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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.12 no.3-4 Fortaleza dez. 2012

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

A medicalização da existência e o descentramento do sujeito na atualidade

 

The medicalization of the existence and the subject´s decentering in contemporaneity

 

La medicalización de la existencia y el tema de descentralización del sujeto hoy

 

Médicalisation de l'existence et la décentralisation de le sujet aujourd'hui

 

 

Rogério Paes Henriques

Psicólogo. Psicanalista. Mestre e doutor em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ. Professor do Departamento de Psicologia e do Mestrado em Psicologia Social da UFS. Tutor da Residência Integrada Multiprofissional em Saúde do HU/UFS. Membro do PROCAD/CAPES/NF 2009 (UFS-UFPA-UFRJ). End.: Rua Riachuelo, 545/1102, São José, Aracaju/SE, CEP: 49015-160. E-mail: rsphenriques@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho aborda o processe de medicalização da vida, que ocorre quando problemas relacionados à existência humana - sejam comportamentos desviantes (loucura, abuso de álcool e drogas, abuso infantil etc.), outrora considerados problemas espirituais/morais ou legais/criminais, sejam processos da vida natural (sexualidade, parto, envelhecimento, morte etc.) - passam a ser redefinidos pela racionalidade médico-científica. O saber médico expande-se, assim, para o campo do não patológico, incidindo sobre comportamentos desviantes ou processos naturais, sendo seu acoplamento à vida cotidiana promovido pelas práticas de "promoção da saúde, tomando-se o conceito de saúde como "bem-estar" e "qualidade de vida", tal como na redefinição da Organização Mundial da Saúde (OMS). Propõe-se que a medicalização da vida em curso, por intermédio da "ideologia ou moralidade da saúde", não ocorra de forma impositiva. Subjacente à ela, encontra-se o processo de descentramento do sujeito na atualidade, que desloca a sua espessura ontológica conflituosa da "interioridade" psicológica rumo à "exterioridade" performática, devido á demanda de maximização do empenho corporal na cultura somática, sob a égide da governamentalidade neoliberal. Essa nova forma de subjetivação contemporânea, denominada "individualidade somática" ou "sujeito cerebral", que privilegia a neuroquímica do cérebro em detrimento de crenças, desejos e afetos, encontra nos produtos tecnocientíficos ofertados pelo complexo médico-industrial e promovidos pelo discurso neurocientífico o elixir para sua recusa da dor de existir.

Palavras-chave: Atualidade, Medicalização, Saúde, Descentramento, Sujeito.


ABSTRACT

This paper discusses the process of life medicalization that occurs when problems related to human existence - whether deviant behaviors (madness, drug and alcohol abuse, child abuse etc.), once considered spiritual/moral and legal/criminal problems, or natural processes of life (sexuality, childbirth, aging and death etc.) - are being redefined by the medical-scientific rationality. Thereby, the medical knowledge expands itself to the field of non-pathological, focusing on deviant behaviors or natural processes. Its penetration in everyday life is promoted by health promotion practices, which use the concept of health as "well-being" and "quality of life", a redefinition proposed by World Health Organization (WHO). The paper suggests that the ongoing life medicalization, which takes place through a "health ideology or health moral", should not happen so forcefully. Underlying, there is, in contemporaneity, the process of subject's decentering, which shifts its ontological conflictual thickness from the psychological "interiority" to a performative "externality", due to a demand for maximization of body performance in the somatic culture, under the aegis of neoliberal governmentality. This new form of contemporary subjectivation, called "somatic individuality" or "cerebral subject", which emphasizes the neurochemistry of the brain at the expense of beliefs, desires and affections, find, in the techno-scientific products offered by the medical-industrial complex and promoted by the neuroscientific discourse, the elixir for his refusal of the pain of living.

Keywords: Contemporaneity, Medicalization, Health, Decentering, Subject.


RESUMEN

En este trabajo se analiza el proceso de medicalización, que se produce cuando los problemas relacionados con la existencia humana - sean conductas desviadas (la locura, las drogas y el abuso de alcohol, abuso de menores), que antes se consideraban problemas espirituales/morales o legales / penales, sean procesos de la vida natural (la sexualidad, el nacimiento, la vejez, la muerte) - se están redefiniendo por la racionalidad científica médica. El conocimiento médico se expande, así, para el campo del no patológico, incidiendo sobre las conductas desviadas o en los procesos naturales de manera que su acoplamiento a las prácticas de la vida cotidiana es promovido por "promoción de la salud", tomando el concepto de la salud como "bienestar" y "calidad de vida", como la redefinición de la Organización Mundial de la Salud (OMS). Se propone que la medicalización de la vida actual, a través de la "ideología o moralidad de la salud", no ocurra de manera imponente. Que se basa, es el proceso de descentramiento del sujeto en la actualidad, que cambia su espesor ontológico de conflicto "interno" psicológico hacia la "externalidad" performativa, debido a la demanda de maximización del empeño corporal en la cultura somática, bajo la égida de la gubernamentalidad neoliberal. Esta nueva forma de subjetividad contemporánea, llamada "individualidad somática" o "sujeto cerebral ", que se centra en la neuroquímica del cerebro a expensas de las creencias, los deseos , los afectos, encuentra en los productos tecnocientíficos ofrecidos por el complejo médico-industrial y promovidos por el discurso neurocientífico, el elixir para su rechazo del dolor de la existencia.

Palabras-clave: Actual , Medicalización , La salud , La descentralización, Sujeto.


RÉSUMÉ

Ce document examine le processus de médicalisation, qui se produit lorsque les problèmes liés à l'existence humaine - sont des comportements déviants (madness, la drogue et l'abus d'alcool, la maltraitance des enfants, etc ), autrefois considérées comme spirituel / moral ou problèmes juridiques / criminel, sont processus de la vie naturelle ( la sexualité, la naissance, la vieillesse, la mort, etc.) - sont redéfinies par la rationalité scientifique médicale. La connaissance médicale s'étend, pour le domaine de comportement déviant non pathologique ou en se concentrant sur les processus naturels et leur couplage à des pratiques de la vie quotidienne promues par " promotion de la santé, en prenant le concept de la santé comme "bien - vivant" et "qualité de vie", comme la redéfinition de l'Organisation mondiale de la Santé (OMS). Il est proposé que la médicalisation cours de la vie, par le biais de "l'idéologie ou de la moralité de la santé," ne se produit pas en forme imposante. La sous-tend, est le processus de dé - centralisation du sujet dans la réalité, il déplace son épaisseur ontologique de conflit "interne" psychologique vers «externalité» performative, en raison d'exiger engagement à maximiser la culture somatique du corps, sous l'égide de la gouvernementalité néolibérale. Cette nouvelle forme de subjectivité contemporaine, appelé "l'individualité somatique" ou "sous réserve cérébrale", qui met l'accent sur la neurochimie du cerveau au détriment des croyances, des désirs, des affections, trouvés dans les produits technoscientifiques offerts par le complexe médico-industriel et le discours neuroscientifique promu par l'élixir de refus de la douleur existe.

Mots-clés: Présent, La médicalisation, La santé, La décentralisation, Le sujet.


 

 

A Medicalização da Existência

I too believe that humanity will win in the long run; I am only afraid that at the same time the world will have turned into one huge hospital where everyone is everybody else's humane nurse. (Goethe, 1787 apud Parens, 2011)

A seguinte apresentação do conceito de "medicalização" basear-se-á em Conrad (1992), Nye (2003), Clarke, Fishman, Fosket, Mamo e Shim (2000) e Parens (2011). Este tópico resume os argumentos principais desses autores referentes ao conceito citado, mesclando-os, e não pretende esgotar o assunto, mas servir de ferramenta conceitual aos nossos propósitos.

Talcott Parsons, na década de 1950, foi provavelmente o primeiro autor a conceitualizar a medicina como uma instituição de controle social, especialmente o modo pelo qual a "função doente" poderia condicionalmente legitimar que o desvio se denominasse "perturbação" (illness)1.

Na década de 1970, o tema da medicalização penetrou no campo das ciências sociais. Os primeiros autores a abordá-lo foram os teóricos da antipsiquiatria (D. Cooper, T. Szasz, R. Laing etc.), embora sem utilizarem o termo em si. Concomitantemente, vários "estudos de caso" específicos (hiperatividade em crianças, loucura como doença mental, abuso infantil, alcoolismo como doença) foram publicados. Primeiramente apresentado por I. Zola, em 1972, que descrevia a medicalização como a extensão crescente da jurisdição médica (de sua autoridade e de suas práticas) à vida das pessoas, I. Illich usou o termo "medicalização da vida" em sua obra A expropriação da saúde: nêmesis da medicina, de 1975, promovendo, assim, sua operacionalização.

Existem duas definições recentes para o conceito de medicalização: (1) a definição soft, de Paul Weindling, que a entende como extensão da racionalidade médica a uma ampla gama de atividades sociais; e (2) a definição hard, de Thomas Szasz, que a concebe como conversão direta de problemas sociais e morais em doenças (NYE, 2003).

Há, atualmente, um consenso entre os estudiosos do assunto de que a medicalização resulta de problemas humanos - sejam comportamentos desviantes (loucura, homossexualidade, transexualidade, abuso de álcool e drogas, hiperatividade ou déficits de aprendizagem em crianças, obesidade, anorexia, abuso infantil, compulsão por jogos de azar etc.), outrora considerados problemas espirituais/morais ou legais/criminais, sejam "processos da vida natural" (sexualidade, parto, desenvolvimento infantil, síndrome pré-menstrual, menopausa, envelhecimento e morte) - que vêm a ser designados como problemas médicos, geralmente sob os termos "perturbações" (illnesses) ou "transtornos" (disorders). A medicalização opera fazendo problemas sociais (frequentemente associados ao corpo e que colocam dilemas morais) passarem da competência jurídica àquela da medicina, novo locus privilegiado de controle social. As condutas desviantes são, cada vez mais, rotuladas e tratadas pela medicina, cujo mandato social autoriza e legitima a redefinição médica desses problemas sociais. Quanto mais as premissas médicas são aceitas socialmente, mais diminuem o alcance das premissas concorrentes, e vice-versa. Conrad (1992) propõe três níveis distintos de medicalização, aos quais correspondem três tipos de controle social médico:

1. Nível conceitual: trata-se de "ordenar" um problema usando um vocabulário ou modelo médico, não envolvendo necessariamente condutas médicas diretas sobre esse problema. Ex: síndrome pré-menstrual, sobre a qual o controle social médico praticamente se reduz ao plano ideológico.

2. Nível institucional: instituições podem adotar uma abordagem médica para tratar problemas organizacionais. Ex: programas de combate ao fumo entre os colaboradores/funcionários da empresa, screenings para detecção do uso de drogas e AIDS entre eles etc. Nesse caso, os médicos atuam como gestores colaboracionistas, legitimando as condutas organizacionais realizadas por não médicos.

3. Nível interacional: nesse caso, a medicalização é parte da relação médico-paciente - quando um profissional diagnostica um problema qualquer como problema médico e adota uma conduta correspondente. O controle social médico atua, então, no nível das intervenções tecnocientíficas/biotecnológicas (ex: prescrições farmacológicas para as transgressões comportamentais da infância/adolescência ou para a disfunção sexual masculina em adultos, tratamentos cirúrgico e hormonal para a transexualidade, técnicas avançadas de transplante e de reconstituição de tecidos etc.). Trata-se do nível de medicalização mais frequente.

A implicação direta dos médicos com a medicalização varia desde o pouco ou mesmo nenhum, passando pelo médio, até culminar no ápice do envolvimento direto com o paciente, na ponta dos serviços de saúde. Dessa forma, algumas condições são completamente medicalizadas (morte, nascimento/parto), outras são parcialmente (menopausa), e outras, ainda, minimamente (compulsão sexual, violência doméstica). São fatores que influenciam os níveis da medicalização: disponibilidade de intervenções e tratamentos médicos, existência de definições/explicações concorrentes (presença de grupos que desafiam a opinião médica, como o movimento feminista na definição dominante e na conduta padrão adotada nos casos de violência contra a mulher2) e cobertura pelas seguradoras de saúde (que abrangem somente tratamentos para problemas "médicos").

Conrad (1992) assinala dois aspectos contingenciais que favoreceram a medicalização nas sociedades ocidentais modernas: (1) com a secularização, a medicina tomou o lugar da religião como ideologia e instituição de controle social nessas sociedades. Com o avanço da racionalidade científica e tecnológica, muitas condições têm tido seu estatuto ontológico transformado do pecado para a doença (ibidem, p. 213). Assim, a "ideologia ou moralidade da saúde" (do inglês healthism ou do francês santé-isation) que recai, por exemplo, sobre a obesidade e a sexualidade (sobretudo as práticas de promoção de saúde invasivas, que desrespeitam os estilos de vida escolhidos) se assemelham muito à ideologia moral cristã, que concebe a "gula" e a "luxúria" como pecados capitais.

Se, na década de 1980, a epidemia de AIDS foi encarada pela medicina ocidental sob uma perspectiva predominantemente moralizante, como o comprovam as metáforas associadas ao castigo/punição construídas ao seu redor - "peste ou câncer gay", "grupo de risco" (Sontag, 2007) -, atualmente, com seu maior controle epidemiológico (ao menos nos países mais ricos) e sua disseminação indiscriminada por vários segmentos sociais, essa perspectiva moralizante tende a amenizar-se. Contudo, continua sendo um eficaz instrumento de controle social, do ponto de vista moral, alertar a população sobre os riscos de se contrair doenças sexualmente transmissíveis em relações sexuais às cegas. Melhor do que admoestar que é pecado trair o cônjuge ou se promiscuir.

Assim, os processos de medicalização em jogo a partir da segunda metade do século XX substituíram a tradicional oposição binária bem/mal pela saudável/doente, como quadro cultural e conceitual maior do Ocidente (Clarke et al., 2000, p. 12). Outro motivo apontado por Conrad (1992) para a atual amplitude da medicalização está relacionado à criação de novas ofertas de serviços pela própria medicina, cuja práxis, em função das transformações tecnológicas das últimas três décadas e o consequente controle das epidemias letais, vem deslocando paulatinamente o seu enfoque da doença para a saúde, do patológico para o normal. A medicina até então predominantemente curativa e, quando muito, preventiva, vem se tornando, a cada dia, mais preditiva - chamada "medicina da vigilância" (Clarke et al., 2000, p. 26).

Essa questão se insere nas mudanças em curso que apontam para a passagem da modernidade à modernidade tardia/avançada ou pós-modernidade. Nessa era aparentemente "pós", resgata-se a vocação intrínseca à medicina moderna, que surge como medicina social na Idade Clássica (Foucault, 1979), cujos efeitos de poder se localizam na "normalização" da população, com uma panóplia de estratégias concentradas no saber, no controle e no bem-estar, visando o gerenciamento dos processos vitais humanos3.

A novidade trazida pela medicina contemporânea nesse reencontro com suas origens é seu foco não mais incidir apenas sobre o patológico (seja com ações curativas ou preventivas), mas, sobretudo, sobre o "parapatológico", isto é, sobre a categoria nebulosa "população de risco" que se encontra em presumida situação de "vulnerabilidade social", suscetível às patologias. Passa-se, assim, de uma prática de cura a um controle da vida.

Os conceitos de "vulnerabilidade" e "risco" são os principais responsáveis pela expansão da medicalização na contemporaneidade, ressuscitando o fantasma eugenista adormecido, sobretudo quando as inovações tecnocientíficas genômicas permitirem a intervenção no nível da própria vida. Acrescentaríamos aos três tipos de controle social descritos a vigilância médica. Trata-se do que os anglicanos denominam healthicization ou, em bom português, promoção da saúde. Conrad (1992) assinala que, diferentemente da medicalização clássica, que assimila a moral à medicina, propondo soluções médicas para problemas morais, a promoção da saúde define a saúde como a nova moral, promovendo estilos de vida desejáveis segundo a ideologia ou moralidade da saúde. A nosso ver, a promoção da saúde é um aggiornamento da medicalização clássica, à luz da contemporaneidade. Clarke et al. (2000) sugerem o termo "biomedicalização" para se referirem a tal aggiornamento, propondo a seguinte figura 1 explicativa:

 

 

Nota-se que a noção de biomedicalização, em vez de operar uma ruptura com a ideia precursora de medicalização, radicaliza o seu processo já em curso, prolongando-o no espaço e no tempo. Para além do exercício do poder de vigilância e de controle momentâneo sobre os corpos personalizados, atinge os espaços extracorporais do comportamento e da ação no porvir. A nosso ver, a biomedicalização possui relações acumulativas e não excludentes com a medicalização, não havendo, portanto, descontinuidade histórica. Trata-se, antes, de sobreposição conceitual, e não de ruptura.

Parens (2011) assinala que "medicalização" é um conceito sociológico descritivo, tal como "secularização" e "globalização", portanto, não se trata de algo ruim per se. Bom e ruim são os usos que se fazem dele e, nesse sentido, é necessário distinguir a boa da má medicalização, sendo essa uma das tarefas centrais da bioética. Concordamos com esse autor e não vemos problema algum; pelo contrário, apoiamos a medicalização advinda daquilo que Ehrenberg (2009) chamou de "programa fraco" das neurociências, a qual visa desvendar o mecanismo subjacente e descobrir a cura de doenças (diseases) neurológicas bem delimitadas, como a epilepsia, o Parkinson, o Alzheimer e outros tipos de demências. O que questionamos é: (1) a medicalização de condições existenciais, isto é, a patologização da diversidade/variabilidade humana a partir de categorias guarda-chuva, transtornos (disorders) de estatuto ambíguo, tão ao gosto das nosografias psiquiátricas atuais; (2) a medicalização advinda do chamado "programa forte" das neurociências (Ehrenberg, 2009), responsável pela emergência do "Ser-ebro", se nos permitem o neologismo, uma nova forma de subjetivação que reduz o Ser ao cérebro, como veremos no próximo tópico.

Gostaríamos de comentar agora sobre um fator que pensamos contribuir com a expansão da medicalização na contemporaneidade, acrescentando nossa colaboração à leitura que fizemos dos autores aqui utilizados como referência principal. Trata-se da própria definição ampliada do conceito de saúde pela constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) como "completo bem-estar físico, mental e social, e não mera ausência de doença ou enfermidade"4. Essa definição, ao mesmo tempo em que se mostra um efeito no plano conceitual da medicalização, mostra-se, também, no plano prático, um multiplicador operativo dessa mesma medicalização. Apesar de todas as afirmações otimistas feitas desde a criação desse conceito positivo de saúde pela OMS, ainda não dispomos de instrumentos adequados para medir a saúde, e sim o seu oposto, a doença. A noção de "bem-estar", além de relativista ao extremo, alça a saúde a um patamar utópico, pragmaticamente inalcançável. A saúde, em vez de ser definida negativamente, como falta (ausência de doença ou enfermidade), torna-se algo produtivo pelo qual devemos nos esforçar para alcançar; torna-se um projeto contínuo, uma realização em si, mas também uma realização de si-mesma.

Como alcançar o bem-estar psíquico, por exemplo, se o que caracteriza o psiquismo, levando-se em conta a psicanálise, é a coexistência de instâncias conflituosas que o constituem? Nessa perspectiva, se há algo inerente à subjetividade humana é justamente o mal-estar, e não a sua utopia oposta (em sentido estrito, a própria expressão "saúde mental" seria um oximoro). Como alcançar o bem-estar social se o que caracteriza a sociabilidade é o infindável conflito entre interesses narcísicos divergentes e, muitas vezes, inconciliáveis? Com relação ao bem-estar físico, a definição de saúde da OMS fez lembrar um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, "O imortal" (Borges, 2008), no qual o narrador protagonista, após exaustiva busca pela Cidade dos Imortais, decepciona-se com o que se depara ao encontrá-la, por acaso, nas suas andanças: trata-se de uma cidade triste e monótona, onde a inércia impera e nada acontece em termos existenciais - efeito do gozo da eternidade.

A ficção borgeana nos possibilita indagar: seria o estado de completo bem-estar físico atingido pelos imortais e sua correlata salubridade perfeita (ninguém adoece nem morre, a não ser por algumas causas acidentais) compatíveis com a vida? Canguilhem (2002) assinala que a experiência do adoecimento pertence à própria dinâmica da vida e entende a saúde como uma margem de segurança que nos permite superar os obstáculos à expansão vital, dentre os quais se incluem as doenças. Nesse sentido, a saúde seria a capacidade normativa de adoecer e se recuperar, reinventando-se nesse processo, e não se resgatando um suposto estado anterior de normalidade/harmonia perdido, concepção próxima às noções mecanicistas de resiliência e reequilíbrio.

Supomos que a saúde definida como "completo bem-estar" reflita e reforce a diminuição da tolerância social em relação ao mal-estar, sobretudo para com as formas de mal-estar subjetivo intrínsecas à condição humana, já que a projeção de um idealizado bem-estar passou a ser a nova norma moral, a partir da qual as subjetividades se modulam.

 

O Descentramento do Sujeito na Contemporaneidade: Da Interioridade Conflituosa à Exteriorização Performática

Gary tinha cada vez mais dificuldade de acreditar que seu problema não era neuroquímico, mas pessoal.

(trecho do romance de Jonathan Franzen, The corrections, apud Ehrenberg, 2009)

Freud (1930/2010) assim principia o segundo capítulo do texto em que discute a noção de Unbehagen - "desconforto", "descontentamento", "insatisfação" ou, mais exatamente, "mal-estar" - na civilização:

(...) podemos dizer que a intenção de que o homem seja "feliz" não se acha no plano da "Criação". Aquilo a que chamamos "felicidade", no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico. Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem prosseguimento, isto resulta apenas em um morno bem-estar; somos feitos de modo a poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. Logo, nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição. É bem menos difícil experimentar a infelicidade. (ibidem, p. 30-31)

A tese central que Freud desenvolve nesse extenso artigo concluído às vésperas do famoso crack da bolsa de Nova York, em 1929, é que a renúncia pulsional, tanto dos elementos libidinais de Eros ou da pulsão sexual quanto - e principalmente - dos componentes agressivos da pulsão de morte, constitui a mola propulsora dos avanços civilizatórios da humanidade, permitindo a construção da coletividade (laços sociais entre as pessoas), ao mesmo tempo em que deixa um resto irredutível nos indivíduos, que consiste na persistente sensação de mal-estar, associada, sobretudo, à internalização da agressividade e ao correlato sentimento de culpa então emergente. Freud (ibidem, p. 82) assinala que "o homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança".

Concordamos com Birman (1999, p. 17-18), que assinala ser o Mal-Estar na Civilização um texto datado, constituindo "um esforço [de Freud] para circunscrever o mal-estar do sujeito na modernidade". Estaríamos, portanto, diante da crítica psicanalítica da Era Moderna, na mesma linhagem que daquela estabelecida em outros planos teóricos por Nietzsche ("morte de Deus") e Weber ("desencantamento do mundo"). O sujeito da psicanálise freudiana, resultante do processo civilizatório moderno, é o "sujeito do mal-estar"5, sendo esse mal-estar (produto do conflito entre a pulsão e a cultura) intrínseco à sua "forma de subjetivação" - para usar a expressão de Foucault (1984).

Concordamos, também, com Hall (2001, p. 36-40), segundo o qual Freud teria operado um descentramento do "sujeito do Iluminismo", concebido como sujeito cognoscente e racional, provido de uma identidade fixa e unificada - o cogito ergo sum, de Descartes. Freud confere uma espessura ontológica interior conflituosa ao sujeito, deslocando a razão e a consciência enquanto epicentros da vida subjetiva.

O disparate evidencia-se quando a contemporaneidade6 tenta abolir o conflito em prol da globalização e da eficácia econômico-financeira, apregoando seu contraponto: o "completo bem-estar biopsicossocial", tal como na redefinição "pós-moderna" do conceito de saúde da OMS.

Na reconfiguração de valores típica da "cultura somática" (Costa, 2004), a saúde reduz-se ao culto ao corpo e o cuidado de si se volta para a longevidade e a boa forma, em detrimento do desenvolvimento de atributos morais e psicológicos. Dessa forma, assiste-se a outro descentramento do sujeito na contemporaneidade: da "interioridade" psicológica rumo ao polo "exteriorizado", voltado para a maximização do desempenho corporal à luz da moral do espetáculo. Trata-se de uma moral das sensações centrada no corpo e modelada pelos preceitos da "qualidade de vida", os quais, ironicamente, desproveem a vida de sua qualificação ao reduzi-la à sua dimensão biológica e ao despolitizá-la. O corpo ressurge imponente, dita as regras de sociabilidade (ver "biossociabilidade" em Rabinow, 1999) e perpassa o conjunto das tramas discursivas, esvaziando a dimensão psicológica.

A saúde deixou de ser a vida no silêncio cotidiano e no anonimato, como a concebia Canguilhem (2002); deixou de ser algo ligado ao "milagre do autoesquecimento", conforme a feliz expressão de Gadamer (2006). Ambos os autores partem do pressuposto mais sensato de que a saúde se revela na sua ocultação - tal como na famosa frase de Horário: "A harmonia oculta é sempre mais forte que a manifesta" (apud Gadamer, 2006, p. 120) -, e não na sua exaltação, como ocorre na atualidade, a partir de sua espetacularização performática: "Exalarás bem-estar por todos os teus poros!", diria o espírito do biocapital e sua ética somática.

O paradoxo, apontado por Nye (2003, p. 119) é que "(...) o objetivo visado de uma população completamente saudável - corpos que sejam 'naturais' e 'desmedicalizados' - só pode ser alcançado pela internalização individual de uma perspectiva de vida totalmente medicalizada". Em suma: é-se tanto mais "saudável" quanto mais capturado pelos dispositivos do biopoder. Como assinala Clarke et al. (2000, p. 23):

(...) Com a expansão crescente da biomedicina à vida cotidiana, torna-se cada vez mais necessário aos leigos aprender a conhecer e a utilizar esses discursos. Toda uma literatura sobre a saúde e a doença prolifera na mídia, na Internet e na publicidade que a indústria farmacêutica endereça diretamente ao consumidor7, e, cada vez mais, cada um é tido como responsável pela gestão de sua própria saúde. A aquisição e o consumo de serviços biomédicos, assim como de outros serviços sanitários, não são mais percebidos como o privilégio de alguns, mas sim como uma obrigação de todos.

Além disso, o capitalismo entrou no setor da saúde de tal modo que os indivíduos são construídos como consumidores de bens e de serviços biomédicos e, por conseguinte, como consumidores de saberes e de práticas. Essa tendência do capitalismo generalizado traduz-se pela privatização crescente do complexo médico-industrial e pela dominação do managed care system como modelo para um sistema de oferta de cuidados eficaz e racional. Nesse contexto, os indivíduos passam do estatuto de doentes "leigos" passivos a de consumidores ativos responsáveis por seu próprio vir-a-ser biomédico.

Isso implica transformações profundas da subjetividade. O senso de nós mesmos como indivíduos psicológicos - habitados por um espaço interno profundo formulado pela biografia e experiência, fonte de nossa individualidade e locus de nosso descontentamento -, desenvolvido ao longo do século XX, está sendo suplementado ou deslocado pelo que se vem chamando de "individualidade somática". Por individualidade somática, entende-se a tendência em definir aspectos chaves de nossa individualidade em termos corporais, isto é, pensar a si mesmo como "corporificado" (embodied), entendendo o corpo na linguagem da biomedicina contemporânea.

Ser um indivíduo somático, nesse sentido, é codificar os próprios afetos e desejos nos termos desse corpo biomédico, tentando modificá-lo, curá-lo ou aprisioná-lo. Em um extremo do espectro, isso envolveu a reformulação do corpo visível, através de dietas, exercícios e body art; no outro extremo, envolveu o entendimento dos problemas e desejos nos termos do funcionamento "orgânico" interior do corpo, buscando reformulá-lo, geralmente, por intervenções farmacológicas. Anteriormente, os descontentamentos eram mapeados em um espaço psicológico - o espaço da neurose, do recalque, do trauma psicológico. Agora, eles são mapeados sobre o próprio corpo ou sobre um órgão particular desse corpo: o cérebro (Rose, 2003).

Nessa mesma direção, Bezerra Jr. (2002) assinala que, ao contrário do Homo psychologicus, marcado pela forte presença normativa de uma interioridade conflituosa, pelo exercício de uma sensibilidade psicológica acentuada (a capacidade de descrever em termos sentimentais e afetivos as vicissitudes da vida), pela valorização de uma atitude interpretativa diante dos problemas pessoais, pela busca de um sentido singular para a própria existência, atualmente, assiste-se a emergência de uma subjetividade exteriormente centrada, avessa à experiência de conflito interno, esvaziada em sua dimensão privada idiossincrática e mergulhada numa cultura cientificista que privilegia a neuroquímica do cérebro em detrimento de crenças, desejos e afetos.

Essa nova forma de subjetivação deve ser entendida no contexto da cultura somática, na qual o chamado "programa forte" das neurociências (Ehrenberg, 2009) - aquele que, fundindo neurociência e psiquiatria, identifica conhecimento de si e conhecimento do cérebro, mente e cérebro, transformando o cérebro em ator social - possui cada vez maior aceitação social.

As razões sociais do sucesso popular das neurociências estão menos relacionadas a seus resultados científicos e práticos do que ao estilo de resposta dada para os problemas formulados pelo nosso ideal de autonomia individual generalizada. Elas permitem, hoje, consolar quem - na realidade, a maioria de nós - tem dificuldade de encarar o mundo de decisão e ação que se edificou sobre as ruínas da sociedade de disciplina, aquela que conhecia o respeito à autoridade cuja perda é objeto de lamentações cotidianas. Mas as neurociências suscitam também a esperança de que sejam dadas a todos técnicas de multiplicação das capacidades cognitivas e de controle emocional, igualmente indispensáveis a tal estilo de vida. É porque as neurociências não são exteriores à idéia de "saúde mental", elas são a sua ponta científica e tecnológica. Os hábitos contraídos com o consumo de medicamentos psicotrópicos, de drogas e substâncias dopantes, essas práticas neuroquímicas de usinagem de si, preparam o terreno largamente. A extensão das fronteiras de si que a normatividade da autonomia (valorização da realização de si, da ação individual, do self-ownership) recobre faz com que pareçam reunidas as condições para que uma representação de si como cérebro doente constitua uma referência semântica apropriada. (ibidem, p. 202)

Por fim, Ehrenberg designa essa subjetividade emergente na contemporaneidade que subjaz ao programa forte das neurociências de "sujeito cerebral"8.

O corolário da ascensão dessa subjetividade cerebralista é a medicalização da "dor de existir" - segundo a expressão de Hanna Arendt (apud Jaeger, 1998). Não é de se espantar, portanto, o aumento absoluto, ao longo da última década do século XX, da prescrição de psicotrópicos em todas as regiões do mundo que foram pesquisadas: 200% na América do Sul, 50% na África do Sul, 130% no Paquistão, 50% no Japão, 125% na Europa e 600% nos Estados Unidos (ROSE, 2003, p. 47). Esses dados refletem a mudança em curso na forma de subjetivação contemporânea promovida pela cultura somática, que consiste na reformulação cerebralista da percepção acerca de nós mesmos e a correlata redução do limiar de tolerância aos inelutáveis sofrimentos habituais, às dificuldades e às provações da vida, ou seja, ao mal-estar existencial.

Diante de qualquer desconforto psíquico, as subjetividades cerebrais passaram a requisitar a "panaceia" e seus médicos passaram a prescrevê-la sem pestanejar, inaugurando a era da "psicofarmacologia cosmética"9 e silenciando a escuta da existência e da história dos sujeitos. Pela via da tecnociência psicofarmacológica, a população passou a ser ativamente medicalizada numa escala sem precedentes, haja vista seu esforço em abandonar a inquietude existencial em prol de comportamentos adaptativos e funcionais - processo promotor da "miséria psicológica da massa" (Freud, 1930/2010, p. 83).

O encaixe perfeito ocorreu no "bom encontro" entre a oferta abusiva de psicotrópicos propiciada pelo complexo médico-industrial e a demanda imediatista das subjetividades cerebrais por soluções técnicas eficazes ao seu mal-estar. No neoliberalismo, o mercado da saúde é desregulamentado, obedecendo tão somente às leis da oferta e da procura, sob o regime da livre concorrência. Cabe ressaltar, com Rose (2003, p. 58), que a maior parte da nova geração de psicotrópicos "trata" condições cujos limites são imprecisos (configuram-se como illness), cuja coerência e existência são matéria de disputa10, e cujo "tratamento" não se destina tanto à cura quanto ao gerenciamento da vida.

 

Considerações Finais

Na década de 1950, Henri Laborit declarou, a quem o criticava pelo fato de ele ter inventado a "camisa de força química", que a psicofarmacologia era necessária naquele momento histórico. Sendo um estágio obrigatório na evolução da humanidade, ela poderia até desaparecer futuramente. Passados cerca de 60 anos desde a época dessa declaração, assiste-se, atualmente, ao coroamento da psicofarmacologia, a qual constitui, inclusive a base da psiquiatria contemporânea (dita "biológica"). Édouard Zarifian, autor de Le prix du bien-être, assinala que os psicotrópicos só assumiram a supremacia frente aos tratamentos psicoterápicos por terem surgido em um momento oportuno. Eles se tornaram "(...) o símbolo da ciência triunfante - aquela que explica o irracional e cura o incurável (...). O psicotrópico simbolizou a vitória do pragmatismo e do materialismo sobre as enevoadas elucubrações psicológicas e filosóficas que tentavam definir o homem" (apud Roudinesco, 2000, p. 24).

Em seus primórdios, a psicofarmacologia devolveu ao homem seu quinhão de liberdade. Os neurolépticos devolveram a fala aos loucos, abrindo o caminho para a sua ressocialização e possibilitando o abandono dos tratamentos bárbaros e ineficazes. Os ansiolíticos e antidepressivos trouxeram aos neuróticos "normais" uma tranquilidade maior nos momentos de crise. Contudo, a própria psicofarmacologia acabaria por encerrar o sujeito numa nova alienação ao pretender curá-lo da própria essência da condição humana; ao prometer o fim da vulnerabilidade, da imperfeição, da finitude e do mal-estar psíquico através da ingestão de pílulas que nada mais fazem do que suspender sintomas ou transformar o "Eu" - instância psíquica que, não fortuitamente, é a fonte de todas as nossas ilusões.

Ao que parece, da forma como vem sendo feita, a reformatação somática do humano pela ação química dos medicamentos constitui menos uma prática de invenção de si que rompe com as políticas dominantes da subjetividade (utopia) do que uma prática de sujeição de si aos mecanismos do biopoder (distopia).

Suponhamos que já tivéssemos desenvolvido biotecnologias como o Soma, espécie de panaceia contra os infortúnios da alma descrita por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo ou o estetoscópio da alma do Dr. Tom More, herói psiquiatra do romance Love in the ruins, de Walker Percy, que permitissem diagnosticar e curar as crises existenciais. Ainda assim, caber-nos-ia questionar se, como seres humanos, às vezes, não seria mais salutar sentir-nos mal ao invés de bem? Invocamos aqui o psiquiatra relatado por Parens (2011, p. 3-4) que, ao perguntar à sua paciente se os antidepressivos que ele lhe havia prescrito estavam funcionando, ouviu dela: "Sim, eles estão funcionando bem... Sinto-me muito melhor. Porém, ainda estou casada com o mesmo alcoolista filho da puta. Só que, agora, consigo suportá-lo". Como diria Paul Éluard, o "poeta da liberdade": "tristeza belo rosto".

 

Referências

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Recebido em 16 de agosto de 2011
Aceito em 11 janeiro de 2012
Revisado em 02 de novembro de 2012

 

 

1 A distinção semântica entre "doença" (disease) e "perturbação" (illness) aponta para uma diferença conceitual, respectivamente, entre doença concebida como entidade biológica universal e formas de experiência e interpretação cultural dessa experiência que ocorrem em indivíduos e grupos sociais. A nosso ver, tal distinção não se aplica, pois a primeira não existe independentemente da última. Na língua inglesa, três expressões correspondem ao conceito genérico de "doença" da língua portuguesa: illness (perturbação), sickness (moléstia) e disease (doença propriamente dita) (ver Duarte, 1993, p. 47; n. 18). Em grau crescente de especificidade, isto é, tendo em vista o grau de adequação ao modelo biomédico bacteriológico, quanto mais próxima da illness, menos específica e mais imprecisa é a condição descrita e vice-versa, dada a maior proximidade com a disease. Acrescenta-se disorder ("transtorno" ou "distúrbio") a essas três expressões da língua inglesa - uma espécie de conceito híbrido situado a meio termo entre a mera descritibilidade da síndrome e a precisão científica da doença, aplicada às condições psiquiátricas. Existe um consenso, externado pela nomenclatura dos manuais nosográficos em psiquiatria (capítulo V da CID-10 e DSM-IV-TR), de que os transtornos (disorders) mentais não seriam doenças (diseases) propriamente ditas, dada sua inespecificidade e sua imprecisão nosológicas. Para se poder falar em doenças (diseases), alguns critérios se fazem necessários. É preciso que haja: (1) etiologia reconhecida, fato raro em psiquiatria; (2) anomalia estrutural, fato também pouco frequente em psiquiatria, a ponto de se falar em "doenças funcionais"; (3) consequências da doença (suas sequelas) em relação direta com o processo mórbido, fato igualmente excepcional em psiquiatria, haja vista a multifatorialidade implicada no adoecimento mental.
2 Cabe ressaltar que os estudos antropológicos e sociológicos da medicina tendem a não competir com as concepções medicalizadas, permanecendo no plano da crítica não propositiva.
3 Isso corresponde ao que Foucault (1984, p. 134) define como biopoder: "aquilo que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana". O biopoder teria um dos seus polos reguladores centrado na população e outro centrado na "anátomo-política do corpo humano" via tecnologias disciplinares. Trata-se da invenção, no século XVIII, de "tecnologias positivas de poder", surgidas a partir da substituição do modelo de intervenção sobre a lepra (segregacionista e marginalizador) pelo modelo da peste (inclusivo e normalizador) - ver aula de 15 de janeiro de 1975, em Foucault (2001). O biopoder é o operador primordial da vida nua (zoe), que apaga os traços da vida qualificada (bios) na contemporaneidade, para usar as expressões de Agamben (2002).
4 "Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of disease or infirmity". Documento disponível em: <http://www.who.int/governance/eb/who_constitution_en.pdf>. Acesso em: 16/10/2010. Na língua inglesa, disease (doença) indica a presença de uma patologia de base, independentemente do estado sintomático ou assintomático do doente, que pode manifestar ou não prejuízo visível/imediato. Trata-se de um conceito mais amplo que infirmity (enfermidade) - o estado sintomático provocado pela presença de uma patologia de base que implica sofrimento/sintoma/fraqueza ou qualquer consequência negativa visivelmente percebida no enfermo.
5 Segundo Cabas (2009), a noção de sujeito é estranha ao vocabulário freudiano, aparecendo somente uma vez ao longo de sua vasta obra, no texto metapsicológico em que ele discute a pulsão e seus destinos (FREUD, 1915/2004). A noção de sujeito pertenceria, antes, ao vocabulário lacaniano. O sujeito freudiano equivaleria ao desejo inconsciente, cuja base material seria a pulsão e seus circuitos. Em seu "retorno a Freud", Cabas assinala que "(...) o sujeito freudiano é um correlato da pulsão, um efeito da satisfação (em tempo: do gozo). Que o lugar do sujeito é congruente com a fonte pulsional. Que sua materialidade é da ordem de um buraco. Que sua substância é da ordem de um furo e que, por tudo isso, o sujeito freudiano é - em última instância - um dos efeitos do real" (CABAS, op. cit., p. 73). Foge aos nossos propósitos o aprofundamento dessas questões. Assinalamos tão somente a pulsão enquanto base material do sujeito freudiano e o mal-estar resultante de sua satisfação sempre parcial.
6 Não nos cabe aqui julgar no plano sociológico se a contemporaneidade representa, de fato, um para-além da modernidade (descontinuidade histórica = "pós-modernidade") ou tão somente um recrudescimento dos valores modernos (continuidade histórica = "hipermodernidade", "modernidade avançada/tardia" etc.). Fato é que tanto os teóricos "continuístas" quanto os "descontinuístas" apontam para mudanças substanciais que vêm ocorrendo no mundo ocidental a partir da segunda metade do século passado, dignas de um debate acalorado e exaustivo.
7 Nos EUA, a propaganda de medicamentos é endereçada diretamente ao consumidor, e não aos médicos, como no Brasil. Esse artigo que citamos, embora publicado em idioma francês, foi escrito por pesquisadores estadunidenses da Universidade da Califórnia.
8 Diferentemente de nossa argumentação neste trabalho, Ehrenberg (2009) considera equivalente a "fetichização do cérebro" pelas neurociências e a do "si-mesmo" pelas ciências sociais, sobretudo na vertente da antropologia médica de inspiração foucaultiana, cujos paladinos ele assinala serem Rose (2003), Dumit (1997) e Rabinow (1999). De fato, o que Ehrenberg pretende desconstruir é o "mito individualista da interioridade", seja na sua versão psicológica, seja na sua versão naturalista. A nosso ver, esse autor constrói uma narrativa deveras descritiva e muito pouco analítica, fazendo coincidir, de modo superficial, o sujeito psicológico e o sujeito cerebral em torno do eixo comum da "interioridade" - "o cérebro é a versão materialista da totemização da personalidade" (Ehrenberg, op. cit., p. 207) -, sem atentar para os desdobramentos éticos do descentramento do psicologismo ao biologismo. Um autor mais conhecido na psicologia, como Richard Sennett, parece mais antenado às dimensões éticas desse descentramento, pois, após denunciar as "tiranias da intimidade" que configuraram as subjetividades modernas (Sennett, 1989), confronta a "corrosão do caráter" das subjetividades "pós-modernas" atrelada aos modos de produção do capitalismo avançado (Sennett, 1999). Não pretendemos aqui, como diria Kristeva (2002, p. 38), "ao escapar à superfície da performance, cair no alçapão da psicologia"; para tanto, em vez de constructos psicologizados, como self, identidade etc., sustentamos a noção psicanalítica de "sujeito do mal-estar" (ver nota 5) como contraponto ao conceito de "sujeito cerebral".
9 Termo cunhado em 1990 pelo psiquiatra norte-americano da Universidade de Brown, Peter Kramer, referindo-se ao novo antidepressivo sintetizado pela indústria farmacêutica, Eli Lilly, chamado comercialmente de Prozac® (fluoxetina), o qual prometia ser a "pílula da felicidade". Dumit (1997, p. 6) assinala que a era da "psicofarmacologia cosmética" inaugurou o consumo de psicofármacos, sobretudo de ansiolíticos e antidepressivos, por pessoas "normais" que visavam tão somente o "aprimoramento" (enhancement) ou o "autoaperfeiçoamento" (self-improvement). Trata-se do momento a partir do qual as fronteiras já confusas entre o aprimoramento da aparência e do desempenho humanos e o tratamento-prevenção de doenças são definitivamente apagadas (Parens, 1998); exemplos são: (1) o uso do metilfenidato (substância do tipo anfetamina direcionada para o combate ao déficit de atenção/hiperatividade) na gestão da agitação infanto-juvenil no contexto escolar (Shorter, 1997); (2) o uso da moclobemida (patenteada pela Roche para o tratamento da fobia social) para a gestão da timidez (Lane, 2007); (3) o uso genérico de antidepressivos de última geração para a gestão do luto e da tristeza (Healy, 2000). É o momento em que a oferta do complexo médico-industrial se encontra com a demanda do sonho americano (american way of life).
10 Ortega (2009), desenvolvendo as ideias de Ehrenberg (2009), relata-nos o caso dos autistas de alto funcionamento ("Aspies") que, após terem sido medicalizados, em 1994, pela 4ª edição do DSM (manual da American Psychiatric Association), o qual incluiu a chamada "síndrome de Asperger" (autismo de alto funcionamento) na sua nosografia, agora lutam pela desmedicalização de sua condição, advogando o direito à "neurodiversidade" e à afirmação de sua diferença - prova de que categorias psiquiátricas têm sempre "fronteiras disputadas" e seu estatuto ambíguo exige uma constante negociação pública.

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