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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo maio/ago. 2019

 

ARTIGOS

 

Marcha das Vadias de Porto Alegre: uma análise das políticas de aliança

 

Political Alliances of the SlutWalk in Porto Alegre

 

Política de alianzas a partir de la Marcha de las Putas de Porto Alegre

 

Politique d'alliances de la SlutWalk de Porto Alegre

 

 

Daniela Dalbosco Dell' AglioI; Adolfo PizzinatoII; Paula Sandrine MachadoIII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul; danieladellaglio@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul; adolfopizzinato@hotmail.com
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul; machadops@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo parte da análise da ruptura ocorrida na Marcha das Vadias de Porto Alegre no ano de 2014, para pensar como se negociaram as políticas de aliança e coalizões dentro de um campo de tensões dos feminismos contemporâneos. Trata-se de um recorte de uma pesquisa de mestrado que acompanhou o processo de organização da Marcha das Vadias em caráter etnográfico e entrevistou sete pessoas que fizeram parte desse momento político. Aqui, são apresentadas brevemente as personagens a fim de refletir como se compôs a pluralidade em um campo de disputa que parecia ser polarizado. Essa análise busca ainda trazer uma reflexão mais ampla em relação aos movimentos políticos contemporâneos, suas pluralidades e negociações em campo identitário. Conclui-se que para pensar as alianças nas pautas é necessário considerar os marcadores sociais que se atravessam nos diferentes modos de fazer política feminista.

Palavras-chave: feminismos, coalizões, Marcha das Vadias, interseccionalidade, aliança


ABSTRACT

Marcha das Vadias de Porto Alegre: uma análise das políticas de aliança. Psicologia Política, 19(45), p 216-228 The aim of this article is to apply the analysis of rupture that occurred in the SlutWalk, during 2014 in Porto Alegre, to explore how alliances and coalitions were negotiated in a contemporary feminism tension field. This is part of a master's research that followed the SlutWalk organization, in an ethnographic process, and interviewed seven people who were part of this political moment. Here, the characters are briefly introduced in order to reflect how the plurality was composed in a dispute field that seemed to be polarized. This analysis also seeks to bring a broader reflection on contemporary political movements, their pluralities and negotiations in the identity field. In conclusion, in order to think about the alliances in the feminist guidelines, it is necessary to consider social markers that are crossed in the different ways of doing of feministpolitics.

Keywords: feminisms, coalition, SlutWalk, intersectionality, alliance


RESUMEN

Este artículo parte del análisis de la ruptura ocurrida en la Marcha de las Putas de Porto Alegre en el ano 2014, para pensar cómo se negociaron las políticas de alianza y coaliciones dentro de un campo de tensiones de los feminismos contemporáneos. Se trata de un recorte de una investigación de maestría que acompanó el proceso de organización de la Marcha de las Putas en carácter etnográfico y entrevistó a siete personas que formaron parte de ese momento político. Aquí, se presentan brevemente los personajes para reflejar cómo se compuso la pluralidad en un campo de disputa que parecía ser binario. Este análisis busca aún traer una reflexión más amplia en relación a los movimientos políticos contemporáneos, sus pluralidades y negociaciones en campo identitario. Se concluye que para pensar las alianzas en las pautas feministas es necesario considerar marcadores sociales que se atravesan en las diferentes formas de feminismos.

Palabras-clave: feminismos, coaliciones, Marcha de las Putas, interseccionalidad, alianza


RÉSUMÉ

Cet article commence par l'analyse de la rupture survenue lors de la SlutWalk de Porto Alegre en 2014, afm de réfléchir à la manière dont les politiques d'alliance et de coalitions ont été négociées dans un champ de tensions du féminisme contemporain. Il s 'agit d 'une partie de la recherche d 'un Master qui a accompagné le processus d 'organisation de la SlutWalk à caractère ethnographique et qui a interrogé sept personnes qui faisaient partie de ce moment politique. Ici, les personnages sont brièvement présentés afm de refléter la composition de la pluralité dans un champ de controverse qui semblait être polarisé. Cette analyse cherche également à apporter une réflexion plus large sur les mouvements politiques contemporains, leurs pluralités et leurs négociations dans le domaine de l'identité. Il est conclu que, pour penser les alliances dans les lignes directrices, il est nécessaire de considérer différents marqueurs sociaux croisés dans les différentes formes de féminisme.

Mots-clés: féminismes, coalitions, SlutWalk, intersectionnalité, alliance


 

 

Introdução

Este artigo parte de um acontecimento concreto: a ruptura ocorrida na Marcha das Vadias de Porto Alegre no ano de 2014. Esse fato caracteriza-se pela divisão em dois trajetos de uma Marcha que costumava seguir um único caminho. Consideramos esse momento político paradigmático para pensarmos os feminismos atuais, as tensões, as divergências dos movimentos sociais e políticos. A partir disso, refletimos como se dão as políticas de coalizão e aliança, e como podemos analisá-las de maneira que conversem com os movimentos contemporâneos.

A Marcha das Vadias - ato feminista que teve seu início devido ao "direito da mulher se comportar enquanto vadia", buscando ressignificar, assim, o termo "vadia" - começou no Canadá em 2011 e, logo, devido ao grande compartilhamento nas redes sociais, tiverem edições em diferentes lugares do mundo, inclusive no Brasil (Dutra & Nunes, 2015). Em Porto Alegre, contexto aqui analisado, teve a sua última edição no ano de 2015. Devemos compreender esse movimento associado a um momento político global dos movimentos sociais, como a Primavera Árabe, o Ocuppy Wall Street e, no Brasil, as Jornadas de Junho em que se caracterizaram por serem organizados através das redes sociais e por pessoas que não tinham, necessariamente, vinculação anterior com algum movimento ou partido político, por não ter uma figura de liderança e, ainda, por se organizarem a partir da ideia de autogestão (Fictícia, 2014; Lopes, 2013; Moreira & Santiago, 2013).

O movimento da Marcha das Vadias assumiu diferentes formatos e trajetos, em suas diferentes edições; costumando sair do Parque da Redenção - local central na cidade e bastante frequentado aos finais de semana e conhecido também por ser espaço de realização anualmente da Parada Livre, entre outros eventos e manifestações políticas e sociais - e direcionando-se a pontos variados, bem como envolveu variados debates, diferentes pessoas e coletivos, sendo todos atravessados pelas pautas e discussões feministas. A Marcha, que costumava ter um único caminho, no ano de 2014 foi interpelada por diferentes tensões e divergências que acabaram levando-a tomar dois rumos.

Anteriormente ao evento da Marcha, houve alguns conflitos durante a sua organização, como: o caminho que a Marcha das Vadias daquele ano seguiria; desconforto de pessoas trans em relação a uma postagem virtual que dizia que cis1 era uma invenção da pós-modernidade feita por uma das organizadoras (o que criou as acusações de "pós-modernas" e "transativistas" a respeito de quem apoiava as causas das pessoas trans); acusações de que havia sido marcadas reuniões sem informar as demais interessadas na organização; a data da Marcha ser trocada, também, sem comunicação; entre outras discordâncias que se davam nas discussões que mostravam que diferentes feminismos estavam sendo disputados, como os debates que envolviam estratégias políticas e conceitos feministas em relação à prostituição, a performances pornoterroristas e a ações anarquistas que eram acusadas enquanto "liberais". Esses conflitos fizeram com que a organização se polarizasse. Ambos compunham a organização da Marcha, mas, devido à dificuldade de uma decisão consensual, um grupo passou a se reunir para além das reuniões oficiais e se nominou Bloco Autônomo da Marcha das Vadias, do qual a primeira autora deste artigo participou ativamente.

Até esse momento, anterior a Marcha acontecer, sabia-se, portanto, que um grupo iria em direção à delegacia da mulher e que, lá, entregaria uma carta de reivindicações em relação às mudanças de políticas públicas. O Bloco Autônomo da Marcha das Vadias, grupo que podemos chamar aqui de "dissidente", resolveu tomar outro caminho, após tentativas sem sucesso de modificar esse trajeto. Essa decisão significou um questionamento em relação às práticas tomadas pelo primeiro grupo que envolviam a institucionalização das demandas feministas e o enfoque das pautas em mulheres cis. 2 explicando o porquê dos dois caminhos e já informando que isso aconteceria durante a Marcha.

A Marcha iniciou e, em um determinado momento do trajeto, parte das manifestantes desviou do caminho inicialmente proposto. Nesse local em questão, aconteceu uma intervenção em protesto contra o racismo e a violência contra a periferia e mulheres negras, organizado por um coletivo de mulheres negras. Esse trajeto dissidente se caracterizou por percorrer um bairro central da cidade -Cidade Baixa - conhecido pelos bares e cena cultural, em que houve ações diretas em espaços comerciais considerados machistas e homofóbicos, com pichações, escrachos, performances, tendo seu ponto final em um largo público - Largo do Zumbi - onde houve diferentes apresentações artísticas.

Essa pesquisa, em um primeiro momento, a partir da observação e da participação política nas "tretas"3, percebeu o cenário de modo dicotômico: os dois lados que se dividiram nos caminhos traçados no ato do dia da Marcha das Vadias. Aos poucos, a partir do andamento da pesquisa, essa polarização foi sendo desconstruída e complexificada. Ao reformular os caminhos metodológicos, foi possível se aproximar a um leque de feminismos que compuseram o momento da ruptura da Marcha das Vadias naquele momento.

A partir da perspectiva dos Estudos Feministas e da Psicologia Política, objetiva-se pensar como as políticas de coalizão e alianças podem ser observadas no cenário da Marcha. Quais os grupos que estavam presentes nesse momento? Como pensar além dos "dois lados" da disputa, para enxergar esse fenômeno de maneira mais complexa? Para isso, a partir de uma breve reflexão sobre afinidades encontradas que perpassam lugares sociais, marcadores sociais, trajetórias e identificações, se refletirá como as pessoas que estiveram presentes nesse momento constroem e produzem coalizões e alianças possíveis. Para essas provocações nos propomos a dialogar também com uma recente publicação da Judith Butler (2018): Corpos em aliança e políticas das ruas. A partir disso, buscamos compreender como as afinidades e as diferenças encontram potencialidades para caminhar ao lado em alguns momentos, já em outros não.

 

Identidade(s) política(s) feminista(s)

Para entender o conceito de identidade, tal como pode ser empregado no campo dos estudos feministas, os estudos de gênero e Psicologia Política, partimos, primeiramente, de algumas das reflexões propostas por Judith Butler (2010). A autora, na esteira da maior parte dos estudos na área, não entende a identidade enquanto essência, mas sim remete este conceito a um campo dialógico de trabalho permanente, de (re)construção discursiva através do qual o próprio sujeito se compõe. Para compreender sua noção de identidade é, portanto, importante que possamos rever a própria definição de sujeito nesse campo analítico. Joan Scott (1999) aponta que o sujeito é constituído através da experiência, visão que se aproxima à de Butler, que entende que o sujeito se produz através da ação. Isso significa que é através de uma reiteração de atos performativos (Butler, 2010) que se consolida o sujeito e se constituem, consequentemente, os marcadores que chamamos de identitários.

Dessa forma, não há identidade por trás das expressões, não há identidade nem "ser" anterior ao fazer. O gênero, marcador utilizado por Butler (2010) para problematizar essa questão, é produzido no âmbito de discursos culturais e subculturais, que são responsáveis pela criação do nosso sexo, nossa sexualidade, nosso gênero. Butler (2010) utiliza, então, o conceito de performatividade que remete a um ato sem um ator, contestando a noção de sujeito como preexistente. O gênero é, nesse sentido, performativo, porque é através da reiteração de atos que se consolida o sujeito e se constitui o gênero.

Podemos fazer esse paralelo em relação a outros marcadores identitários que compõem os sujeitos. No presente trabalho estamos partindo da ideia de "pertencimento feminista" identificado nas entrevistas, ou seja, como as pessoas que fizeram parte do momento político da ruptura nomeiam o seu pertencimento feminista, atravessado às suas interseccionalidades e caminhos políticos.

Dessa forma, estamos tomando as identidades aqui não enquanto algo fixo ou imutável, mas enquanto processos de identificações transitórios, em movimento, marcados por negociações de sentido, jogos de polissemia e choques de temporalidades, como aponta Boaventura de Souza Santos (2003) ao dialogar com os movimentos sociais e políticos no que chama de pós-modernidade. Para o autor, essa perspectiva é revolucionária, uma vez que rompe os paradigmas epistemológicos essencialistas e passa a entender as identidades enquanto identificações em curso.

Partindo de alguns pressupostos teóricos da Psicologia Política, entendendo a identidade não enquanto algo estanque, devemos dialogar com essa perspectiva para compreender a identidade coletiva e a identidade política. Para Frederico Viana Machado (2007) os significados dessas identidades variam em caráter transitório e em função das relações que se estabelecem e produzem reconhecimento e reciprocidade social e política, sendo, portanto, um processo que se relaciona não só com identificações, mas também com as ações políticas que se estabelecem a partir de determinados grupos. Por isso, compreender as práticas políticas e coletivas é um caminho para compreender as identidades que se estabelecem dentro dos movimentos políticos.

Marco Aurélio Máximo Prado (2002) discute que a identidade coletiva pode ser entendida um processo de construção social que se apresenta publicamente como uma unidade parcial e provisória, mas contextual e estrategicamente funcional. Ou seja, ela não se dá ou se totaliza a todo o momento. Sua configuração vai depender das relações que se estabelecem em determinado contexto e momento político. Por isso, Prado ainda pontua que é a partir da diversidade e dos conflitos existentes que essas identidades se tomam enquanto unidade de conceituação e análise. Na esteira de análise psicopolítica, Melucci (1996) entende que o estudo das identidades coletivas deve se centrar exatamente nos conflitos que permanecem submersos na aparente unidade na qual se apresenta um determinado ator político, exercício que estamos fazendo neste estudo. Machado (2007), ao dialogar com esses autores, afirma que as formas de participação política menos institucionalizadas e que buscam a formação de identidades coletivas se interessam, entre outras coisas, por romper a invisibilidade social e abrir o debate público em torno de demandas sociais específicas.

Pensar as identidades políticas com referência à Psicologia Política é pensá-las enquanto um conjunto temporário de significados que delimitam fronteiras nas questões dos direitos sociais. E, exatamente por isso, a identidade é experienciada com um NÓS, que está sendo impedido por um ELES de realização de suas demandas sociais, portanto, como uma relação antagônica, segundo Prado (2002), quando discute as conceituações de Chantal Mouffe (1992). Pensar as identidades feministas dentro dessa análise seria não apenas pensar o ELES enquanto "o machismo", mas pensar também aquela identidade coletiva a qual eu não me identifico, aquilo que eu não sou, dentro de uma disputa como a que podemos observar no movimento político em questão neste artigo.

 

Aspectos Metodológicos

As reflexões presentes neste artigo partem de uma pesquisa de mestrado e dos processos posteriores que envolvem banca, trocas, conversas. Trata-se de um estudo qualitativo, de orientação etnográfica, em um contexto de movimentos sociais feministas. A primeira autora deste artigo participou ativamente do movimento político feminista da Marcha das Vadias e de outros grupos e coletivos anteriormente ao início da pesquisa "em si". Por isso, as fronteiras entre ser pesquisadora e militante se borraram frequentemente, o que permitiu um envolvimento para além do acadêmico, questionando o suposto lugar da neutralidade não implicada no contexto da pesquisa.

Essa experiência ativa permitiu que fosse feito o exercício do estranhamento daquilo que parecia comum no olhar de quem estava imersa ao contexto. Por isso, alguns pressupostos, como o qual o feminismo estava "dividido em dois", foi sendo desconstruído ao longo do processo da pesquisa, permitindo um olhar que atentasse às formas de ser feminista na cidade, com suas identidades, de pessoas que carregam trajetórias de vida e marcadores sociais plurais.

A pesquisa inseriu-se, portanto, de forma ativa e militante em reuniões e eventos organizados pela Marcha das Vadias da cidade de Porto Alegre, no próprio dia da Marcha e, ainda, em eventos organizados por movimentos feministas. Posteriormente, foram realizadas sete entrevistas, com hora marcada, em diferentes locais da cidade com pessoas que fizeram parte da Marcha, tanto organizando, quanto participando do ato. Questões éticas em relação à confidencialidade dos dados levaram à mudança do nome das pessoas entrevistadas, porém, é importante ressaltar que muitas delas são figuras politicamente públicas e que podem vir a ser reconhecidas por outras que fazem parte dessa mesma rede, o que foi amplamente negociado no momento da pesquisa.4

As sete pessoas entrevistadas foram contatadas pela pesquisadora, por conhecimento de seu envolvimento com a Marcha daquele ano. São elas: Jéssica - mulher, branca, bissexual, mãe, 29 anos, trabalha em agência publicitária, organizadora da Marcha das Vadias desde a primeira edição, fazia parte da Rede Relações Livres; Marta - mulher, cis, branca, lésbica, 28 anos, estudante, ativa no movimento estudantil de gênero e questões LGBTTT; Renata - mulher, cis, parda, bissexual, mãe, 35 anos, natural de Alegrete, filiada a partido político, assessora parlamentar, participa da UBM; Bianca - mulher, cis, branca, 27 anos, estudante, educadora social, ativista, ativa no movimento estudantil e anarquista; Anita - mulher, cis, negra, 25 anos, estudante, moderadora de uma página no facebook sobre feminismo negro; Marcos - homem, trans, branco, gay, 28 anos, estudante; Carol - mulher, cis, heterossexual, mãe, 27 anos, estudante, participa de atividades políticas na cidade. As entrevistas serviram, também, como um momento de conciliação das "tretas" anteriores. Ao falar sobre o assunto, foi possível compreender seus lugares de ação política e desenvolver as reflexões que seguem.

 

Dentre pluralidades e antagonismos

A partir das reflexões em relação ao conceito de identidade, partirmos da experiência da Marcha das Vadias de 2014 para pensar como que as identidades plurais se encontraram em um campo de disputa antagônico. Ao pensar aquilo que "eu não sou" ou naquilo que "eu não me identifico", no contexto do movimento podemos observar as categorias de acusações que se constituíram como um antagonismo identitário (Laclau, 1993). Acusações como "liberal", "transativista", "pós-moderna", criadas por pessoas que estavam do "lado" que se direcionou à delegacia da mulher, contribuíram para criar a identidade do grupo dissidente, mesmo que ela não seja uniforme. Dentro dessa pluralidade de um "lado" do racha percebemos a produção de equivalências, que seria "uma redefinição destes antagonismos na construção de um projeto hegemônico que expressa uma negação do sistema discursivo hegemônico, dividindo o espaço social e condensando significados em torno de dois pólos antagônicos" (Costa, 2013, p.579). Ou seja, as pessoas que resolveram não andar junto em direção à delegacia da mulher constituíram certa negação do discurso feminista que estava se tomando enquanto hegemônico, ao mesmo tempo em que não estavam recusando a proposta da Marcha em si. Ambos os movimentos estavam num lugar de luta "contra o machismo", por mais que carreguem perspectivas do que ele significa de maneiras plurais.

Aqui podemos entender como um campo de tensão dentro das políticas de esquerdas, que pode ser sustentada "na lógica da equivalência entre um maior número de antagonismos democráticos possíveis a fim de combater todas as desigualdades" (Prado & Costa, 2011). A experiência no movimento tensiona, ao mesmo tempo em que dialoga com essa afirmação. O racha denuncia possíveis opressões dentro do próprio campo da esquerda, uma vez que questiona a unidade e o sujeito universal e "total" dos feminismos contemporâneos, ao evidenciar, por exemplo, a opressão contra as mulheres trans no movimento. Porém, ainda se mantém uma unidade dentro do movimento chamado Marcha das Vadias, em si, pois, mesmo havendo uma ruptura, estava-se agindo dentro do mesmo espaço político. Ou seja, ambos movimentos estiveram provocando "o alvo", porém através de estratégias diversas e plurais, não necessariamente rompendo com o "eles" (o machismo) falado acima.

Essa discussão dialoga com a noção de política produzida na contemporaneidade, uma vez que a identidade "total" essencialista dos movimentos sociais estão sendo questionadas a partir da construção de um projeto para a esquerda que pense as diferenças diante da dispersão do universal (Costa, 2013). Laclau e Mouffe (1985) propõem um projeto de democracia radical e plural que dê conta de questionar essa identidade única que, segundos os autores, é sempre um ato de poder, sendo decorrência da articulação de um conjunto de elementos contingentes que se hegemoniza a partir da exclusão daquilo que o ameaça.

Percebemos que a produção desse modo de fazer política não se constituiu através da lógica do consenso, uma vez que, ao invés de insistir na proposta de direcionar a Marcha à delegacia da mulher, mesmo estando visíveis as divergências e acusações entre os grupos organizativos, se optou, portanto, no desvio. Esse ponto coloca em questão a política em si, uma vez que Jacques Rancière (2009) entende a política enquanto um campo de tensão. Ou seja, aquilo que pode aparentar enquanto uma fragilidade pode-se entender enquanto a própria política. Um grupo que se divide pode ser compreendido, a partir dessa perspectiva, como a construção do próprio ato político. Diferentemente de polícia, que para Rancière (2010, p. 43) seria "o conjunto dos processos mediante os quais se efetuam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição", ou seja, a tentativa de homogeneização das práticas, através de mecanismos de controle social e do uso constante e compulsório de uma normativa (Pizzinato, Tedesco & Hamann, 2017).

Ainda em diálogo com Rancière (2009), o filósofo trabalha com o conceito da "partilha do sensível", que significa o espaço fronteiriço, intrinsecamente comunicacional, de sensibilidade e atribuições de sentido dentro do campo de disputa política. Desse modo, o campo de disputa política seria um regime de sensorialidade. Para falar dessas características que compõe um campo político, Rancière (2009) traz a sensibilidade da arte. Na Marcha das Vadias, podemos pensar que existe, também, uma disputa estética dentro do "racha" que aconteceu. O lado que estamos chamando aqui enquanto dissidente trazia características de um campo político anarquista e queer5, que trouxe provocações estéticas de uma maneira mais direta, como corpos nús, máscaras tapando os rostos, performances pornoterroristas, pichações ao longo de percurso, queima de objetos, além dos cartazes com frases provocativas, que se caracterizam como práticas de ação direta, bastante utilizadas nos movimentos anarcafeministas, o que podemos entender, a partir de Rancière, enquanto uma "rebeldia estética".

Entendemos que dentro desta disputa estão em jogo também questões morais que são atribuídas em conjunto a qual feminismo me identifico e qual feminismo eu não sou, como o antagonismo já mencionado. Ou seja, a provocação estética por meio do dissenso é a própria experiência sensível, como sugere Rancière (2009). Além de identificações e identidades, estamos trazendo modos de ser na cidade e ocupar o espaço público - fato que a Marcha deixa evidente como um objetivo, sendo toda ela na rua. A Marcha existe para ser uma passeata agradável aos olhos daqueles que não participam, ou serve para um afrontamento estético-político frente à população - para além dos demais efeitos possíveis e de suas fronteiras? Essa questão cria um jogo de opostos e também caminhos polarizados dentre as identificações, ao mesmo tempo em que unifica o que foi o movimento Marcha das Vadias naquele ano.

 

Coalizões

Após termos descrito o acontecimento da ruptura da Marcha das Vadias de 2014 e feito reflexões sobre esse momento a partir de contribuições da Psicologia Política, a discussão que segue nos próximos tópicos se organiza através de dois eixos: a análise de coalizões e a política de alianças entre corpos precários. Para Butler (2018) precariedade depende da organização das relações econômicas e sociais, da presença ou ausência de infraestruturas e está associada à política de organização e proteção das necessidades do corpo, portanto, os corpos que habitam e se manifestam na Marcha das Vadias em suas pluralidades. Aqui, nesse primeiro momento, analisaremos como foram construídas negociações e identificações frente aos diferentes feminismos.

Dentre o "racha" que aconteceu no movimento e os feminismos que se expressam dentre as pessoas entrevistadas nesta pesquisa, podemos identificar que o feminismo radical (Carol e Jéssica), feminismo marxista (Jéssica) e feminismo emancipacionista (Renata) estavam do "lado" que foi à delegacia da mulher. O feminismo interseccional (Marta e Anita), anarcafeminismo (Bianca), feminismo negro (Anita) e transfeminismo (Marcos) foram para o "lado" dissidente. Podemos encontrar algumas afinidades no que se refere aos percursos políticos das pessoas entrevistadas. Portanto, como que esses caminhos foram possibilitando possíveis coalizões e alianças dentro do contexto da Marcha das Vadias?

A participação anterior em partido político, como na vida de Jéssica e Renata, mulheres cis brancas, foi um fator que possibilitou o estabelecimento de redes sociais, contato com bibliografias e materiais teóricos de esquerda. Ambas estiveram presentes em movimentos que estavam conectados com sindicatos, setorial de partido, orçamento participativo, campanhas políticas. Jéssica conta que, em sua juventude, o movimento estudantil era mais orientado pelos movimentos sociais de envolvimento partidário, o que a levou a ingressar em um partido político nessa época, a ler uma grande quantidade de teorias e a participar de formações que compunham a agenda do partido, fazendo com que se formasse "intelectualmente" na esquerda.

No percurso de Bianca, Marcos e Marta podemos enxergar algumas experiências que se aproximam do anarquismo, mesmo não sendo essa a definição feminista de todos. Marta, mulher cis branca, em vivência de uma ocupação quando fez intercâmbio na Europa e na participação de movimentos queer e LGBTTT universitários e Bianca, mulher cis branca, por sua inclusão em movimentos autônomos, principalmente no movimento estudantil. O anarquismo, para Marcos, que é um homem trans branco, esteve junto compondo a sua trajetória, uma vez que passou a se questionar sobre assuntos como repressão e poder, pensando outras maneiras de vida mais livre, de modo a frequentar espaços e a conhecer pessoas que se identificavam com o anarquismo. Participou também de alguns movimentos políticos, como as manifestações contra o aumento das passagens.

A participação nos movimentos sociais é uma experiência comum a todas as pessoas entrevistadas. Porto Alegre, tomada por uma onda de movimentos que estavam acontecendo ao redor do mundo, como a Primavera Árabe, teve importante participação nos movimentos contra o aumento das passagens de ônibus, as "Jornadas de Junho" e também manifestações contrárias aos cortes de árvores pela prefeitura (Oliveira, 2013). Esses movimentos somados acabaram levando à Ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre (Oliveira, Müller, Natusch & Forquim, 2013) em 2013. A Marcha das Vadias se encontra atravessada a esses movimentos, assim como está a construção de outros movimentos e coletivos feministas.

Desse modo, a participação nos movimentos de junho de 2013 também é um ponto que circula dentro da trajetória política das pessoas entrevistadas. Com isso, podemos pensar qual o contexto político que possibilitou esse encontro. Adolfo Pizzinato et al (2016), ao etnofotografarem esse momento político na cidade de Porto Alegre, identificam alguns fenômenos que o caracterizam. Ao mesmo tempo em que ocorria o movimento contra o aumento das passagens, a ocupação dos espaços urbanos apresentava temáticas também com questões de gênero e identidades sexuais não-hegemônicas, críticas à desigualdade socioeconômica, temáticas ambientalistas e contestação à privatização de espaços públicos, incluindo, portanto, a Marcha das Vadias nesse contexto.

Ainda, a utilização do espaço público onde se concentra alta circulação de pessoas, a utilização das redes sociais para fazer o convite - em especial o facebook, o que torna os movimentos mais horizontais nas decisões e descentraliza, portanto, a figura de um possível líder. Ainda, a utilização de cartazes e performances como comunicação das mensagens e reivindicações políticas. Dentro dessas características, também se encontra o evento em que Carol, mulher cis branca, relata ter construído com demais parceiras feministas, que foi o Biquinaço na Redenção, em que, a partir desse evento, passou a criar laços com feministas que se consideram radicais e vieram a construir a Marcha das Vadias no ano de 2014.

Ainda podemos dizer que todas as pessoas entrevistadas que se direcionaram ao lado oposto à delegacia da mulher têm algum vínculo universitário. Dentro de um feminismo que podemos considerar "acadêmico", é frequente enxergar pautas voltadas à interseccionalidade dando visibilidade às identidades trans e às questões de raça. A questão das identidades trans foi um ponto de tensão no racha, uma vez que as gurias do feminismo radical pareciam não considerar o elevado número de assassinatos de mulheres trans e travestis, uma vez que carregavam faixas que diziam não sei quantas mulheres foram assassinadas esse ano. Marcos, a partir desse apontamento, pergunta: será que nessas mulheres elas estão contando as mulheres trans e travestis ou eram só as mulheres cis?

É importante levar em consideração que, no primeiro ano da Marcha das Vadias, essas diferentes problematizações pareciam não estar na pauta. Conforme relatado pelas pessoas entrevistadas desta pesquisa, as diferentes manifestações pareciam ser mais bem aceitas, sem tantos conflitos e argumentações, porém, assim que a Marcha foi tomando forma e amadurecendo, as "tretas" começaram a surgir. Podemos arriscar a dizer que, num primeiro momento, havia uma tentativa de coalizão entre diferentes perspectivas que faziam com que a Marcha acontecesse, o que não significa que as participantes de fato concordavam em tudo, uma vez que não havia alguns debates tão amadurecidos. Em artigo de Mariana Dutra e Tiago Nunes (2015), os autores colocam essa questão em análise, uma vez que perguntam se é possível perceber uma rede de coalizão de diversos feminismos que dialogam dentro do que as autoras estão chamando de "três ondas do feminismo".

A partir da observação do campo da Marcha das Vadias de Porto Alegre e São Paulo, Dutra e Nunes (2015) puderam perceber disputas entre grupos de extrema esquerda, vinculados a partidos políticos, e grupos apartidários. Mesmo havendo temáticas em comum, os autores acreditam que parece precipitado concluir que a Marcha das Vadias pode ser considerada uma rede capaz de realizar a coalizão de diversos feminismos, o que não difere de nossa observação, pois ainda que haja pluralidades, ainda existe certo padrão de um campo privilegiado de quem participa, em relação especialmente à raça e à classe, sendo um movimento, de sua maioria, mulheres brancas e universitárias.

Além desses "dois lados" existe uma questão ainda mais profunda, que são as nuances e pontos comuns existentes na complexidade interna de cada um desses grupos, tanto de seus marcadores sociais, vivências, e prática políticas - por mais que falemos em identificações e identidades, estamos ao mesmo tempo olhando para as singularidades dos sujeitos e suas experiências. Por isso, consideramos importante que as categorias de gênero e raça das pessoas entrevistadas sejam especificadas a fim de compreendê-las não só a partir de suas identidades, mas, sobretudo, dos lugares em que se situam enquanto sujeitos e que produzem caminhos possíveis para o ativismo político e suas trajetórias de vida.

 

Política das alianças entre corpos precários

Judith Butler (2018) relata uma situação que dialoga com o acontecimento da Marcha das Vadias de 2014 de Porto Alegre, ao qual vivenciou na Turquia, onde pessoas transgêneras são multadas por aparecer em público e, ainda, muitas vezes são espancadas pela polícia. Esse contexto ocasionou em um ato público em apoio às pessoas trans. Participar desse evento, segundo Butler (2018), significa não só ser a favor do direito de liberdade das pessoas trans, mas também, ser contra a militarização da polícia, e, consequentemente, ser contra a violência policial contra os curdos e ao não reconhecimento de suas reivindicações políticas. Ou seja, estar neste ato, com essa reivindicação, carrega também outras questões políticas em conjunto. Como paralelo ao acontecimento da Marcha das Vadias de 2014, podemos pensar que o lado dissidente também denunciava a violência policial, principalmente em relação às pessoas negras - quando se nega a direcionar a Marcha à delegacia da mulher, além de se aliar com as pessoas trans. Ou seja, uma "escolha" de caminho tem por trás outras causas políticas que vão além do objetivo principal da Marcha das Vadias em si.

A fala de Anita, mulher cis negra entrevistada, evidencia essa questão:

tá, mas a delegacia também não nos representa, eles estão matando nossos manos pretos pra caramba, estão violentando a população negra. Se a polícia é a que mais violenta a população negra, então como que a gente vai pra lá, pra meio que tipo estar lá na frente, com aqueles caras, as primeiras que vão cair vai ser a gente, né".

De modo similar, Marcos relatou nas entrevistas que preferiu não participar ativamente das reuniões de organização com receio que pudesse ouvir algo que fosse desconfortável para ele em relação a ser uma pessoa trans. Ou seja, violências estruturais - como o racismo e a transfobia - também estavam em jogo dentro das alianças.

Desse modo, estamos falando que condições sociais, não necessariamente uma "identidade" atravessam categorias e produzem alianças potenciais entre aqueles que não reconhecem e pertencem uns aos outros (Butler, 2018). Aqui podemos pensar na precariedade das vidas de pessoas trans, pobres e negras além da categoria de ser mulher que predominava a Marcha das Vadias. "Se você aparece como um corpo na rua, você ajuda a fazer a reivindicação que surge desse conjunto plural de corpos, reunidos e persistindo ali", desse modo Butler (2018) sugere que a política de gênero deve fazer alianças com outras populações amplamente caracterizadas como precárias.

Para pensar as alianças, portanto, segundo Butler (2018) é necessário olhar para todas as pautas que circundam aquele momento político. Não falar apenas de "gênero". Portanto, a ideia de um contra hegemônico em relação "ao machismo", como provocado anteriormente por Laclau e Mouffe (1985) se borra, uma vez que, segundo a provocação de Butler (2018) não tem como olhar para um único marcador sem pensar todos os outros atravessamentos em relação aos corpos precários. Aqui se toma importante reforçar a importância de uma perspectiva interseccional (Brah & Phoenix, 2004), que leve em conta os marcadores sociais, tais como deficiência, geração, raça, etnia, gênero, sexualidade e classe.

Analisamos como os marcadores sociais da diferença que ocupam o lugar da precariedade compunham um diálogo frente às alianças. Pessoas e coletivos que estavam pautados pelos marcadores de transgeneridade e de pessoas negras compuseram esse lugar de apoio mútuo, não ao acaso. Dentro desse lugar de dissidência coube um questionamento sobre a identidade do sujeito do feminismo "mulher", não enquanto algo dado, mas enquanto uma disputa que mantém um processo complexo e contingente suscetível a transformações.

Dentro dessas complexidades, Scott (2005) sugere a política enquanto a negociação do impossível, o que dá abertura para constantes formulações, arranjos sociais e negociações. Dessa forma, longe de chegar a uma solução final e totalizante, as melhores soluções políticas na contemporaneidade reconhecem os perigos de insistir em identidades fixas, assim como em movimentos que buscam através da repetição estratégias de combate.

Para Butler (2018) a resistência à precariedade têm que estar baseadas na reivindicação de que as vidas sejam tratadas igualmente e que sejam igualmente vivíveis, o que fala de que modo e por quais valores as comunidades lutam. Para a autora, portanto, as alianças que envolvem os direitos das minorias sexuais e de gênero devem formar ligações com a diversidade da sua própria população e todas as ligações que isso implica com outras populações. Grupos que são compostos por diversidade em relação a contexto de classe, raça e religião devem estar atentos às suas especificidades a todo o momento. Uma luta que não daria visibilidade à diversidade dentro do próprio movimento, não seria válida. Por isso, o foco da luta deveria ser a precariedade de modo a construir uma política igualitária. Desse modo, para Butler (2018), uma luta plural não designaria uma identidade, mas sim, uma aliança.

 

Considerações Finais

Essa análise nos permitiu enxergar o "racha" da Marcha das Vadias de 2014 de Porto Alegre para além da forma dicotomizada "dissidentes" e "não dissidentes", para que pudéssemos perceber esse momento enquanto uma possibilidade de alianças. Alianças essas que podem existir em algum momento e representar lados opostos em outros. Por isso, as entendemos enquanto provisórias e contingentes. Alianças, essas, que tornaram possível a Marcha daquele ano acontecer e dar conta, ao mesmo tempo, de diferentes perspectivas práticas e teóricas do que se entende por feminismos.

Os grupos que participaram da Marcha das Vadias daquele ano circulam em diferentes espaços sociais, coletivos, movimentos e compõem diferentes histórias de vida e marcadores sociais, complexificando ainda mais a identidade feminista, e, portanto, o sujeito da Marcha das Vadias. Sujeito político este que evidencia conflitos que atravessam os feminismos contemporâneos e fazem parte do processo de manter os feminismos em constante movimento. Desse modo, não devemos lamentar o fim da Marcha das Vadias, mas sim reconhecer sua potência localizada num momento político em que tanto as alianças quanto as divergências foram necessárias para a produção constante de novos modos de fazer política feminista.

Entendemos, portanto, que houve alianças possíveis dentro de um contexto de disputas e divergências. Alianças essas que são atravessadas por marcadores sociais e trajetórias, definindo também lugares sociais da precariedade. Entendendo os movimentos sociais dentro do seu fluxo, a não continuidade do movimento Marcha das Vadias fala, portanto, de um momento político em que suas negociações estão frágeis ou se expressam em modos de fazer política que contestem uma identidade comum ou unidade. Cabe, a partir dessa experiência, fazer o exercício de abrir mão de uma identidade politicamente reconhecida - as mulheres - para tecer outros caminhos que potencializem a diversidade, os direitos humanos e, consequentemente, as alianças.

 

Referências

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Recebido em: 05/11/2018
Aprovado em: 11/03/2019

 

 

1 Uma pessoa cis é aquela que, politicamente, detém um status de privilégio em detrimentos das pessoas trans, ou seja, ela é politicamente vista como "alinhada" dentro de seu corpo e de seu gênero. Não há como medir cisgeneridade, assim como não há como medir transgeneridade. As categorias de gênero são fluidas e instáveis. Porém, isso não quer dizer que essas pessoas deixem de ser percebidas socialmente como cis, mantendo privilégios como tal. Em outras palavras, pessoas cis são aquelas que no discurso médico são chamadas de "biológicas", mas esta definição é por si só discriminatória, ao passo que pessoas trans também são, obviamente, biológicas e o que difere é apenas seu status político (Kaas, 2012).
2 "Zine" faz referência a uma prática comum do movimento punk, os "fanzines", que eram feitos de maneira independente, geralmente, com informações sobre alguma banda. Atualmente, "zine" se refere a produções independentes, em baixa escala, que são tiradas diversas cópias em xerox preto e branco. Podem ser distribuídas ou comercializadas, dependendo do contexto. O "zine" em questão se intitulava Marcha das Vadias 2014 pelo Empoderamento e Autonomia, tinha quatro páginas e justificava, a partir de uma reflexão sobre a importância da interseccionalidade e do anarquismo, o porquê a Marcha não deveria seguir para a delegacia da mulher. Para arrecadar fundos para impressão, foi feita uma festa a qual foi vendida cerveja algumas semanas antes. O grupo que organizou essa ação se nominou Bloco autônomo da Marcha das Vadias.
3 "Treta" e "rachas" são consideradas, nessa pesquisa, categorias êmicas. "Treta" significa algum desentendimento ou briga. "Treta de internet", "deu treta", "aí tem treta" são algumas formas comuns de como aparece essa expressão. "Racha" aqui significa divisão, separação, quebra, expressão também comum dentro dos movimentos sociais.
4 O projeto de pesquisa foi submetido ao sistema do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP - CAAE: 47033115.3.0000.5334) e aprovado.
5 O termo queer no inglês pode ser utilizado enquanto um adjetivo, um substantivo e também um verbo que tenta através de uma palavra se referir a minorias de gênero que não são baseadas nas costumeiras identidades que compõe a sigla LGBTTT. Também pode ser acompanhado da palavra "política" para se referir a estratégias de luta que partem dessa perspectiva (Daring, Rogue, Volcano & Shannon, 2012)

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