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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.44 São Paulo jan./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

Crise social e história social crítica: a vida e a obra histórica de Kurt Danziger

 

Social crisis and critical social history: the life and the historical work of Kurt Danziger

 

Crisis social e historia social crítica: la vida y la obra histórica de Kurt Danziger

 

Crise sociale et histoire sociale critique: la vie et l'oeuvre historique de Kurt Danziger

 

 

André Vieira dos SantosI; Filipe Milagres BoechatII

IRealizou estágio doutoral na Universidade de Granada. Pós-doutorando em psicologia na Universidade Federal de Goiás. É membro da Rede do GT de História Social da Psicologia da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) e do Núcleo de estudos e pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação (CRISE); andrevieira@ufg.br
IIProfessor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro da Rede Ibero-americana de Pesquisadores em História da Psicologia (RIPeHP), do GT de História Social da Psicologia da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), do Núcleo de estudos e pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação (CRISE) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas - Ética e Política Emancipatória (NEPA-EPE); filipe.boechat@ufrj.br

 

 


RESUMO

Kurt Danziger é um psicólogo e historiador da psicologia cuja obra histórica versa, fundamentalmente, sobre a constituição histórico-prática dos objetos psicológicos. No presente artigo, relacionamos sua proposta historiográfica crítica às crises sociais vivenciadas pelo autor. Argumentamos que sua emigração para a África do Sul após a ascensão do nazi-fascismo e o início da Segunda Guerra mundial, sua experiência da luta contra o apartheid e seu exílio no Canadá, em meados da década de 1960, entre outros acontecimentos não menos importantes, impactaram decisivamente sobre seu pensamento, contribuindo, junto às experiências acadêmicas na Inglaterra, na Austrália, na Indonésia e na Alemanha, para o desenvolvimento de sua proposta historiográfica policêntrica, contra-hegemônica, democrática e global.

Palavras-chave: Kurt Danziger, biografia, história da psicologia, história social da psicologia, construcionismo social.


ABSTRACT

Kurt Danziger is a psychologist and a historian of psychology whose historical work deals, fundamentally, on the historical and practical constitution of the psychological objects. The article relates his critical historiographic proposal to the social crises experienced by the author. We argue that the author's emigration to South Africa after the rise of Nazi-fascism and the beginning of World War II, the experience of the struggle against apartheid and its exile in Canada in the middle of the the 1960s, among other events of no less importance, had a decisive impact on his thinking, contributing, along with academic experiences in England, Australia, Indonésia and Germany, to the development of his polycentric, counter-hegemonic, democratic and global historiographical proposal.

Keywords: Kurt Danziger, biography, history of psychology, social history of psychology, social constructionism.


RESUMEN

Kurt Danziger es un psicólogo e historiador de la psicologia cuya obra histórica versa, fundamentalmente, sobre la constitución histórico-práctica de los objetos psicológicos. En el presente artículo, relacionamos su propuesta historiográfica crítica a las crisis sociales vivenciadas por el autor. Argumentamos que la emigración del autor a Sudáfrica, tras el ascenso del nazi-fascismo y el inicio de la Segunda Guerra mundial, la experiencia de la lucha contra el apartheid y su exilio en Canadá a mediados de la década de 1960, entre otros acontecimientos no menos importantes, impactaran decisivamente sobre su pensamiento, contribuyendo, junto a las experiencias académicas en Inglaterra, Australia, Indonesia y Alemania, para el desarrollo de su propuesta historiográfica policéntrica, contrahegemónica, democrática y global.

Palabras clave: Kurt Danziger, biografía, historia de la psicología, historia social de la psicología, construccionismo social.


RÉSUMÉ

Kurt Danziger est un psychologue et historien de la psychologie. Ses travaux historiques traitent, fondamentalement, de la constitution historico-pratique des objets psychologiques. Dans cet article, nous soutenons que lémigration de l'auteur en Afrique du Sud après la montée du fascisme et du nazisme et le début de la Seconde Guerre mondiale, l'expérience de la lutte contre l'apartheid et son exil au Canada au milieu des années soixante, entre autres événements non moins importants, ont eu un impact décisif sur sa pensée, contribuant, avec les expériences universitaires en Angleterre, en Australie, en Indonésie et en Allemagne, au développement de sa proposition historiographique, polycentrique, contre-hégémonique, démocratique et globale.

Mots-clés: Kurt Danziger, biographie, histoire de la psychologie, histoire sociale de la psychologie, constructionnisme social.


 

 

Introdução

Kurt Danziger é um historiador da psicologia cuja obra versa, fundamentalmente, sobre a constituição histórico-prática dos objetos psicológicos. Em sua crítica ao idealismo, ao individualismo e ao "antiquarismo" (Brock, 1995) da história da psicologia de seu tempo, em sua busca por dar voz a tendências marginais e contestar o mito da unidade da psicologia, Danziger concentrou-se nos vínculos existentes entre os objetos psicológicos e as práticas investigativas e discursivas que os produzem; entre os esquemas construtivos e os estilos de pensamento dos sujeitos sociais que os sustentam; entre a divisão social do trabalho científico e as diretrizes político-econômicas dos contextos sociais e culturais mais amplos em que tais práticas investigativas e discursivas efetivam-se.

Mas a obra de Danziger é também o resultado das reflexões do autor sobre um conjunto de experiências de natureza social e política que marcaram decisivamente sua trajetória biográfica. Nesse sentido, e considerando-se que esta faceta de sua obra é ainda pouco explorada, sobretudo nos trabalhos em língua portuguesa, o presente artigo busca mostrar de que maneira a emigração do autor, na década de 1930, para a África do Sul; sua experiência, nesse país, de luta contra o apartheid; e, finalmente, seu exílio no Canadá, em meados da década de 1960, influíram profundamente sobre seu pensamento, contribuindo, junto às experiências acadêmicas na Inglaterra, na Austrália, na Indonésia e na Alemanha, para o desenvolvimento de sua proposta historiográfica policêntrica, contra-hegemônica, democrática e global.

Trata-se, portanto, de um artigo que se situa no âmbito de uma história social da psicologia, na medida em que enfatiza as condições sociais e históricas de emergência das ideias psicológicas, na contracorrente de uma larga tradição historiográfica, marcadamente idealista, que fetichiza as ideias psicológicas ao retirar-lhes suas bases sociomateriais.

Os autores do presente artigo têm consciência de que a obra de Danziger ultrapassa o âmbito da história e da historiografia da psicologia. No entanto, uma vez que este número especial se dedica à publicação de artigos que historicizem regimes políticos diversos, autoritarismos e fundamentalismos, apontando suas consequências para os saberes psi e os sujeitos que neles são produzidos, os autores julgam conveniente o recorte aqui proposto.

O artigo encontra-se dividido em três partes. Na primeira delas, dedicada à trajetória de Danziger, buscamos dar voz ao próprio autor, reproduzindo trechos de entrevistas que condensam momentos marcantes e inflexivos de sua vida intelectual e política. Na segunda parte, apresentamos sua proposta historiográfica policêntrica, contra-hegemônica, democrática e global, relacionando-a com elementos e traços de sua biografia. Por fim, na terceira parte, buscamos refletir sobre contribuições e limites da proposta de Kurt Danziger para a história da psicologia, na esperança de que possamos contribuir, ainda que de maneira bastante modesta, para uma apresentação crítica da obra histórica desse psicólogo e historiador da psicologia, cuja vida entrelaça-se com a história de regimes políticos autoritários, fundamentalistas e abertamente racistas. Afinal, em tempos como os nossos, de autoritarismos vários, em que as classes dominantes, na defesa de seus interesses privados, desrespeitam até mesmo os estreitos limites democrático-burgueses, acreditamos ser importante dar visibilidade ao trabalho desse "psicólogo marginal" (Danziger, 2009) e evidenciar o íntimo vínculo existente entre o desenvolvimento de perspectivas críticas na psicologia e os movimentos de crise social que lhe servem de fundamento histórico-material.

 

A trajetória de Kurt Danziger: guerra, emigração, apartheid e exílio

As crises sociais são a substância das ideias críticas1. Como mostrou Lacerda Jr. (2010), o aparecimento de perspectivas críticas em psicologia guarda profunda relação com a dinâmica da luta de classes e com as crises sociais que lhe são correspondentes.

A constatação dessa íntima associação entre os movimentos de crise social e o aparecimento de perspectivas críticas em psicologia é do maior interesse para o objeto do presente artigo. Afinal, ela vai ao encontro de nossa hipótese principal, qual seja, a de que a proposta historiográfica de Kurt Danziger, sistematizada pela primeira vez na década de 1990, com a publicação do livro Constructing the subject: historical origins of psychological research (1990), responde às particularidades de sua trajetória biográfica e a alguns acontecimentos sociais e políticos marcantes dessa trajetória.

Nascido na Alemanha, em 1926, na atual Breslávia (hoje, uma cidade polonesa), Danziger cedo emigrou para a Cidade do Cabo, na África do Sul. Aos onze anos de idade, Danziger chegava com sua família ao continente africano, fugindo das condições que se abateram sobre a Alemanha após a ascensão do nazi-fascismo e o início da Segunda Guerra Mundial (Brock, 1995).

Na África do Sul, ainda sob domínio britânico, Danziger iniciou seus estudos de psicologia logo após concluir sua formação em química2. A opção pela psicologia refletia uma atmosfera geral entre a juventude do pós-guerra, a qual, após assistir à irracionalidade da barbárie nazi-fascista, ansiava não tanto pela volta à normalidade, mas pela construção de um mundo inteiramente novo, científica e racionalmente ordenado (Danziger, 2009). De acordo com as palavras de nosso autor,

Em todo lugar, o fim da Segunda Guerra Mundial marcou, não apenas o fim de um pesadelo, mas também um novo começo, uma abertura de possibilidades que, antes, pareceriam irrealistas. Para muitos, a mera possibilidade de um retorno à "normalidade" era suficientemente extraordinária. Mas para aqueles de nós cuja entrada na vida adulta coincidiu com este momento histórico, não era um retorno que estava na agenda, mas uma nova construção. Foi um tempo de grande fluidez, social e política, evidentemente, mas também intelectual. Velhas certezas morais estavam sendo expostas como ilusões perigosas, e pra quem era muito jovem, o desafio do "ano zero", de construir um mundo melhor, podia ser experimentado como bastante real. (Danziger, 2009, p. 90)

Danziger havia recentemente concluído sua formação em química, mas já se debatia entre a perspectiva da rotina da pesquisa das ciências naturais e a possibilidade de ser um pioneiro numa ciência jovem e ainda pouco desenvolvida (Danziger, 2009).

A opção pela psicologia apresentava-se, portanto, como uma oportunidade para a edificação desse novo mundo e, simultaneamente, para o desenvolvimento da ciência. Conforme Danziger confessou, em entrevista a Adrian Brock,

Eu sempre estive interessado pelas possibilidades e limitações da ciência. Por um lado, isso foi importante para que eu entrasse para a psicologia. Isso foi logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial - não muito depois do lançamento da bomba atômica e tudo mais. Havia, naquele tempo, um sentimento muito generalizado entre os jovens de que a ciência deveria ser bem mais massivamente aplicada às preocupações humanas do que havia sendo feito, e não apenas ao universo material. (Brock, 1995, p. 15)

Em 1949, Danziger iniciou seu doutorado na Universidade de Oxford, Inglaterra, sob a orientação de George Humphrey (1889-1966). Ali, travou contato com a filosofia analítica e suas críticas ao mentalismo e subjetivismo da tradição filosófica continental. Muito provavelmente, foi também na Inglaterra onde Danziger deixou-se impactar pelos trabalhos de Karl Mannheim (19831947), exilado no país desde a ascensão do nazi-fascismo (Lowy, 2009). Afinal, Mannheim desempenhou papel decisivo no desenvolvimento teórico-político de Danziger. Conforme observou o próprio Danziger, "Muito do trabalho que realizei na África do Sul no começo da década de 1960, desde um ponto de vista teórico, foi inspirado por pessoas como Karl Mannheim" (Brock, 1994, p.4).

O contato, ainda na Inglaterra, com a obra do etólogo Nikolaas Tinbergen (1907-1988), também foi importante para a modificação do curso de suas investigações, até então concentradas na pesquisa de leis gerais do comportamento animal a partir da observação de ratos em laboratório. Isso porque a artificialidade das condições experimentais e o caráter abstrato do organismo, quando separado de seu meio natural, parecia-lhe minar o sentido de suas pesquisas.

Com efeito, tendo partido do neobehaviorismo de Clark Hull (1984-1952), mas frustrado pelas limitações impostas pela artificialidade das condições experimentais, Danziger passou às pesquisas em psicologia do desenvolvimento, inspirado pela obra de Jean Piaget (1896-1980), antes de passar aos estudos críticos em psicologia social.

Após seus estudos doutorais, no início da década de 1950, e em face das dificuldades de conseguir emprego nas universidades britânicas, Danziger partiu para sua primeira grande experiência profissional como professor de psicologia na Universidade de Melbourne, Austrália. Encarregado de montar um laboratório de psicologia experimental, mas já desiludido quanto aos fundamentos do neobehaviorismo, Danziger ensaiou alguns estudos com base na observação experimental de ratos selvagens.

A experiência apenas reforçou sua convicção na necessidade de novas bases teórico-analíticas, as quais só viriam a ser estabelecidas após seu regresso à África do Sul. De fato, depois de alguns anos na Oceania, Danziger retornou ao continente africano, dessa vez como professor da Universidade de Natal, na Costa leste da África do Sul. Assim se expressou nosso autor, a respeito desse período:

Eu deixei a África do Sul menos de um ano após a mudança radical do governo que, finalmente, resultou num retrocesso do relógio político que ficou conhecido mundo afora como apartheid. Durante o tempo em que estive na Austrália, a completa perversidade do sistema de extrema opressão racial tornou-se evidente. Era difícil evitar o sentimento de que o lugar para se estar era entre aqueles que estavam confrontando o mal. Homens que abertamente simpatizaram com a Alemanha nazista estavam agora no governo. Eu, como uma vítima do nazismo, tinha realmente alguma escolha? Eu deixei a Austrália em 1954, tendo aceitado um cargo na Universidade de Natal, o que logo me levou a Durban, terceira cidade da África do Sul. Essa parte do país tem uma característica bem mais pronunciadamente "africana" do que a Cidade do Cabo. Ela foi colonizada muito depois e sob cir-cunstâncias diferentes. Enquanto a Cidade do Cabo sempre reteve a característica de entreposto da Europa, a população africana de Natal não apenas constituía ampla maioria numérica, como também preservara tradições africanas de uma maneira evidente e autoconsciente. Eu comecei a aprender Zulu e a apreciar a importância dos contextos culturais para a pesquisa psicológica de uma forma muito mais profunda do que quando estive na Cidade do Cabo. Durban também tinha uma grande população indiana cujos ancestrais haviam sido atraídos para essa parte do mundo pelo trabalho formal. Desenvolvi forte amizade com membros deste grupo. (Danziger, 2009, p. 101-102)

Vemos aqui alguns elementos que viriam a definir a proposta historiográfica de Danziger: a crítica ao caráter abstrato das unidades de análise da psicologia, a consideração das posições sociais e dos contextos socioculturais na definição das problemáticas e das categorias de análise empregadas pelo historiador, e seu engajamento político-social em favor das maiorias dominadas.

Na África do Sul, Danziger travou contato com Gordon Allport (1897-1967), cuja obra sobre o preconceito já se tornara, àquela época, referência mundial. Segundo Danziger, o contato com Allport permitiu atestar a força e a fraqueza da psicologia social norte-americana e sua inadequação quando transplantada para um contexto social inteiramente diferente.

Isso foi logo depois da publicação de seu livro sobre preconceito. Ele [Gordon Allport] estava muito comprometido com o assunto e fortemente convencido das benesses sociais que resultariam dos estudos sobre preconceito. Era difícil para ele apreciar a relativa Obs: não será "a natureza relativa??" segunda natureza dos aspectos psicológicos num contexto como aquele da África do Sul daquele tempo - o qual, é claro, era um tempo em que o apartheid estava realmente avançando (Brock, 1995, p. 11)

Entre os anos em que lecionou na África do Sul, Danziger esteve também na Indonésia, onde lecionou por dois anos a serviço do governo local. Ali, conheceu a psicologia nativa, a ilmu djiwa3, psicologia não-ocidental que lhe causou profundo impacto.

Como veremos adiante, esse encontro deixou profundas marcas em Danziger, que só viriam a ser sistematicamente elaboradas décadas mais tarde, em sua pesquisa sobre a história das principais categorias psicológicas (Danziger, 1997a, 1997b). Antes, porém, convém assinalarmos que, ao relatar o impasse entre os defensores dessa psicologia nativa e seus críticos locais, nosso autor também nos revela um elemento de seu pensamento historiográfico que nos remete diretamente ao pensamento sociológico de Karl Mannheim, a saber, sua ponderação e sua tendência ao centro, à conciliação dos extremos. Como nos revelou o autor, referindo-se ao processo de modernização em curso na Indonésia,

Inevitavelmente, havia diferenças de opinião sobre até onde seria permitido levar esse processo. Num extremo, havia os tradicionalistas, em sua maioria homens velhos com pedigrees aristocráticos, e que não viam qualquer necessidade de importar uma psicologia estrangeira [alienpsychology]. No outro extremo, estavam os determinados modernizadores, jovem em sua maioria, que achavam que a sabedoria da psicologia tradicional não tinha qualquer valor contemporâneo. (Danziger, 2009, p. 106)

Compreende-se que a experiência na Indonésia deva ter representado um grande choque cultural na vida de nosso autor, talvez tão forte quanto o primeiro, quando de sua chegada à África do Sul.

Aliás, segundo Danziger, "A vida na África sensibilizou-me para as enormes diferenças das demandas psicológicas que as sociedades burocrático-industriais e pré-industriais impõem a seus membros. A Indonésia tornou esse assunto uma preocupação central" (Danziger, 2009, pp.105-106).

Essas experiências afetaram permanentemente minha relação com a psicologia enquanto disciplina. Elas estabeleceram firmemente o reconhecimento de que esta disciplina estava intimamente atada a um complexo de condições sociais e culturais mais amplo. Ela não fala de uma verdade universal e abstrata, mas de uma verdade que se apoia em circunstâncias particulares. Diferentes posições psicológicas também estão atadas a diferentes posições sociais. Se aceitamos ou rejeitamos posições psicológicas, isso depende parcialmente de onde partimos e de nossa relação com as posições sociais a que estão vinculadas. Mais genericamente, a experiência na Indonésia cimentou uma tendência já existente a olhar para a psicologia moderna desde fora, a defendê-la ou criticá-la desde a base de padrões que eram externos à própria disciplina. (Danziger, 2009, p. 107)

A essa altura de sua trajetória, os pilares de sua perspectiva historiográfica já estavam praticamente estabelecidos. Tratava-se, apenas, de superar a identidade profissional que o limitava aos quadros gerais da pesquisa empírica tradicional. Mas a superação efetiva dessa identidade profissional só veio a acontecer após seu exílio no Canadá, a partir de 1965.

Antecipando-se ao banimento, à prisão ou outras retaliações, o exílio voluntário impôs-se após seu engajamento mais direto na luta contra o regime do apartheid. Antes disso, no entanto, Danziger viveu sua experiência política mais intensa. Conforme relatou, em face dos desenvolvimentos repressivos do regime de apartheid, "Tornei-me muito direta e ativamente envolvido na resistência a estes desenvolvimentos na comunidade acadêmica nas universidades anglofônicas" (Brock, 1995).

Se a experiência na Indonésia esfumava as fronteiras entre psicologia e antropologia, de um lado, a crise social imposta pelo regime de apartheid devassava as fronteiras entre psicologia e política.

O vínculo entre o psicológico e o político foi algo pelo qual me sensibilizei na África do Sul, mas a Indonésia proporcionou a primeira oportunidade para que isso se refletisse diretamente em minha pesquisa (...) Retornei à África do Sul mais cedo do que o esperado porque me foi oferecido a chefia do Departamento de Psicologia na Universidade da Cidade do Cabo, minha velha alma mater. (Danziger, 2009, p. 108)

Meu retorno à África do Sul teria sido despropositado se eu não tivesse me engajado nas lutas políticas daquele tempo. Eu me tornei parte de uma rede útil de apoiadores brancos do Congresso Nacional Africano, que ainda não havia sido declarado ilegal. Durante os próximos três anos, o foco de meus interesses, que até então haviam sido esmagadoramente acadêmicos, sofreu um deslocamento crucial numa direção política. Não que eu não tenha tido interesse em assuntos políticos antes disso. Pelo contrário, filosofia política tinha sido minha terceira área de concentração durante meus anos como estudante de graduação, após química e psicologia. Mas isso ainda tinha sido um interesse essencialmente acadêmico, enquanto que, em Natal, eu me envolvi realmente em trabalho político que me colocou em contato com pessoas que estava na ponta do brutal sistema sul-africano de opressão e exploração. Alguns deles viviam em barracos, alguns eram líderes do movimento de libertação, Nelson Mandela entre eles. (Danziger, 2009, p. 102)

De fato, seu engajamento político não se limitou ao âmbito acadêmico-profissional. Regressando à África do Sul, Danziger participou ativamente dos julgamentos que buscaram frear o ascenso das lutas sociais encampadas pelo Congresso Nacional Africano, atuando junto aos advogados de defesa e à rede de colaboradores brancos que se somou ao movimento contra o regime (Danziger, 2009; Brock, 1995)

Três meses após meu retorno à África do Sul, a situação no país fervilhava, e mais de duzentas pessoas foram mortas e feridas num único massacre policial em Sharpeville. Um estado de emergência foi declarado, o Congresso Nacional Africano foi banido, e detenções em massa estiveram na ordem do dia. Eu logo me aproximei para ajudar e uma sala escondida no Departamento de Psicologia tornou -se o lugar onde a organização do Congresso local produziu seus panfletos ilegais. (Danziger, 2009, p. 110)

Naquele tempo, houve um grande julgamento da maior liderança do CNA. Era apenas um de um grande número de julgamentos que estavam sendo realizados àquela época. A acusação parcialmente apoiava-se em evidências de testemunhas que haviam permanecido em confinamento solitário durante períodos muito longos de tempo. Havia uma atmosfera geral de tremendo medo no país naquela época -compreensível. Era muito difícil para a defesa encontrar pessoas que quisessem fornecer evidências como testemunhas de defesa. Uma coisa que eles acharam que poderiam fazer era chamar especialistas que dessem evidências da confiabilidade de testemunhas que sofreram aquele tipo de tratamento. Outros psicólogos da Universidade de Natal e eu dissemos que forneceriamos tais evidências. (Brock, 1995, p. 13)

No âmbito acadêmico-profissional, Danziger lançou mão de abaixo-assinados, mobilizando professores, psicólogos e profissionais do campo psi contrários ao regime (Danziger, 2009). Mas sua participação nos julgamentos evidenciava pouco a pouco que a luta que se luta nos marcos da institucionalidade burguesa era como o jogo que se joga no campo do adversário (Danziger, 2009).

Novas leis e procedimentos, sem dúvida alguma influenciados por conselhos de especialistas, introduziram novas formas de prática policial. Prisioneiros políticos agora eram postos em confinamento solitário por períodos que frequentemente extrapolavam muitos meses, com o objetivo de forçar à conformidade. (...) Quando esses julgamentos começaram a acontecer, fui perguntado por alguns advogados de defesa sobre a possibilidade de que longos períodos de confinamento solitário pudessem ter efeitos psicológicos que afetariam a confiabilidade do testemunho que as testemunhas subsequentemente ofereciam à corte. Afirmei que isso era, de fato, possível e, subsequentemente, forneci evidência científica [expert evidence] sobre aqueles efeitos. Entretanto, naquele que foi, de longe, o julgamento mais importante, o assim chamado julgamento de Rivonia, no qual Nelson Mandela e outros líderes do movimento de libertação foram condenados à prisão perpétua, o juiz recusou-se a admitir qualquer evidência científica [expert evidence] sobre os efeitos do confinamento solitário, dizendo que não necessitava de qualquer especialista para dizê-lo se uma testemunha era ou não era confiável. (Danziger, 2009, p. 110)

O confinamento solitário prolongado era uma forma de tortura psicológica cujo emprego sistemático pelos órgãos do Estado não deveria ser permitido sem qualquer protesto daqueles que clamavam pelo bem-estar psicológico dos indivíduos como sua especial preocupação profissional. Sendo assim, junto com um colega médico, elaborei uma declaração de protesto que foi assinada na sequência por um número significativo de psicólogos e psiquiatras, e logo publicado. Essa era uma das poucas vias de protesto legal deixadas em aberto, e assim deveria ser usada, mesmo que não houvesse qualquer expectativa de que teria qualquer efeito sobre os poderes então no comando. (Danziger, 2009, p. 111)

As pesquisas desse período também atestam sua preocupação com a profunda crise social instaurada na África do Sul. Ao ter de se preparar para os julgamentos, Danziger estudou a literatura sobre "privação sensorial" (fundamentalmente, privação social, como bem observou o autor). Além disso, entrevistou ex-detentos que passaram pela experiência do confinamento solitário, libertos após fornecerem alguma delação ou, simplesmente, por haverem perdido parte de sua sanidade mental (Danziger, 2009). Outras de suas pesquisas caminharam para a elaboração de um modelo que permitisse avaliar de que maneira as exigências postas pelas sociedades modernas, burocráticas e industriais impunham aos indivíduos uma necessidade de autorracionalização e ilustravam a tese de Mannheim sobre a determinação social do conhecimento. A essa altura, nosso autor já havia extrapolado as limitadas barreiras disciplinares tradicionalmente impostas à psicologia (Danziger, 2009).

A conceitualização desse tema dependia de uma caracterização adequada das características comuns às sociedades burocrático-industriais, e isso foi precisamente o que a noção de racionalização de Weber realizou. Estas sociedades operavam de acordo com normas da razão instrumental que tratavam as ações humanas como meios escolhidos por uma questão de eficiência. Karl Mannheim (...) apontou que onde esse princípio fosse aplicado, os indivíduos teriam que organizar suas próprias vidas de acordo com esse princípio, ou seja, como um sistema de ações instrumentais racionalmente sequenciadas que levem eficientemente de um objetivo a outro. Ele chamou isso de autorracionalização. (Danziger, 2009, p. 108)

Como vimos, Danziger participou ativamente na mobilização de acadêmicos e profissionais do campo psicológico (Brock, 1995). Como era de se supor, a atuação não lhe rendeu muitos amigos entre as autoridades locais. Embora não tenha sido banido, mas antevendo a possibilidade de uma retaliação, Danziger optou por exilar-se no Canadá, lecionando, desde 1965, na Universidade de Iorque. Após passar da Europa à África, e de passagens pela Ásia e pela Oceania, Danziger chegava a mais um continente em sua intensa trajetória biográfica: a América.

Seguiu-se um período durante o qual todos os tipos de sinais apontavam para o fato de que eu era um homem marcado. O ministério da justiça (sic) mencionou-me no parlamento branco [white parliament] como uma liderança agitadora e comunista; relatórios vieram de detentos libertos de que a polícia os havia interrogado sobre minhas atividades, de que haveria ataques à minha residência e veículo, de que a polícia viria confiscar meu passaporte, e assim por diante. É claro, comparado com o que a população negra do país tinha que suportar a cada dia, essas eram apenas alfinetadas. Mas, pelo que aconteceu a alguns de meus amigos e colegas, eu também sabia que tinha que tratar estes eventos como avisos [writing on the wall]. (Danziger, 2009, p. 111-112)

Danziger encontrava-se em face de um verdadeiro dilema, tendo de decidir entre o engajamento radical na luta contra o apartheid ou a continuidade de seu projeto original: a contribuição à humanidade pela via do desenvolvimento da ciência e da pesquisa psicológicas. Assim, Danziger descreveu esse momento de sua trajetória:

Dadas minhas associações pretéritas, não havia dúvida de que, para permanecer na África, eu deveria desistir de quaisquer futuros atos ou protestos, ou enfrentar medidas repressivas muito mais duras. Nenhuma das alternativas era particularmente palatável, e então decidi que o tempo de partir enquanto ainda podia havia chegado. Eu apenas tinha a permissão de viajar sob a condição de que minha volta à África do Sul incorreria automaticamente em prisão. O formulário declarando que eu era uma "pessoa proibida", considerei a coisa mais próxima de uma medalha que eu chegaria a ter. Ao menos, eu havia feito o suficiente para ser marcado como uma ameaça à ordem reinante. Ir além teria significado adotar uma identidade essencialmente política, mais do que acadêmica, e isso, eu entendi há um bom tempo, não era aquilo para o qual fui talhado. (Danziger, 2009, p. 111-112)

Após o exílio, Danziger tornou-se persona non grata na África do Sul durante 25 anos. Proibido de retornar ao país, só pôde retornar à África do Sul na década de 1990, após a transição democrática.

Em 1965, quando chegou ao Canadá, havia um clima intelectual bastante favorável ao fortalecimento de suas convicções sobre o caráter incontornável dos determinantes sociais e culturais do conhecimento. Afinal, Danziger desembarcou na América três anos após a publicação da famosa obra de Thomas Kuhn, The structure of scientific revolution (1962), e um ano depois de sua chegada, Peter Berger e Thomas Luckmann publicariam The Social Construction of Reality. A Treatise in the Sociology of Knowledge (1966). A esse caldo cultural, somaram-se também o despontar da microssociologia e a antropologia do conhecimento, com as obras de Karin Cetina, Bruno Latour e Steve Woolgar, além do realismo crítico de Roy Bhaskar (Brock, 2003).

Num primeiro momento, Danziger ocupou-se de estudos sobre a socialização de crianças imigrantes, dando continuidade às suas pesquisas sobre os processos de assimilação de relações sociais. Anos depois, dedicou-se ao estudo da comunicação interpessoal, fortemente influenciado pela microssociologia do conhecimento. No entanto, após certa desilusão com a pesquisa empírica, num momento que descreveu como uma "crise de meia idade" (Danziger, 2009), e após um ano sabático em sua terra natal, Danziger lançou-se à pesquisa histórica, a qual passou ao primeiro plano de suas preocupações.

Desde o final da década de 1970, Danziger passou a contribuir para a constituição de uma história crítica da psicologia. Hoje, com 92 anos de idade, Kurt Danziger é Professor Emérito da Universidade de York, onde se aposentou em 1994.

Vejamos, agora, de que maneira essa longa e intensa trajetória biográfica refletiu-se na proposta historiográfica e na história crítica da psicologia edificada por nosso autor a partir de seus estudos, no final da década de 1970, da obra e dos métodos de pesquisa de Wundt (Danziger, 1979; 1990). A primeira grande síntese desses estudos encontra-se no livro Constructing the subject: histo-rical origins of psychological research, publicado em 1990 (Danziger, 1990). Uma resenha publicada na revista Contemporary psychology disse o seguinte a respeito deste livro: "sem dúvida alguma, este é o livro mais importante sobre história da psicologia surgido nos últimos anos (...) o entendimento e o próprio ensino da história de nossa disciplina será profundamente modificado pela análise de Danziger" (Stam, 1992). Se o resenhista ainda tem razão, como acreditamos ser o caso, permita o leitor que façamos uma breve apresentação das principais teses deste livro, antes de relacioná-las com os fundamentos biográficos que abordamos nas páginas anteriores e de passarmos à discussão sobre as contribuições e os limites da proposta historiográfica danzigeriana.

 

A história policêntrica, contra-hegemônica, democrática e global de Kurt Danziger

Argumentaremos, na seção seguinte, que não apenas as pesquisas desenvolvidas na África do Sul, mas também toda obra histórica de Danziger encontra-se profundamente influenciada pela sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e, particularmente, sua solução gnosiológica. Mas essa solução, historicista e democrática, está longe de ser uma solução meramente gnosiológica, refletindo, antes, as respostas aos impasses vividos por nosso autor em sua trajetória biográfica.

Como vimos, após certa desilusão com a pesquisa empírica, Danziger lançou-se à pesquisa histórica, a qual, desde a década de 1970, passou ao primeiro plano de suas preocupações. No livro em que sistematizou suas primeiras reflexões históricas, Danziger argumentou que a psicologia moderna teria surgido no fim do século XIX, quando se concretizaram um conjunto de práticas investigativas produtoras de instrumentos, teorias, hipóteses e, finalmente, dos próprios objetos da psicologia. A pesquisa levantava um grande conjunto de dados referentes à constituição das relações sociais entre investigadores, seus temas de pesquisa, as normas mais relevantes da comunidade científica, os tipos de interesses de conhecimento que prevalecem em diferentes tempos e espaços, e as relações da comunidade científica com o contexto social mais ampliado que a sustenta.

Segundo Danziger, toda prática investigativa envolve indivíduos que coordenam suas ações mediante significados e expectativas. Tais práticas são teleologicamente orientadas, construindo instituições e normas que moldam as mesmas ações humanas que as teceram:

(...) a prática investigativa é uma prática social no sentido de que o investigador atua por meio de um conjunto de princípios e regras de ação determinados pelos consumidores potenciais dos produtos de sua pesquisa e pelas práticas aceitáveis das tradições que prevalecem no campo. Ademais, as metas e os interesses de conhecimento que guiam essa prática dependem do contexto social no qual o pesquisador trabalha." (Danziger, 1990, p. 4)

Assim, o papel do historiador da psicologia consistiria em revelar os esquemas construtivos empregados pelos psicólogos na produção de seus objetos de pesquisa.

No entanto, como grande parte da construção social de uma disciplina é tecida, na opinião de Danziger, na divisão do trabalho científico, segundo as particularidades de cada país investigado, nosso autor lançou-se no exame dos principais modelos de divisão do trabalho científico. Analisando-os, Danziger chegou à conclusão de que a psicologia hegemônica mundial que surgiu nos Estados Unidos da América, nas décadas de 1920 e 1930, e que se concretizou no final da Segunda Guerra Mundial, era o resultado de uma mescla e, ao mesmo tempo, da exclusão de algumas características presentes em três costumes [customs], três complexos de significados e expectativas fundamentais.

O primeiro costume examinado por Danziger seria aquele presente no laboratório de Leipzig e na obra de Wilhelm Wundt (1832-1920). Danziger procurou mostrar como, por meio das práticas investigativas aí realizadas, tornou-se possível o nascimento de uma autoconsciente e organizada comunidade de investigadores, cujo método tornou-se preocupação coletiva. O autor mostrou como, com a introspecção ou com a investigação do sentido interno [inner sense] e de seus estados, buscava-se o consenso em torno do estabelecimento dos rumos da psicologia moderna e sua disseminação por outras universidades. Restrita ao laboratório, a psicologia fisiológica limitar-se-ia à sensação, à percepção e à atenção, herdando práticas investigativas dos fisiólogos do século XIX (cujos objetivos eram a investigação dos processos causais entre estímulos físicos e processos biológicos no corpo humano). Essa psicologia fisiológica, no entanto, teria sido construída a partir de ações, expectativas e fins diferentes. Buscava-se investigar a causalidade psíquica. Danziger observou, porém, que, no modelo experimental wundtiano, pressupunha-se, sem qualquer explicação prévia, a existência uma divisão entre o experimentador e o sujeito experimental. O autor concluiu, assim, que o objeto psicológico chamado "sentido interno", ou os atributos da consciência interna privada [inner sense] e suas subdivisões em "processos", resultava precisamente do esforço colaborativo presente nessa relação social.

Danziger observou, porém, que, durante o mesmo período, na França, havia práticas investigativas diferentes daquelas realizadas no laboratório de Wundt. Este segundo costume empregava o método da hipnose experimental como ferramenta de pesquisa psicológica. Os sujeitos experimentais eram submetidos à hipnose, cabendo aos experimentadores a investigação das causas do sofrimento psíquico sem que o participante precisasse de qualquer exame autoconsciente. A divisão social dava-se, basicamente, entre experimentadores, homens de formação médica, de um lado, e sujeitos experimentais do sexo feminino, de outro. Havia também o grupo dos sujeitos "normais" ou "saudáveis", para fins comparativos. Toda a relação era compreendida sob a forma de uma interação médico-paciente e em termos de doença e sofrimento psíquico. Assim, na divisão social do trabalho da clínica experimental francesa, o termo "sujeito" [sujet] aparecia com acepção mais precisa, pois designava um ser vivo objeto de cuidado médico ou de observação naturalística. Desta forma, os papéis sociais do experimentador e do sujeito experimental estavam mais bem definidos, pois o primeiro não assumia, como no modelo wundtiano, a posição do segundo.

Por fim, Danziger mostrou de que maneira Galton teria inaugurado, na Inglaterra, o terceiro costume da psicologia moderna. Nela, o experimentador teria conhecimentos prévios sobre o aplicante [applicant], o qual, por sua vez, não atuaria como no modelo wundtiano, estando, portanto, mais próximo ao modelo clínico-experimental francês. Segundo Danziger, Galton cobrava de pessoas saudáveis e fornecia, em troca, dados individuais antropométricos. Danziger argumentou que as condições sociais inglesas favoreciam esse tipo de prática, uma vez que a sociedade inglesa exigia de seus indivíduos características e habilidades vendáveis. No entanto, Danziger mostrou também como, para Galton, a pesquisa científica estava voltada para um programa eugênico de transformação e melhoramento da sociedade. Tratava-se de estudar as diferenças individuais de um grande número de aplicantes mediante método estatístico, a partir da atribuição de valores quantitativos aos atributos humanos.

O modelo galtoniano, conforme demonstrou-nos Danziger, era totalmente diferente do "caso clínico" da psicologia experimental clínica francesa e do exemplar generalizado da mente humana de Leipzig. Afinal, a prática investigativa de Galton isolava propriedades mentais como fatores biológicos inatos, abstraindo-os de seu contexto social. Do exame desses três costumes, Danziger concluiu que o conjunto dessas três práticas investigativas também se tornou possível graças às condições encontradas nos contextos sociais mais amplos nas quais se encontravam inscritas. Atendo -nos ao caso da americanização da psicologia europeia, a identificação da psicologia wundtiana a um passado filosófico deveu-se não apenas a uma crítica teórico-metodológica, mas, antes de tudo, ao resultado de práticas investigativas cujas expectativas estiveram diretamente envolvidas com preocupações cotidianas, prosaicas, com a resolução ou atendimento de imperativos políticos e econômicos estadunidenses, imperativos aos quais Danziger referiu-se sob o nome de "contexto social mais amplo", "industrialismo corporativo" ou "capitalismo industrial".

De acordo com Danziger, na aurora da Primeira Guerra Mundial, todo o instrumental estatístico e psicológico voltou-se para o recrutamento e a seleção de soldados do alto escalão do exército norte-americano. Com o fim guerra, esse instrumental espraiou-se para todos os domínios da vida social: escola, universidades, indústria, escritórios e congêneres. Analisando o aparecimento de revistas de psicologias e de práticas ligadas à educação, Danziger mostrou como, a partir da década de 1920, as práticas anteriores deram lugar a um novo modelo, a que chamou de modelo neogaltoniano. O modelo seria o resultado da fusão de práticas investigativas oriundas do método comparativo da psicologia clínico-experimental francesa e dos levantamentos estatísticos de "traços biológicos" humanos, orientado para a fabricação de testes psicológicos e experimentos voltados para a fabricação de produtos vendáveis. O modelo tornar-se-ia prática investigativa hegemônica, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, no processo a que Danziger chamou de americanização da psicologia.

Essa interpretação danzigeriana da história da psicologia moderna permitiu não apenas reabilitar o interesse pelo estudo da obra de Wundt, mas realizou uma primeira grande crítica à ideologia dominante de americanização da psicologia e ao internalismo de sua historiografia.

Danziger sintetizou sua interpretação crítica com a metáfora dos três círculos concêntricos (Danziger, 1990), onde o círculo mais externo representava o espaço e o tempo social mais amplo, o qual chamou, entre outros nomes, de industrialismo corporativo; o círculo intermediário representava as universidades e seus laços com as diretrizes específicas do industrialismo corporativo; e o círculo interno, por fim, representava as microrrelações de poder, tecidas entre o sujeito experimental e o experimentador.

No 26° Congresso Internacional de Psicologia, numa palestra intitulada Towards a polycentric history of psychology (Danziger, 1996), Danziger argumentou que caberia aos historiadores da psicologia inter-relacionarem as categorias elaboradas nos diversos locais de pesquisa em torno do mundo, de modo a possibilitar um conhecimento mais aproximado da realidade psicológica e evitar o imperialismo cultural dos grandes centros de pesquisa. O autor observou que dois possíveis problemas nesse intercâmbio cultural entre as diferentes psicologias: o primeiro problema seria a incorporação, por parte de um país específico, do modernismo, ou a aceitação acrítica dos cânones da psicologia moderna advinda dos grandes centros, sobretudo do modelo neogaltoniano; o segundo diria respeito à romantização dos saberes tradicionais e locais, que repelem de forma acrítica todo e qualquer contato com outras categorias psicológicas de outros países. Danziger concluiu que o rumo a ser traçado por uma psicologia que critica a separação entre centro e periferia é inter-relacionar as diversas formas de teorizar, de forma a extrair desse grande debate o conhecimento mais apurado da subjetividade de caráter global, contra-hegemônico, policêntrico e mais democrático.

É nesse sentido que a proposta historiográfica de Danziger é policêntrica, contra-hegemônica, democrática e global. Policêntrica porque considera a psicologia hegemônica como o resultado de práticas investigativas de vários centros produtores de conhecimento. Sua proposta historiográfica opõe-se, assim, ao centralismo dos modelos psicológicos norte-americanos e à hegemonia do modelo neogaltoniano. Contra-hegemônica, já que sua proposta historiográfica afasta-se do lugar comum positivista que orientou a historiografia da psicologia desde, ao menos, os trabalhos de Boring (1929), e que tanto contribuíram para semear equívocos e grosseiras simplificações, e porque se presta-se à crítica do imperialismo cultural que, em nome do progresso científico, desconsidera as mediações impostas pelas realidades sociais particulares. Repensa, portanto, a relação entre centro e periferia, e procura dar voz às perspectivas marginalizadas. Democrática não apenas porque essa proposta historiográfica visa contribuir para a difusão dos ideais e valores democráticos, mas porque se fundamenta num método democrático inspirado na solução gnosiológica mannheimiana, no qual o universal, sempre precário e provisório, não pode ser senão a síntese dinâmica de vozes dissonantes e várias, jamais o grito autocrático e monotônico de um suposto gênio intelectual. E, por fim, global, uma vez que compreende a história da psicologia como um empreendimento humano de escala mundial e para o qual cada país, cada povo ou cada cultura contribui com sua parte.

 

Contribuições e limites da proposta de Danziger para a história da psicologia

A crítica empreendida por Danziger parece-nos um avanço na historiografia da psicologia moderna e um marco no âmbito das reflexões em torno dos fundamentos que devem nortear a pesquisa histórica em psicologia. No entanto, segundo nos parece, todos os aspectos que destacamos na seção anterior, e que definem, fundamentalmente, a proposta historiográfica de Kurt Danziger, encontram correspondência em sua trajetória pessoal, e sua sistematização encontra-se prefigurada na teoria social e na sociologia do conhecimento desenvolvida por Karl Mannheim a partir dos princípios teórico-políticos do historicismo alemão.

Conforme nos mostrou Lowy (2009), o historicismo alemão, surgido entre os séculos XVIII e XIX, foi uma reação ao ideário iluminista. Profundamente reacionários, os primeiros historicistas dirigiram duras críticas à nascente sociedade capitalista, reivindicando o valor das tradições aristocráticas e o retorno ao passado feudal. No debate gnosiológico, defenderam que o sujeito de conhecimento encontra-se sempre enraizado nas tradições de sua nação e de seu povo e que, portanto, contrariamente à concepção iluminista, seria impossível o conhecimento da realidade com inteira neutralidade axiológica. No entanto, Lowy também mostrou como o desenvolvimento do capitalismo, no século XIX, e a progressiva derrota da aristocracia, que sustentava essa primeira forma assumida pela reação historicista, fez como que o historicismo assumisse novo aspecto. No fim do século XIX e início do século XX, tratava-se não mais de defender a manutenção da ordem feudal, mas a manutenção da própria ordem burguesa, recentemente consolidada. Não era mais a antiga aristocracia feudal que levantava as bandeiras do historicismo, mas a pequena-burguesia urbano-industrial, erguendo-se contra os princípios e os valores do individualismo burguês que, aos seus olhos, punham abaixo todos os valores duramente conquistados pela civilização ocidental em nome de um único universal abstrato e vazio: o dinheiro ou o mercado.

Influenciados por tais reflexões, alguns pensadores empenharam-se em compreender essa tensão entre o universal e o particular, entre o indivíduo e a sociedade, entre a inescapável determinação social do conhecimento e a exigência racional da universalidade. Mannheim foi um desses pensadores. Profundamente impactado pela obra História e Consciência de Classe (1923), de Gyorgy Lukács, mas discordando da solução marxista adotada pelo antigo companheiro do Círculo Heidelberg, Mannheim empreendeu uma reflexão que culminou na publicação de seu livro mais famoso, Ideologia e Utopia (1929), que representa, até hoje, uma das mais vigorosas defesas do moderno historicismo (Lowy, 2009).

Em Ideologia e Utopia, Mannheim argumentou em favor de uma sociologia do conhecimento, cuja tarefa principal consistiria no desmascaramento [unmasking] da dependência situacional [Standortsgehundenheit] dos sujeitos de conhecimento. Para o autor, o desmascaramento consistiria em revelar, através de sólida pesquisa sociológica, os vínculos concretos entre tais sujeitos e suas ideias, percepções, valores e comportamentos. Afinal, Mannheim partia do pressuposto de que tais sujeitos não seriam entidades abstratas, mas pessoas concretas, isto é, pertencentes a determinada geração, determinado gênero, etnia, status socioeconômico etc. e que, portanto, em suas ideias, percepções, valores e comportamentos, expressariam os interesses vitais das particularidades às quais pertencem. Assim, para Mannheim, por conta de sua inescapável dependência situacional, os indivíduos sempre perceberiam a realidade de maneira parcial ou particular (Mannheim, 1972). Essa constatação, no entanto, conduziria Mannheim diretamente ao bem conhecido impasse relativista, que levaria, por sua vez, assim argumentavam os positivistas, ao ceticismo ou à impossibilidade do conhecimento. Afinal, se todo conhecimento é relativo, não seria a sociologia do conhecimento, ela também, relativa e parcial? Qual seria, portanto, a validade do conhecimento por ela produzido?

A resposta de Mannheim para esse clássico problema gnosiológico é devedora da solução formulada por Marx e Engels, e da qual Mannheim tomou conhecimento através da obra de Lukács à qual nos referimos anteriormente. Afinal, Mannheim não se contentou em indicar a parcialidade ou a dependência situacional dos sujeitos de conhecimento. Antes, perguntou-se qual a situação social que, por sua própria natureza, permitiria o conhecimento mais objetivo possível da realidade. Não se tratava, portanto, de contornar a dependência situacional, mas de tomá-la como fundamento para a solução do dilema relativista e ceticista.

No entanto, contrariamente à tese lukacsiana, que identificava o proletariado como a classe ou a particularidade social com melhores condições gnosiológicas, Mannheim atribuiu tal privilégio aos intelectuais ou à intelligentsia, à freischwebende Intelligenz, "inteligência livremente flutuante" que, no seu entendimento, precisamente por estar a meio caminho entre os extremos sociais em litígio (a burguesia e o proletariado, no caso), seria o único fundamento social para o conhecimento objetivo, único sujeito capaz de alcançar o maior grau possível de objetividade, grau que variaria em função da diversidade e da complementaridade recíproca das perspectivas no interior desse grupo social específico.

Como vimos na seção anterior, não apenas as pesquisas desenvolvidas na África do Sul, mas também a obra histórica de Danziger foram profundamente influenciadas pela solução mannheimiana. Afinal, tanto os estudos no campo da sociologia do conhecimento voltados para as diversas ideologias na África do Sul, quanto as investigações das condições de surgimento da história da psicologia, tiveram como ponto comum o desmascaramento da posição social dos agentes em questão, das suas visões de mundo, das instituições das quais são partícipes e dos contextos sociais e culturais mais amplos. Outro ponto em comum é a crítica à historiografia de cariz positivista que supõe o progresso das ideias psicológicas por meio do debate entre proeminentes pensadores, pela evolução da racionalidade interna dos debates e das teorias, ou por meio de um Zeitgeist.

Consideramos o "construcionismo social" danzigeriano uma grande contribuição para historiografia da psicologia moderna porque se realiza por meio do exame da economia política da produção do conhecimento científico (Danziger, 1990), da história de pessoas concretas que se encontram num setor específico da divisão social geral do trabalho de uma dada sociabilidade. Afinal, em sua proposta historiográfica, não há nada de especial nas ciências e em suas tecnologias, sendo esta apenas um processo produtivo de trabalho.

As práticas investigativas são parte de um processo produtivo de trabalho. Seu emprego resulta na geração de produtos dotados de valor, embora, é claro, que esses produtos não sejam primariamente materiais, mas simbólicos - é o chamado domínio do conhecimento científico. Esse mesmo emprego envolve necessariamente pessoas que põem essas práticas para funcionar e também alguns materiais crus que são transformados produtivamente em produtos do conhecimento dotados de valor. Produtores do conhecimento científico nunca trabalham como indivíduos independentes, antes de tudo eles estão enredados em relações sociais. (Danziger, 1990, p. 179-180)

Assim como Mannheim, Danziger observa que a comunidade científica não está apartada da sociedade nem seus conceitos são axiologicamente neutros. Ao contrário, esse processo produtivo de trabalho é orientado por metas inerentes aos procedimentos científicos e às demandas sociais, simultaneamente.

A adoção do pressuposto realista também é uma nota característica dos pensamentos de Mannheim e Danziger. Este último, mesmo lançando mão de autores de diferentes pressupostos teóricos (para citar alguns exemplos, o construtivismo de Bruno Latour e de Karin D. Knorr Cetina, a genealogia de Michel Foucault, o trabalho de Nikolas Rose para a explicação das condições de surgimento da psicologia moderna etc.), não se rende ao artificialismo presente nessas obras teóricas.

Na verdade, Danziger é um realista crítico, isto é, pressupõe uma realidade prévia a ser conhecida e passível de conhecimento aproximado. Entretanto, a possibilidade de conhecimento do real pode ser dificultada pela configuração das demandas sociais expressas em seu sentido mais amplo, nas universidades e nas relações sociais presente no laboratório. A realidade psíquica, portanto, construída socialmente em laboratório, traria fortes traços ideológicos, a depender dessas condições.

Entretanto, ainda que a investigação de Danziger tenha representado um avanço na pesquisa historiográfica, consideramos que o autor deteve-se mais no exame das microrrelações sociais do interior do laboratório e na fabricação do resultado científico do que nas instituições envolvidas nas formulações das diretrizes políticas-econômicas e na sociabilidade nas quais estão inseridas.

Reconhecemos a importância das investigações de Danziger, porém acreditamos que o debate não se aprofundou na investigação da forma como este complexo de agentes institucionais e suas microrrelações integram-se no modo de produção capitalista. Importante notar que Danziger reconhece tal integração e até mesmo subordinação. Todavia, a explicação da natureza desta relação é pouco elaborada.

O modelo dos círculos concêntricos de Danziger (1990) é uma inegável contribuição à história da psicologia. Todos eles são igualmente importantes para a história da psicologia danzigeriana. Entretanto, o círculo mais interno, aquele destinado a representar as microrrelações sociais concernentes às práticas investigativas em laboratório sob a forma de três costumes (o alemão, o francês e o inglês), acabou por ser o mais enfatizado em relação aos demais círculos durante sua pesquisa. Tal destaque tem como consequência teórico-política principal a valorização de outras práticas investigativas locais e de suas inter-relações, o que, possivelmente, minaria a prática hegemônica neogaltoniana.

A inter-relação de várias psicologias e a síntese dinâmica de diversas visões de mundo remonta claramente a um dos aspectos da formação intelectual de Danziger: o pensamento de Mannheim. Afirmamos isso porque os historiadores das práticas investigativas atuariam como os intelectuais flutuantes das diversas psicologias locais, cujos esforços "transdisciplinares e internacionalizantes" visariam os universais humanos historicamente emergentes a partir de estudos transculturais (Danziger, 2007). Assim, os intelectuais travariam sua luta teórico-política no círculo mais interno do modelo dos círculos concêntricos.

Mas, perguntamo-nos: e quanto às relações entre as universidades e as fundações de pesquisa, as agências governamentais, as grandes editoras e empresas de circulação de artigos científicos, as indústrias e outros setores do capitalismo sob a forma de parcerias público-privadas? Qual o papel teórico-político do historiador da psicologia neste círculo intermediário? O mesmo vale para o caso do chamado industrialismo corporativo ou para o "capitalismo industrial" (Danziger, 1990), visto sua determinação social sobre as práticas investigativas, direcionando-as para a fabricação de produtos vendáveis.

Danziger apoiou-se numa ampla literatura que se resume à descrição da tessitura das redes de influência e condicionamentos mais amplos da produção do conhecimento científico na psicologia, mas sem o acompanhamento necessário da crítica. No entanto, de que adianta realizar a crítica das microrrelações sociais de laboratório sem estendê-las aos outros condicionamentos? Por que a crítica ao círculo interno tem desdobramentos teórico-políticos, enquanto que nos outros círculos a crítica confunde-se, meramente, com a descrição dos condicionamentos da produção do conhecimento científico?

É importante atentar para o curso dos acontecimentos históricos mundiais no momento em que as obras históricas de Danziger alcançam maturidade, sobretudo a partir da década de 1990. Neste período, a pauta da democracia, da integração de várias ideologias no mundo globalizado, estava sendo alvo de grandes políticas, realizadas por organismos transnacionais (Banco Interamericano de desenvolvimento, Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, Organização Mundial da Saúde, a Organização das Nações Unidas e congêneres). Essas tomavam corpo por meio de Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP's), fundações de pesquisa e de arrecadação de recursos de pesquisa, que são entidades sem fins lucrativos com missões e valores diretamente relacionados com os interesses políticos e econômicos de capitalistas de diversos setores (Fontes, 2010).

Da maneira como vemos, a crítica de Danziger por meio dos conceitos de "imperialismo cultural", "hegemonia estadunidense", "expansionismo econômico e político da América do Norte" (Danziger, 2006), empregadas para narrar o triunfo, após a Segunda Guerra Mundial, do modelo neogaltoniano sobre as demais práticas investigativas, não foram revertidas pelo crescimento apontado por ele dos estudos transculturais e do surgimento da perspectiva policêntrica e democrática. Ao contrário, foram engolfadas teórica e praticamente pela American Psychology Association (APA), instituição que participou abertamente dos esforços de duas Grandes Guerras Mundiais, da Guerra Fria e da internacionalização do modelo neogaltoniano. Prova disso é o livro que celebra os cento e vinte cinco anos de vida da APA. O livro traz diversos capítulos abrangendo estudos históricos críticos ao hegemonismo cultural estadunidense, sem que se tenha mudado absolutamente nada no, ainda atual, modelo neogaltoniano (Green & Cautin, 2017).

A APA conta hoje com 54 divisões voltadas para diversos temas, podendo haver, a depender da pesquisa ou temas de debates, a união entre parte delas. A divisão de número 52, intitulada Psicologia Internacional, divulgou documento que faz um balanço da trajetória da instituição ao longo de seus vinte anos (1997-2017) e expressa suas diretrizes fundamentais. Em síntese, o documento acentua que todas práticas psicológicas devem dar conta dos desafios globais "exemplificados pelas metas do Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas" (American Psychological Association [APA], 2017).

Atualmente o que observamos é que as distintas psicologias locais conseguiram um espaço na divisão 52 da APA e suas formulações transdisciplinares e internacionalizantes estão na mesma instituição que possui divisões voltadas para a psicologia experimental e a ciência cognitiva (Divisão 3), a psicologia aplicada e a engenharia psicológica (Divisão 21) a psicologia militar (Divisão 19), para citar apenas algumas, todas empregadoras do modelo neogaltoniano.

Essa constatação permite-nos colocar perguntas que deverão ser abordadas em trabalhos futuros. Em primeiro lugar, gostaríamos de saber quais são os limites da crítica construcionista social danzigeriana quando ela se volta à análise de práticas investigativas e à sua aparente universalidade, detendo-se em sua preponderância cultural sobre as demais práticas. Em segundo lugar, perguntamo-nos porque Danziger apenas descreveu o âmbito de determinações do círculo intermediário e externo e guardou a descrição e elaboração de projetos teórico-políticos somente para o círculo interno.

Vimos que o passado de luta política de Kurt Danziger em nome da democracia, contra o apartheid e toda sorte de visões de mundo autoritárias, refletiu-se no campo epistemológico no combate ao universalismo do modelo neogaltoniano por meio da valorização do policentrismo de visões de mundo psicológicas. Entretanto, enquanto Danziger observa o autoritarismo da visão de mundo neogaltoniana no círculo interno, parece haver a suposição de que os círculos intermediário e externo da pesquisa psicológica nos EUA não estão inseridos num regime político autoritário, mas sim num regime político democrático, cabendo ao historiador da psicologia, caso se engaje, lutar pela sua manutenção e aperfeiçoamento. Dessa forma, a perspectiva danzigeriana sobre o que é o autoritarismo pode ser aplicada nestes dois círculos se as diversas psicologias acharem-se escanteadas pelo fato de elas não produzirem produtos vendáveis. O desdobramento teórico-político seria, portanto, garantir visões de mundo psicológicas em diversas instituições de forma que não fossem tolhidas pelos imperativos do mercado. Por conta de suas escolhas teóricas e de sua posição de classe, aquela de pertença a um grupo de intelectuais flutuantes, também não houve nenhuma reflexão, até onde lemos, sobre a natureza do Estado no modo de produção capitalista, presente tanto em regimes políticos autoritários quanto democrático-liberais.

 

Considerações finais

A trajetória biográfica de Kurt Danziger é de uma riqueza avassaladora. Tendo trabalhado em cinco continentes, sua obra é igualmente rica e vasta, tendo sido traduzida para os mais variados idiomas, como o holandês, o alemão, o italiano, o japonês, o espanhol, o sueco, entre outros. Infelizmente, sua obra não encontrou igual acolhida no Brasil. As dificuldades encontradas por muitos estudantes para a leitura de idiomas estrangeiros, sobretudo o inglês; o descaso institucionalizado para com a História, a Memória e a documentação históricas, extremamente funcionais à dominação cultural; a incipiência de nossa historiografia da psicologia, ainda em vias de consolidação, todos esses fatores devem ter contribuído para que sua obra não merecesse a devida atenção. Além disso, há de se supor que os modismos intelectuais que vicejam na academia brasileira tenham contribuído para eclipsar as contribuições desse autor que, aos nossos olhos, e com todas as reservas apontadas, é um dos grandes historiadores da Psicologia moderna. Por essa razão, procuraremos dar prosseguimento à análise e à difusão de sua obra em trabalhos futuros, onde continuaremos a examinar suas contribuições, limites e contradições. Acreditamos que esse exame histórico-crítico auxiliará tanto na difusão de seu pensamento, quanto no avanço das reflexões necessárias ao desenvolvimento de uma história social da psicologia consciente de seu papel e de sua própria história.

 

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Submetido em: 09/04/2018
Aprovado em: 16/09/2018

 

 

1 Os autores partem de uma compreensão marxiana da sociedade e das crises sociais. Compreendendo a sociedade como uma totalidade articulada e composta por partes contraditórias, compreendem as crises sociais como o resultado do amadurecimento dessas mesmas contradições. A depender de circunstâncias objetivas e subjetivas, tais contradições podem conduzir à revolução. Esta, no entanto, é vista como apenas um dos resultados possíveis das crises sociais, uma vez que o desfecho revolucionário depende da ação dos sujeitos sociais, sem os quais, é escusado dizer, não há sociedade nem história. Portanto, considerar a sociedade como uma totalidade viva, dinâmica e contraditória não implica concebê-la, à maneira positivista e funcionalista, como um organismo ou um sistema fechado e mecânico, regido por leis universais, a-históricas e independentes da ação dos seres humanos singulares. Como argumentou Lukács (1978), a ontologia do ser social que subjaz à crítica marxiana da sociedade burguesa não reconhece teleologia na história ou na sociedade. Antes, enxerga a sociedade e a história como uma síntese de atos teleológicos singulares, jamais como a expressão de uma vontade metafísica ou de uma lei biológica ou físico-química. Aliás, é nisso que consiste a irredutibilidade do ser social (Lukács, 1978).
2 Essa formação foi importantíssima na trajetória de Danziger, não só por lhe haver proporcionado o contato direto com a prática científica no âmbito das ciências naturais, como por haver permitido, aos seus olhos, uma "desmistificação da ciência". A percepção de que a atividade científica é uma produção social e humana foi decididamente incorporada em seus desenvolvimentos teóricos e históricos ulteriores, contribuindo para a manutenção de seu realismo crítico, permitindo que evitasse o empirismo ingênuo e algumas das armadilhas do relati-vismo discursivista e microssociológico que marcou a produção acadêmica internacional a partir da década de 1990.
3 Literalmente, "ciência da alma", de acordo com Danziger, que aprendeu a língua nacional e lecionou nessa mesma língua. Segundo o autor, "Este termo traduz-se como ciência da alma, se tomamos 'ciência' não no sentido anglo-saxão de ciência natural, mas no sentido germânico e mais amplo de Wissenchaft. Esta outra psicologia baseou-se numa tradição filosófica local com sua literatura própria, que tem raízes históricas em precursores indianos" (Danziger, 2009, p. 106). "Não era psicologia ocidental de jeito nenhum. Era psicologia baseada essencialmente na filosofia indiana e algumas modificações em Java. (...) Não havia, para todos os efeitos, equivalentes psicológicos para as categorias psicológicas básicas que eram usadas neste mundo e vice-versa" (Brock, 1995, p. 12).
4 O Congresso Nacional Africano é um partido político sul-africano fundado em 1940 a partir do movimento de luta pela defesa dos direitos da população negra. Desde o fim do apartheid, em 1994, o CNA é o principal partido político da África do Sul, tendo sido o pacifista Nelson Mandela sua figura mais influente.

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