença do novo coronavírus é inquestionável, o que se aplica nele são discursos produzindo realidades díspares e irredutíveis de gestão da vida no limite da morte.
Quem sabe, pode-se aludir ao fato de que ainda sob o princípio fundamental de que cabe ao governo administrar e defender a vida, nem por isso o velho poder soberano deixou de existir. Ele continua a induzir, através de decretos e resoluções governamentais, o poder sobre a morte, o deixar morrer e o deixar viver. Como bem alerta Thomas Lemke (2018, p. 68), evocando Michel Foucault, mesmo sob a égide governamental cada vez mais acrescida da biopolítica na época moderna,
[...] o direito soberano sobre a morte não desaparece, mas subordina-se a um poder que tem como programa a garantia, o desenvolvimento e a administração da vida. Consequentemente o poder da morte é delimitado e liberto de todas as restrições, uma vez que agora deve servir à própria vida.
Nesta direção de pensamento, pretendo tomar o proceder analítico que Michel Foucault nos legou em seus cursos Segurança, território e população (1977/1978) e O nascimento da biopolítica (1978/1979). Nestes cursos, com finalidades próprias a cada emissão no Collège de France, o pensador francês cuidou mostrar o modo como emprega o que chama de biopolítica respectivamente como estratégia de implementação de novos modos de governar e como tática de gerir um governo cuja razão se fundamenta na verdade da economia.
Outra referência aqui inclui o livro O nascimento da clínica (1977). Neste, a escrita da história da medicina, situada em meados do século XVIII, faz trabalhar, ainda que implicitamente, a noção de biopolítica como dispositivo analítico. O filósofo já esboça a noção de biopoder ao destacar, nos primeiros capítulos, a população como lugar em que a vida é fundamento crucial de políticas sanitárias e governamentais. Sobre este aspecto, no final, quero deixar elementos para refletir sobre a atualidade de uma política que hoje se procede como um ritual com falhas. E no que falha há no biopoder rarefeito, na gestão brasileira da pandemia, ausência da governabilidade que pressupõe constitutivamente a arte de conduzir pessoas.
Comutemos esses elementos de vigilância pelos que devem ser seguidos na pandemia da COVID-19; podemos chegar, assim, ao que na hora atual se afigura como desenlace de saberes de ordem médica, científica e governamental. Todos esses saberes não agem sobre a mesma realidade. Em vez disso, formulam-se em discursos que atravessam atos de fala que imediatamente perfazem diferentes modos de significar uma realidade incontornável: a da pandemia do novo coronavírus.
Certo que a palavra biopolítica, no livro O nascimento da clínica, não se faz presente nos precisos contornos conceituais com que Foucault investe essa mesma palavra em O nascimento da biopolítica. No entanto, o conceito se insinua na maneira de o filósofo escrever a história da medicina em contextos de epidemia no século XVIII. A biopolítica insinua-se nessa forma foucaultiana de escrita da história das epidemias como um conjunto de procedimentos heteroclitamente juntados. Aludo a saberes oriundos de domínios diversos, cada um contendo suas próprias regras de produção de conceitos e de objetos de saber: o clínico, o político, o social. Juntos esses domínios compõem uma maneira outra de gerir a vida como estratégia e como alvo de poder, seja em termos biológicos ou econômicos. De todo modo, reitero, a biopolítica não se apresenta nem como conceito nem como critério de análise no estudo que Foucault desenvolve em O nascimento da clínica.
Não obstante, nem mesmo no curso em que o tema foi precisamente a biopolítica - O nascimento da biopolítica - Foucault conseguiu ir diretamente à definição. Vamos direto ao ponto. A questão é que, nas palavras do pensador francês, nunca seria viável compreender o que é a biopolítica sem definir o quadro em que algo como biopoder dominante insurge. O filósofo deixa claro, logo no início da aula do curso, que uma série de problemas se impõe antes de considerar o modo como se forma a biopolítica. Primeiro, é preciso detectar seu núcleo central: a população. Em segundo lugar, e fundamentalmente, adverte o pensador: é preciso aceitar que a análise da biopolítica só poderia ser feita quando abarcar o regime geral de certa razão governamental, ou seja, o regime de verdade pelo qual o governo pauta sua razão de estado, a verdade econômica. Por consequência, daí advém a compreensão do que está em causa nesse regime. É do saber sobre certo regime governamental balizado no liberalismo que, segundo Foucault, se pode apreender o que é a biopolítica.
Em O nascimento da biopolítica, Foucault passa praticamente o tempo inteiro dissertando sobre o liberalismo e a história geral da economia que o rodeia. Nestes termos, pouco fala de biopolítica propriamente. Interessante notar que, no resumo desse curso, justificando esta espécie de digressão, Foucault se reporta ao que disse em O nascimento da clínica para se justificar acerca do que deixou de dizer sobre a biopolítica. Ele se coloca assim:
O tema escolhido era portanto a "biopolítica": eu entendia por isso a maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos a prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças... Sabe-se o lugar crescente que esses problemas ocuparam desde o século XIX e que desafios políticos e econômicos eles vêm constituindo até hoje (Foucault, 1978-1979/2008, p. 431).
Como aludi antes, tem-se aqui o ponto de uma conceituação de biopolítica tal como esboçada em O nascimento da clínica, e apenas insinuada em O nascimento da biopolítica. Podemos ainda entrever elementos constituintes do conceito de biopolítica conforme aparece no curso Segurança, território e população. Retomemos o segundo parágrafo do resumo do curso O nascimento da biopolítica:
"Num sistema preocupado com o respeito dos sujeitos de direito e com a liberdade dos indivíduos como é que o fenômeno da população" com seus efeitos e seus problemas específicos pode ser levado em conta? Em nome do que e segundo que regras pode ele ser administrado? O debate que ocorreu na Inglaterra no meado do século XIX acerca da legislação sobre a saúde pública pode servir de exemplo (Foucault, 1978-1979/2008, p. 431-2).
Respeito dos sujeitos de direito, liberdade dos indivíduos e população se conjugam. Essas expressões se coadunam e constituem, assim, os substratos definidores de uma biopolítica. Vê-se o vetor de uma ação política apontando para o controle das condutas. Digo que aí está o contorno específico da biopolítica, ou seja, a maneira de governar como eixo axial temático pelo qual se desenvolve o curso Segurança, território e população.
Se algo da história das epidemias ocorridas na passagem do século XVIII para o XIV aqui se repete é apenas como ponto de passagem para um problema crucial que é a arte de governar. O lema é governar docemente, não propondo ordem, mas cumplicidade. Mais adiante, quero propor como o mesmo lema se atualiza no presente da história em curso da pandemia de COVID-19, notadamente quando o problema da imunização requer a adesão de cada indivíduo para que a população seja salva do contágio. Entretanto, onde buscar anuência de conduta se os corpos individuais recusarem docilmente a ceder, tanto para não receber vacina quanto para não prolongar a distância social? Eis o ponto do que devo adiante apontar como incontornável necessidade de governo no sentido que Foucault imprime para essa palavra na conferência O que é a crítica? (Foucault, 1978).
Embora amplamente sabido entre os foucaultianos, nunca é demais lembrar que o conceito de governo em Foucault tem um sentido mais amplo. Governar abarca múltiplas significações vigentes até o século XVIII. Nos dias atuais, lembra Lemke (2018, p.68), governar "[...] designa acima de tudo formas de direção política e de estrutura jurídico-administrativa de instâncias estatais". Todavia, antigamente, o conceito se relacionava com as variadas formas de "condução das pessoas", abrangendo formas de condução de outrem, assim como técnicas do governo de si. Daí o surgimento, no século XVIII, da população como uma nova figura.
Fiz até aqui uma retomada muito esquemática acerca do conceito de biopolítica no pensamento foucaultiano. Muito ainda se pode esmiuçar sobre a fortuna crítica que Foucault nos legou, e que até hoje nos convoca a refletir sobre o modo como somos conduzidos e podemos nos conduzir em variadas circunstâncias de vida.
Em seguida, atenho-me às possibilidades de análise que o termo biopolítica permite, tomado na região das ideias de um pensador que é Michel Foucault. Digo isso sem deixar de considerar, conforme nos advertiu Lemke (2018), que o problema da biopolítica é anterior a Foucault. Por isso mesmo, vislumbro-a como prática que, concomitantemente tem uma referência histórica fixada no passado e uma aparição móvel no presente. O caso é de analiticamente observar não a biopolítica que se instaurou de uma vez por todas como fato e conceito, mas como aconteceu e acontece em um movimento que sobrepõe referência e aparição. Respectivamente enquanto discurso interpretável em referência à memória do já dito e discurso que aparece ou acontece no aqui e agora do ato de fala.
2. Biopolítica em cena nos gestos discursivos
Por onde começar uma análise que permita compreender o que se passa, em termos biopolíticos, na pandemia do novo coronavírus e que comporte a colocação em tela da arte analítica e distributiva do governo? Proponho começar pela experiência da aparição do contágio coletivo por certo vírus. O que se conta? Certamente, o terreno onde surge o fenômeno de uma doença coletiva define o modo como sua história é contada e significada. Recorto, particularmente, não a instalação factual da pandemia no Brasil, mas aos seus desencontrados e diferentes gestos discursivos e não discursivos de administração por aqueles convocados a agir como gestores de controle e de cuidado.
Era inverno quando, na passagem de janeiro para fevereiro de 2020, a Europa converteu-se na paisagem do desastre por causa da pandemia de COVID-19. No lado do hemisfério sul o verão seguia forte. Nem por isso, cerca de um mês depois, do lado de baixo do Equador, a gana sufocante do coronavírus deixou de invadir corpos individuais - unidades móveis vivificadoras a tecer, sem parar, toda uma corporeidade populacional. O mal da COVID avançou, não importando se a estação era quente ou fria.
Os discursos, balizados nas evidências estatísticas e sanitárias, davam conta de que, se contraído na estação de inverno, as consequências patológicas podiam ser mais graves. Entretanto, num certo verão tropical, o contágio não se mostrou menos letal quando habitou corpos humanos fluindo leves nas avenidas das grandes cidades. Logo as consequências repetidas dessa forma de contágio viral foram detectadas.
A verdade é que a dificuldade de tratamento combativo eficaz, mesmo com variantes de contaminação de indivíduo para indivíduo, conforme a faixa etária e as condições adversas de saúde, obrigou as autoridades sanitárias e governamentais a adotar uma mesma estratégia de prevenção. Fez-se necessário agir sobre o modo de vida de populações inteiras - independentemente da classe social -, tocando o direito de ir e vir.
Foi preciso olhar para o que o comportamento de cada indivíduo reflete no que chamamos população. A medida mais restritiva, ou seja, o chamado lockdown, que incluía a restrição de circulação de pessoas, o fechamento de comércios e serviços, a distância social e o rosto coberto pelas máscaras, passou a ser a palavra de ordem a ser coletivamente obedecida para deter o contágio pelo novo coronavírus.
No entanto, outros eventos de epidemia na história ocidental vêm sob outras versões narrativas. Em O nascimento da clínica, quando disserta sobre o despertar de uma consciência política em tempos de epidemia, encontramos em Foucault uma afirmação no mínimo desconcertante. "O problema do contágio", diz ele, "tem relativamente pouca importância. A transmissão de um indivíduo a outro não é, em caso algum, a essência da epidemia". "O contágio", continua mais adiante o autor, "é mais uma maneira de a epidemia se impor como fato consumado" (Foucault, 1980, p. 25). Em outras palavras, saber como o vírus passa de um indivíduo a outro era apenas um detalhe cujo ponto central é operar a anulação da propagação.
Nesses termos, pode-se dizer que a pandemia do novo coronavírus tem a sua especificidade histórica e socioeconômica, demandando medidas complexas e fora do regime vigente de normalidade. Estas abrangem não apenas a escolha de certa gestão médica, mas também de uma gestão estatal. Todavia, distribuídas em setores diversificados, as providências governamentais terão de ser capitaneadas pelo que, conjugando diligências da medicina e dos saberes estatísticos, se classifica como critérios científicos. Pelo que lemos em Michel Foucault, isso já vem desde o final do século XVII, quando essa modalidade de experiência de enfrentamento de uma doença epidêmica começou a se institucionalizar (Foucault, 1963/1980, p. 27).
Entretanto, hoje se observa muito pouco do que Foucault descreveu sobre meados do século XVIII. Naquele tempo, havia mais cumplicidade entre as disciplinas, que juntavam distintos expedientes para enfrentar epidemias de doenças coletivas. O controle do comportamento individual e as técnicas de inoculação aplicada ao corpo de cada indivíduo compartilhavam diferentes regiões de saber no combate a um mesmo fenômeno epidêmico que atacava toda uma população. No presente da pandemia de COVID-19, negacionismo conjuminado a um saber político-econômico e a evidências científicas balizadas em critérios estatísticos e biomédicos não andam juntos.
Na época atual, o quadro coletivo de força tarefa envolve o estado através do ministério da saúde, convocando seus agentes a notificar os casos. Esse aparelho estatal deve dar conta do curso da pandemia em suas diferentes situações regionais no país. O problema é quando essa parceria imprescindível não funciona, e saberes científicos e saberes governamentais se desencontram. As ocasiões de aumento na taxa de contágio devem ser prevenidas por claras notificações; estas precisam ser consideradas para adoção de medidas eficazes, visando diminuir o avanço do novo coronavírus. Tudo se passa como se, discursivamente, mediante declarações e decretos, se produzissem realidades outras a partir do mesmo fenômeno pandêmico.
Subnotificações de casos e mortes por coronavírus se alinham numa colisão de enunciações em que nem a medicina pode fazer valer a adoção do tratamento necessário, nem os aparelhos estatais conseguem cumprir a sua função de deter a progressão do contágio antes mesmo de atingir a população: na falta de distanciamento entre indivíduos. Tal é o panorama que marca o enfrentamento da pandemia no Brasil.
Dessa forma, há uma experiência que falha em produzir sentido. As intervenções visando frear o avanço do contágio são descontínuas e sem efeito coercitivo. Historicamente, o que acontece no presente da pandemia corre na direção contrária do que Foucault descreveu no panorama do enfrentamento de epidemias em O nascimento da clínica. O pensador fala de um tempo em que só poderia haver medicina das epidemias se acompanhada de uma polícia, uma maneira de se referir às ações multifacetárias que consistiam em:
[...] vigiar a instalação das minas e dos cemitérios, obter, o maior número de vezes possível, a incineração dos cadáveres, em vez de sua inumação, controlar o comércio do pão, do vinho, da carne, regulamentar os matadouros, as tinturarias, proibir as habitações insalubres; seria necessário que depois de um estudo detalhado de todo o território, se estabelecesse, para cada província, um regulamento de saúde para ser lido "na missa ou no sermão, todos domingos e dias santos" (Foucault, 1963/1980, p. 27).
Muito diferente do cenário visto após um ano de confronto com a pandemia. Vê-se o mesmo dilema experimentado em março de 2020, quando o coronavírus iniciou sua trajetória de propagação no Brasil. Houve, por parte dos gestores governamentais, hesitação quanto às medidas a serem adotadas para uma eficaz contenção do avanço da doença. Não se tratou de não saber o que fazer, mas sim quando e como fazer. Saberes de ordem biomédica e estatística deram conta de sustentar cientificamente o que podia e devia ser feito.
A hesitação, portanto, girou ao redor de decidir se o caso era de impor, induzir, vigiar, controlar, obrigar. Palavras de um mesmo campo semântico, ou seja, o campo de hierarquias de urgência para dirigir comportamentos incidindo sobre a massa populacional. Afinal, interpelar liberdades individuais no intuito de controlar condutas pessoais no cuidado da saúde não combina com o fundamento neoliberalista de um governo como o que se insinua, em certo instante, na cena política brasileira. Mais tarde, essa perspectiva sofre pequena variação no momento em que a imunização em massa surge no horizonte das medidas que não comprometem o desenvolvimento econômico. Apela-se para um tipo de gestão da saúde coletiva tomado na exterioridade da série de providências sanitárias que, perigosamente, brecariam a dinâmica da economia. Um exemplo disso é o temeroso lockdown.
Pode-se aplicar aqui o que Foucault apontou como a polícia necessária para enfrentar uma peste no século XVIII. Só que hoje, ainda que presentes sob outras formalizações institucionais, as diligências mobilizadas nunca são passíveis de se harmonizar quando o tom é dado por uma voz articulada na linguagem da economia neoliberal. Eis um ponto de contato entre um acontecimento e uma memória (Pêcheux, 2006, p. 17). A memória trazida por Foucault em O nascimento da clínica, no que diz respeito à medicina instaurada pelas epidemias ocorridas a partir do século XVIII, incide no que acontece hoje, só que de maneira desalinhada pelo que se propaga como um dominante negacionismo.
3. A biopolitização na gestão brasileira da pandemia
É importante reiterar que não procedo a uma narrativa dos fatos tal como aparecem em sua evidência, e sim no modo como se formulam em discurso, servindo de estofo para modalidades enunciativas dispersas segundo os gestores. Estes são abordados, em minha análise, enquanto tomam a palavra, sejam eles autoridades governamentais, sanitárias ou científicas; portanto simplesmente como posição no discurso que atravessa suas falas.
Com vistas a colocar analiticamente em cena o espectro da biopolítica nas relações de poder que diagramam a gestão da pandemia no Brasil, detenho-me, neste ponto, aos acontecimentos mais tardios ligados à polêmica da vacina contra o novo coronavírus. Refiro-me aos dias em que se apresentam falhos expedientes para um plano nacional de imunização em massa. Para o bem ou para o mal, algo como biopolítica aí se impõe.
Ao examinar discursos de gestores, percebo-os rolando acusticamente como notas em fuga. Interessa-me mais dizer não do que falam, mas a que vêm suas falas. Daí advém a questão que percorre este trabalho analítico. Em vez do valor conceitual da biopolítica, acentuo o lugar de onde pretendo mostrar seu funcionamento, considerando o que se deu em relação ao rumor provocado pelo advento do novo coronavírus em solo brasileiro. A propósito disso, não apenas cito, mas dublo Foucault. Procedo assim empregando, no contexto presente, as mesmas palavras que ele teria dito para contextos outros de suas análises. Dessa maneira, simulo que a mim talvez me fosse colocado o mesmo questionamento que o pensador francês imaginou sendo dirigido a ele:
[...] de onde você pretende falar, você que quer descrever - de tão alto e de tão longe - os discursos dos outros? Responderei somente: eu acreditei que falava do mesmo lugar que esses discursos e que, definindo seu espaço, eu situaria minha intenção; mas devo agora reconhecê-lo: de onde mostrei que eles falavam sem dizê-lo, eu mesmo só posso falar a partir dessa diferença, dessa ínfima descontinuidade deixada, já detrás dele, por meu discurso (Foucault, 2000, p. 96-7).
Nessa direção, exponho, a seguir, resultados advindos de uma escuta analítica de discursos os quais instituem uma história política encetada no campo da saúde pública brasileira. A cada proferimento, pretendo destacar encenações que acontecem à maneira musical de variações temáticas em fuga, isto é, a luta pelo fim da pandemia mediante, por exemplo, o expediente de campanhas de imunização massiva. Cada evento de fala pode corresponder a um movimento outro de vozes fugidias a insinuar, sub-repticiamente, a vontade de poder que não deve e não pode ser explicitada. Um gestor governamental deve proferir atos em defesa da vida, nunca em nome de seus próprios interesses eleitoreiros.
O episódio que se descortina desde as primeiras semanas de janeiro de 2021 é exemplar desse cenário em que a vida é valor, ora maior, ora menor. Enquanto o Governo Federal acena com um tímido plano de imunização, o governador do Estado de São Paulo, João Dória, vem a público e diz: "São Paulo lança o plano estadual de imunização contra a COVID-19". Informando, em entrevista coletiva, que a vacinação contra o coronavírus, em todo o território paulista, deveria iniciar em 25 de janeiro de 2021, o governador acrescenta: "O governo do Estado de São Paulo vai disponibilizar para outros estados do Brasil um total de 4 milhões de doses da vacina"1.
Não por acaso, o governador João Doria ainda esclarece que não será preciso comprovar moradia no estado para ser vacinado contra a COVID-19, dizendo que "Todo e qualquer brasileiro que estiver em São Paulo e pedir a vacina receberá gratuitamente. [...] Nós fazemos parte do Brasil, e aqui vacinaremos todos que precisam ser vacinados"2.
Poderia ser o caso de acentuar o uso político-eleitoreiro que se pode fazer de um plano pioneiro de imunização no Brasil. Mas não só isso. Mesmo porque se o discurso constitui performativamente o estado de coisas de que fala, muitas podem ser as coisas que se produz com as palavras. Percebam que não me proponho a afirmar um fato posto termo a termo nas palavras do discurso. Pouco interessa se a promessa do governador vai se cumprir ou não. Nem mesmo as palavras ditas interessam, a não ser o que se faz com elas quando são proferidas.
Exerço, desse modo, uma analítica de relações de poder, balizando-me num determinado modo de escutar atos de discurso. Quer com respeito à língua, quer com respeito ao discurso, devo focalizar relações de força como mola de funcionamento do campo discursivo da pandemia. É nesses termos que objeto e ato de análise se implicam mutuamente. Nesse ponto, é muito elucidativo o que afirma Michel Foucault sobre análise de discurso como estratégia:
Trata-se de um lado de uma espécie de análise de discurso como estratégia, um pouco à maneira disso que fazem os anglo-saxões, em particular Wittgenstein, Austin, Strawson e Searle. [...]. O problema seria saber se não poderíamos estudar a estratégia do discurso em um contexto histórico mais real [...] (Foucault, 1978/2013, p. 139).
Seguindo essa mesma direção no quadro da história da presente pandemia no Brasil, práticas discursivas que se sobrepõem aos desafios políticos postos por uma doença coletiva são instigadas. Dessa forma, pretendo aplicar a atos pontuados de fala o que Foucault chamou de "análise estratégica do discurso" e, dessa maneira, enredo pontualmente, no "interior dos processos históricos reais" da COVID-19, o jogo de poder, tendo a vida como alvo e instrumento.
O que importa, portanto, no movimento da biopolítica, que tento capturar em discurso, é o efeito de mundo político que se cria e se põe em cena pelas palavras. Então, se Doria produziu com seu oportuno anúncio o seu próprio nome como possível candidato elegível para a presidência da república, produziu também, no interior da mesma série enunciativa datada, o plano de imunização definido sob o princípio fundamental de que cabe ao governo disponibilizar vacina para todos no menor prazo possível, salvando da pandemia a população do país inteiro.
Por outro lado, se a largada do governo de São Paulo vem interpretada como corrida ao posto da presidência, o jogo pode se alterar quando estado e Federação se engalfinham na corrida pela defesa de seu próprio plano de imunização. Dias depois, ao replicar no diapasão da disputa eleitoreira, o Governo Federal anunciou um calendário de disponibilização dos imunizantes aprovados que se antecipava ao declarado pelo governo do Estado de São Paulo. O Governo Federal avisou que anteciparia o início de sua campanha em cinco dias, tendo como base a data prevista pelo governo paulista.
Apressando-se, o secretário da saúde do Estado de São Paulo informou uma possibilidade de remanejamento no plano. São Paulo mostra-se, então, disposto a "[...] antecipar o começo da imunização para 20 de janeiro, caso a data estabelecida como 'melhor hipótese' pelo governo federal seja cumprida"3.
Pequena variante no tema - ainda que executada por vozes discursivas fugidias nos respectivos proferimentos enunciativos. Em um e outro anúncio, o mesmo princípio se produz como efeito de um modo de dizer: o da preservação da vida.
É compreensível que os destinatários desse discurso reivindiquem que se governe mais e melhor. Menos pela vontade de servidão por parte dos governados do que pela exigência do cumprimento da promessa de cuidado da população. Então não se trata de exigir mais ou menos governo, mas da rejeição de certa maneira de ser governado, como disse Michel Foucault em O que é a crítica:
Eu não quero dizer com isso que, na governamentalização, seria opor numa sorte de face a face a afirmação contrária, "nós não queremos ser governados, e não queremos ser governados absolutamente". Eu quero dizer que, nessa grande inquietude em torno da maneira de governar e na pesquisa sobre as maneiras de governar, localiza-se uma questão perpétua que seria: "como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles" [...] (Foucault, 1978/1990, p. 3).
Seguramente, temos aqui o mote para compreender o que se passa. Tomemos como referência o que afirma Foucault a propósito da inoculação no curso Segurança, território, população. Ao refletir sobre a crucial noção de risco, o filósofo afirma o seguinte:
[...] se a doença é assim acessível, no nível do grupo e no nível de cada indivíduo, nessa noção, nessa análise da distribuição dos casos é possível identificar a propósito de cada indivíduo ou de cada grupo individualizado qual o risco que cada um tem, seja de pegar a varíola, seja de morrer dela, seja de se curar. Pode-se então, para cada indivíduo, dada a sua idade, dado o lugar em que mora, pode-se igualmente para cada faixa etária, para cada cidade, para cada profissão, determinar qual é o risco de morbidade, o risco de mortalidade (Foucault, 1977-1978/2008, p. 79).
Há, nessa preleção de Foucault, os vestígios do que está em falta hoje no modo biopolítico de governar. Embora os gestores científicos disponham da base para detectar os riscos no caso da pandemia de COVID-19, essas indicações de saber não encontram lugar num modo de governar em que a gestão da saúde pública não é critério constitutivo de uma razão governamental pautada no neoliberalismo.
Basta se ater a um dos muitos casuísmos singularmente erigidos em diferentes episódios do enfrentamento da pandemia no Brasil. Antes mesmo de implementar uma campanha de vacinação em massa, o gestor governamental hesitou entre a obrigatoriedade e a adesão individual à vacina. Descortina-se aí, em termos de relações de poder, uma falha na arte de governar mantendo o compromisso de defender a vida. Fica exposta a biopolítica que falha no emprego do saber governamental, o qual incluiria necessariamente a técnica no controle das condutas pessoas. Investir na liberdade individual é apagar a própria população como partícipe de um processo. Assim, nele torna-se difícil encontrar algo do biopolítico que Foucault descreveu, a saber, o cuidado da vida como fundamento de ação política.
4. O biopoder que excede
É possível pensar que, biopoliticamente - se posso, sem abuso, empregar a modalização adverbial -, o referido anúncio do governador de São Paulo sobre o lançamento iminente de uma campanha estadual de imunização ganha uma pontual impostação discursiva. Sua fala se deixa cruzar por outras - urdidas de modo a apagar todo sentido remissível à denegação da pandemia. Aludo às repetidas enunciações vindas no quadro de gestores federais hesitando em dispor de um plano efetivo de imunização contra o coronavírus. Entrevê-se, na declaração de João Doria aqui apresentada, certa ênfase discursiva com base no princípio "vacina para todos". Ressoa em sua atitude o limiar colateral de um espaço discursivo do qual ele busca se distanciar. Refiro-me ao sentido de um estado mínimo, tão caro à razão governamental de base neoliberal vigente no regime atual de governo brasileiro. É oportuno que pontuar o lugar em que tal modo de governar tende ao excesso, ao intolerável.
Acontece que mesmo pela afirmação de intervir o menos possível - aqui em específico no setor da saúde pública -, o Governo Federal, através de seus instrumentos institucionais, pretensamente impondo-se ao modo do estado mínimo, não se mostra em falta, mas expõe a escolha de certa forma de governar. Por conseguinte, não é verdade que a vida não tem valor num modo como este de governar. O problema é a perspectiva pela qual a vida adquire valor inestimável. Por isso, o conceito de biopolítica tem ainda sua atualidade, sobretudo no que diz respeito a uma economia toxicamente neoliberal em que a vida seria não só objeto de disputa, mas também critério de valor econômico.
Importante ressaltar, analiticamente, a ambiguidade discursiva nas declarações dos gestores governamentais da pandemia de COVID-19. Basta, para uma visão abrangente do que se passa, fazer menção incidental a um deles. No despontar do verão de 2021, o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, se viu emparedado: ou prescrevia medidas flexíveis ou decretava atos restritivos no combate ao contágio. A ambiguidade se fez notar em suas falas. No instante em que Santa Catarina se encontrava em um patamar gravíssimo da pandemia, o governo estadual liberou todo o trânsito na cidade, incluindo o uso de máscaras nas praias, com a justificativa de que estava respeitando liberdades individuais.
Ao redor dessa fala, é possível escutar o som dos discursos que clamam pela vida da economia. Liberdade e responsabilidade individuais compõem a regra a partir da qual o estado age hesitante na administração política da pandemia. Há que se cuidar da vida da população, mas também da vida da economia. Só que uma não é independente da outra. A verdade é que a primeira emerge inseparável da segunda, uma vez que os números de um estado econômico podem até continuar crescendo por certo tempo, mas vão desaparecer se não houver mais vida biológica pulsando. A horda de homens e mulheres que saem para ganhar o pão de cada dia nas grandes cidades não é um acontecimento isolado. É a própria vida pulsante da economia que se vê passar nas ruas, nos automóveis, nos trens, nos ônibus em movimento desigual, ora de precariedade, ora de abundância. Corporeidades individuais participam, cada uma a sua maneira, do mesmo gênero de agrupamento formador de uma população. As pessoas que dela tomam parte não o fazem de igual modo. Há a desigualdade estrutural pela qual atua certo modo de governar, administrando a vida conforme prescreve o jogo de poder em contexto neoliberal.
Esse é o quadro que define díspares manifestações quando, casuisticamente, se trata de rejeitar medidas restritivas de controle da pandemia. Lembremos que mobilizações de comerciantes têm tido lugar em várias cidades brasileiras, reivindicando o seu direito de trabalhar na ocasião em que gestores viram por bem decretar sete dias de interrupção dos serviços ditos não essenciais.
5. Em conclusão
Concluo este breve texto com uma questão: o que é possível apreender do conceito de biopolítica com vistas a produzir uma reflexão focada no presente da história concreta de uma pandemia? Meu exercício de análise, salvo falta de maior rigor, tem sido o de desenvolver uma analítica, investigando certa perspectiva biopolítica.
A biopolítica a que tenho foucaultianamente me referido, diz respeito à gestão política da vida aparecendo como fundamento do regime governamental a que está submetida a população. Isso é o emprego a que procedo a partir do que nos ensina Michel Foucault, notadamente no curso Nascimento da biopolítica. Trata-se da razão econômica pela qual a população é o eixo axial a que se aplica o modo de governar. Vemos que a maneira como o estado intenta enfrentar os problemas da pandemia de COVID-19 deixa entrever o que significa biopolítica nos termos com que Michel Foucault a definiu desde o século XVIII.
É desse modo que, no quadro neoliberal, o estado intervém na justa medida, ou seja, sem desconhecer o processo natural de uma crise de saúde pública. No avanço do contágio pelo coronavírus, coloca-se em movimento medidas preventivas de diferentes naturezas conforme a região de saber convocada: médica, política, estatística. Age-se detectando pontos vulneráveis no corpo da população.
Daí advém a medida imprescindível da distância social aplicada à complexa corporeidade coletiva. Opera-se discursivamente, através de medidas provisórias, decretos etc., na ordem da constituição e da dinâmica do contágio. O que se pode traduzir a partir daí, a cada fala de qualquer dos gestores, é o apelo para que cada indivíduo menos vulnerável aja tomando para si o cuidado dos vulneráveis. Fica assim suspensa a responsabilidade do governo na administração, no desenvolvimento e na proteção da vida.
Eis então uma tática de biopolítica historicamente singular na pandemia de COVID-19, diferente daquela relativa aos contextos históricos investigados por Foucault. Ressonâncias desse traço singular ficam documentadas em declarações governamentais de tomadas de providência inscritas na memória do acontecimento da pandemia. Como diria Lemke, lendo Foucault:
[...] possibilidades de intervenções até então desconhecidas as quais não assumem necessariamente a forma de proibição e orientação direta: "laissez-faire", "estimular" e "incitar" e" tornam-se mais importantes do que "regulamentar", "ordenar" e "mandar" (Lemke, 2018, p. 71).
Vê-se uma indicação de que o expediente da biopolítica não é necessariamente nocivo, nem excludente, desde que nele se insira uma efetiva arte de governar fundamentada no controle aplicado diretamente na conduta das pessoas definidas como composto de um corpo social. Isto porque tomar a vida como objeto de gestão política pressupõe a dinâmica natural que se apresenta na materialidade corporal da população confrontada a uma pandemia letal. De todo modo, diria Foucault, na biopolítica estão em jogo processos vitais situados ao nível da população. Disso a estatística, a demografia, a epidemiologia e a biologia se encarregaram de analisar e mobilizar, todas disciplinas imprescindíveis para composição de um saber específico que tem por fim governar.
Desse ponto de vista, o conceito de biopolítica ganha atualização, permitindo escancarar analiticamente o excesso de exercício do poder tendendo ao regime soberano, conforme indiquei antes. Assim, adotando o fundamento de cunho neoliberal, em vez de administrar a saúde da população, temos hoje um modo de governar que nada tem a ver com que se aunaria a uma modalidade biopolítica de governo. Basta observar o mundo que é criado pelas palavras do ministro da economia, quando, enfim, apresenta o plano nacional de vacinação justificando que é preciso vacinação em massa para que a economia possa ser retomada. Por certo, esse é o caminho pelo qual a população pode ser salva do novo coronavírus. Contudo é o neoliberalismo balizado na exploração de trabalho e na distribuição desigual do lucro4 que também perfaz a via pela qual se hesita em dar à população a possibilidade de se imunizar. Tal tendência pode ter sido a base da hesitação do Governo Federal, em certo momento, em prover um programa efetivo de imunização em defesa da vida da população brasileira.
Nos termos do biopoder, tal como pensado por Michel Foucault no curso Segurança, território e população, ainda se trata aqui da falta de uma modalidade de intervenção sobre o corpo dos seres vivos. Afinal, é preciso estar vivo para controlar e manipular, malgrado o custo de que outros deixem de viver.
Não afirmo certeza evidente no que está dito nas palavras colocadas em foco em minha análise. Antes pontuo o lugar de discurso que atravessa e que faz dar sentido às palavras. Refiro-me não só aos dizeres regimentais dos gestores públicos, mas também aos dos estatuídos cientistas. Estes, na contramão de uma governabilidade centrada em aparelhos estatais, valendo-se das atribuições que os autorizam a falar publicamente, acionam dispositivos discursivos firmados na ordem do cuidado com a vida. Procedem assim, por exemplo, ao alertar que pode não haver vacina para todos; ou ao advertir sobre a necessidade de adotar os mesmos cuidados vigentes na prevenção primária contra o novo coronavírus até que se cumpra o tempo da imunização suficiente para indicar a erradicação do vírus. Tem-se o saber acionável na região discursiva da ciência biomédica que não vai sem o saber político. É necessária essa imbricação discursiva para que se efetive a assunção do compromisso biopolítico com a manutenção da vida.
O que de pouco vale, no contexto da formulação de programas de vacinação contra o coronavírus, é a relação inexistente entre um entendimento biomédico e uma possível estratégia biopolítica. Nesta, o cuidado da vida é extrapolado por interesses outros. Acredito, assim, ter colocado em operação uma analítica que aponta precisamente o lugar do excesso do poder.
A propósito, Foucault acentua que no momento em que o objeto de exercício do governo deixa de ser um conjunto de indivíduos interpelados como sujeitos de direito, vê-se a manipulação de saberes dirigidos para construção de técnicas de governabilidade - definidas tanto em termos de administração de um país quanto em termos mais amplos. O cálculo político pode vir em detrimento de uma gestão biopolítica muito pouco concentrada na vida como um fator biossocial.
Interessa muito pouco colocar à prova as palavras ditas em defesa de uma política escolhida de relações internacionais. O que importa é o efeito dos discursos conspirando para uma gestão falha no controle da pandemia. "Não haverá vacina para todo mundo". Esse enunciado proferido em tom peremptório compõe o cenário perplexo da condução coletiva de uma crise de saúde pública. Ele pode indicar uma localização pontual na cartografia discursiva do que se diz saber e não saber sobre como adotar um plano seguro de imunização contra o coronavírus.
Nos embates políticos que giram em torno da eficácia, do poder de fabricação e fornecimento das vacinas contra o novo coronavírus, vê-se rolar discursos driblando medidas. Como propor um protocolo para vacinar a população sem anular as medidas de controle de conduta para prevenir o avanço do vírus?
Seria o caso de agir controlando condutas individuais como correlativo das medidas de contenção do avanço da pandemia? Que procedimento adotar, reitero, quando o indivíduo se mostrar refratário à exposição do corpo a processos massivos de imunização? Impor pela obrigatoriedade legal ou induzir mediante adesão moral?
Acontece que na batalha de tomadas de fala, os discursos tentam se sobrepor contornando o mesmo fantasma: o do negativismo que predomina no modo de o governo central lidar com a pandemia no Brasil. O solo da negação se fixou às expensas de um descrédito na ciência, domínio de saber que perdeu força entre os que se pautam pelas relações políticas de saber.
Fica claro do que se trata quando se tenta compreender esse panorama de desencontro entre gestores munidos de saber político e agentes detentores de saber científico. Aparece aí o vazio no qual a biopolítica ainda pode ser um operador analítico.
Referências bibliográficas
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Lemke, T. (2018). Biopolítica: críticas, debates, perspectivas. São Paulo, Editora Filosófica Politéia, Tradução de Eduardo Alteman Camargo Santos. 2018 [ Links ]
Pêcheux, M. (2006). O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi 4ª edição. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006, p. 17.
1 https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/07/todo-brasileiro-podera-se-vacinar-em-sao-paulo-diz-doria
2 https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/07/todo-brasileiro-podera-se-vacinar-em-sao-paulo-diz-doria
3 https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/07/todo-brasileiro-podera-se-vacinar-em-sao-paulo-diz-doria
4 Em Economia, diz-se distribuição do excedente. Lucro, por definição, é a parte que vai ao capital/empregador; enquanto salário é a parcela do trabalhador (grato ao amigo, especialista em relações internacionais, Daniel Castelan, por me lembrar).