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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.44 São Paulo jan./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

O panóptico e a economia visual moderna: do panoptismo ao paradigma panóptico na obra de Michel Foucault

 

The panoptic and the modern visual economy: from panopticism to the panop-tic paradigm in Michel Foucault's work

 

El panóptico y la economía visual moderna: del panoptismo al paradigma panóptico en la obra de Michel Foucault

 

Le panoptique et l'économie visuelle moderne: du panoptisme au paradigme panoptique dans l'oeuvre de Michel Foucault

 

 

Rômulo Ballestê Marques dos SantosI; Francisco Teixeira PortugalII

IProfessor Adjunto A/DE do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; romulo.balleste@ufms.br
IIProfessor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisador do CNPq e da FAPERJ; fportugal@ufrj.br

 

 


RESUMO

O artigo aprofunda a leitura do panóptico de Jeremy Bentham realizada por Michel Foucault. As discussões elaboradas por Foucault em relação à sociedade disciplinar, efetivadas nos espaços panópticos de vigilância, lançam luz sobre os jogos de força configurados na trama social. O entendimento exposto principalmente em Vigiar e punir, conhecido por panoptismo, apresenta problemas em relação à concepção de Bentham. A reflexão que se segue visa ampliar os conhecimentos acerca do panóptico e do panoptismo a partir de trabalhos mais recentes sobre o tema que não apenas aprofundam as leituras foucaultianas do pensamento de Bentham desenvolvidas em trabalhos posteriores ao início da década de 1970, mas avançam pelas discussões da biopolítica. Dessa maneira, indicamos a necessidade de ultrapassar o criticado simplismo do panoptismo e demonstrar a inscrição do paradigma panóptico na governamentalidade.

Palavras-chave: panóptico; panoptismo; paradigma panóptico; Jeremy Bentham; Michel Foucault.


ABSTRACT

This article aims to delve into the reading of Jeremy Bentham 's panopticon accomplished by Michel Foucault. The debates on disciplinary society with regard to panoptic surveillance spaces shed light on the power games shaped on the social weave. However, his understanding of panopticism exposed mainly in Surveillance and punishment, presents certain problems about the Bentham 's conception. Therefore, the reflection that follows aims to expand the knowledge about panopticon and panopticism from latest works about the subject, which not only deepen the foucaultian readings about the Bentham's thought developed in works after start the 1970, but also advance the biopolitics debates. Thus, we can indicate the necessity to overcome the critics about the panoptical simplism and to demonstrate the governmentality inscription of the pan-optical paradigm.

Key words: panopticon; panopticism; panoptic paradigm; Jeremy Bentham; Michel Foucault.


RESUMEN

Este artículo se dedica a profundizar la lectura del panóptico de Jeremy Bentham realizada por Michel Foucault. Las discusiones elaboradas por Foucault en relación a la sociedad disciplinaria, cuales se efectúan en los espacios panópticos de vigilancia, arrojan luz sobre los juegos de fuerza configurados en la trama social. Sin embargo, su entendimiento, expuesto principalmente en Vigilar y castigar, conocido por panoptismo, presenta ciertos problemas con la concepción de Bentham. Por lo tanto, la reflexión que sigue pretende ampliar los conocimientos acerca del panóptico y del panoptismo a partir de trabajos más recientes sobre el tema, los cuales no sólo profundizan las lecturas foucaultiana acerca del pensamiento de Bentham desarrollados en trabajos posteriores al inicio de la década de 1970 y avanzan por las discusiones sobre la biopolítica. De esa manera, podremos apuntar la necesidad de superarse el criticado simplismo del panoptismo y demostrar la inscripción del paradigma panóptico en la gubernamentalidad.

Palabras-clave: panóptico; panoptismo; paradigma panoptico; Jeremy Bentham; Michel Foucault.


RÉSUMÉ

Cet article approfondit la lecture du panoptique de Jeremy Bentham réalisée par Michel Foucault. Les discussions élaborées par Foucault au sujet de la société disciplinaire, rendues effectives dans les espaces panoptiques de surveillance, mettent en lumière les rapports de force configurés dans le tissu social. La compréhension exposée principalement dans Surveiller et punir, connue comme pa-noptisme, présente des incongruences par rapport à la conception de Bentham. La réflexion qui suit vise à élargir les connaissances sur le panoptique et le panoptisme à partir de travaux plus récents sur ce thème, qui n 'approfondissent pas seulement les lectures foucaldiennes de la pensée de Bentham développées dans des travaux postérieurs au début des années 1970, mais qui progressent également au travers de discussions sur la biopolitique. De cette façon, nous indiquons la nécessité de dépasser le critiqué simplisme du panoptisme et de démontrer l 'inscription du paradigme panoptique dans la gouvernementalité.

Mots-clés: panoptique; panoptisme; paradigmepanoptique; Jeremy Bentham; Michel Foucault.


 

 

Introdução

A visualidade se multiplica em nossa sociedade em diferentes formatos e dispositivos. Ela está intimamente articulada à vigilância e se inscreve nas capilaridades do poder presentes nos gestos mais cotidianos, nos corpos e nos desejos, cujo funcionamento está imerso em espaços disciplinares estruturados arquiteturalmente. Em tais espaços, pode-se reconhecer tanto a forma do panóptico como da biopolítica.

As discussões elaboradas por Michel Foucault em relação à sociedade disciplinar que se efetiva nos espaços panópticos de vigilância lançam luz sobre os jogos de força que se configuram na trama social. Embora muitos autores reivindiquem atualização ou superação do dispositivo panóptico decorrente sobretudo da leitura foucaultiana e proponham novas nomenclaturas, como, por exemplo, o panóptico digital (Bessi, Zimmer & Grisci, 2007; Ramos, 2014); o panóptico eletrônico (Pereira, Segre & Nascimento, 2013); multissinótico (Pinheiro, 2014; Orellana, 2009); panóptico multidirecional ou multipanoptismo (Jiméniz, 2014); o sinóptico (Mathiesen, 1997; Botello, 2012; Sales & Paraíso, 2010); pós-panóptico (Bauman, 2001); vigilância distribuída (Bruno, 2013), nosso objetivo é demonstrar, por meio de uma investigação do panóptico e da sociedade disciplinar no interior da obra de Foucault, que a concepção espacial de poder própria ao filósofo amplia as possibilidades de compreensão do panoptismo para além da concepção mais difundida de vigilância associada ao modelo arquitetural apresentado em Vigiar e punir (2004).

Não nos propomos expor e analisar os problemas contidos em cada uma dessas aparentes novidades conceituais. Centramos a investigação na obra de Foucault e indicamos que conceber o panóptico como paradigma que abriga modificações ao longo do tempo permite inscrevê-lo como produto e produtor de novas condições históricas de captura dos corpos de parte da população, em geral, negra, pobre, periférica. As práticas de encarceramento, de tortura, de controle e de distribuição dos corpos no espaço da cidade e da vida não se separam das estratégias de captura no nível populacional. Ao contrário, elas se coengendram, se completam e se reproduzem nas malhas sociais da nossa sociedade.

Se o panóptico constitui uma ordenação visual do poder, entendemos que as recorrentes análises da visualidade na obra foucaultiana tornam este último um caso particular de uma reflexão mais ampla. Apesar de Foucault ter afirmado o fim da sociedade disciplinar (1978-1994), há traços de seu funcionamento em vigor nas sociedades modernas. Para desenvolvermos essa questão com maior acuidade será preciso discorrer sobre as relações entre a leitura feita por Foucault do panoptismo e o trabalho do filósofo Jeremy Bentham (1748-1832). Tal análise visa problematizar a noção de panóptico, de panoptismo, majoritamente concebido como esquema restrito ao modelo da casa de inspeção ou da prisão, e de paradigma panóptico que funciona a partir da estratégia do biopoder.

O poder instilado pela relação panóptica entre o olhar e a estrutura arquitetônica maximiza a vigilância que incide diretamente sobre um corpo na sua distribuição no espaço e torna as coisas visíveis, faz ver, ou seja, produz visibilidade. Há, portanto, emergência de um visível a partir da configuração espacial. Há também visibilidade nas análises foucaultianas das capturas populacionais, de raça, de gênero e de estratificação econômica e geossocial.

Esta análise histórica do poder convoca a Psicologia a se recolocar, a se deslocar, a se desacomodar dos solos tradicionais da objetividade e da cientificidade. Concebida como forma cultural, como movimentações atuais que organizam um saber e constroem espaços de institucionalização (além de linguagens particulares), o conhecimento dos modos históricos de ação da Psicologia contribuem para orientação atual da profissão.

Os jogos de constituição de enunciados e de visibilidade articulam-se aos modos de funcionamento discursivo-midiáticos, econômicos e de controle próprios aos Estados de polícia. Tais jogos geram ações sobre os corpos ao moldar formas de perceber os objetos e a si mesmo, de se localizar no espaço das relações sociais e arquiteturais, espaços de atuação da vigilância e controle populacional.

A vigilância tornou-se atualmente tema central nas análises sobre o poder. Consideramos, contudo, que seu modo de funcionamento se configura para além da onipresença cotidiana dos aparatos tecnológicos de visibilidade e vigilância. A vigilância está ancorada na visibilidade que se constitui no encontro dos enunciados dos dispositivos discursivos com práticas não-discursivas. O encontro dos enunciados do direito penal com as práticas de encarceramento dos dispositivos prisionais torna visível, por exemplo, a delinquência1.

O aprofundamento da análise do panóptico e da própria filosofia utilitarista de Bentham realizada por Foucault potencializa o reconhecimento e identificação de pistas da movimentação atual de nossa sociedade. A reflexão que segue propõe situar a visualidade do poder por meio da análise do paradigma panóptico emanado da análise foucaultiana do panóptico de Jeremy Bentham. Poderemos, assim, ultrapassar o aparente simplismo do panoptismo e demonstrar a presença da governamentalidade no paradigma panóptico.

Recusamos, portanto, o reducionismo corrente que define a sociedade disciplinar ou de vigilância pelas características tecnológicas mais modernas espalhadas por diversos níveis da vida individual e coletiva. É inegável a presença de aparatos tecnológicos de vigilância como câmeras de segurança, senhas eletrônicas, biométricas, reconhecimento por voz e até leitura da íris. Estes artefatos estão distribuídos ostensivamente na experiência cotidiana e se fazem presentes em todos os espaços da vida nas grandes cidades. No entanto, essas táticas de controle não excluem a lógica própria ao paradigma panóptico articulado à biopolítica; práticas discursivas de verdade se articulam com práticas disciplinares e biopolíticas inscrevendo modos de funcionamento e de aparecimento de objetos e de subjetividades.

 

Críticas ao panoptismo em Vigiar e Punir

O livro Vigiar e punir: o nascimento da prisão (2004), originalmente publicado em 1975, confere grande destaque para a visualidade. A descrição do suplício de Damiens evidencia o domínio visual desde a primeira página. O suplício era a "manifestação ritual do poder infinito de punir" (Foucault, 2004, p. 105) que no excesso do castigo restabelece, recodifica e restaura em triunfo o poder. A ostentação dos suplícios vale-se da tecnologia da dor para enaltecer a punição expositiva. Ao transmutar as penas corpóreas e o próprio corpo em lugar de aplicação do poder, ela estabelece a dissimetria e o excesso como fruto de todo investimento político da economia do poder punitivo.

Do início do século XVII até a segunda metade do século XVIII, o corpo é instituído como objeto e alvo de poder. A figura do soldado, por exemplo, se esboça não apenas por atributos naturais de seu físico, mas também por traços de orgulho e de honra em seu espírito, constituintes da habilidade necessária para as lutas das quais participava. Este camponês transformado em soldado desaparecerá na segunda metade do século seguinte quando o soldado passará a ser o produto de uma fabricação. O soldado não será mais procurado, será fabricado. O corpo jovem recrutado, independentemente das aptidões físicas, passará por um conjunto exaustivo de manipulações e treinamentos que terá como objetivo torná-lo habilidoso e ampliar as suas forças.

O cruzamento do registro "técnico-político" - séries de regulamentos de diferentes instituições que submetiam e controlavam o corpo - com o registro "anátomo-metafísico" possibilitava submeter o corpo, utilizá-lo, transformá-lo e aperfeiçoá-lo, isto é, torná-lo um corpo dócil. Esses esquemas de docilidade exercem um controle intenso e constante sobre o corpo, um "poder infinitesimal" que age no detalhamento quase infinito do corpo exercido por meio de uma elaborada disposição e organização dos movimentos. O poder decompõe-se de forma detalhada e emprega um conjunto de exercícios que garantem a eficiência dos movimentos. Foucault chamará isto de disciplina.

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas". Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação (Foucault, 2004, p. 118).

O cruzamento de dois modelos de organização espacial analisados anteriormente por Foucault - o modelo da lepra e o modelo da peste - serão a base do funcionamento das instituições Pan-ópticas. Técnicas minuciosas de exame no interior de uma estrutura fazem funcionar o poder, intensificando o seu efeito ao máximo.

Foucault expõe uma relação entre poder, visibilidade e espaço arquitetural construído (Rajchman, 1988). Tal relação faz com que a arquitetura, em suas interconexões com o poder, ajude a visualizá-lo, a manifestá-lo. As construções da arquitetura se valem, portanto, de uma "arte de luz e de visível" (Rajchman, 1988) endereçadas para as massas marginalizadas e anônimas.

O Panopticon é um modelo, uma forma idealizada para implementação em instituições variadas. No sistema panóptico, a ser aplicado ao hospital, à escola, à prisão e assim por diante, cada corpo tem seu lugar individualizado. Portanto, a cada indivíduo cabe um leito no hospital, uma carteira na escola e uma cela na prisão. O esquadrinhamento espacial produz efeito no corpo ligado a uma função produtiva, a saber: uma função individualizante. "E para qualquer direção que o olhar do vigilante puder se voltar, no fim de cada uma dessas direções, o olhar vai encontrar um corpo. Portanto as coordenadas espaciais têm aí uma função individualizante bem nítida" (Foucault, 2006a, p. 93).

Tal função individualizante desfaz fenômenos coletivos, comunicações entre grupos, qualquer espécie de solidariedade que possa se articular e adquirir um caráter não individual ou de multiplicidade. Inibe, por exemplo, as possibilidades de greve de operários e de motim de prisioneiros, a "cola" praticada pelos alunos em situação de exame. O panóptico deve ser compreendido como um mecanismo que atua potencializando o poder no interior do espaço. Seu funcionamento visa potencializar, intensificar ao máximo o poder, distribuindo-o de maneira a refinar sua aplicação e, assim, obter o máximo de eficácia nela.

A estrutura panóptica modifica a forma de vigilância então correntes nas prisões - as fortalezas e as masmorras. A vigilância de alguém que está acorrentado numa masmorra é feita por um vigia posicionado em frente à cela do prisioneiro; as grossas paredes de pedra isolam e ocultam o preso na escuridão ou encarceram massas amontoadas. No panóptico, a vigilância funciona de outra maneira. Na segunda metade do século XVIII, o medo do espaço escuro, do anteparo que impede a total visibilidade das coisas, das pessoas, das verdades habita o imaginário das pessoas (Foucault, 1994c).

A construção central da arquitetura panóptica - chamada por Bentham (2008, p. 21) de "o alojamento do inspetor" - constitui uma espécie de cúpula totalmente coberta2 por um sistema móvel de persianas. Em seu interior estão dispostas divisórias móveis que permitem recortar o ambiente em diferentes configurações, segundo a máxima de fazer-ver, de tornar visível pelo jogo de luz e sombra.

A luz projetada faz ver as sombras na parede por um efeito de contra-luz tal como um teatro de sombras chinês.

As persianas e divisórias, por outro lado, basculam. Essa função garante ao vigia não ser visto por aquele que é vigiado. Um jogo entre o ver e o não ver, entre o mostrar e o esconder, entre o revelar e o ocultar, entre a luz e a penumbra é produzido. A dinâmica desse visa intensificar o poder exercido, pois, na medida em que o vigiado não vê o olho do vigilante, a vigilância se espraia e pode atuar a todo o momento engendrando uma espécie de sujeição naquele que é vigiado.

Dito de outra maneira, a vigilância extrai seu efeito com o máximo de intensidade quando aquele que é vigiado não consegue saber se está sendo vigiado, quando o vigiado não vê se há ou se não há um olho direcionado para ele. Esse poder é, portanto, anônimo uma vez que um olho vê ininterruptamente sem ser visto, criando no indivíduo situado na cela, no leito hospitalar, na oficina - em qualquer instituição -, "(...) a sensação constante de estar num estado de visibilidade para um olhar -que está ou não está presente, pouco importa" (Foucault, 2006a, p. 95). O poder aqui é efeito de um olhar que não provém, nem mesmo está ligado a nenhum olho específico.

Nesse sentido, uma economia do olhar está intimamente ligada a uma arquitetura e distante de uma óptica ou de uma psicologia da percepção. Isto fica mais claro se tomarmos a maneira como Foucault (2006a, p. 127) entende a dispersão da visualidade na constituição arquitetônica do asilo. O asilo como uma "máquina de cura" é um aparelho panóptico que distribui os indivíduos no espaço e os submete a uma visibilidade permanente inscrita em uma vigilância piramidal dos olhares. Tal hierarquia dos olhares converge as diferentes informações para um saber-poder que, no caso do asilo, culmina na figura do médico-chefe. A distribuição da visualidade na configuração arquitetural do espaço não diz respeito, portanto, a alguma teoria psicológica da percepção nas suas mais variadas ramificações e escolas. No panóptico, a eficácia máxima, o melhor funcionamento de um aparelho de poder consiste em garantir a continuidade de seu funcionamento independentemente da presença do guardião. O guardião, aliás, também deve estar submetido à vigilância.

Uma das vantagens fundamentais do plano de Bentham (2008, p. 30) é a "aparente onipresença do inspetor" operada justamente pela desindividualização, pela desincorporação do olhar. Qualquer um pode ocupar esta posição de inspeção, qualquer um pode ocupar a cúpula envidraçada por trás das persianas na torre central. Para Bentham, tão importante quanto o inspetor e os superintendentes que visitam e inspecionam o funcionamento da instituição é a vigilância anônima e despersonificada que é exercida neste "sistema de inspeção". Em suas palavras (Bentham, 2008, p. 33), "(...) assim que o superintendente é anunciado, toda a cena abre-se instantaneamente à sua visão". Tal abertura ao público garante continuidade de visibilidade e a desindividualização do inspetor. Ela cumpre a função de gratificar a curiosidade dos indivíduos, seja da própria família do inspetor, seja dos visitantes espontâneos das instalações. Assim,

(...) quando se constata que existe esta vigilância do inspetor principal sobre o pessoal responsável pelo enquadramento e, pelas janelas da torre, a vigilância sobre todos, sucessão ininterrupta de olhares que lembra o "cada camarada torna-se um vigia", a ponto de se ter realmente a impressão um pouco vertiginosa de se estar na presença de uma invenção que não seria dominada nem pelo próprio criador (Foucault, 1994a, p. 200).

A invisibilidade espectral do inspetor pode ser desfeita rapidamente e ele pode dar provas da sua presença de forma real ao se comunicar com os indivíduos nas celas pelo sistema de comunicação tubular. Este sistema de comunicação consistia em tubos que comunicavam a cela e a cúpula central permitindo que fossem passados comandos ao preso ou simplesmente que se ouvisse o que ele falasse. A distribuição espacial realiza, portanto, função individualizante do corpo inserido na cela e está visceralmente ligada à desindividualização do poder na cúpula da torre central do panóptico. A descorporificação do diretor da prisão, "o diretor não tem corpo" (Foucault, 2006a, p. 95), funciona de modo equivalente a do médico do asilo. O corpo do médico concebido como prolongamento da arquitetura ocupa cada parte do espaço asilar e, assim como "o asilo é o corpo do psiquiatra", a prisão é o corpo do inspetor (Foucault, 2006a, p. 227). Se por um lado, o poder individualiza e incide no corpo e atua corporalmente, por outro lado, ele é desindividualizado, descorporificado, desubstancializado e não se concentra nas mãos de uma pessoa ou em uma figura detentora do poder. O poder é anônimo e opera em contínua mobilidade.

As celas do panóptico possuem configuração específica: toda cela tem uma face voltada para o interior da circunferência. Ou seja, volta-se para a torre central e possui "uma grade de ferro suficientemente fina para não subtrair qualquer parte da cela da visão do inspetor" (Bentham, 2008, p. 21) de modo que qualquer gesto do indivíduo ali realizado possa ser visto por alguém posicionado nela.

Ainda encontramos como efeito da função individualizante, em sua relação com o olhar, aquilo a que Bentham (2008, p. 21) chamou "partições prolongadas". Com o objetivo de impedir que um prisioneiro pudesse ver o prisioneiro da cela ao lado, alongavam-se radialmente as paredes divisórias das celas para além da grade de ferro da circunferência interior à cela. O trabalho de individualização realizado pela disciplina objetifica. Um corpo individualizado em uma cela é tratado como objeto de onde se extrai um conjunto sistemático de informação. A individualização produz, dessa forma, um objeto de informação. Os prolongamentos divisórios, ao impedir a visualização entre prisioneiros, tolhem, na verdade, a comunicação como sujeito, mantendo-o encarcerado em um corpo submetido constantemente a um processo de individualização.

Apesar da centralidade que este procedimento ganhou ao longo do período, Bentham não conseguiu efetivar a construção de nenhum empreendimento arquitetural com base no panóptico. Inúmeras contradições no desenho do plano radial das prisões só foram resolvidas (a maior parte delas) com a construção da prisão de Pentonville, aberta em 1842 quase dez anos após a morte do filósofo (Steadman, 2007).

A complexidade da prisão e a multiplicidade inerente ao cárcere estão presentes nas sociedades do mundo inteiro. Biógrafos de Bentham e filósofos que se interessam pelas questões penais em articulação com as questões morais e políticas têm ainda um longo caminho a explorar na obra do utilita-rista inglês (Gombert, 2014). O aprofundamento em seus trabalhos pode contribuir para debates e encaminhamentos atuais acerca das instituições de encarceramento.

Foucault analisou o panóptico de Bentham com grande impacto em suas discussões do poder disciplinar e nas questões próprias à vida no cárcere em uma sociedade punitiva. Propomo-nos a fazer algumas articulações para que suas análises não sejam tomadas como mera continuidade dos trabalhos de Bentham ou uma apropriação sem as devidas singularidades. A reflexão sobre visualidade em Foucault e o efeito do jogo do visível e do invisível produtor do olhar inscrito nos dispositivos disciplinares de poder e na arte de governar demanda a retomada de análises críticas a respeito do trabalho do filósofo francês.

 

Discussões mais recentes sobre o panóptico

Procuraremos, a seguir, apresentar alguns trabalhos mais recentes voltados à organização sistemática, tradução e divulgação do trabalho de Jeremy Bentham. Essas inclinações sobre a obra de Bentham não apenas publicizam como produzem novas leituras e interpretações que levam, em nosso caso, a reconsiderar detalhadamente algumas análises sobre o panóptico de Bentham e a leitura feita por Foucault. Dois significativos grupos dedicados a produzir novas organizações, publicações e interpretações dos trabalhos de Jeremy Bentham foram organizados: o Bentham Project e o Centre O Bentham Project3 é um projeto mantido pela Faculdade de Direito da College of London. Foi criado em 1959 com o objetivo de constituir um centro de estudos, de realizar a transcrição dos manuscritos, a catalogação e facilitação do acesso à obra de Jeremy Bentham, bem como de periódicos que publicam artigos com novas visões e discussões a respeito de sua obra.

Ele pretende corrigir problemas encontrados na primeira edição do The collected Works e, dessa forma, produzir modificações nos estudos sobre Bentham e sobre o panóptico a partir da década 1960. O projeto ampliou a compreensão do Panopticon para além da restrita concepção que o limita à produção de "efeitos civilizatórios sobre os presos" (Brunon-Ernst, 2007). O Bentham Project lança luz sobre o trabalho de Bentham ajudando, assim, a desmistificar seu pensamento. Gertrude Himmel-farb (1965), historiadora norte-americana, resgata o panóptico de Jeremy Bentham, em 1965, após muitas décadas sem que este assunto suscitasse interesses críticos. Seu olhar agudo indica a publicação do posfácio como um texto que altera consideravelmente o primeiro esquema do panóptico descrito por Bentham.

No interior desse círculo de estudiosos de Bentham, desde a publicação do trabalho de Janet Semple (1992) dedicado ao panóptico das prisões e do trabalho de Michael Quinn (1997) acerca do panóptico dos pobres, a interpretação foucaultiana não é tomada com aprovação. O referido círculo difunde a ideia de que o conhecimento de Foucault a respeito do panóptico de Bentham era bastante parcial e errôneo.

Karolina Gombert (2014) interpreta a leitura de Foucault como uma espécie de oportunismo que negligencia a ideia complexa e geral da filosofia de Bentham. Afirma que "como Foucault interpreta os escritos do Panopticon para a sua proposta intelectual, ele, em última análise, tende a negligenciar os complexos aspectos, cultural e historicamente impostos pela proposta de Bentham" (Gombert, 2014, p. 9). Ou ainda, segue a autora, "a simplificação de Foucault dos escritos do Panopticon não é adequada para analisar as condições atuais das prisões porque o modo de punição é influenciado por uma multiplicidade de fatores inter-relacionados não meramente pela razão instrumental" (Gombert, 2014, p. 9).

Um contraponto importante na tradição dos estudos ingleses acerca da obra de Bentham, sobretudo no que diz respeito à tensão gerada pela interpretação que Foucault faz no seu panoptismo, pode ser encontrado na fundação do Centre Bentham, um centro de estudos do pensamento benthameniano erigido na Universidade Paris 10, em 2003. Com os esforços de Jean-Pierre Cléro e de Christian Laval e o auxílio de jovens doutorandos, o Centre Bentham tem por vocação traduzir, comentar e difundir o pensamento benthameniano. O primeiro colóquio bianual da International Society of Utilitarian Studies (ISUS) ocorreu em 2006. Os estudos e as discussões emanadas do Centre Bentham ajudaram a dar um passo importante nas reflexões sobre o tema e a recolocar Foucault como um relevante pensador em diálogo com o trabalho de Bentham.

Os trabalhos do Centre Bentham e os textos elaborados pelo sociólogo Christian Laval (2012a; 2012b) e por Anne Brunon-Ernst (2007; 2012a; 2012b; 2012c; 2012d) têm contribuído para verificar e precisar alguns aspectos tanto da leitura feita por Foucault da filosofia de Bentham, quanto de Jeremy Bentham. Segundo Anne Brunon-Ernst (2012b), o termo panoptismo se tornou sinônimo da totalidade da filosofia utilitarista de Jeremy Bentham. Esta espécie de imprecisão gerou como fruto, por exemplo, os trabalhos de Jacques-Alain Miller: A máquina pan-óptica de Jeremy Bentham, publicado em 1975, e o de Michelle Perrot, O inspetor Bentham, publicado em 1977.4

Esse achatamento conceitual produziu uma radical separação entre os pesquisadores benthamenianos. A avaliação feita por Semple (1992), restrita à noção de panoptismo desenvolvida por Foucault em seu Vigiar e punir, considerou bastante limitado o conhecimento do filósofo francês a respeito da filosofia de Bentham, aprofundando, com isso, o fosso entre duas espécies de feudos, de um lado os pesquisadores ingleses e, de outro, os pesquisadores franceses do tema.

 

Paradigma panóptico como biopoder

Brunon-Ernst (2012d) concebe a leitura dos autores ingleses indicados como restrita ao panoptismo - terceiro capítulo da segunda parte - do Vigiar e punir (2004) e, por este motivo, Semple (1992) teria se equivocado ao limitar a concepção de Foucault ao modo prisional de panóptico para estabelecer sua análise da sociedade disciplinar. Anne Brunon-Ernst (2007) ressalta a necessidade de investigar - e podemos encontrar esta crítica já no trabalho de Deleuze (2003a; 2013b) sobre Foucault - o material dos cursos e as anotações e leituras do filósofo sobre o tema para que a análise e discussões não fiquem restritas aos livros. O texto de Janet Semple (1992) se enfraquece ao basear a sua análise exclusivamente no livro Vigiar e punir e cabe, todavia, indicar que os cursos de Foucault no Collège de France ainda não tinham sido publicados em 1992.

É possível apresentar uma releitura significativa da relação entre Bentham e Foucault a partir deste material. A omissão nos textos dos autores acima mencionados dos cursos de Foucault no Collège de France intensamente relacionados ao tema deve ser o produto da dificuldade de acesso aos escritos ainda não estabelecidos em sua forma final e ainda não publicados. A inserção das anotações, gravações e leituras dos cursos sobre biopoder é considerada por Brunon-Ernst crucial para a elaboração de um trabalho rigoroso que desfaça a separação entre pensadores ingleses que se dedicam a estudar a obra de Jeremy Bentham e os pensadores franceses leitores de Vigiar e punir de Michel Foucault.

As leituras de Foucault não foram esboços para seus livros subsequentes mas trabalham no seu próprio direito. Algumas das ideias desenvolvidas que devem ter contribuído para o desenvolvimento da teoria de Foucault mas isto não implica de forma alguma que suas leituras devem ser lidas como livros de segunda classe (Brunon-Ernst, 2007, p. 5).

Os cursos proferidos por Foucault durante o período compreendido entre os anos de 1971 e 1984 totalizam treze livros, mas somente seis tinham sido publicados. Nos anos que sucederam à publicação do artigo de Semple, todos os livros dos cursos foram publicados em francês e ganharam diversas traduções para outros idiomas. "Se as entrevistas de Foucault fazem parte, plenamente, de sua obra, é porque prolongam a problematização histórica de cada um de seus livros rumo à construção do problema atual, seja este a loucura, o castigo ou a sexualidade" (Deleuze, 2013a, p. 122, grifo do autor).

Christian Laval (Brunon-Ernst, 2012a) também aponta a necessidade de retomar o estudo da relação Bentham-Foucault ultrapassando a leitura possibilitada por Vigiar e Punir ou pelo que é dito por Foucault a respeito do poder disciplinar por meio da inclusão dos cursos ministrados no Collège de France. Tal operação permite deslocar a interpretação foucaultiana de Bentham para a forma de governar e indicar as influências do utilitarismo na noção de biopolítica.

Foucault indica ainda a coexistência dos planos disciplinar e biopolítico na tessitura social (2006b; 2007). Brunon-Ernst (2012a) considera inadequado o termo - panoptismo - utilizado por Foucault como decorrência da valoração da forma prisão do panóptico, desconsiderando a pluralidade de modos panópticos que foram elaborados durante trinta anos nos textos de Bentham.

"Panóptico e panoptismo não são dois fenômenos particulares relacionados a um funcionamento mais amplo da relação que liga Bentham e Foucault" (Brunon-Ernst, 2012a, p. 19-20).

Brunon-Ernst (2012d, p. 21) indica cinco diferentes manifestações do princípio panóptico presentes nos seguintes trabalhos de Bentham: Panopticon ou a casa de inspeção (1786 e 17901791); Esboço de um trabalho intitulado gestão aperfeiçoada do pobre (1797-1798); Panopticon versus Nova Gales do Sul (1802); Crestomatia (1816-1817); Código constitutional (1830)5. Destes cinco panópticos, somente o de 1802 não adiciona características novas e não apresenta avanços em relação aos anteriores. Os quatro panópticos foram caracterizados pela autora como: panóptico-prisão, panóptico-pobreza, panóptico-crestomático e panóptico-constitucional (Brunon-Ernst, 2012d, p. 21).

O objetivo principal do primeiro projeto, baseado no princípio da inspeção, foi maximizar o trabalho realizado pelos presos e produzir, ao mesmo tempo, uma reforma moral. A palavra "inspeção" figura no título do conjunto de cartas de Jeremy Bentham como sinônimo de panóptico. A generalização do princípio evidencia-se pela possibilidade de aplicação diferentes tipos de estabelecimento ou pessoa; em especial às casas penitenciárias, prisões, casas de indústria, casas de trabalho, casas para pobres, manufaturas, hospícios, lazaretos, hospitais e escolas.

Em 1787, Jeremy Bentham publica um conjunto de 21 cartas acrescidas de um prefácio e um pós-escrito sob o título O panóptico ou casa de inspeção. Essas cartas foram escritas na Rússia, na ocasião da visita a seu irmão, Samuel Bentham, e enviadas à Inglaterra endereçadas ao seu pai, Jeremiah Bentham, para que fossem publicadas (Pease-Watkin, 2003, p. 3). Tanto o seu pai quanto o seu amigo George Wilson se negaram, todavia, a publicar o material (Himmelfarb, 1965, p. 208). A publicação desse conjunto de cartas6 acabou acontecendo em decorrência do interesse do governo da Irlanda em testar seu sistema penitenciário.

Nas cartas de Bentham, podemos encontrar alguns conjuntos temáticos. Da carta I até a VI, ele apresenta o princípio da inspeção e desenvolve seu plano; a VII dedica-se às casas penitenciárias -custódia segura; a VIII ao aspecto reformador deste projeto; a IX fala sobre a duração do primeiro contrato e da transparência pública na administração; da X até a XIII discute os ofícios; a XIV disserta acerca das disposições para os presos libertados; a XV versa sobre a perspectiva de economia do plano de Bentham e a partir da XVI Bentham desenvolve mais especificamente cada conjunto de propósitos aplicáveis do plano de inspeção: XVI, casas de correção; XVII, custódia segura; XVIII, manufaturas; XIX, hospícios; XX, hospitais; XXI, escolas.

A originalidade da invenção do panóptico não é de Jeremy, mas de seu irmão Samuel que construiu um panóptico em 1806 na Rússia (Himmelfarb, 1965; Werrett, 1999; Pease-Watkin, 2002, 2003; Steadman, 2012; Gombert, 2014). Samuel foi para a cidade russa Cricheff, em 1780, e quatro anos mais tarde trabalharia para o príncipe Potemkin na construção das embarcações que abasteceriam a frota do Mar Negro. A grande diversidade envolvida na produção industrial da frota e o pequeno número de funcionários qualificados e competentes transformaram Samuel no responsável pela supervisão da produção do grande número de trabalhadores camponeses.

"Foi neste momento que Samuel Bentham, um inventor e engenheiro de gênio, inventou o panopticon para ser construído sob o princípio de inspeção geral, com o sentido de facilitar a supervisão do amplo número de trabalhadores" (Pease-Watkin, 2003, p. 2). Jeremy Bentham visitou o irmão na cidade russa em 1786 e teve a oportunidade de vislumbrar diversas aplicações daquele esquema, sobretudo, como prisão. O contexto de reforma das prisões na Inglaterra (Himmelfarb, 1965) antecede o invento do panóptico, embora a concepção inicial estivesse ligada ao contexto industrial, Jeremy Bentham insistirá na força do projeto como uma prisão, mesmo pensando em sua utilização para múltiplas finalidades.

No panóptico dos pobres, encontramos uma versão do panóptico-prisão voltada para os indigentes. Este modelo objetivava prover a subsistência por meio de duas características da prisão: o trabalho e a reforma moral. Por abrigar uma população diferente do panóptico-prisão, a organização espacial sofreu alterações para que pudesse acomodar casais, crianças, doentes e incapazes, direcionando a conformação arquitetural para atender a "produção, reprodução e educação" (Brunon-Ernst, 2012d, p. 23).

O modelo crestomático tem como orientação a reforma pedagógica e propõe uma escola em tempo integral na qual a inspeção de até 600 alunos de diferentes idades com, no máximo, 17 anos poderia ser feita por um mestre. O desenvolvimento educacional seria compatível com a possibilidade econômica dos pais.

O governo, baseado na constituição universal, ampararia o panóptico no final dos trabalhos de Bentham. Se por um lado a codificação constitucional não menciona o termo panóptico, a sua configuração arquitetural organiza os ministérios em uma disposição ovalar na qual o primeiro-ministro inglês ocupa a posição central e se comunica por meio de um sistema tubular de voz. O panóptico organizado a partir do código constitucional não produz indivíduos encarcerados como alvos da vigilância, mas exerce vigilância sobre os próprios ministros. Afinal, a comunicação é um aspecto fundamental em todos os panópticos bentamenianos.

A restrição da formulação foucaultiana do panóptico ao primeiro modelo de Bentham e a desconsideração de sua estrutura múltipla elaborada gradualmente e revisitada ao longo da obra propiciou a seletividade da leitura realizada por Foucault resultando numa análise empobrecida e equivocada (Brunon-Ernst, 2012d). Dessa forma, é possível reconhecer que "A mudança do primeiro e segundo projetos para o terceiro e quarto ilumina o papel do Panopticon não como um projeto nele mesmo, mas como um paradigma que seria colocado em uso em diferentes circunstâncias, como Bentham tinha já apontado em 1786" (Brunon-Ernst, 2012d, p. 23).

Com o intuito de reparar esta falha de Foucault, Brunon-Ernst sugere que "uma mudança do panopticon para o paradigma panóptico implica que os panópticos plurais contenham características que possam ser identificadas, isoladas e comparadas a outros empreendimentos semelhantes, sejam separados contemporânea ou historicamente" (Brunon-Ernst, 2012d, p. 37).

Se os quatro diferentes panópticos forem levados em consideração, poder-se-á notar a passagem do controle individual, encontrado na inspeção do poder disciplinar, para a governabilidade. Para tanto, uma mudança deveria ser feita, o panoptismo deveria ser ampliado a paradigma panóptico. Segundo Laval (2012a), Brunon-Ernst (2012d) e Brunon-Ernst & Tusseau (2012), a leitura foucaultiana acompanha o desenvolvimento filosófico de Bentham se os cursos pronunciados no Collège de France forem incluídos na apreciação. Especial atenção deverá ser dirigida aos cursos Segurança, população e território (1978) e Nascimento da biopolítica (1979) em que a questão da governabilidade conduzirá as discussões do exercício de poder.

Foucault descobriu o panopticon de Jeremy Benthan ao pesquisar a arquitetura hospitalar desenvolvida na segunda metade do século XVIII. Examinando diversos projetos arquitetônicos percebeu que o panopticon de Benthan figurava como influência em todos os grandes projetos arquitetônicos de reestruturação das prisões desde o início do século XIX. No panóptico de Vigiar e punir, ou ele não tem consciência ou decide deliberadamente ignorar a existência da pluralidade do panóptico (Brunon-Ernst, 2012d). Isto porque, ao desenvolver o panoptismo, o princípio da inspeção fundada em uma economia visual é tomado como o princípio orientador de todo funcionamento do panóptico e da sociedade disciplinar. Ainda que Foucault reconheça diferentes formas de panóptico e, principalmente, o código constitucional na articulação do regime disciplinar com a arte econômica liberal de governar - tal como apresentado no Nascimento da biopolítica -, ele não poderia ter utilizado a ideia do panoptismo de modo isotópico, reduzindo as características da escrita, da inspeção, da circulação da informação a todos os modos de controle panóptico (Brunon-Ernst, 2012d). No curso Nascimento da biopolítica, retoma a leitura feita no ano anterior - 1978 - para destacar o caráter mais amplo do panóptico, entendendo tal estrutura como a própria estrutura do governo liberal.

E esse famoso panóptico que no princípio de sua vida, bem, em 1792-1795, Bentham apresentava como o procedimento mediante o qual iria se poder, no interior de determinadas instituições como as escolas, as oficinas, as prisões, vigiar a conduta dos indivíduos e aumentar a rentabilidade e até a produtividade de sua atividade, no final de sua vida, no projeto de codificação geral da legislação inglesa, apresentou-o como a fórmula do governo na sua totalidade, dizendo: o panóptico é a fórmula mesma de um governo liberal (Foucault, 2007, p. 88-89).

Este entendimento do panóptico de Bentham exposto por Foucault revela, segundo Laval (2012b), uma compreensão que, se não está alinhada com a passagem do regime de soberania para o regime disciplinar, caminha na direção da governamentalidade. Se, por um lado, ele se concentrou no primeiro tipo de panóptico em suas descrições do panoptismo em Vigiar e punir, por outro, desdobrou as relações do liberalismo econômico para além dos domínios do regime disciplinar atingindo o domínio da arte de governar. "O panoptismo não é uma mecânica regional e limitada a instituições. O panoptismo, para Bentham, é sem dúvida uma fórmula política geral que caracteriza um tipo de governo" (Foucault, 2007, p. 89). A relevância de Bentham como reformador do direito penal do século XVIII o leva a refletir sobre economia política na medida em que foi necessário pensar o exercício de poder.

Brunon-Ernst (2012d) opta por difundir a complexidade e a multiplicidade dos tipos panópticos desenvolvidos por Bentham. A autora sugere, por conseguinte, o emprego do termo paradigma panóptico em detrimento do vocábulo, empregado por Foucault, panoptismo dada sua incapacidade de expor a complexidade da questão tratada.

Ciente das modificações ocorridas ao longo do tempo na reflexão foucaultiana do trabalho de Bentham, Brunon-Ernst dirige sua crítica à leitura feita por Foucault em Vigiar e punir. Deste ponto de vista, as passagens da soberania para a disciplina não fixam o panóptico num funcionamento disciplinar, mas avançam pelos caminhos da arte de governar, da governamentabilidade. Se por um lado Brunon-Ernst enfatiza os problemas da circunscrição do panoptismo elaborada por Foucault em 1975, por outro acompanha a leitura de Laval (2012d, p. 44) que identifica Bentham não somente como o inventor do panóptico da prisão mas

(...) como principal tecnólogo da governabilidade moderna". A ênfase dada por Laval não está centrada nas tecnologias disciplinares surgidas no século XVIII, mas na tomada da população como objeto de racionalizações táticas efetuadas pelo Estado. As regulamentações do plano do biopoder, exercido no âmbito populacional e articulado à governamentalidade, pode ser encontrado nas sociedades nos dias de hoje (Laval, 2012d).

A modificação do panoptismo para paradigma panóptico gera necessariamente a compreensão da pluralidade. Ao nomear a questão "esquema panóptico", em Vigiar e punir, Foucault se fundamenta, segundo Brunon-Ernst, em uma descrição que ignora a articulação entre panóptico e código constitucional. No panóptico da inspeção, a vigilância do indivíduo preso numa cela pressupõe a existência da torre que cria a suposição de que alguém - o diretor - está lá observando cada movimento. O panóptico-constitucional introduz uma diferença significativa pois quem vigia cada indivíduo governado é uma multidão de inspetores que ocupam a posição de governança. Se o princípio da inspeção está ainda presente, a configuração difere em cada caso.

No embate entre os termos panóptico e panoptismo, Spindola (2010) sustenta o argumento do historiador que erige o panoptismo de Foucault como uma invenção constituída a partir de um recorte do trabalho de Bentham sem a obrigação de se referir à concepção filosófica do utilitarismo ou o conhecimento do conjunto da obra do autor inglês. Esta posição rebate a crítica de muitos pensadores ingleses já que tal invenção teria por finalidade permitir a compreensão de uma temporalidade na qual o panóptico de Bentham é uma espécie de resposta a uma percepção social. De qualquer modo, o autor poderia ser enquadrado na crítica fomentada pelos benthamenianos ingleses por analisar e defender o panoptismo de Foucault somente pelo conjunto de cartas escritas na Rússia.

 

Considerações finais

A leitura que compreende o funcionamento da sociedade contemporânea à luz da noção de panoptismo está no mínimo enfraquecida se não levar em conta que a crise da sociedade disciplinar já estava em curso mesmo que Foucault enunciasse o panoptismo como uma possibilidade de leitura dos efeitos da referida sociedade disciplinar. Entendemos por crise as transformações próprias ao capitalismo nas últimas décadas que, longe de levar a seu fim, permitem os múltiplos e enraizados desdobramentos dos dispositivos disciplinares. Tais dispositivos disciplinares atuam infra e supra espaços fechados, eles se justapõem às linhas biopolíticas, realizam as suas ações sob a forma de articulações e dobras de funcionamentos individualizados, séries que se autorregulam, se comunicam e estabelecem movimentos, articulações, avanços e recuos.

Se Foucault (1994b) afirma a crise da sociedade disciplinar, tal crise nos informa seu caráter mutável. Seus dispositivos, suas forças e seus diagramas de funcionamento se atualizam constantemente e o panóptico precisa ser, portanto, pensado como uma estratégia política de governamentalidade que não se restringe aos dispositivos disciplinares dos espaços fechados, mas como algo capaz de produzir novas articulações, novas estratégias de controle que capturam tanto o indivíduo quanto a população.

Restringir a visibilidade em Foucault ao panoptismo e derivar daí a consequência social de dominação disciplinar constitui uma simplificação questionável. Como tentamos demonstrar desde o início do nosso trabalho, a visibilidade tal como configurada pelo panoptismo que concebe exclusivamente a visibilidade na estrutura arquitetônica do panóptico como metáfora para a vigilância limita o trabalho de Foucault. Não reconhece, ademais, o alcance das questões de poder erigidas por sua leitura da obra de Bentham que aparecem de maneira profunda em seu desdobramento biopolítico.

Ampliar a discussão sobre o panóptico, o panoptismo e a relação entre o pensamento de Fou-cault e de Bentham, nos dias atuais, ajuda-nos a intervir na sociedade brasileira no que diz respeito a seus conflitos principalmente diante das práticas de Estado que fortalecem crescentemente o encarceramento em massa e o extermínio de jovens sobretudo negros e habitantes de áreas periféricas. Ter a vigilância no horizonte de problematizações auxiliam a identificação dos graves problemas vividos pela política proibicionista e punitiva do Estado de polícia brasileiro, um espaço no qual está cada vez mais difícil saber quem vigia os vigiados.

 

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Submetido em: 05/04/2018
Aceito em: 11/08/2018

 

 

1 Se tomarmos como exemplo acontecimentos recentes de nosso país, encontraremos a produção de uma visibilidade da delinquência que se encarna e se naturaliza na criança e no jovem, nos corpos negros e pobres das favelas, nos manifestantes transformados em vândalos, perseguidos, presos e condenados, com ou sem provas. Tal processo opera uma lógica de Estado que distribui os espaços de circulação, de vida, de acesso à cidade. Trata-se de uma economia visual como dobra da economia financeira do Estado de polícia neoliberal
2 Há uma diferença entre a concepção de Bentham e a leitura feita por Foucault (2004). Neste trecho o pensador francês descreve as celas e o alojamento de vidro do inspetor. Bentham, no entanto, não se refere a uma cobertura envidraçada nem nas celas nem na cúpula da torre central, ele se refere às venezianas para a torre central e às grades de ferro para as celas.
3 O ensaio Le despotisme de l 'utile: La machine panoptique de Jeremy Bentham de Jacques-Alain Miller foi publicado, inicialmente, em 1975 e a tradução em português, A máquina panóptica de Jeremy Bentham, foi originalmente publicada em 1976, com tradução de M. D. Magno. O ensaio de Michelle Perrot foi originalmente publicado no livro de Jeremy Bentham em 1977. Publicado aqui sob o título O inspetor Bentham no livro Bentham, Jeremy. O panóptico [et al.] de 2008.
4 Panopticon; or the Inspection-House (1786 e 1790-1791); Outline of a work entitled pauper management improved (1797-1798); Panopticon versus New South Wales (1802); Chrestomathia (1816-1817); Constitutional code (1830).
5 Himmelfarb (1965) afirma que as cartas foram escritas em 1786, impressas em Dublin no ano seguinte, e o posfácio foi escrito em 1791, impresso em Londres e posteriormente na Irlanda

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