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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.16 no.37 São Paulo set./dez. 2016

 

ARTIGOS

 

A Dupla Consciência Latino-Americana: contribuições para uma psicologia descolonizada

 

The Latin American Double Consciousness: contributions to a decolonized psychology

 

La Doble Conciencia Latinoamericana: contribuciones para una psicología descolonizada

 

La Double Conscience Latino-Américaine : contributions pour une psychologie décolonisée

 

 

Bruno Simões Gonçalves

Pós-doutor em psicologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, Brasil. brunosim7@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo é a apresentação da dupla consciência latinoamericana. O método utilizado foi de pesquisa bibliográfica a diferentes autores que trabalham a questão da Colonialidade e descolonização latino-americana. A história do território que hoje chamamos de América Latina se estabelece a partir do séc. XVI como um processo de extrema convulsão social baseado na violência estrutural entre povos colonizadores e povos colonizados. Esse tensionamento estrutural é responsável pela formação de uma dupla consciência, constituída pelo imbricamento entre colonialidade do poder e mestiçagem crítica. Nesse sentido, é preciso criar uma psicologia descolonizada que contribua na transgressão da lógica colonizadora presente na dupla consciência. A psicologia latino-americana deve contribuir nos processos de descolonização dos diferentes aspectos que formam a colonialidade. Para isso deve promover a recuperação da memória histórica dos colonizados e a articulação de seus conhecimentos e saberes instituídos.

Palavras-chave: Dupla Consciência Latino-americana, Descolonização, Colonialidade do Poder, Mestiçagem Crítica.


ABSTRACT

The present article is the presentation of the Latin American double consciousness. The method used was a bibliographical research to different authors who work on the issue of coloniality and latin american decolonization The history of the territory which is nowadays called Latin America is established from the XVI century as a process of extreme social upheaval based on the structural violence between the colonizer and the colonized people. This structural tensioning is responsible for the formation of a double consciousness characterized by the overlapping between the coloniality of power and the critical miscegenation. The Latin American psychology should contribute to the processes of the decolonization of the different aspects that form coloniality. For that matter, it is necessary to create a decolonized psychology which may contribute to the transgression of the colonizing logic present in the double consciousness. To do so, it must promote both the recuperation of the historical memories of the colonized people and the articulation of their instituted knowledge and insights.

Keywords: Latin American Double Consciousness, Decolonization Coloniality of Power, Critical Miscegenation.


RESUMEN

El presente artículo es la presentación de la doble conciencia latinoamericana. El método empleado fue una investigación bibliográfica a diferentes autores que trabajan en el tema de la colonialidad y la descolonización latinoamericana. La historia del territorio que hoy llamamos América Latina se establece a partir del siglo XVI como un proceso de extrema convulsión social basado en la violencia estructural entre pueblos colonizadores e pueblos colonizados. Esta tensión estructural es responsable de la formación de una doble conciencia formada por la imbricación entre la colonialidad del poder y el mestizaje crítico. La psicología latinoamericana debe contribuir a los procesos de descolonización de los diferentes aspectos que forman la colonialidad. En este sentido, es necesario crear una psicología descolonizada que contribuya a la trasgresión de la lógica colonizadora presente en la doble conciencia. Para ello debe promover la recuperación de la memoria histórica de los colonizados y la articulación de sus conocimientos y saberes instituidos.

Palabras clave: Doble Conciencia Latinoamericana, Descolonización, Doble Conciencia Latinoamericana, Colonialidad del Poder, Mestizaje Crítico.


RÉSUMÉ

Cet article est une présentation de la double conscience latino-américaine. La méthode utilisée a été celle de la recherche bibliographique des différents auteurs qui travaillent sur la question de la colonialité et de la décolonisation en Amérique Latine. L'histoire du territoire, que l'on appelle aujourd'hui Amérique latine, s'établit à partir du XVI siècle comme un processus de bouleversement social extrême basé sur une violence structurelle entre les colonisateurs et les colonisés. Cette tension structurelle est responsable de la formation d'une double conscience constituée par un chevauchement entre la colonialité du pouvoir et le métissage critique. La psychologie latino-américaine doit contribuer dans le processus de décolonisation de différents aspects formateurs de la colonialité. Dans ce senslà, il faut créer une psychologie décolonisée qui prenne part dans la transgression de la logique colonisatrice présente dans la double conscience. Pour cela, il faut promouvoir la récupération de la mémoire historique des colonisés et l'articulation de leurs connaissances et savoirs établis.

Mots clés: Double Conscience Latino-Américaine, Décolonisation, Colonialité du Pouvoir, Métissage Critique.


 

 

Introdução

Marco inaugural do confronto que inicia a modernidade, a fundação da América no século XVI principia o ciclo de um novo mundo que emerge como resultado das grandes navegações mercantilistas, do confronto entre mundos e da acumulação primitiva de capital1 gerada nesse processo (Quijano, 2005:107; Todorov, 1966:6). A condição desse acontecimento histórico, sua radicalidade na transformação dos processos de geração e reprodução social determinaram o caminho de toda a chamada civilização ocidental, assim como da história mundial desse momento em diante.

Porém, esse acontecimento que dá origem ao empreendimento colonizador não se realiza como confronto mecânico de dois mundos estanques, o mundo indígena e o mundo europeu. O surgimento da América é um fenômeno histórico complexo, articulador e desarticulador de diversas estruturas, antigas e recém-emersas, em que os efeitos do genocídio, da doença e da catástrofe generalizada se configuraram como efeitos comuns do processo colonizador. A desorganização generalizada caracterizou o empreendimento colonial desde o início. Como explica Gruzinsky:

Na América, o choque é tão brutal como imprevisto. Não se resume a uma questão de simples defasagem, nem à colisão de dois sistemas estáveis, em que um tivesse sido perturbado pelo surgimento do outro. O ambiente que viviam os conquistadores não tem nada de monolítico [...]. A diversidade de protagonistas indígenas e europeus - religiosa, linguística, física, social etc. - e as tensões que os opõem introduzem uma heterogeneidade ainda mais acentuada pelo choque da derrota e pelas deficiências do quadro político. (Gruzinsky, 2001:73)

Nesse sentido, do período inicial da colonização emerge uma nova totalidade históricosocial na qual diferentes modos de vida estão presentes, dando início à tessitura do chamado labirinto latino-americano. Uma variedade de povos europeus, somados a povos escravizados trazidos de diferentes territórios do continente africano, se reúnem e se confrontam com a vasta e diversa gama de povos originários do continente, denominados genericamente de indígenas. Embora extremamente heterogênea em suas formas de territorialização e em seus períodos de penetração no continente, é possível afirmar que a colonização se desenvolveu a partir de um conflito social fundante que estabeleceu duas perspectivas em confronto no interior de uma mesma realidade. Essa cisão entre o mundo dos colonizadores e o dos colonizados produziram um tensionamento entre as duas matrizes de pensamento; colonizador e colonizado. Essa cisão e tensionamento é a estrutura que caracteriza a formação do continente.

O método utilizado foi a pesquisa bibliográfica e observação de campo. A pesquisa bibliográfica foi realizada tendo como base o pensamento social latino-americano e mais especificamente autores que tratam do tema da Colonialidade e da descolonização latinoamericana. Pelo escasso material dessa perspectiva existente no Brasil, além do amplo manuseio da rede mundial de computadores - a internet, foram visitadas bibliotecas nos seguintes países: Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, Guatemala, Peru e Uruguai.

A observação de campo ocorreu nos diversos países visitados, onde foram priorizados os seguintes aspectos: cultura popular local, movimentos sociais, manifestações artísticas e o conhecimento científico produzido no país, com destaque às ciências humanas.

 

A Matriz de Pensamento do Colonizado: a colonialidade do poder

A partir do século XVI, com a sedimentação do empreendimento colonizador, emerge um novo padrão de controle das relações sociais, a colonialidade do poder (Quijano, 2005). Ela é a matriz do pensamento e das práticas sociais próprias ao mundo do colonizador.

A colonialidade do poder é uma estrutura dinâmica formada a partir da articulação de eixos fundamentais. Para compreender a lógica de dominação e exploração próprias a esse padrão de poder e subvertê-la (descolonialidade) é necessário conhecer seus eixos estruturadores e as formas de articulação entre eles. São eles: o racialismo, controle do trabalho, dominação de gênero, colonização da natureza e pensamento eurocêntrico.

 

O Racialismo

Desenvolvida principalmente a partir de Descartes (1999) e de sua separação radical entre alma/corpo, sujeito/objeto, humano/natureza, a ideia de raça se articula com base na matriz eurocêntrica de pensamento e tem como fundamento a ideia de que traços fenotípicos justificam as diferenças entre povos em conflitos por território.

É essa relação entre biologia e aspectos culturais que, ao ser incorporada ao pensamento científico do século XIX, dá origem ao racismo enquanto teoria científica, com a obra Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas, de Arthur de Gobineau, publicado em 1855.

A noção da existência de raça enquanto atributo responsável por uma classificação social está presente também no chamado etnicismo (Agier, 1991:8). Embora menos relacionada diretamente à estrutura biológica, a etnicidade compartilha - em seu surgimento -a ideia de classificação hierárquica da humanidade de acordo com critérios evolucionistas etnocêntricos europeus.

Dessa forma, as identificações étnico-raciais entre índios e negros são criadas e articuladas ao mundo do trabalho e da produção de excedentes próprio à lógica colonial. Há também uma evidente produção de valores simbólicos e intersubjetivos que operam de modo muito sofisticado, justificando essa classificação hierárquica, a violência e a exploração do processo colonial contra essas populações. Nesse sentido, é criada a noção de branquitude para ocupar o topo dessa hierarquia e servir de referência para todos os seres humanos implicados nessa cadeia hierárquica. A branquitude é o valor de superioridade, o locus da verdade, que cria relações simbólicas e intersubjetivas adaptadas à colonialidade do poder. Segundo Echeverría:

O traço identitário civilizatório que queremos entender por branquitude se consolida na história real, de maneira casual ou arbitrária, sobre a aparência étnica da população norteocidental, sobre um uma base de brancura racial-cultural. [...] É graças a esse quid pro quo que, para chegar a ser autenticamente moderno, é preciso pertencer em alguma medida à raça branca. Assim, todos os indivíduos singulares ou coletivos que forem de "cor" são relegados ao âmbito impreciso do pré, do anti e do não moderno, não ocidental. (Echeverría, 2007:4)

 

As Relações de Gênero

Juntamente com a concepção de raça, a modernidade colonial-capitalista se estruturou a partir de relações específicas de hierarquia entre gêneros. Esse conjunto de relações opera segundo um "entroncamento patriarcal" (Paredes, 2014:70), ou seja, uma articulação entre o chamado patriarcado ocidental e o patriarcado existente no mundo pré-colonial. Explica Paredes:

Descolonizar o gênero significa dizer que a opressão de gênero não veio somente com os colonizadores espanhóis. Havia também uma versão própria da opressão de gênero nas culturas pré-coloniais. Quando chegaram os espanhóis, ambas as visões se juntaram para desgraça das mulheres que vivem na Bolívia. (Paredes, 2014:72)

A partir desse entroncamento de patriarcados, se estabelece um conjunto de relações desiguais de gênero no mundo colonial, que objetiva estruturar a colonialidade do poder e realizar a acumulação primitiva de capital. Assim como no caso da raça, a opressão de gênero fundamenta-se na ideia de que a mulher - e demais identidades de gênero não masculinas patriarcais e heterossexuais - não tem plenitude ontológica. Ou seja, as mulheres são menos humanas que os homens heterossexuais e, até mesmo, não humanas. Com base nessa concepção, o mundo colonial patriarcal reorganiza as relações de gênero. Como explica Segato:

Apesar de ser a colonialidade uma matriz que organiza hierarquicamente o mundo de forma estável, esta matriz tem uma forma interna: existe, por exemplo, não só uma história que instala a episteme da colonialidade do poder e da raça como classificadores, mas também uma história da raça dentro dessa episteme; existe também uma história das relações de gênero dentro do cristal do patriarcado. (Segato, 2012:113)

 

As Relações com a "Natureza"

Um eixo central da colonialidade do poder é a colonização da natureza. A partir de uma concepção específica de natureza, constitui-se uma série de relações de poder em que os diferentes elementos não humanos que formam o conjunto de ecossistemas do meio ambiente entram como "matéria-prima" ou como "produtos animais" no interior da lógica colonialmercantil-capitalista. Os diferentes contextos socioambientais, sua biodiversidade expressa em sua fauna e flora, são objetificados em uma relação de controle e dominação submetida aos ditames da lógica de produção da mercadoria. Como explica Alimonda:

Começo por destacar o ponto que me interessa desenvolver neste momento: a persistente colonialidade que afeta a natureza latino-americana. Essa natureza, tanto como realidade biofísica (sua flora, sua fauna, seus habitantes humanos, a biodiversidade de seus ecossistemas) quanto em sua configuração territorial (a dinâmica sociocultural que articula significativamente esses ecossistemas e paisagens) mostra-se para o pensamento hegemônico global e para as elites dominantes da região como um espaço subalterno, que pode ser explorado, arrasado, reconfigurado, segundo as necessidades dos regimes de acumulação vigentes. (Alimonda, 2011:22)

Um dos traços mais importantes da colonização da natureza é a concepção de pensamento que envolve as práticas sociais associadas aos processos de colonização. A partir da articulação com as relações de gênero e com a racialidade, a "natureza" é o locus inferior onde reside determinada condição não humana. Portanto, além de um espaço biofísico, a natureza é também entendida como um lugar existencial que entra na lógica hierárquica própria à colonialidade do poder. Nesse sentido, gêneros e raças considerados inferiores estão associados a uma noção de proximidade ou fusão com a natureza, sendo portadores de uma "animalidade" e de um "descontrole" próprios da vida "selvagem". Assim, são seres humanos que carregam características mais "naturais", portanto inferiores e, em última análise, não humanas.

Um aspecto central a ser destacado é a divisão mundo urbano/mundo rural. Sendo estabelecido no imaginário como espaço do atraso e da proximidade com mundo "inferior" da natureza. Toda a heterogeneidade do universo rural passa a ser contraposto com o mundo urbano, reconhecido como "civilizado". Ou seja, em contraposição a um mundo heterogêneo em relação ao conjunto de seres vivos e ecossistemas complexos (mundo rural) se contrapões um mundo saturado das relações mercantis e da densidade tecnológica própria ao mundo urbano, considerado como distante da "natureza e, portanto, próximo do ideal de humano próprio da colonialidade.

 

O Controle do Trabalho

Dessa maneira, no interior do empreendimento colonial, é introduzida na América a hierarquização sociocultural com base em traços fenotípicos e de gênero e na colonização da natureza. Nascido inicialmente para dar um sentido de dominação "natural" à relação desigual entre os colonizadores ibéricos e os índios, o padrão racial se expande por todo o globo, estabelecendo uma distribuição geográfica do poder com base na ideia de raça e de gênero. No caso específico da América, a racialização da população criará uma hierarquia que integra a diversidade da população mestiça - e do processo de mestiçagem - em uma divisão racial do trabalho. Como explica Quijano:

Em estreita articulação com esse novo sistema de dominação social e paralelamente à sua constituição, foi também emergindo um novo sistema de exploração social ou, mais especificamente, de controle do trabalho. [...] Em meados do século XVI, essa associação entre ambos os sistemas já estava claramente estruturada e se reproduziria durante quase quinhentos anos: os "negros" eram, por definição, escravos; os "índios", servos. Os não índios e não negros eram amos, patrões, administradores da autoridade pública, donos dos benefícios comerciais, senhores no controle do poder. (Quijano, 2005:19)

Assim, em torno da articulação entre diferentes formas de organizar a produção para a concentração dos excedentes, bem como em torno do universo de relações intersubjetivas imbricadas nesse processo, nascia o capitalismo mundial. No caso do controle e da exploração do trabalho, o conjunto de relações preexistentes se articulou em torno de uma hierarquia cujo topo foi ocupado pela relação de trabalho predominante nos países centrais do capitalismo (Quijano, 2005:135). A servidão e a escravidão foram predominantes nos territórios colonizados e entregues às populações classificadas como negras e índias, sendo divididas internamente pelas relações de gêneros próprias da colonialidade. Ou seja, além de uma classificação social segundo ditames raciais, também há uma questão geopolítica conformando a colonialidade do poder. A noção de países subdesenvolvidos, periféricos, atrasados e de Terceiro Mundo que são desenvolvidas a partir do século XX são desdobramentos dessa organização e explicitam a continuidade de uma lógica que articula produção, territorialização e processos identitários.

 

A Epistemologia Eurocêntrica

Conjuntamente com o racialismo, a relação de gênero, as relações com a natureza e o controle do trabalho, articula-se um modo de pensamento específico, responsável pela produção intersubjetiva dos valores da colonialidade do poder: a razão eurocêntrica. Com base na cisão dualista própria ao cartesianismo e ao evolucionismo, a epistemologia eurocêntrica estrutura hierarquicamente o universo cultural e de valores das populações do continente latinoamericano. Desse modo, imagens, representações e conhecimento próprios aos povos submetidos à colonialidade do poder são subsumidos, invisibilizados e exterminados segundo a estrutura de exploração que ancora todo o sistema de relações sociais no capitalismo mundial. Para além de uma imposição de valores, essa relação é eminentemente intersubjetiva, ou seja, passa pela própria autorrepresentação e imagem de si mesmo das populações colonizadas, assim como de suas formas próprias de conhecimento. Afirma Quijano:

Não se trata somente de uma subordinação das outras culturas a respeito da cultura européia em uma relação exterior. Trata-se de uma colonização das outras culturas, mesmo que, sem dúvida, em diferente intensidade e profundidade segundo os casos. Consiste, inicialmente, em uma colonização do imaginário dos dominados. Isto é, atuam na interioridade desse imaginário. [...] A repressão recaiu sobre os modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens, sistemas de imagens, símbolos, modos de significação sobre os recursos, padrões e instrumentos de expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual. (Quijano, 1992:2)

Assim, a partir do advento da modernidade, é ressignificado todo o universo compartilhado de saberes e perspectivas de conhecimento oriundo da memória histórica das populações inseridas e organizadas segundo os padrões da colonialidade do poder. Nesse sentido, distintos modos de reprodução da vida e suas dimensões são colocados como hierarquicamente inferiores na estrutura verticalizada e evolucionista da colonialidade do saber.

Desse modo, toda a diversidade presente nos saberes e na memória das populações identificadas como negras e índias é considerada hierarquicamente inferior e sem estatuto de conhecimento verdadeiro. Esse processo, ainda vigente, é extremamente violento, pois retira a possibilidade de determinação de si mesmo e da coletividade a partir de critérios próprios e de uma memória própria. Toca, em última análise, no próprio estatuto de humanidade dessas populações. Tal estrutura de rebaixamento e anulação das práticas e valores que participam do processo de formação dos povos latino-americanos - extraindo sua humanidade - é a base de toda a epistemologia eurocêntrica.

Exemplo reconhecido dessa dinâmica de inferiorização desumanizadora é o campo da religiosidade. Os saberes religiosos são espaços de resguardo de conhecimentos tradicionais sobre todos os âmbitos da existência. É imperativo dar legitimidade a esses saberes, na medida em que eles são a expressão inequívoca da identidade das populações e de suas formas de resistência e de construção ético-política. A violência e a deslegitimação radical das práticas religiosas e espirituais vindas das populações negras e indígenas brasileiras, para citar apenas dois exemplos, resultam em um epistemícidio (Grosfoguel, 2016), ou seja, na destruição dessa "imensa experiência cognitiva" (Santos, 2010:57) constituída por essas populações e que reflete diretamente sua concepção de humanidade. O manejo técnico do ambiente e o universo simbólico-imaginário e de reprodução cotidiana da vida social dessas populações são dimensões nas quais a religiosidade está presente. Ao rebaixar e submeter essas formas de conhecimento, inferioriza-se todo o modo de vida dessas populações e, em última análise, sua própria humanidade.

 

A Matriz de Pensamento do Colonizado: a mestiçagem crítica

Porém, seguindo a noção de modernidade saturada de contradições, podemos afirmar que, de modo concomitante ao conjunto de ordenamentos hierárquicos próprios da colonialidade do poder e de seus eixos estruturadores, se desenvolvem modos de existência críticos ao padrão de obediência e à determinação do sistema colonial-mercantil-capitalista. Esse conjunto de experiências de natureza crítica não se guia por um sistema hierárquico predeterminado e se estrutura de maneira heterogênea e relativamente autônoma, desafiando a lógica de concentração de poder instituída pelo capitalismo mundial.

Esse universo de variadas experiências que historicamente se desenvolveram no sentido de resistir e, a seu modo, superar a ordem imposta pelo sistema colonial-mercantil-capitalista, guarda em seu fundamento comum a necessidade de instituir modos de organização social, estética e política que afirmam a memória histórica das populações dominadas. Nesse sentido, originam-se na tensão com o projeto colonial da modernidade, configurando uma modernidade dissonante no interior do sistema capitalista e buscam, desde o início da colonização, estabelecer um contraponto ao projeto hegemônico dela. Ou seja, intrínseca a esse processo estruturado em torno da colonialidade do poder, imbricada nele, a modernidade viu nascer também a consciência crítica a esse projeto:

A modernidade só o é quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a consciência crítica do moderno; o moderno situado, objeto da consciência e ponderação. A modernidade, nesse sentido, não se confunde com objetos e signos do moderno, porque a eles não se restringe, nem se separa da racionalidade que criou a ética da multiplicação do capital; que introduziu na vida social e na moralidade, até mesmo do homem comum, o cálculo, a ação social calculada na relação de meios e fins, a reconstituição cotidiana do sentido da ação e sua compreensão como mediação da sociabilidade. (Martins, 2000:18)

Assim, no campo histórico, juntamente com o projeto impulsionado pela cruz e pela espada, pelas formações nacionais europeias e pelo racionalismo iluminista, se desenvolveram dinâmicas histórico-culturais que se tensionaram com o projeto hegemônico da modernidade.

Por um lado, é possível identificar a agudização do trajeto metafísico da modernidade na teologia medieval, no Absolutismo e no projeto da razão moderna enquanto cogito cartesiano.

Por outro, é possível identificar a crítica a esses modos de conhecimento, presente em diferentes experiências sociais que se associam de forma descontínua e heterogênea. Tal multiplicidade se manifesta como contraponto em todo o espaço de dominação da colonialidade do poder. Esse conjunto heterogêneo de experiências sociais que caracteriza uma crítica do colonizado ao projeto colonial é regido por um ethos específico, o ethos barroco. Como explica Echeverría:

Nosso interesse é indagar a consciência social sobre a vigência histórica de um ethos barroco. Ele se apresenta a partir de uma preocupação pela crise civilizatória contemporânea e obedece ao desejo que, instruído pela experiência, pensa em uma modernidade póscapitalista como uma utopia alcançável. (Echeverría, 2005:35)

O barroco foi uma das principais formas de contraposição à versão evolucionista do ordenamento sócio-histórico da modernidade. Expressão histórica da contradição entre a ideia da unidade universal em torno de um Deus único e transcendente e a ideia de um mundo natural regido por leis próprias, o barroco afirma a dualidade e a tensão presentes no movimento do real em seu devir, guerra de contrários. Sendo designado desde o século XVI como pérola irregular e imperfeita (Sena, 2002:2), como objeto de forma não simétrica e desigual, o barroco carrega como característica central a ruptura interior e a inexatidão; é a morada de um conflito, de um desacerto interior. O barroco é a expressão de uma contradição em movimento de constante recriação, uma tentativa de superação dos antagonismos entre mundos, visões e modos de vida distintos.

Em sua expressão no continente americano, onde o tensionamento entre mundos distintos é ainda mais radical, o barroco ganha o contorno do mundo colonial. Na América, o barroco se expressa como afirmação da heterogeneidade e da diversidade instável, formando uma unidade irregular e labiríntica. O barroco latino-americano é a expressão desse modo de vida em que violência colonial e resistência da população configuram práticas sociais próprias à modernidade no continente.

Nesse sentido, o ethos barroco se caracteriza pelas relações originadas no tensionamento entre o mundo colonial e o mundo colonizado e é a expressão dessas tensões em sua forma mais vigorosa. É a afirmação desse movimento de oscilação entre um polo e outro, dessa tentativa de abranger e superar a contradição fundante do mundo americano. O ethos barroco é a marca distintiva da vida do continente americano, seja em suas formas artísticas mais rebuscadas, sejaem seu cotidiano miúdo, arena dos pequenos costumes. É uma perspectiva que preserva a tensão contraditória ao mesmo tempo em que "inventa" uma terceira possibilidade. Como explica Echeverría:

[O ethos barroco está...] situado nessa necessidade de escolher, nesse enfrentamento desta alternativa. Não é a abstenção ou irresolução, como poderia parecer à primeira vista, quecaracteriza centralmente o comportamento barroco. É a decisão de tomar partido pelos contrários ao mesmo tempo. Na realidade, ele resolve o conflito em um plano diferente, em que esse conflito - sem ser eliminado - acabe transcendido. Inerente ao ethos barroco está a escolha pelo terceiro incluído. (Echeverría, 1998:176)

Uma das expressões mais conhecidas desse movimento do ethos barroco é a mestiçagem. O significado desse termo, principalmente nos estudos realizados no Brasil, indica sobretudo um processo de assimilação e submissão das diferentes populações a uma hierarquia sociocultural própria do mundo colonial (Munanga, 2008; Schwarcz, 1993). Segundo essa concepção, a branquitude e seus valores estariam no topo da hierarquia sociocultural da humanidade, sendo a mestiçagem - a mistura - um esforço de embranquecimento da sociedade, que assim se tornaria melhor.

Porém, se entendermos a mestiçagem a partir da perspectiva do ethos barroco, encontraremos a possibilidade de uma mestiçagem que se coloca de maneira descolonizadora diante da colonialidade, pois desarticula as relações de poder próprias do mundo colonizado. É uma mestiçagem crítica. Ela é o elemento crítico diante da hierarquia presidida pela branquitude e seu sentido de pureza. A mistura é aqui vista como característica de um modelo de articulação e combinação entre as diferentes matrizes socioculturais e seus diferentes processos históricos, apresentando-se como um contraponto à lógica do colonizador. A mestiçagem crítica é a articulação de conhecimentos e memórias históricas dos povos formadores do continente, criando uma alternativa à colonialidade do poder. É a lógica criada pela resistência das diferentes populações dominadas. Surgida da necessidade das populações de reordenarem as diferentes dimensões de sua vida social diante do cataclismo sociocultural que caracterizou o projeto colonial, a mestiçagem crítica é o sentido de abertura e de assimilação do outro ao universo do colonizado. Se a colonialidade do poder hierarquiza a diferença e instaura como ideal um regime evolucionista de embranquecimento da sociedade, a mestiçagem crítica articula essas diferenças visando à desconstrução da colonialidade.

Obedecendo a esses princípios regentes do ethos barroco e da mestiçagem crítica enquanto experiências de resistência, podemos encontrar um sem-número de fatos histórico-culturais que explicitam essa lógica alternativa, esse modo de pensamento e prática social. Uma das principais experiências concretas do ethos barroco da América foram os empreendimentos catequizadores de caráter utópico-evangélico. Buscando o reavivamento e até mesmo a refundação da Igreja e da obra apostólica, jesuítas, dominicanos e franciscanos protagonizaram variados experimentos utópico-sociais nos quais se buscava um verdadeiro renascimento cristão, com base em uma experiência comunitária que amalgamasse a doutrina da Igreja com a vida indígena. Chamadas de A Grande Experiência, as missões jesuítico-guaranis são apontadas por estudiosos como uma possível experiência de igualitarismo social com base em valores cristãos-indígenas.

Outro fenômeno de caráter religioso em que o ethos barroco se fez presente foi o marianismo, encontrado em todo o continente americano católico. Caracterizou-se pela eleição de uma "divindade" feminina como mediadora entre o mundo da vida e o mundo de Deus onipotente, não raro identificado com características próprias das autoridades de mando colonial.

São comuns em todo o continente eventos como o encontro "milagroso" da imagem da Virgem por pescadores, a tez negra de Maria em lugares de forte presença africana, como o Brasil, e histórias nas quais ela interage com personagens do mundo rural - muitos deles figuras mítico-pagãs, como o saci-pererê do universo caipira ou Iemanjá em vários cultos afrobrasileiros. Indo para o campo da luta política, Maria se torna presente até mesmo como entidade protetora na luta de libertação dos povos, como ocorre no México, onde a Virgem de Guadalupe se tornou um forte símbolo para os independentistas e os revolucionários. Assim, o marianismo popular se converte em forma de proteção divina. Essa mistura de códigos culturais e modos de vida - a mestiçagem - aponta para uma alternativa à colonialidade, na medida em que indica a possibilidade de outro projeto civilizatório, de uma modernidade saturada de valores próprios do mundo dos colonizados:

São os criollos de estratos baixos, os mestiços indianizados, amulatados que, sem saber, farão o que Bernini fez com os cânones clássicos: tentarão restaurar a sociedade mais viável. [...] Ao fazê-lo, alimentar o código europeu com as ruínas dos códigos pré-hispânicos (e com os restos dos códigos africanos dos escravos trazidos à força). Serão aqueles que rapidamente se verão construindo algo diferente do que haviam proposto: se descobrirão pondo de pé uma Europa que nunca existiu antes deles, uma Europa diferente, "latinoamericana". (Echeverría, 2005:82)

A mestiçagem crítica, proponente de uma outra modernidade, também se concretizou nas inúmeras rebeliões e nos movimentos de enfrentamento à ordem e dominação próprias da colonialidade do poder. Invisibilizadas ou diminuídas em sua importância desde o início da colonização, ocorreram inúmeras revoltas e ações planejadas com o objetivo de resistir, anunciar e inaugurar uma nova ordem social. Essas ações combinavam diferentes formas de organização sociopolítica e se apoiavam em lógicas de relação próprias do universo da mestiçagem. Assim, diferentes memórias históricas e tradições se combinavam para formar exércitos, cidades, agrupamentos rebeldes, grupos messiânicos e várias maneiras de organização, com o objetivo de realizar formas de sociabilidade fora do crivo do dominador. São exemplos, no Brasil, os Sete Povos das Missões, na área da tríplice fronteira, Palmares, em Alagoas, e a Cabanagem, no Pará. O Brasil foi palco da Balaiada, da Revolução Praieira, da Revolução Farroupilha e de inúmeras insurreições e experiências de organização realizadas por escravos, indígenas e povos mestiços.

No caso da América hispânica e do Caribe, podemos destacar: a rebelião de Túpac Amaru (1780-1782), no Peru; o cerco à cidade de La Paz, na Bolívia, comandado por Túpac Katari (1781); A Revolução Haitiana (1791); a Revolução Mexicana (1910); a Revolução Cubana (1959).

Assim, ao lado da colonialidade do poder, está presente no continente americano, implicada em cada aspecto de sua formação, a resistência crítica a esse padrão de poder. Como mostrado por Echeverría, a especificidade da vida social no continente elaborou um ethos histórico específico, um barroco enriquecido pelas contradições agudas vividas pelas populações mestiças. Com base nesse ethos barroco próprio à realidade latino-americana, é possível vislumbrar outra modernidade, invisibilizada pelo crivo do modo de produção capitalista, que se afirma como unidade absoluta. É uma modernidade alternativa, formada por um conjunto de práticas sociais organizadas de maneira invertebrada e que se rege por uma base filosófica, uma perspectiva de conhecimento comum presente em diferentes dimensões da vida social do continente - um pensamento mestiço (Gruzinsky, 2001).

 

Rearticulação da Colonialidade

A construção de uma modernidade alternativa passa pela rearticulação radical das dimensões que formam a colonialidade do poder. Através da articulação do conhecimento e da memória histórica das populações dominadas, é possível construir um novo sentido histórico (Quijano, 2014:857) orientado pela descolonização das relações de poder na sociedade. Nesse sentido, é preciso que cada âmbito social da colonialidade seja desconstruído a partir da lógica própria da mestiçagem crítica.

No caso do racialismo, é preciso desconstruir o padrão colonial de classificação social baseado na ideia de raça. A colonialidade se estrutura a partir de uma hierarquia racial referenciada na branquitude como símbolo máximo a ser alcançado. Assim, o combate ao racismo em suas diferentes expressões e o reconhecimento de inúmeras populações etnicamente diferenciadas são processos incontornáveis para a descolonização da cultura colonial. Explica Pereira:

O combate ao racismo dá-se no interior da luta social - onde está a sua origem - e não somente nos campos econômicos e jurídico-político, mas sobretudo, e permanentemente, na instância ideológica através do processo de descolonização cultural. Nesse processo se torna necessária a transformação de aparelhos ideológicos que reproduzem - por determinação de uma estratégia política superior - não apenas o racismo como outras ideologias de dominação [...]. (Pereira, 1978:245)

As relações de gênero próprias da colonialidade também podem ser desconstruídas a partir da articulação própria da mestiçagem crítica. Se o patriarcado característico da construção da América Latina enquanto território colonizado é um entroncamento patriarcal de diferentes origens, a construção de uma alternativa descolonizada implica a retomada de diferentes memórias históricas relacionadas ao gênero:

Descolonizar o gênero, nesse sentido, significa recuperar a memória das lutas de nossas tataravós contra um patriarcado que se instaurou antes da invasão colonial. [...] Descolonizar e desneoliberalizar o gênero é ao mesmo tempo localizá-lo geográfica e culturalmente nas relações de poder internacionais entre o norte e o sul empobrecido [...]. (Paredes, 2014:72)

O processo de descolonizar as relações com a natureza também pode ser realizado por meio do reconhecimento da memória histórica e dos saberes tradicionais dos povos latinoamericanos. O manejo técnico do mundo das diferentes populações originárias e afrodescendentes e de outras populações do campo e da cidade podem se articular e, criticamente, pensar alternativas à colonialidade.

Nós estabelecemos o desenvolvimento baseado primeiramente no homem e depois na natureza. O certo é fazer o inverso, primeiro a natureza. Nós somos parte dela. É isso que temos que transformar, essa é a dura tarefa que temos que fazer. Descolonizar a mente, esquecer o que foi aprendido e aprender o que está em nossos povos e nossas comunidades [...]. É um novo pensamento, que é dual e coletivo, é o pensamento do nosso povo. (Echave & Quispe, 2011:244)

No contexto da colonialidade, o controle do trabalho se dá, fundamentalmente, pelo rearranjo de todas as formas de trabalho anteriores ao advento do capitalismo em uma mesma lógica de acumulação e dominação (Quijano, 2005:128). Para isso, tanto a idéia de raça como a de gênero estão imbricadas na classificação social que vai justificar a exploração capitalista. Outro elemento fundamental nesse processo é a epistemologia eurocêntrica, que legitima o imaginário necessário para a naturalização desses processos. Nesse sentido, o esforço de criar uma epistemologia que não seja funcional à exploração do trabalho passa pela superação da colonialidade do poder. Escreve Quijano:

É a instrumentalização da razão pelo poder colonial, em primeiro lugar, o que produziu paradigmas distorcidos de conhecimento e fracassaram as promessas libertadoras da Modernidade. A alternativa é clara: a destruição da colonialidade do poder mundial. De início, a descolonização epistemológica para dar espaço a uma nova comunicação intelectual, a uma troca de experiências e de significações, como a base de outra racionalidade que possa pretender, com legitimidade, alguma universalidade. (Quijano, 1992:10)

 

Conclusão: a construção de uma psicologia descolonizada

A partir da estrutura cindida entre as duas matrizes de pensamento - colonizador e colonizado - a formação latino-americana estabelece uma dupla consciência histórica. Desde o início da colonização - momento de convulsão extrema que deu origem à modernidade - já está presente a oposição entre, de um lado, a colonialidade do poder - matriz de pensamento do colonizador - e, de outro, a mestiçagem crítica, matriz de pensamento que caracteriza os processos de resistência dos povos colonizados. Essa duplicidade, o tensionamento e o conflito entre essas duas matrizes, é a estrutura dinâmica que caracteriza a formação das populações do continente em sua reprodução social e em sua intersubjetividade. Está presente nas relações, nos afetos e no pensamento da população do continente.

Presente de forma heterogênea, a dupla consciência se expressa nos modos de reprodução social, no universo simbólico e imaginário, no mundo do cotidiano e dos costumes, assim como nos valores ético-políticos e espirituais dos povos latino-americanos. Ou seja, participa da realidade social do continente em sua diferentes dimensões, valores instituídos e práticas sociais. A dupla consciência se expressa de vários modos, segundo as condições psicossociais, políticas, econômicas e culturais de cada contexto específico. Contudo, mantém-se presente a tensão fundamental entre colonizadores/colonizados, dominadores/dominados e opressores/oprimidos.

Seguindo a noção de dupla consciência histórica latino-americana - seu tensionamento -, a psicologia pode contribuir produzindo uma subversão, uma descolonização, nessa estrutura dinâmica. Ou seja a psicologia pode contribuir na subversão da lógica colonial presente de maneira central nos processos históricos da América Latina.

Esse processo de subversão pode ser entendido como um processo em que se opera, num mesmo movimento articulado, a desconstrução/descolonização da matriz da colonialidade do poder e a construção de um saber que visibilize e articule diferentes memórias históricas e saberes tradicionais a partir de uma mestiçagem crítica. Para isso é preciso recuperar a memória histórica das populações, suas experiências e seus saberes constituídos nos processos cotidianos de resistência ao crivo da colonialidade do poder. A psicologia, dentro dessa perspectiva, pode contribuir para a produção de um novo sentido histórico descolonizado para as populações do continente.

Assim, a psicologia e outras ciências humanas, ao se descolonizarem, podem contribuir para a desconstrução histórica de padrões coloniais de dominação presentes nas diferentes dimensões da realidade social. É penetrando na complexa malha de significações da realidade e em suas construções histórico-culturais que a psicologia pode oferecer subsídios para que as diferentes populações possam articular o conjunto de saberes, princípios éticos, mundo simbólicoimaginário e conhecimentos ancestrais em um projeto crítico da colonialidade do poder.

Usando uma imagem bastante empregada pelos zapatistas, a descolonização - subversão - da dupla consciência é um processo histórico no qual os saberes instituídos pela população a partir da realidade vivida desde abajo e desde adentro se tornem referência para outra concepção de realidade social, para outra concepção de civilização. É preciso que tais saberes se tornem a referência central na criação de valores de um novo processo civilizatório. Nesse contexto, a psicologia pode recuperar a história feita "por baixo", resgatando o processo histórico de desigualdades a partir do ponto de vista dos invisibilizados e gerando, assim, uma memória de resistência e de práticas que possa ancorar projetos coletivos de futuro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 20/02/2017.
Revisado em 12/09/2017.
Aceito em 20/09/2017.

 

 

1 Segundo Marx (1867, citado por Coggiola, 2011:141): "A acumulação de capital pressupõe mais-valia, a produção capitalista, e esta, a existência de grandes quantidades de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias [...]. Certa acumulação de capital em mãos de produtores particulares de mercadorias constitui condição preliminar do modo de produção especificamente capitalista. Pode ser chamada de acumulação primitiva, pois em vez de resultado é fundamento histórico da produção especificamente capitalista."

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