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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.44 São Paulo jan./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

Psicologia e questão social: considerações sobre projetos políticos da Psicologia Comunitária ao longo de sua trajetória histórica no Brasil

 

Psychology and social issue: considerations about political projects of Community Psychology throughout its historical trajectory in Brazil

 

Psicología y cuestión social: consideraciones sobre proyectos políticos de la Psicología Comunitaria a lo largo de sutrayectoria histórica en Brasil

 

Psychologie et question sociale: considérations sur les projets politiques de la Psychologie Communautaire au Brésil

 

 

Larissa Soares BaimaI; Raquel Souza Lobo GuzzoII

IDoutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e professora substituta no curso de Psicologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) campus de Assis. É membro do Grupo de Pesquisa: Avaliação e Intervenção Psicossocial – prevenção, comunidade e libertação (PUC Campinas); baima.larissa@gmail.com
IIProfessora Titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. É membro do Grupo de Pesquisa: Avaliação e Intervenção Psicossocial - prevenção, comunidade e libertação (PUC Campinas); rslguzzo@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto busca oferecer algumas contribuições para o estudo histórico da Psicologia Comunitária no Brasil, a partir da problematização de suas vinculações políticas no tocante aos debates em torno da preocupação com a transformação social ou com a função social do(a) psicólogo(a). Entende que a Psicologia Comunitária representa uma realidade histórica que sintetiza os esforços de psicólogos(as) em deselitizar a Psicologia, formular modelos teórico-metodológicos críticos aos tradicionais modelos dessa ciência, instrumentalizar a análise crítica da questão social e contribuir para a transformação social. Assim, o texto procurou discutir a centralidade da preocupação com a transformação social como elemento historicamente legitimador do campo; defender a existência de uma inflexão política nos debates em torno da questão da transformação social em suas produções; qualificar essa inflexão como um recuo político; e, finalmente, indicar algumas possíveis relações entre essa inflexão e as mudanças no trato à questão social no Brasil.

Palavras-chave: psicologia comunitária; transformação social; questão social; marxismo; história da psicologia.


ABSTRACT

This text aims to offer some contributions to the historical study of Community Psychology in Brazil, problematizing its political connections in the debates about the preoccupation with the social change or with the social function of the psychologists. It has the understanding that Community Psychology represents a historical reality that synthesizes the efforts of psychologists to popularize Psychology, formulate theoretical-methodological models criticai to the traditional models of this science, instrumentalize the critical analysis of the social issue and contribute to social change. Thereby, the text aimed to discuss the centrality of preoccupation with social change as a historically legitimizing element of the field; to defend the existence of a political inflection in the debates around the topic of the social change in its productions; to qualify this inflection as a political retreat; and, finally, to indicate some possible relations between this inflection and the changes in the treatment of the social issue in Brazil.

Keywords: communitypsychology; social change; social issue; marxism; history of psychology.


RESUMEN

Este texto busca ofrecer algunas contribuciones para el estudio histórico de la Psicologia Comunitaria en Brasil, a partir de la problematización de sus vinculaciones políticas en lo que se refiere a los debates en torno a la preocupación por la transformación social o con la función social del psicólogo. Entiende que la Psicología Comunitaria representa una realidad histórica que sintetiza los esfuerzos de psicólogos en acercar la Psicología de la población, formular modelos teóricos y metodológicos críticos a los tradicionales modelos de esa ciencia, instrumentalizar el análisis crítico de la cuestión social y contribuir a la transformación social. Así, el texto buscó discutir la centralidad de la preocupación con la transformación social como elemento históricamente legitimador del campo; defender la existencia de una inflexión política en los debates en torno a la cuestión de la transformación social en sus producciones; calificar esa inflexión como un retroceso político; y, finalmente, indicar algunas posibles relaciones entre esa inflexión y los cambios en el trato a la cuestión social en Brasil.

Palabras clave: psicología comunitaria; transformación social; cuestión social; marxismo; historia de la psicología.


RÉSUMÉ

Ce texte cherche à contribuer à létude historique de la Psychologie Communautaire au Brésil, en problématisant les liens politiques de cette psychologie dans les débats sur la transformation sociale et sur la fonction sociale du psychologue. L'article comprend que la psychologie communautaire représente une réalité historique qui synthétise les efforts des psychologues pour populariser la Psychologie, formuler des modèles théorico-méthodologiques critiques aux modèles traditionnels de cette science, instrumentaliser l'analyse critique de la question sociale et contribuer à la transformation sociale. Ainsi, le texte viséanalyser la centralité de la idée de transformation sociale comme un élément qui légitime historiquement cette domaine; pointer vers l'existence d'une inflexion politique dans les débats sur la question de la transformation sociale; caractériser cette inflexion comme un retraite politique; et, enfin. indiquer quelques relations possibles entre cette inflexion et les changements dans le traitement de la question sociale au Brésil.

Mots-clés: psychologie communautaire; transformation sociale; question social; marxisme; histoire de la psychologie.


 

 

Questão social e Psicologia Comunitária no Brasil

É amplamente difundido nas análises históricas da Psicologia no Brasil o reconhecimento de um quadro de crise teórico-profissional que ocupou boa parte dos debates em torno da ciência e profissão de Psicologia nas décadas de 1960 a 1980. Nestes debates, reiteradamente, questionava-se o uso descontextualizado de modelos dominantes de teoria e prática, geralmente produzidos no contexto dos Estados Unidos e Europa, em relação à realidade brasileira e latino-americana, de forma geral. Criticava-se o histórico compromisso da Psicologia com as elites e a pretensa neutralidade de seus saberes e práticas numa realidade social de imensa desigualdade e contradições sociais.

No Brasil, as respostas a essa situação de crise tomaram a forma de um movimento de busca por novos referenciais de teoria e prática e da realização de trabalhos em espaços distintos daqueles historicamente ocupados pela Psicologia. Conforme avaliava Lane (1984), essas críticas foram tomando a forma de propostas para uma Psicologia Social de bases "materialista-históricas e voltadas para trabalhos comunitários" (p. 11). A Psicologia Comunitária, no Brasil, assim, pode ser entendida como uma das respostas históricas a esse quadro de crise.

Partindo de experiências iniciais de oferecimento de serviços de psicologia a populações que usualmente não tinham acesso a esses serviços (Andery, 1984), progressivamente foi-se desenvolvendo um conjunto de ações e reflexões interessadas em contribuir para a mudança das condições materiais de vida de populações marcadas pelos efeitos da pobreza e das opressões (Freitas, 1996; 2001).

A Psicologia Comunitária, como um campo que aglutina debates e propostas que visam responder à preocupação com a deselitização e a função social do(a) psicólogo(a) junto às maiorias populares em seus espaços de vivência cotidiana, é o resultado dos esforços pela sistematização dessas ações e reflexões. A análise de seu desenvolvimento histórico e de seus efeitos nos debates relativos à função social do(a) psicólogo(a) deve, por um lado, aludir aos desdobramentos internos do campo consequentes ao referido quadro.

Deve, contudo e, principalmente, fazer remissão à totalidade histórico-social dentro da qual suas inclinações expressam ou respondem a tendências postas no quadro de relações econômicas, políticas e sociais como um todo. Assim, o estudo de sua história não deve dispensar a articulação entre aspectos internos e externos à Psicologia, o que demanda um trabalho de cunho, necessariamente, histórico-filosófico.

A própria situação de crise da Psicologia no Brasil e na América Latina, de uma forma geral, é melhor entendida na forma como Campos (2010) observou: não foi uma crise, unicamente, interna à Psicologia, uma crise pessoal de psicólogos(as) com os tradicionais modelos de teoria e prática em Psicologia, mas, sobretudo, uma crise de mercado. Crise, esta, que obrigou contingentes de profissionais a se deslocarem para espaços historicamente ignorados por seus saberes e práticas, o que os levou à percepção da insuficiência de seus modelos em dar conta de uma nova realidade e a buscar novos referenciais teórico-metodológicos.

As respostas que buscaram promover uma revisão destes modelos e a proposição de novos referenciais de teoria e prática só se tornaram historicamente possíveis nestas circunstâncias. E a elaboração de propostas alternativas, como foram as práticas de Psicologia em comunidades, e, posteriormente, a chamada Psicologia Comunitária, são devedoras de todo um arranjo político e econômico que possibilitou aos(às) profissionais de Psicologia serem eivados pelas aspirações e lutas populares de uma época.

Nesse sentido, sintetiza Lacerda Jr. (2010, p. 32): "foram as mudanças no tratamento da questão social ao longo da segunda metade do século XX que resultaram no surgimento da psicologia social comunitária". Foram as transformações na sociedade brasileira resultantes da crise econômica mundial na década de 1970, do processo de falência do "milagre brasileiro", e da reorganização das lutas populares e movimentos sociais nesta época que propiciaram os debates em tomo da crise e revisão do papel social do(a) psicólogo(a).

Isso faz com que seja possível concluir que são as reconfigurações nas formas de manifestação da questão social o fator estabelecedor do cenário onde se estabelecem as práticas comunitárias de Psicologia. É na forma como se apresentam seus efeitos no cotidiano dos trabalhadores e em seu grau de organização e ofensiva política, que se colocam as problemáticas com as quais se ocupam os trabalhos e as reflexões da Psicologia Comunitária (Lacerda Jr., 2010).

Como questão social, entende-se "a contradição capital-trabalho, as lutas de classe, a desigual participação na riqueza social" (Montano, 2002, p. 54). Esta tem como uma de suas expressões a pobreza típica da sociedade capitalista, caracterizada por ser produto, não do insuficiente desenvolvimento econômico, mas do próprio desenvolvimento econômico, que necessariamente produz miséria na medida em que se expande. Além disso, suas definições são dadas pela Lei da Acumulação capitalista e expressam a relação antagônica entre as classes, decorrentes de sua diferente posição e papel no processo produtivo, podendo se manifestar de formas diversas, a depender do estágio de acumulação, como o que ocorre no capitalismo concorrencial e no capitalismo monopolista (Montano, 2012; Paulo Netto, 1992).

Este artigo tem como proposta oferecer contribuições para o estudo histórico da Psicologia Comunitária no Brasil, na forma de uma história que articule processos internos ao seu campo de debates e práticas com processos histórico-sociais gerais. Considerando-se que esses debates e práticas ocorrem no terreno das fraturas da questão social e nos tratamentos que a ela se direciona, o presente trabalho busca problematizar algumas consequências da mudança nesses tratamentos para as discussões existentes atualmente no campo.

A reestruturação do capital, por meio do modelo neoliberal, trouxe consequências para essas práticas e discussões, como já o avaliou Lacerda Jr. (2010). A proposta deste texto é a de problematizar as consequências dessas mudanças, mais diretamente no que diz respeito às concepções em vigor nos debates em torno da função social do(a) psicólogo(a) e da preocupação com a transformação social na Psicologia Comunitária no Brasil. Acredita-se que, do surgimento das primeiras práticas comunitárias de Psicologia no país, até a atualidade, operou-se um processo de inflexão política que pode ser observado nos referidos debates.

Entender a forma como esse processo se generalizou historicamente, pode ser importante para a problematização dos rumos e tendências apresentadas nas propostas e controvérsias que circulam no campo. Pensar novos instrumentos e formas de implicação de psicólogos(as) com a crítica e a mudança do status quo exige um trabalho de reflexão histórico-filosófica sobre as concepções de ação e de mudança com as quais se espera e se pode contribuir.

Assim, o texto procura, em primeiro lugar, discutir a centralidade da preocupação com a transformação social como elemento historicamente legitimador da Psicologia Comunitária (brasileira ou latino-americana); a seguir, pretende defender a existência de uma inflexão política nos debates em torno da questão da transformação social em suas produções; no item seguinte, busca-se qualificar essa inflexão política como um recuo político; e finalmente, o artigo irá indicar algumas possíveis relações entre essa inflexão e as mudanças no trato à questão social no Brasil a partir de meados do início da década de 1990.

 

Aspectos históricos da Psicologia Comunitária no Brasil: deselitização e centralidade da preocupação com a transformação social

Quando nos dirigimos à prática e às reflexões em torno daquilo que se costuma identificar como Psicologia Comunitária, vemos que o interesse em produzir transformação social ou algum tipo de preocupação com a função social do(a) psicólogo(a) é elemento central desse tipo de trabalho. No Brasil, o termo Psicologia Comunitária começou a ser empregado como resultado dos esforços por se produzir sínteses e reflexões em torno de algumas experiências de Psicologia, que vinham se desenvolvendo em contextos distintos do lócus tradicional da psicologia, geralmente em comunidades de baixa renda, bairros periféricos e favelas, num movimento que defendia a deselitização da profissão (Andery, 1984; Freitas, 1996).

Eram trabalhos, de início, de caráter, geralmente, voluntário, pouco fundamentados teórica e metodologicamente, mas com grande engajamento político (Freitas, 1996; 2001; Andery, 1984). Posteriormente, passou-se a verificar a reivindicação de uma disciplina que respondesse à realidade de desigualdade e produzisse conhecimentos e práticas úteis à transformação social, dentro de um movimento que marcou o início da Psicologia Comunitária latino-americana, de uma forma geral (Montero, 2004).

Naquele período, década de 1970 e início da década de 1980, houve notável aproximação de psicólogos(as) a movimentos comunitários1 e de profissionais, professores(as) e estudantes a movimentos populares (Freitas, 1996; Lane, 1996; Lacerda Jr. 2010). E foi na aproximação com o cotidiano de vida das populações pauperizadas que esses profissionais, estudantes e professores(as) puderam ter contato não só com os efeitos mais tangíveis da conjuntura recessiva, mas também com as formas de resistência e de luta populares. Essa aproximação foi determinante para o influxo político que boa parte das propostas comunitárias em Psicologia começaram a apresentar, podendo-se dizer que foi um ponto de inflexão no propósito da deselitização.

O caráter político que a crise da Psicologia Social ganhou no Brasil e na América Latina, em geral, é devedor desse processo. Como observou Carvalho (2014), o tema da transformação social elevou-se à posição de centralidade nas propostas consideradas socialmente relevantes para os setores sociais mais atingidos pelos efeitos da desigualdade social e da recessão.

O conjunto de debates e de reformulações teóricas e metodológicas dentro do qual se desencadeia a emergência da Psicologia Comunitária no Brasil pertence a esse quadro histórico, tanto mais específico da profissão, quanto mais geral, da sociedade brasileira. Pode-se, assim, dizer que, nesse processo, a atenção à necessidade de engajamento das intervenções de Psicologia em contextos comunitários com projetos de busca por transformação social foi se tornando aspecto fundamental da legitimação deste campo.

Assim, a preocupação com a deselitização da Psicologia e a necessidade de oferecer contribuições à transformação da realidade dos setores mais pauperizados da população se constituíram como dois elementos centrais que legitimam a existência de um projeto comunitário em Psicologia. Nesse sentido, parece correto afirmar que, em qualquer proposta do campo, estará sempre presente, implícita ou explicitamente, algum tipo de projeto político de transformação social.

Como se busca argumentar ao longo do texto, a Psicologia Comunitária refere-se a uma realidade historicamente situada. Trata-se de uma das respostas da Psicologia à situação histórica de um certo momento. Expressa o conjunto de contradições existentes em uma certa conjuntura, mas também atua como tendência no jogo de forças sociais, buscando, por exemplo, oferecer contribuições para a organização e a luta política de certos movimentos e grupos.

Assim, o compromisso com a transformação social não consiste em um elemento estático, que expressa os mesmos interesses políticos em qualquer circunstância. Tal como o desenvolvimento histórico, ela não se processa uniformemente e sem contradições, mas tem na luta de classes o seu motor. Assim, os projetos políticos e as tendências colocadas nesse compromisso com a transformação social podem ser os mais distintos e conflitantes.

A partir da chave proposta por Lacerda Jr. (2010), entendemos que um dos fatores determinantes para o conjunto de contradições enfrentadas pelas práticas comunitárias em Psicologia são as formas de se tratar a questão social. Buscaremos a seguir apresentar algumas reflexões iniciais sobre as possíveis relações entre as mudanças nesse trato, a partir de meados de 1990, e o que se poderia identificar como a inflexão política de que tratamos como operante no campo.

 

Uma inflexão política na trajetória da Psicologia Comunitária no Brasil: do enfrentamento à reivindicação do Estado

Esse tópico tem como objetivo caracterizar o que se está propondo como uma inflexão política na trajetória histórica da Psicologia Comunitária no Brasil e sinalizar essa inflexão como um processo problemático. Um processo indicador de um recuo político questionável e que deve ser mencionado nos debates sobre os sentidos da transformação social e da função social do(a) psicólogo(a). Por se tratar de um eixo central nas propostas que se aglutinam em torno do referencial da Psicologia Comunitária, refletir sobre este processo pode oferecer contribuições para a análise histórica e para as preocupações sinceras de diversos profissionais e pesquisadores(as) que recorrem a esse referencial no seu trabalho cotidiano junto à classe trabalhadora.

Ao tomarmos as produções textuais que se referenciam na Psicologia Comunitária não é difícil percebermos a centralidade que a preocupação com a transformação social ocupa em seus debates. Não dificilmente, também, é possível se verificar a enorme presença e importância dos temas das políticas públicas e sociais, da cidadania, da democracia, da justiça social, dentre outras categorias situadas no âmbito da relação entre sociedade e Estado. E, ao se analisar o conjunto das discussões na esfera da preocupação com a transformação social ou com as contribuições da prática comunitária em Psicologia para a mudança nas condições de vida das populações pobres, é possível verificar um certo deslocamento no conteúdo dessas discussões ao longo das décadas.

Esse deslocamento já foi sinalizado por Lacerda Jr. (2015) e diz respeito à transição de uma posição de trabalho em comunidade, que tinha como definidores os anseios populares, suas lutas e aspirações diretas, a uma outra que passa a se definir pelos preceitos das políticas públicas de bem-estar social. Um deslocamento de uma referência do Estado como algo a ser enfrentado, na busca por contribuir com processos de organização política de grupos e comunidades, para uma posição de reivindicação do Estado como aliado nesse processo.

Assim, houve uma transição de uma postura que entendia que o Estado e os "serviços públicos, de um modo geral, estão comprometidos com a ideologia de dominação" (Góis, 2003, p. 36), para uma outra que passou a compreender que os preceitos da Psicologia Comunitária encontram correspondência nos preceitos da política pública de assistência (Scarparo & Guareschi, 2007). Passou-se, portanto de um campo que afirmava não existirem "condições econômicas, ideológicas, nem justiça social suficiente dentro desse sistema socioeconômico para levar a psicoprofilaxia às populações pobres de maneira séria, abrangente e efetiva" (Góis, 2003, p. 37), para a defesa de que as "políticas públicas, em especial as de transferência de renda, alinhadas a melhoras no acesso à educação e saúde, têm grande poder de estabelecer uma mudança de vida da população em condições de pobreza" (Ximenes, Cidade & Nepomuceno, 2015, p. 1411, tradução nossa).

Com apoio de Lacerda Jr. (2015), que questionou as possibilidades das políticas públicas e sociais em promover emancipação humana, este artigo se propõe a qualificar tal deslocamento como um recuo político no âmbito dos debates sobre a transformação social e acerca da relevância do fazer profissional do(a) psicólogo(a) junto à classe trabalhadora. Com o autor, alerta-se para a necessidade de que esse debate se fundamente em uma análise das concepções de emancipação inscritas por trás dos projetos políticos, das propostas críticas ou daquelas socialmente comprometidas em Psicologia. E, nesse sentido, a discussão de Marx, acerca dos limites da emancipação política, fornece um importante enfoque para o tratamento da questão.

Essa discussão está presente em um conjunto de textos publicados entre 1843 e 1844 e que, de uma maneira geral, indicam um posicionamento que estaria presente ao longo de toda trajetória teórica do autor: em Marx a esfera da política não se cinde da esfera da economia (Marx, 2010; 2011). Como observa Tonet (2005), categorias como cidadania e direitos sociais, embora à primeira vista possam não parecer ter um vínculo explícito e direto com o modo de produção capitalista, fazem parte da esfera daquilo que Marx chama de emancipação política.

Em Marx (2010), a emancipação tem dois sentidos: emancipação política e emancipação humana. Emancipação política diz respeito a um processo que acontece na transição do feudalismo para o capitalismo, que reconfigura a relação entre política e economia, e que tem por pressuposto a nova forma de produzir, cujos fundamentos estão na propriedade privada dos meios de produção. A recon-figuração que se opera nesse processo visa libertar o mercado e sua reprodução da regência política do Estado, que passa a ser subordinado ao primeiro e à nova forma social de produção. Ou seja, sua natureza está na propriedade privada e sua função social é servir à reprodução do capital.

Se a raiz da desigualdade social é a divisão social de classes, fundada na propriedade privada, o Estado nunca vai poder ser efetivo, portanto, no enfrentamento da mesma. Pelo contrário, sua maior função social é garantir essa divisão. Por essa razão, Marx (2010) constata que a atuação do Estado diante dos males sociais só pode se dar de uma maneira imaterial e limitada, por meio de direitos jurídicos formais. O contraponto da emancipação política é a emancipação humana, cujo fundamento não é a propriedade privada dos meios de produção e o trabalho assalariado, mas um trabalho coletivo, livre, e que é a base que permite a superação dessa cisão.

A defesa da cidadania, da ampliação de canais democráticos ou de direitos sociais até pode assumir um caráter progressista em certas conjunturas políticas. No entanto, por serem categorias do âmbito da emancipação política, não podem conduzir à eliminação da pobreza, da desigualdade social, etc. Ao deixar de assimilar os objetivos da prática comunitária em Psicologia com os anseios populares, suas lutas e movimentos, em nome da defesa de uma abstrata condição de cidadania ou mesmo dos legalmente estabelecidos preceitos das políticas públicas como a da assistência social, os debates no campo da Psicologia Comunitária parecem sofrer uma retração conservadora, um recuo político.

Diante dessas observações, deve-se ter o cuidado de não se sugerir que se trata de uma leitura idealista, que faz uma abordagem do movimento analisado sem tratar de suas correspondências com o movimento histórico real, ou que o aborda como um processo mecânico e isento de contradições. O dispositivo da Psicologia Comunitária diz respeito a um recurso aglutinador de debates e propostas de intervenção críticos aos modelos tradicionais de Psicologia e preocupados em oferecer contribuições para a mudança nas condições de vida de pessoas e grupos assolados pelos efeitos da pobreza e da desigualdade social. As inclinações em seus debates expressam ou atuam como forças nas tendências histórico-sociais reais, manifestando e atuando em suas contradições.

Por essa razão, a adequada compreensão desse processo em sua totalidade só pode ser realizada a partir de uma análise histórico-filosófica que apreenda o máximo possível de suas determinações. Como se afirmou no início desse texto, foram as mudanças na forma de tratamento à questão social no início da década de 1970 que possibilitaram a emergência das práticas comunitárias em psicologia no Brasil (Lacerda Jr., 2010). Assim, as transformações na questão social, e nas formas de enfrentamento a ela, certamente constitui-se como um fator determinante nos projetos políticos em disputa no campo, em especial quando se leva em conta os efeitos que a estratégia neoliberal de reestruturação produtiva e o grau de organização e ofensiva da classe trabalhadora têm na determinação da questão e de seu enfrentamento. A seguir, iremos indicar algumas possíveis relações entre essas mudanças, ocorridas a partir de fins da década de 1980 e início da década de 1990 no Brasil, e o processo de recuo político nos debates do campo da Psicologia Comunitária.

 

Mudanças no trato à questão social e deslocamento político da Psicologia Comunitária

A emergência da Psicologia Comunitária foi possibilitada por uma combinação de fatores dentre os quais está a mudança na forma de se tratar a questão social em meados do início da década de 1970 (Lacerda Jr., 2010). Essa mudança aconteceu em uma conjuntura internacionalmente marcada pela entrada do capital em meio a uma crise estrutural resultante do atingimento dos limites de sua expansão, em que somente soluções de caráter estrutural passaram a poder apontar algum tipo de saída efetiva (Mészáros, 2009; 2011).

Nacionalmente, via-se confirmar o colapso da política econômica do chamado "milagre brasileiro", ao mesmo tempo em que se reorganizavam e ganhavam força movimentos e lutas sociais por melhores condições de vida e contra a repressão militar do período autocrático burguês. Foi um clima de grande acirramento de lutas populares e sindicais que viu explodir, por exemplo, em 1978, a greve na Scania e o desenvolvimento do processo de greves dos metalúrgicos, seguidos de outros setores sindicais.

Foi partindo dessas circunstâncias que, por um período muito breve e de forma muito incipiente, a burguesia brasileira se viu forçada a fazer a concessão de alguns direitos sociais e a propor algumas políticas sociais como resposta ao acirramento das lutas de classe. A politização da Psicologia, e seu envolvimento com alguns desses movimentos e lutas, é devedora desse processo. É nessas circunstâncias que emergem as preocupações e as reflexões dentro das quais se situa a emergência da Psicologia Comunitária.

O período que se segue a esse, de meados da década de 1970 e início da década de 1980, entretanto, trouxe algumas mudanças na forma de se responder aos efeitos da questão social. Trata-se de um período que se inicia no final da década de 1980 e início da década de 1990 e que tem como marca a entrada do Brasil no novo padrão de acumulação do capital, padrão este que é uma tentativa de resposta à crise estrutural. Tal resposta tem como fundo o processo de reestruturação da produção e das relações políticas e sociais como alternativa ao esgotamento do fordismo/keynesianismo, que possibilitava uma maior organização sindical e um certo grau de redistribuição, dentro dos limites da acumulação capitalista, na forma de alguns serviços de bem-estar social (Tumolo, 2002).

Por via da estratégia neoliberal, esse processo de reestruturação vem tentando sanar parcialmente os efeitos da crise, diminuindo ou mesmo eliminando a presença do Estado no fornecimento de serviços sociais sob o argumento da necessidade de sua desoneração financeira em tempos de crise. A adoção dessa estratégia, no que se refere ao fenômeno da questão social, produz não só novas formas de manifestação dessa questão, mas uma nova forma de tratamento que a ela se direciona (Montano, 2002).

Se antes existia uma garantia, ainda que muito frágil, no caso do Brasil, de alguns direitos sociais por parte do Estado, na forma de algumas políticas sociais, ainda que boa parte delas comparecessem apenas formalmente na legislação, com o neoliberalismo o trato à questão social deixa de ser entendido como dever do Estado. A responsabilidade pelo enfrentamento dos efeitos da questão social passa a ser atribuída à sociedade civil, na forma de trabalhos filantrópicos ou mesmo ao mercado, em que assumem a forma de mercadoria. O novo formato de trato da questão social é aquilo que costuma ser definido como o "terceiro setor", que surge como produto da desresponsabilização do Estado quanto à questão social (Montano, 2010; 2002).

Esse novo formato é coerente com o novo padrão de acumulação do capital, e intensifica a exploração do trabalho pela via da flexibilização, fragilizando as tradicionais formas de organização sindical do período anterior. No campo dos direitos sociais, ainda que no caso de países como o Brasil tais direitos nunca tenham se efetivado em um Estado de bem-estar social, conquistas como a Constituição de 1988 ou a criação de algumas políticas sociais, como a da assistência social por exemplo, são perdidas em nome da reorganização do papel do Estado na resposta aos efeitos da questão social.

Quando a preocupação com a transformação social ou os esforços por contribuir com formas de mudança nas condições de vida da classe trabalhadora passam a ser vinculados à ideologia do voluntarismo, do possibilismo e do solidarismo, ingressa-se em uma perspectiva política de cunho amplamente reacionário, na medida em que se individualiza a questão social. Neutraliza-se, nessa via, qualquer possibilidade de enfrentamento estrutural aos efeitos da pobreza, da desigualdade social etc.

Por outro lado, não se tornam menos problemáticas as vinculações feitas entre tais preocupações com a defesa de um Estado social, garantidor de políticas sociais voltadas ao tratamento dos efeitos da questão social. Isso porque, na perspectiva dos limites da emancipação política, tanto o Estado de bem-estar social quanto o neoliberalismo são formas históricas possíveis de realização da emancipação política, que é a emancipação política do capital. O fornecimento de alguns direitos ou políticas sociais e a ampliação democrática só existem na medida em que não sejam obstáculos à acumulação e à reprodução do sistema do capital.

A inflexão política nos debates da Psicologia Comunitária, sintetizada na transição de uma posição de enfrentamento ao Estado para uma posição de reivindicação do Estado, possivelmente se relaciona a esse cenário. Pode ser uma expressão, na Psicologia, da resposta política da maior parte dos setores mais progressistas, não só da Psicologia, mas de toda a sociedade, a esse cenário de enxugamento do Estado social, de perda de direitos sociais etc. Um caso emblemático é o recuo político operado em um dos instrumentos históricos de organização operária no Brasil, a CUT (Central Única dos Trabalhadores), no decurso de meados dos anos de 1980 (Tumolo, 2002).

A partir de uma análise que tem como premissa a vinculação histórica da Psicologia a certas posições de classe, Boechat (2017) dá indícios de como o giro político operado em certos aparelhos de organização da classe trabalhadora e sindical, como o referido caso da CUT ou o do PT (Partido dos Trabalhadores), articulou-se com alguns deslocamentos políticos na Psicologia brasileira.

O autor indica como o giro ideo-político, caracterizado pelo abandono do referencial teórico e político marxista, operado pela chamada "Escola de São Paulo de Psicologia Social" (Carvalho, 2014), encontra analogia no processo ocorrido nesses aparelhos de organização da classe trabalhadora. A ideologia hegemônica do chamado ciclo democrático-popular, expressa na ideologia do compromisso social (Silva, 2015), que opera condicionando a "emancipação humana à radicalização da democracia participativa" (Boechat, 2017, p. 63), com o progressivo encerramento da ideia de emancipação aos limites da emancipação política, se torna a ideologia hegemônica tanto desses aparelhos quanto da referida variante crítica da Psicologia.

Como observou Boechat (2017), e como se buscou argumentar até o momento, esse deslocamento não se refere a um processo que se resume à instância da política, mas tem nas transformações no cenário da luta de classes e no processo de reestruturação produtiva neoliberal, seu substrato material.

Na análise desse processo, deve-se lançar mão da crítica ontológica ao papel do Estado e à constituição da questão social como fator fundamental para uma correta abordagem da problemática levantada por este texto. O Estado moderno, como mostrou Marx (2010), por sua natureza instrumental à reprodução do capital, só pode atuar de forma abstrata e limitada diante dos efeitos da desigualdade social. Há um limite ontológico na capacidade de o Estado efetivamente combater a pobreza ou a exclusão, por exemplo, porque seu fundamento é o mesmo fundamento desses problemas.

A reivindicação de um Estado social até pode se apresentar como uma forma de resistência diante do desmantelamento dos frágeis direitos e políticas sociais de enfrentamento às fraturas da questão social. No entanto, entendida em seus fundamentos materiais, a própria questão social se revela em seus aspectos econômicos: tem no processo de acumulação capitalista e no sistema de cau-salidades do pauperismo seus determinantes fundamentais (Paulo Netto, 1992; Pimentel, 2012). Somente ações que se proponham ao enfrentamento do capital em sua totalidade de relações podem, de fato, apontar para a solução dos efeitos da atual crise estrutural.

Mészáros (2011), nessa linha, oferece contribuições para se problematizar, por exemplo, a possibilidade de controle do Estado e do capital por parte dos trabalhadores. Sobretudo em um contexto de crise estrutural, em que se ativou aquilo que o autor apresenta como a incontrolabilidade total do sistema do capital, na forma da tendência à autodestruição tanto do sistema de acumulação em geral quanto da própria humanidade, fica cada vez mais difícil se pensar nesse tipo de controle.

Ou seja, o Estado não realizará os interesses da classe trabalhadora porque, ainda que permeável a algumas de suas aspirações em certos períodos históricos e a depender da hegemonia de forças sociais colocadas, em última instância sua natureza é a de manutenção das condições de acumulação e expansão do capital. A criação de direitos sociais ou o oferecimento de alguns serviços sociais de bem-estar social por via de políticas públicas só acontece na medida em que não ultrapassem os limites da reprodução desse sistema. E em uma conjuntura de crise, tal como a que se presencia na atualidade, o Estado pode, cada vez menos, responder, mesmo que parcialmente, às demandas sociais.

Em face a isso é que, como propõe Lacerda Jr. (2010), deve-se problematizar aquilo que se pode identificar como uma hegemonia da emancipação política em campos como a Psicologia Comunitária. A assimilação da ideia de transformação da sociedade por meio da defesa das políticas públicas e sociais expressa uma inflexão na trajetória do campo que encontra correspondência no processo histórico-social e na luta de classes como um todo. E essa assimilação parece revelar que a tendência nos debates em torno da questão caminha para o recuo político, na análise de sua trajetória histórica.

 

Considerações Finais

As reflexões levantadas nesse texto tiveram como um de seus objetivos contribuir para uma análise histórica da Psicologia Comunitária no Brasil que articule seus movimentos internos e as tendências em seus debates com o movimento histórico-social geral. Tomando, na sua trajetória histórica, a relação entre as mudanças que se processaram no tratamento da questão social e as tendências nos debates em torno da transformação da sociedade, buscou-se oferecer algumas indicações sobre suas vinculações políticas. Para isso, evitou-se uma análise meramente política, já que se entendeu a política, na chave da interpretação marxista que aqui se compartilha (Marx, 2010; 2010), como inseparável da economia.

Nesta perspectiva, a inflexão política observada nos referidos debates da Psicologia Comunitária, ao ser analisada sob a ótica dos limites da emancipação política, revela uma tendência ao recuo político que vem se processando no campo. A adequada análise desse processo, contudo, exige um trabalho de investigação histórico-filosófico para o desvelamento do processo através do qual esse recuo se generalizou. Esse processo, no campo dos debates da Psicologia Comunitária, certamente tem articulação com as tendências nos debates em torno da profissão, bem como com posicionamentos políticos de suas entidades representativas (Hur, 2012; Silva, 2015). Não apenas isso, está vinculado também às perspectivas teóricas atualmente hegemônicas no campo da Psicologia Social crítica (Carvalho, 2014), à tendência à especialização da Psicologia Comunitária, ao uso de leituras liberais sobre a questão social (Gonçalves, 2017), bem como à própria entrada da psicologia nas políticas públicas de atenção à saúde e de assistência. Finalmente, mas não menos importante, esse recuo político articula-se também às tendências colocadas no cenário da luta de classes brasileira.

Com as breves questões levantadas na discussão apresentada, procurou-se levantar a importância de se analisar as concepções políticas inerentes a esse eixo tão central nas propostas da Psicologia Comunitária: a preocupação com a transformação social ou ao menos com a mudança nas condições de vida produtoras da maior parte do sofrimento da classe trabalhadora. Parte-se do pressuposto que esse tipo de análise pode instrumentalizar tanto a crítica da Psicologia e da sociedade como a construção de ações mais efetivas na organização e luta da classe trabalhadora.

A luta em defesa das políticas sociais, dos direitos e da democracia tem ampla importância em uma conjuntura de desmantelamento do Estado social. Entretanto, essa luta deve ser construída a partir de uma correta abordagem sobre as determinações fundamentais tanto do Estado e suas políticas quanto da própria questão social. Pensar trabalhos comunitários em Psicologia que resultem em mudanças sociais de caráter global, em um contexto de desmonte de direitos sociais e de intensificação da exploração, não deve dispensar a luta em defesa desses direitos. Trata-se, contudo, de que essa luta seja travada na perspectiva da superação da propriedade privada e do Estado político, o que implica em lutas, necessariamente, fora do Estado e contra o capital.

 

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Submetido em: 31/08/2018
Aprovado em: 02/11/2018

 

 

1 Tais movimentos foram, especialmente, os Eclesiais de Base - movimentos comunitários ligados, principalmente, à Igreja Católica que se difundiram entre as décadas de 1970 e 1980 no Brasil - e os da área de saúde mental.

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