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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.spe São Paulo dez. 2019

 

ARTIGOS

 

O povo indígena tupinikim no contexto do desastre ambiental no rio doce

 

Indians tupinikim in the context of environmental disaster at rio doce river

 

Los pueblos indígenas y el contexto dedesastre en el rio doce

 

Les tupinikim indiens sur la désastre environnemental en contexte rio doce

 

 

Sandro José da Silva

Doutor em Antropologia, professor no Departamento de Ciências Sociais e no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória/ES, membro do Comitê de Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia / saandro@gmail.com

 

 


RESUMO

O texto é parte de uma etnografia sobre o Desastre no Rio Doce e seus impactos nos povos Tupinikim no município de Aracruz estado do Espírito Santo. Descreve-se a organização dos pleitos indígenas por indenização, a formação de coalizões e segmentações a partir dos conflitos gerados no contexto do Desastre. A partir de categorias empregadas pelos Tupinikim para tornar inteligíveis sua afetação, discute-se como ocorrem as interações e os regimes de apropriação do desastre e suas consequências para a organização social desse povo.

Palavras-chave: Povo Tupinikim; Desastre ambiental; Espírito Santo.


ABSTRACT

The text is an ethnography about the Rio Doce Environmental Disaster and its impacts on the Indians Tupinikim that live in the municipality of Aracruz, state of Espírito Santo. The aims is to describe the organization of indigenous claims by indemnity, the formation of coalitions and segmentation from the conflicts generated in the context of the Disaster. From categories used by the Tupinikim to make their affectation intelligible, we discuss how interactions and regimes of disaster appropriation occur and consequences for their social organization.

Keywords: Tupinikim Indians; Environmental Disastrer; Espírito Santo.


RESUMEN

El texto es parte de una etnografía sobre el desastre del Río Doce y sus impactos en los pueblos indígenas Tupinikim en el municipio de Aracruz, estado de Espírito Santo. Se describe la organización de reclamos indígenas por indemnización, la formación de coaliciones y la segmentación de los conflictos generados en el contexto del Desastre. A partir de las categorías utilizadas por los Tupinikim para hacer que su afectación sea inteligible, discutimos cómo ocurren las interacciones y los regímenes de apropiación del desastre y sus consecuencias para su organización social.

Palabras-clave: Pueblos Indígenas Tupinikim; Desastre ambiental; Espírito Santo.


RÉSUMÉ

Le texte fait partie d'une ethnographie sur la Désastre environnemental dans Rio Doce et ses impacts sur les indiens Tupinikim de la municipalité d'Aracruz, dans l'État d'Espírito Santo. L'organisation des revendications indiens par indemnisation, la formation de coalitions et la segmentation des conflits générés dans le contexte de la catastrophe constituer le centre de l'analyse. Basé sur les catégories utilisées par les Tupinikim pour rendre leur affectations intelligible, nous discutons de la manière dont les interactions et les régimes d'appropriation du Désastre se produisent et leurs conséquences pour l'organisation sociale de ces indiens.

Mots-clés: Indiens Tupinikim; Désastre environnemental; Espírito Santo.


 

 

Introdução1

O desastre que ocorreu na barragem de Germano Fundão (MG) em 05 novembro de 2015, de propriedade das mineradoras Samarco S/A, Vale S/A e BHP Billiton Ltda., lançou cerca de 45 milhões de metros cúbicos de dejetos de mineração no Rio Doce em 2015, matou 19 pessoas e devastou os cerca de setecentos quilômetros da calha principal do rio, afetando agricultores, pescadores, povos indígenas e quilombolas. O desastre alcançou o mar, contaminando também os estuários ocupados pelos Tupinikim, impedindo-os de pescar, de banharem-se e desenvolver o seu modo de vida e reprodução cultural. Entre os Tupinikim, os efeitos do desastre não ocorreram imediatamente, mas foram construídos ao longo de espaços de interação entre os agentes do Estado e das empresas responsáveis, o que deu margem à inúmeras maneiras de se ver e falar de sua afetação.2

 


Mapa 1 - Clique para ampliar

 

Na presente proposta, parto do princípio de que um efeito provocado pelo campo político do desastre no Rio Doce se deu pela circulação, contestação e proliferação de categorias de auto representação, controle e englobamento de sujeitos. Tais categorias foram compartilhadas por um grande número de agentes públicos e privados, fluindo com certa desenvoltura entre discursos jurídicos, reuniões ordinárias e documentos de pactuação pública.

Dentre as categorias de auto representação, a de afetado foi a que teve sucesso relativo entre os povos indígenas Tupinikim, porque permitiu a emergência e recombinação de temas e modos de negociação já experimentados antes em situações de fronteira com empresas e o Estado e, ao mesmo tempo, a imposição de um lugar de fala hegemônico. Nota-se também que tal categoria é uma porta de entrada para que haja fluxo de pessoas, ideias e posições, constituindo um predicativo do conflito e a possibilidade de um lugar de fala. Discutimos na presente reflexão os desdobramentos dos usos desta categoria considerando para isso as questões analíticas relacionadas a organização social e política em face dos desastres e a mobilização das identidades sociais do povo Tupinikim.

Isso sugere que as identidades sociais são importantes espaços constitutivos dos modos de apresentação pública de coletividades e indivíduos funcionando como condições fronteiriças e construção de alteridades. Embora o tema da identidade tenha sua gênese em uma certa forma de organização do Estado nacional, observamos seu agenciamento pelos sujeitos em busca de reconhecimento e mesmo pela denúncia dessa perspectiva representacional (Hall, 1997) e governamental (Foucault, 1978). Os usos da identidade social aqui desenvolvidos não toma os sujeitos como entes estáticos com essências imutáveis, mas o resultado de interações sociais, negociações e coalizões.

Processos de identificação, portanto, que ensejam a coexistência de "cultura" — como recurso e como arma para afirmar identidade, dignidade e poder diante de estados nacionais ou da comunidade internacional — e cultura (aquela "rede invisível na qual estamos suspensos") gera efeitos específicos" (Cunha, 2009, p. 373). Tão pouco se argumenta que essas identificações são o resultado apenas de interações entre grupos humanos, mas, o efeito também das agências de não humanos como a lama e o dinheiro como pretendemos descrever.

O autor buscou uma perspectiva que contemplasse as tensões a que são submetidas as identificações sociais indígenas - estatais, empresariais, acadêmicas e indígena -, e como alguns lugares de fala são objeto de negociação, permitem maior visibilidade e terminam por se configurar mais hegemônicos em dados contextos, ou seja, "considerados implícitos dentro dessa normatização hegemônica" mas que implicam o "desvelamento dos processos históricos que colocam determinados grupos em posições subalternas" (Ribeiro, 2017, p. 45).

Devido a experiências anteriores de trabalho com os Tupinikim, o próprio autor buscou descartar o "pensamento único" que situaria os Tupinikim apenas com vítimas e não como agentes nos contextos de interesse que se apresentam. Esta perspectiva nos sugere que ao contrário da homogeneidade articulada pelo discurso jurídico e empresarial - a cultura indígena -, devemos dar atenção à heterogeneidade ainda maior dada pelo contexto de disputa (Cunha, 2009). No caso analisado temos modulações que afetaram as decisões indenizatórias que se basearam na homogeneização do povo Tupinikim em detrimento das várias maneiras de se auto representar que estão vigentes, tais como categorias laborais, de geração e gênero. A linguagem jurídica consensual, como veremos, se por um lado legitima a resolução de conflitos, de outro instaura uma violência simbólica em termos da classificação dos sujeitos.

Sugerimos que é nas situações sociais de conflito, que os processos de identificação se mostram dinâmicas, sobrepostas, combinadas e recombinadas, que externalizam as contradições e invenções inerentes à sua condição. Ao contrário da perspectiva consensual, identidade não seria semelhança, mas contraste, alteridade, modos de conhecimento e ação mediante os quais os povos indígenas se relacionam entre si e nas situações de conflito como as que produziram e produzirão o Desastre. No caso das relações conflituosas analisadas no presente texto, elas produzem situações paradoxais dadas a mistura e recombinação de gêneros de representação política e racial, alternando formas de linguagem ora relacionadas aos significados das lutas dos povos indígenas, ora à pragmática de empresas e agências de Estado (Shaumeil, 2017, p. 30).

A exemplo, temos a definição de desastre consolidada por Valencio que indica esta mistura de gêneros. Segundo a autora, "o modo como a comunidade científica classifica e interpreta os desastres influencia as decisões de Estado em relação às interpretações do direito, às reivindicações de vítimas, à orientação de prioridades de proteção e defesa civil e outros serviços públicos" (Valencio, 2016, p. 41).

Mas a comunidade científica não é a única voz nessa arquitetura do desastre. N. Valêncio, por exemplo, sublinha que o desastre foi lido pela Presidência da República, à época, como um desastre natural, sob a "boa intenção" de liberar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Isto sugere que o desastre é constituído pela agência de outros agentes que não somente o evento de derrame de dejetos tóxicos no Rio Doce e a hierarquia conferida pelos diferentes olhares da ciência. Ademais, a linha que separa a "comunidade científica" e o "Estado" é passível de discussão se tomarmos a perspectiva dos Tupinikim segundo a qual se tratam, sejam do Estado, sejam dos pesquisadores ou da Justiça, do mesmo "dinheiro do desastre", um dinheiro do "poder corporativo" que produz a reorganização constantes entre os agentes envolvidos (Lopes, 2016, p. 374; Zucarelli, 2016, p. 326).

Na presente proposta, trata-se de descrever como este "dinheiro do Desastre" desestabilizou várias situações nas aldeias Tupinikim, e colocou em xeque a visão essencialista da identidade indígena que circula nas mesas de negociação para reparação dos danos aos indígenas e que requer um olhar processualista, com temporalidades distintas que se sobrepõem em reivindicações específicas. Este é um jogo de posições não apenas produzido pelos Tupinikim, mas também pela agência das empresas e da Justiça, envolvidos na organização social do Desastre, o que torna o Desastre um evento complexo.

Este texto se originou do estranhamento em relação à maneira um tanto jocosa que, numa tarde na aldeia de Caieiras Velha, um carro de som da Associação Indígena Tupinikim Guarani (AITG) passou nas ruas anunciando em meio a risos: "alô parente, a bolsa da Samarco já está na conta!" Os transeuntes riam e faziam, cada qual sua galhofa, mas, seu riso tinha algo de denegação da situação constrangedora por se referir ao dinheiro do Desastre, amplamente condenado em outros espaços aldeãos.

Busquei, a partir de uma etnografia, discutir o ponto de vista das condições de produção desse constrangimento e como ele aponta para como os Tupinikim enfrentam tais desafios. Incialmente apresento de forma sumária a relação do povo Tupinikim com o universo de emergência étnica, para depois desenvolver uma abordagem sobre sua relação com as tensões provocadas pelo processo de identificação elaborado pelo campo institucional do desastre. Concluo o artigo com uma reflexão sobre os usos do dinheiro, suas moralidades e os efeitos do Desastre na organização social e na inteligibilidade dos direitos indígenas.

 

Os Tupinikim

Os povos Tupinikim habitam duas Terras Indígenas (TI) na faixa litorânea no município de Aracruz, norte do Espírito Santo e à margem direito da foz do Rio Doce. A TI Comboios tem 872 hectares distribuídas em duas aldeias e se localiza entre o rio Comboios e o mar, e a TI Tupinikim tem 14 mil hectares, distribuídas em dez aldeias e se localiza às margens do rio Piraquê-açu, ambas afetadas pelo desastre no Rio Doce.

Com um longo histórico de contato, todas as aldeias se situam no município de Aracruz, e consideram parentes os que moram nas localidades vizinhas de Santa Cruz e Vila do Riacho em terras não reconhecidas pelo Estado como indígenas, bem como em outros municípios e estados. Tais parentes constituem movimentos pendulares e conjunturais conjugando a expansão dos territórios indígenas com a emergência de novas parentelas mediante intercasamento, o que denota o incremento demográfico em certos períodos de lutas pelo território indígena.

A aldeia de Caieiras Velha - considerada por alguns Tupinikim como "nossa aldeia-mãe", é onde foram feitas a maioria das observações que constituem a presente reflexão, possui cerca de 1485 moradores divididos em 468 famílias, sendo a mais populosa das aldeias Tupinikim. Para termos uma ideia, em 2012, ano do último levantamento da FUNAI havia 340 famílias na aldeia Caieiras Velha. A inscrição recorrente dos moradores como família não é fortuita e não deve ser menosprezada. Ela atende à elaboração mais antiga no que defino como a "redescoberta" dos Tupinikim por parte das agências tutelares e que representa um aceno sobre como tomar parte no repertório de reivindicações por territórios e por indianidade mediante o estabelecimento de interações com as agências de Estado (Silva, 2000).

Os moradores são na sua maioria da etnia Tupinikim mas há famílias Guarani Mbyá residindo na mesma TI, que se mantém reservados. Desde a última demarcação em 2010, a dinâmica da territorialização se alterou significativamente. Podemos destacar três características: a expansão de moradias nas aldeias já consolidadas - Caieiras Velha, Pau Brasil e Comboios -, a reocupação de aldeias antigas como Amarelos, Olho D'água e Córrego do Ouro, e a busca por novas aldeias que reúnam as condições cosmológicas e ambientais adequadas, estas últimas, especialmente pelos Guarani, como Nova Esperança.

O perfil de alteração da territorialização foi favorecido também por um certo volume de dinheiro em espécie que passou a circular entre os Tupinikim, o que levou a construção e reforma de casas, bem como a aquisição de bens de consumo junto ao comercio do município. Esse volume de negócios está alicerçado no trabalho das lideranças indígenas que alimentam as demandas de suas parentelas por reconhecimento de seus direitos sob a justificativa da expansão das famílias, o que é uma realidade se considerarmos os números dos censos disponíveis. Nisso, também se destaca a construção do prestígio adquirido com o trabalho de liderança seja no âmbito da representação política, seja na ocupação de postos dentro das distintas formas de associativismo que se encontra nas aldeias.

A presente análise descreve a posição social dos Tupinikim em relação ao Desastre no Rio Doce, mediante a reapropriação de tal evento como uma estratégia de longa duração que pode ser descrita no conjunto de estratégias de uma tomada de posição a partir e critérios de legibilidade social (Scott, 1998) dos Tupinikim que os reposicionou em termos das identificações étnicas, agenciamentos políticos e rotinas cotidianas, ambientes múltiplos de controle estatal mas, igualmente, de produção de resistências em escalas distintas.

O recorte temporal da análise se estende para antes do desastre, especialmente porque isto nos ajuda a descrever os modos pelos quais os Tupinikim se engajam em reivindicações por seus direitos e que indicam linhas de fuga do imperativo temporal imposto pela situação do desastre. Assim, a categoria "acordo" surge como eixo que articula o tempo para os Tupinikim, pois pode ser usada para mapear as diferentes conjunturas de envolvimento e disputa com empreendimentos econômicos que impactam seus territórios há muitas décadas.

Nota-se, sobre isso que os Tupinikim denunciam o recorte temporal proposto pelas agendas empresariais e jurídicas. Para eles, definir um "ponto zero" do desastre, por exemplo, trata-se de uma estratégia para enquadrar seu mundo social atrelando-o ao mundo social produzido pelo desastre. Enquanto os debates dos agentes públicos e privados buscam um "ponto zero" de onde possam visualizar sua responsabilização, os Tupinikim veem isso como uma estratégia colonial de controle do tempo.

A literatura sobre os Tupinikim no período colonial sublinha sua relação com as o emergente mundo do trabalho livre, o que nos sugere uma "tradição" no desenvolvimento de espaços de mediação com o mundo dos brancos - pela venda de mercadorias, terras e força de trabalho -, que segundo Moreira envolviam cargos como juízes, espaços da administração da burocracia, produção e comercialização de alimentos (Moreira, 2005).

Durante a Ditadura Militar (1964-1985), destaco a busca institucional dos Tupinikim por voltar a figurar como "povos indígenas" - não mais como os "caboclos", como se observa em uma tradição colonial -, reconhecidos pelo Estado mediante a demarcação da TI (Silva, 2000). Trata-se de um reposicionamento no rol da indianidade, severamente marcada pela hierarquização das raças e pela tutela, mas, também pela alteração do status de cidadania: de pessoas expulsas de forma violenta do campo pelas empresas de monocultura, de trabalhadores imersos na produção de carvão para as siderúrgicas e nas obras públicas no início do século XX, há uma passagem ao reconhecimento oficial como povos indígenas aldeados inseridos nas agendas tutelares do Estado.

A este propósito se organizaram reivindicações territoriais e lutas pelo reconhecimento, fundamentadas na memória social e revitalização das culturas indígenas. Como exemplo temos a pressão indígena por pesquisas oficiais da Funai que levaram à identificação das TI nos anos 1990 indicaram as aldeias de Caieiras Velha, Irajá, Pau-Brasil, Comboios. Também foram identificadas aldeias extintas pela silvicultura, mas que passaram a figurar na cartografia política que informam as lutas pelos territórios bastante vivas na atualidade tais como: Amarelo, Olho d'Água, Guaxindiba, Porto da Lancha, Cantagalo, Araribá, Braço Morto, Areal, Sauê (ou Tombador), sertão e litoral do Gimuhúna, Piranema, Potiri, Sahy Pequeno, Batinga, Santa Joana e Córrego do Morcego (Funai, 1995)3

Trata-se, portanto, de transformações entre posições na ordem cidadã feitas pelos indígenas na relação com o regime tutelar e que enquadram os Tupinikim em ordens distintas de participação. Isto sugere que as identificações indígenas não são estáticas, mas fruto das contínuas situações de interação e transformação. Os efeitos de borda desses agenciamentos poderão ser vistos em vários momentos do que se classifica como "luta indígena" e, no contexto do Desastre no Rio Doce, observam-se as margens nas quais os indígenas se movimentam e produzem suas próprias posições (Moreira, 2019).

 

Economias e identidades sociais

Nota-se que paralelo à reinvindicação territorial emergiram também formas específicas de negociação com empresas que afetaram negativamente os territórios indígenas. Os Tupinikim sempre se empregaram nos serviços subalternos da municipalidade, das "casas de família" das vilas fabris e nas empresas terceirizadas da indústria da celulose. O que redundava em uma situação constrangedora sempre que as reivindicações por território levavam ao deslocamento da identificação de trabalhador para indígena. Tal deslocamento se materializou com as conquistas pela terra, mas, também, pelo reconhecimento de uma dívida mediante pagamentos, ressarcimentos, projetos e uma plêiade de situações que evocaram cada vez mais a importância da organização representativa indígena.

Nos anos 1980, tratava-se, na melhor das hipóteses de receber materiais de uso ordinário como pás, enxadas, barcos ou mesmo uniforme de futebol. Na maioria dos casos não se recebia nenhum valor ou equipamento, como se observa na abertura da estrada ES010 ou no Gasoduto da Petrobrás que leva gás do município de Linhares até a capital Vitória. O contexto político era a Ditadura Militar que combinou a baixa relação tutelar e a inexperiente configuração associativa, a imprecisão no desrespeito das garantias dos direitos indígenas. Foi a mudança na escala geográfica da percepção do dano, ou seja, da presença das multinacionais e o ingresso da agenda ambientalista, que alterou a correlação de forças entre os Tupinikim.

Foram as tensões com as empresas celulósicas que deram início aos "acordos" que envolveram muita controvérsia e acusações de corrupção até que a definição de um espaço público fez convergir empresas, indígenas e os órgãos da justiça no desenho de indenizações em forma de projetos de desenvolvimento local. Tal espaço remodelou a participação dos Tupinikim que reivindicavam as indenizações em espécie por uma estratégia institucional de inserção da lógica dos projetos.

Os efeitos do exercício desse poder podem ser vistos na formação de uma economia dos "auxílios emergenciais" que se desdobraram em duas direções. Elas entretêm os agentes de Estado e funcionários das empresas numa retórica sobre o que seria o suficiente aos Tupinikim continuarem a viver a vida que eles imaginam como indígena e, de outro lado alimentam um espaço retórico onde os Tupinikim podem produzir fronteiras e tipos de relação que combinam identificação e dinheiro.

O que se destaca na presente proposta é que não basta olharmos para os acordos que envolveram os danos aos direitos indígenas sem considerar a emergência de dois fenômenos. O primeiro deles é o esforço de domesticação das empresas por parte dos Tupinikim mediante a produção de situações fronteiriças de inteligibilidade com o mundo das corporações multinacionais. A segunda é que tais espaços de reconhecimento se por um lado representam uma certa acomodação do ponto de vista institucional, não redundam numa pacificação das tensões internas nas comunidades, mas, pelo contrário, ensejam espaços de singularização cuja inscrição mais evidente foi a mobilização do direito associado às famílias.

Apresenta-se a seguir da situação em que a relação entre os Tupinikim e a Fundação Renova (FR) mostra sua complexidade quando as variáveis não controladas pela previsão de governança dos Termos de Ajuste de Conduta se impõem. Tal contexto de conflito possibilita considerar a multiplicidade do processo de identificação social, bem como a agência mediante a qual se operam e se produzem os contextos de reivindicação. As identificações sociais são certamente variadas e justapostas, não apresentando unidade ou homogeneidade. As organizações indígenas se distribuem em uma variada forma de inscrição - lideranças, associações, grupo de mulheres, professores indígenas, grupo de jovens guerreiros, dentro outros menos formais, mas não menos importantes - que produzem margens de manipulação da participação, dado o contexto potencializador de outras relações sociais provocadas pelo o Desastre.

 

Ser Tupinikim e/ou pescador nas tensões da representação

Esse é o caso dos Tupinikim da Associação de Pescadores e Catadores Indígenas (APECI) nas aldeias de Caieiras Velha e Irajá. Presentes em vários fóruns de discussão relativo à pesca, os cerca de 80 associados passaram a reivindicar um valor diferenciado daquele acordado entre a FR e os demais indígenas dessas aldeias. Os associados da APECI queriam um acordo diferente pois sua atividade não era vista por eles como "de subsistência", como foram classificados os demais aldeãos sobre as economias indígenas.

Eles se consideram "profissionais da pesca" cadastrados em uma Colônia de Pesca, estavam submetidos aos regimes de Defeso e viviam da atividade pesqueira. Já haviam protagonizado festivais de pescado e frutos do mar, com a venda de "pratos típicos", música e outras apresentações, mobilizando o turismo de base étnica e o interesse da municipalidade em colocar a festa no calendário oficial de festas.

Note-se que esta multiplicidade não é uma novidade no contexto Tupinikim e a habilidade em lidar com tais inscrições identitárias é uma situação que pode ser sublinhada aqui com certa regularidade. A sobreposição de gêneros organizacionais, as marcas que estas deixaram nas organizações Tupinikim, os modos como eles lidam com os diversos espaços institucionais denotam uma habilidade importante nos contextos de interação com o também múltiplo e sobreposto espaço de relação entre agências e agentes de Estado e empresas.

Os espaços sobrepostos neste exemplo envolvem as igrejas evangélicas presentes desde os anos 1970, as colônias de pesca instituídas por Getúlio Vargas e seu Trabalhismo, a atuação da FUNAI nos anos 1970 em distinguir "índios" e "posseiros" mediante pagamento por benfeitorias e, mais recentemente, a tentativa da FR circunscrever sua responsabilidade mediante uma política de cerceamento das liberdades associativas indígenas.

Como se demonstrou em outro trabalho, desde a instituição da "luta pela terra" nos anos 1960, para mencionar apenas na caracterização tutelar das demandas indígenas, se apresentaram tensões na "representação indígena" (Silva, 2000). De um lado, um grupo de pescadores, marisqueiros, roceiros e caçadores tinham como atividade lúdica o que os Tupinikim mais velhos classificavam como "sambinha" ou, para outros mais tarde, a festa do tambor. De outro, um grupo de posseiros que criava porcos "a meia" incentivado a lidar com os direitos à terra, ocasionado por reclames trabalhistas. Até aqui nenhum problema, se a agência tutelar da Funai não buscasse se impor pela delimitação da definição de um "cacique" àquelas formas de representação já existentes.

O Grupo de tocadores de tambor já tinha seu "capitão", como ocorre com as bandas de congo na região de uma maneira geral e tinham também suas datas festivas dedicadas aos devotos de São Benedito, Santa Catarina, São Sebastião e Nossa Senhora da Conceição, o que já denota um faccionalismo criativo. Enquanto isso o outro grupo era estimulado pelo campo indigenista de então a se apresentar como "cacique" à Funai e viajar a Brasília para reivindicar seus direitos como indígenas Tupinikim.

Ambos entraram em conflito, mas resultaram em reivindicações por direitos indígenas quando a Funai passou a instituir rituais de identificação étnica onde a memória e o pertencimento territorial formaram a tônica em torno da construção da unidade indígena. Deu-se início a rotina burocrática que envolveu, desde então, viagens, relatórios e a consolidação de organizações atreladas à representação oficial indígena.

Do lado das agências de Estado destaco ainda a ambiguidade no próprio escopo institucional que identificou os direitos dos Tupinikim, exemplificado pela negação dos governos municipais e estaduais em reconhecer tais direitos territoriais e identitários, ao passo que o ingresso do governo federal afirmou tais direitos, a partir da aplicação das rotinas administrativas da prática tutelar (Lima, 1995; Silva, 2000).

Embora a situação de aldeamento seja imaginada com uma conquista coletiva, ela está longe de comportar uma perspectiva local de homogeneidade cultural ligada às reivindicações territoriais ou organizativas Tupinikim. Mas é com esta imagem da homogeneidade e perenidade dos territórios e das identidades sociais que o senso comum dos agentes da FR lida quando propõem organizar a demanda indígena e seus acordos.

Não seria suficiente considerar que a FR opera apenas conceitos existentes, mas que também inventa e manipula as visões concorrentes instituídas desde a relação tutelar. É na ação cotidiana das reuniões nas aldeias, nos rumores que circulam de diferentes formas e versões, no cancelamento de reuniões e no tempo longo criado pela espera de soluções que as novas posições sociais sobre os direitos são construídas, sobrepostas e negociadas, com os diferentes grupos, promovendo uns enquanto rebaixa ou simplesmente não reconhece outros.

Como pretendo demonstrar em seguida, tal "tempo longo" fez surgir um "tempo de emergência", sob a dupla perspectiva Tupinikim e da FR. Esta por força da coerção judicial se viu obrigada a atender aos indígenas e aqueles, por conseguir subtrair o máximo de benefícios na situação de desordem provocada pelas empresas responsáveis pelo Desastre, obteve valores financeiros como argumento possível. Desde então, estamos sob o regime do "tempo da emergência", cuja propriedade mais imediata é alcançar e englobar outros grupos que não haviam sido contemplados pelo Auxílio Financeiro Emergencial, como garimpeiros, faiscadores, etc., ou simplesmente não eram reconhecidos como afetados.

O desastre, neste sentido, produziu um tempo de desordem, expresso pelos Tupinikim mediante a categoria: "emergencial", mas também uma nova modalidade de agenciamento da afetação. Esta condensou a desordem e a excepcionalidade como argumentos para instituir um pagamento regular em espécie antes que da definição das indenizações - tidas como o valor final pelo reconhecimento dos danos causados. Tal condição já vinha servindo como novo patamar de negociações entre os Tupinikim e os demais empreendimentos - mais de trinta segundo levantamento feito por Guardiola (2016) -, que os afetam, que gerou um certo pânico das empresas que se veriam, agora, não mais dentro da lógica das obrigações pontuais e genéricas dos Relatórios de Impacto Ambiental, mas submetidas ao pagamento regular, ou seja, um tipo de vínculo no tempo e no espaço - mas, também com efeitos nas identificações sociais -, antes inexistente. Mas, antes é preciso descrever os modos pelos quais a subalternidade é reorganizada pela lógica do "emergencial".

 

Dinheiros, identidades e controle das representações

A FR se opôs ao reconhecimento do pleito da identidade múltipla da Associação dos Pescadores e Catadores Indígenas (APECI) dos Tupinikim, mas, para isso, lançou mão do argumento mediante o qual uma identidade social deveria corresponder a um tipo de afetação-reparação. Em uma das reuniões promovidas pela FR, os Tupinikim da Associação Indígena Tupinikim Guarani (AITG) endossaram tal recusa, alegando de sua parte que a situação de aldeamento englobava as decisões em termos da homogeneidade do auxílio emergencial.

Ou seja, "ser indígena" deveria comportar apenas uma identidade social e não sobreposições que criassem desigualdades. A desigualdade não era gerada pela autoidentificação, mas pelo contexto da negociação dos valores emergenciais ou de adesão aos programas de indenização da FR. Ademais a representação que se impunha com hegemônica se referia a um conjunto de lutas marcadas pelo reconhecimento indígena mediante as agências de Estado. Tratava-se de defender a história vivida pelos Tupinikim em diferentes momentos coloniais e pós-coloniais na trajetória marcada pela violência física que estruturou durante várias décadas a produção de narrativas sobre pertencimento. Mas, não podemos esquecer que a "economia do Desastre" originou a expectativa de consumo, que as dívidas no comércio tinham que ser pagas e que uma discussão sobre as modulações identitárias poderia ficar em segundo plano.

Posteriormente, em conversas com outras lideranças pude constatar que esta decisão não se deu apenas por uma elaboração local, mas por pressão e ameaça velada por parte da FR de suspender os pagamentos indenizatórios emergenciais. Os membros da AITG se aliaram a tese da homogeneidade cultural, obrigando os membros da APECI a receberem o mesmo que eles. Nesse caso, o sentido de participação dos Tupinikim ficou obliterado por estratégias de governança da FR e a naturalização da homogeneidade da organização indígena prevaleceu naquele momento. Mas, a convicção dos indígenas-pescadores produziu outra reviravolta.

Em 2018, os então cerca de 80 associados da APECI entraram com uma ação particular, ou seja, sem a anuência da FUNAI ou do MPF, contra a FR, reivindicando o PIM (Programa de Indenização Mediada). Regularmente o PIM não enquadraram os povos indígenas, pois é destinado a atender pescadores e ribeirinhos. Segundo um agente responsável pela relação entre as comunidades indígenas e a FR a ação que os pescadores moveram contra a FR poderia levar à quebra do acordo firmado com as associações indígenas e "judicializar a questão" fato, então temido por agentes públicos e os indígenas e um trunfo da FR. Segundo algumas lideranças da AITG, o único repasse de recurso pela FR para as associações que estaria garantido seria o do mês de março. A condição para que a FR continuasse os repasses dependeria da suspensão da ação movida pela APECI, o que aconteceu meses depois. Como vemos, ao terror que se impôs em decorrência do Desastre se somaram outras formas de coação, neste caso, contra um princípio fundamental da Convenção 169 e a Constituição Federal que é o de autodeterminação e livre associação, respectivamente.

Mas isso não esgota o assunto. Há uma dimensão mais significativa entre os Tupinikim que une política e espaço público. Estão em jogo a constituição do prestígio mediante o pagamento em dinheiro e o risco que isso representa na equalização das forças locais. O dinheiro oriundo de acordos, resultado do trabalho de representação das lideranças, circula junto com o prestígio das pessoas, das suas denominações evangélicas e de suas famílias, entendidas no caso Tupinikim como a posição da família no campo político do associativismo. Os projetos de desenvolvimento local - que em 2018 somavam cerca de trinta -, são apreciados como uma oportunidade de ganhos, mas também de valorização pessoal e institucional, são uma maneira de estabelecer novas posições em relação aos demais parentes. Embora saibam que os projetos são passageiros e muitas vezes não atingem seus objetivos, participar deles é um dos sinais da capacidade de incorporar os resultados da luta por ser Tupinikim e "resgatar" a sua cultura.

Quando se iniciaram os debates sobre a inserção de pagamento em face do desastre, o primeiro recorte institucional entre os Tupinikim foi a família como equalização das desigualdades inerentes a cada uma das parentelas. Então, embora a imagem externa seja a de que os Tupinikim estão recebendo um auxílio em função do Desastre e que não deve haver desigualdade nesse recebimento, o fato é que as disputas de mais longa duração entre os grupos locais, seguido da governança particular das empresas, produziram desníveis entre as perspectivas da afetação.

Essa homogeneização parece problemática pois, por diferentes motivos como a própria atuação da FR, tornaram mais racionalizáveis sua atuação, mas esbarraram no óbvio que são os desníveis políticos locais onde o sistema de equivalências monetárias não se encaixa no sistema de equivalências das parentelas. Enquanto os valores dos auxílios da Renova circulam como se fossem dinheiro estatal - num tipo de relação que busca equiparar as pessoas com base nos danos causados -, elas são realizadas no mercado local como meio de diferenciação agonística das parentelas - o dinheiro investido em novas casas, reformas e ampliação das igrejas, carros e roças com perfil "agro pop", ou simplesmente pedir um hambúrguer pelo IFood, além de se constituírem em um espaço fronteiriço no qual se mantém diferentes níveis do conflito.

Em termos preliminares teríamos três níveis de agência do dinheiro: o dinheiro moeda ganho com a pesca e outras atividades laborais, o dinheiro estatal e o dinheiro das empresas, pagos em diversas circunstâncias e que adquire propriedades específicas dada sua história que é individualizada pelos Tupinikim. Aqui, há o dinheiro dos salários e das empresas que são grandes corporações, como Vale, Estaleiro Jurong e Fibría e o dinheiro estatal quase invisível que se materializa em termos dos equipamentos públicos como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e nas bonificações que os caracteriza como pobres. As três empresas citadas anteriormente fazem com que o Licenciamento Ambiental, principal fonte de entrada de recursos - além dos "projetos sociais -, seja marcado por uma longa rotina de tratativas, acordos e reuniões que criam um enredo de ideias e pessoas que, além do âmbito estrito jurídico, envolve os diferentes níveis de interlocução relativo aos direitos indígenas. Quando não há possibilidade de construir essas redes, o rumor e a fofoca se encarregam de ruir reputações ou situar o agente em uma zona cinzenta classificada com "falta de diálogo". Este foi o lugar que a empresa Samarco e depois a FR ocuparam durante muitos meses após o TTAC e, posteriormente o TAC-Governança (Ramboll Consultoria, 2017).4 Trata-se de se considerar as maneiras mediante as quais o dinheiro é evocado no contexto do Desastre pelos diferentes agentes identificando as condições sociais de produção do valor, especialmente porque eles não estão desconectados das pessoas e suas trajetórias. Senão vejamos.

 

Moralidades e dinheiros

O estigma de "índios falsos" sempre rondou a imagem que a sociedade capixaba elaborou sobre os Tupinikim. Essa falsidade estaria relacionada especificamente à posição de recebedores de dinheiro sem trabalhar, além do recorrente Racismo atribuído ao fenótipo de índios misturados e falsos. No entanto, enquanto eles formaram a mão de obra que construía, limpava as casas e cuidam das crianças, e se sub empregavam nas empresas terceirizadas, eles eram vistos como os "caboclos" pobres. Na medida em que reconstruíram sua identificação como indígenas e ingressaram no universo da defesa de seus direitos territoriais - onde o dinheiro estatal e das empresas circula de forma específica -, eles foram acusados de falsidade ideológica sob a pecha de "interesseiros" e "oportunistas", ou seja, recusando sua posição no imaginário local de "bons selvagens".

Mas tal tensão não é recente. Moreira (2019) demonstra que houve várias tentativas de enquadramento dos povos indígenas à razão colonial, nas quais ora eles tomaram parte pela via da negociação, ora reagiram de forma violenta ou simplesmente ignorando tais inciativas. Da escravização que desconsiderava sua humanidade, passando pela tentativa de assimilação biológica e cultural mediante intercasamento até os aldeamentos compulsórios, acamponesamento e prisões correcionais, temos uma plêiade de instrumentos genocidas dos povos indígenas no Brasil. Mas essa relação entre moralidade, dinheiro e identidade é percebida pelos Tupinikim de outra maneira.

Durante uma audiência pública em 2016, a propósito das afetações dos cerca de 30 projetos empresariais na região, um senhor de meia idade argumentou, apelando aos representantes empresariais e ao Ministério Público Federal que, sem o trabalho e o dinheiro dos Tupinikim, a cidade de Aracruz pararia. Sua assertiva reforçou uma posição compartilhada por muitos Tupinikim e que introduz a importância econômica dos povos indígenas na manutenção do comércio local. Esse era um argumento empregado sempre que a identidade indígena era posta em questão pelos brancos. Aparte o tom de galhofa com que foi recebido, uma conta rápida e "por baixo" pode nos ajudar. Até a escrita deste texto havia cerca de mil famílias indígenas recebendo um salário mínimo com caráter de "auxílio emergencial" em função do desastre. Não computei aqui o adicional de 20% para cada dependente em cada situação familiar (pais idosos e filhos, estes em uma média de três por família), mais o valor da cesta básica. Teríamos apenas em termos de salário mínimo pagos cerca de um milhão de reais que circulariam na economia do município mensalmente, o que certamente reorganiza sua participação na economia do município e do Desastre.

Neste sentido, a "participação" dos indígenas nas afetações aos seus territórios depende de um tipo especial de "presença" nas rotinas impostas pelo Desastre, não sendo um fenômeno espontâneo, mas resultado de um trabalho social com características particulares de controle das moralidades e produção de representações sobre o pertencimento e identidades indígenas. Parte do trabalho conjugado entre Ministério Público Federal e a FR é mediar como se deve dar esta participação, mediante a organização de comportamentos e rotinas, classificadas como "governança".

Trata-se aqui de naturalizar a participação em um evento cujas consequências não foram informadas aos Tupinikim quando de seu Licenciamento Ambiental: a instalação e operação da Barragem de Germano que contaminou o Rio Doce. Daí "participar" sugere uma imagem um tanto redundante haja visto os esforços definidos em torno da consolidação de uma justiça coercitiva que evita a "judicialização" (Nader, 1994). De fato, os Tupinikim estão sendo chamados a completar outro tipo de arranjo corporativo que envolve os desastres: um tipo que os considera um conjunto de posições definidos em outros espaços tais como a organização e administração da Justiça. Mas não é somente isso. Devemos considerarmos também as trajetórias de identificação dos Tupinikim e ver as micro relações de poder se exercendo nos interstícios das agendas de poder ora se aproximando, produzindo suas próprias relações com os esquemas de governança públicos e privados.

Ademais, o desastre incitou o saber concorrencial pelo direito de ser "mais afetado" entre as aldeias em oposição ao suposto regime de igualdade instituído pelo Desastre mediante dinheiro ou pela tutela. Neste caso, estamos diante do questionamento do regime de poder e remodelação da tutela relativa aos Tupinikim, não mais exclusividade da Funai, mas das corporações que mimetizam práticas estatais e judiciais. Ou seja, o desastre mobilizou a formação de repertórios em torno do desenvolvimento de uma economia da afetação não apenas relacionada ao dinheiro, mas ao prestígio.

 

Considerações finais

O rompimento da barragem de rejeitos de Germano Fundão em 2015 representa uma situação inusitada de violação de direitos e a transformação da vida, incluindo a morte, como se observou durante os dias que se seguiram ao Desastre. Isto porque as periferias do sistema mundial são os territórios preferenciais onde se pode combinar a desregulação das vidas e dos lugares, onde se pode domesticar o tempo e dominar o espaço pois a circulação de recursos - dinheiro, leis, governos e teses acadêmicas -, desconectam e reconectam pessoas e coisas, colocam a periferia como razão de ser da metrópole e hierarquizam o lugar que os súditos tem nesse mundo e como eles tem que pensar a si próprios nessa ordem periférica (Mbembe, 2016).

A categoria rompimento enseja uma certa postura em relação ao tempo - uma ruptura com o passado de um mundo que supostamente estava em equilíbrio atestado por relatórios e outros documentos de Estado -, e a promessa de inserção dos sujeitos sob novas identidades, como a de afetados, em uma nova ordem governamental -, desordenada e não natural que precisa ser corrigida pelos saberes da ciência - que adotadas mediante as técnicas e instrumentos de controle e pactuação restabelecerão a normalidade. Esse mundo por vir é uma promessa que enseja contradições - uma delas é a opacidade com que as empresas são tratadas nas análises, dado a barreira ao estudo das elites -, mas, também, é o terreno possível onde os diferentes sujeitos possam a desenvolver suas interações e postular sua inserção e defesa de seu direito.

Laura Nader (1994) já se dedicou a criticar esse sonho de um mundo sem conflitos que classificou como de "harmonia coercitiva". Ao analisar a guinada no direito norte americano, que passou de uma preocupação com a justiça para uma preocupação com a harmonia e a eficiência, de uma preocupação com a ética do certo e do errado para uma ética do tratamento, a autora demonstra as mudanças para uma "justiça que promoveu o acordo, mais que vencer ou perder, que substituiu o confronto pela harmonia e pelo consenso, a guerra pela paz, as soluções vencer ou vencer" (Nader, 1994).

Mas a periferia como razão de ser da metrópole, não se realiza sem processos cotidianos, resistências sutis, os atos falhos e a própria instabilidade produzida pela simples presença dos corpos indígenas nas reuniões, assembleias e nas tomadas de posição diante do Desastre. Mesmo que estes estejam devotados à busca da harmonia apregoada pela justiça coercitiva, ainda sim, sua presença e os modos de agenciamento de sua participação continuarão a provocar contextos renovados.

O grande desafio nessa economia do desastre ainda está por vir. O período em que as indenizações deverão ser discutidas a partir da valoração do dano e os aspectos "incalculáveis" atribuídos os "modos de ser" indígenas forem obrigados a sofrer discriminação e receber um preço a ser pago. Quando o que não se considera trabalho, portanto, configura uma cultura, for submetida a uma planilha segundo "lucros cessantes" como "cultura" (Cunha, 2009) ou que um bem cultural sofra hierarquização e seja mais valorado que outro, aí sim teremos um cenário oportuno para avaliar a violência simbólica dos desdobramentos do Desastre. É uma expectativa grande acompanhar um povo que foi reacomodado de várias formas ao espaço da tutela do Estado - que recusou até aqui qualquer ideia de valor venal do trabalho ou da Terra Indígena -, se ver coagido de forma harmoniosa a dar respostas ao mercado emergente dos desastres.

 

Referências

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Recebido em: 17/10/2019
Aprovado em: 17/11/2019
Agência de fomento: Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA), no âmbito da chamada 6/2016, "Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce".

 

 

1 Uma versão deste texto foi apresentada no Seminário Com o Rio Com o Mar em Porto Alegre/RS, nos dias 09 e 10 de setembro de 2019. Os autores gostariam de agradecer aos comentários dos seminaristas, especialmente aqueles feitos pelo prof. Adrian Gurza Lavalle (USP/CEBRAP) e pela profa. Gisela Zaremberg (FLACSO-México).
2 Reproduzo a grafia Tupinikim com "K", dado os usos contemporâneos defendidos por esse povo e que estão relacionados ao processo de demarcação de seus territórios, ao reconhecimento de sua identidade étnica e ao fortalecimento do uso da língua Tupi. Ademais, tais usos são crescentes pelos especialistas nas tecnologias educacionais como livros, cursos e documentos públicos como crítica decolonial e reelaboração de certas fronteiras étnicas, o que denota sua complexidade.
3 Fundação Nacional do Índio [Funai]. (1995). Relatório do GT 0783/94: Reestudo das Terras Indígenas Tupiniquim. Brasília, DF. Mimeo.
4 Embora não seja meu objeto aqui, cabe destacar que os Termos de Ajustes de Conduta (TAC's) e seus sucedâneos, TAP, TTAC e TAC-Governança, são parte de uma tecnologia jurídica empregada de forma crescente pelos agentes públicos para fazer Justiça sem recorrer à Justiça, considerada morosa e burocratizada. Mediante um tipo de "ativismo jurídico", o MPF, por exemplo, cumpre uma de suas prerrogativas constitucionais para a resolução de conflitos de forma extrajudicial, mas dentro dos marcos da legalidade constitucional. Zorzal (2019) faz uma ressalva para o caso do Desastre no Rio Doce e mostra que as disputas jurídicas em torno desses instrumentos configuram cenários singulares de "ambiguidade e a imprecisão" no rol das garantias constitucionais.

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