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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.1  Salvador  1996

 

 

Acerca da clínica das psicoses *

 

 

Maria da Conceição M. Gotardo **

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora trabalha as dificuldades teórico-práticas do tratamento psicanalítico da psicose.

Palavras-chave: Psicose, Esquizofrenia, Paranóia, Psicanálise, Tratamento.


 

 

Que fazer frente ao psicótico? Esta é uma questão que permanece em aberto para a maioria dos analistas, em que pese a existência de uma apreciável literatura a respeito do assunto. Deparamos freqüentemente com testemunhos de analistas que precisam o que não é estratégico, o que não é tático ou, em outras palavras o que não se deve fazer com psicóticos. Estas indicações de signo negativo parecem atestar a complexidade que representa este problema.

A posição de Freud a respeito desta questão pode ser tomada a partir das indicações em alguns de seus textos.

Em "A questão da análise leiga", ele destaca a importância do diagnóstico e restringe a indicação da psicanálise aos casos de neuroses.

No seu texto "Sobre o início do tratamento", fala da importância de aceitar o paciente de forma provisória, a fim de se estabelecer um diagnóstico, pois, em se tratando de um caso de psicose, o psicanalista "não pode cumprir com sua promessa de cura"1.

O problema da indicação e contra-indicação da psicanálise é ainda tratado por Freud em seu texto "Sobre a psicoterapia". Aqui ele sugere que só mediante modificações adequadas no método, poderia aplicá-lo no tratamento da psicose.

A esse respeito, Lacan nos indica, por um lado, que não se há de tomar psicóticos em análise porque toda a doutrina que se possui sobre esse tema mostrará um impasse. "Se tomarmos um pré-psicótico em análise, ele se tornará um louco".

Anos mais tarde, irá afirmar que o analista não deve recuar diante da psicose. O que devemos depreender então de seus ensinamentos?

Isso nos remete para a importância das entrevistas preliminares com sua função diagnóstica.

Entrevistas preliminares – em Freud, "Análise de Prova". Lacan retoma a "Análise de Prova" freudiana para estabelecer o diagnóstico estrutural e a necessidade de reformular o dispositivo analítico para a atenção de psicóticos. Em seu artigo "A questão preliminar a todo tratamento possível da psicose"2, formula a necessidade de ater-se à manobra da transferência.

A demanda de análise do psicótico provém diretamente da foraclusão do significante do Nome-do-pai. O ponto de partida de sua demanda é aquilo que pode ser denominado como significação em suspenso. O neurótico chega com uma questão, o psicótico traz uma resposta. Vem para dar uma significação que pode aparecer ora sob forma de intuição, ora de uma idéia delirante, que é trazida para o analista a fim de torná-lo testemunha desta significação ou para que avalize.

Pode ser que o psicótico vá à procura de um analista na esperança de que este faça cessar esse sem–fim significante, pela falta do significante privilegiado que não pôde advir.

Outra vertente da demanda é o pedido ao analista de fazer barreira ao gozo do Outro – barreira que o protegeria deste Outro que se presentifica em sua vida através das alucinações auditivas, cenestésicas, que o vê o tempo todo, que o manipula.

A partir do que deve operar o analista num primeiro plano? Seguramente não a partir do Nome-do-pai, pois é precisamente esse encontro com Um-pai que intervém no desencadeamento da psicose.

Como reconhecer um pré-psicótico? Falar da clínica da psicose implica falar de transferência.

Se a transferência na psicose existe é porque existe uma relação com o saber.

É fato que o problema da transferência das psicoses não seria o da sua existência, mas sim o das suas modalidades.

No neurótico, o que institui a transferência é a suposição de um saber a um terceiro, que sabe do que lhe faz sofrer, que sabe o que lhe falta.

No psicótico, também há um sujeito do saber que ele indaga, porém este saber não é suposto a um terceiro, a um outro, ele é encarnado e presentificado. O laço social estabelecido a partir desta modalidade de transferência é o que, diferentemente à transferência neurótica, imporá o diagnóstico de psicose no diagnóstico estrutural.

Nesta, o saber e o sujeito que dele se deduz não faltam na psicose, pelo contrário, nela a suposição se torna certeza.

O que esperar então de uma análise de psicótico?

Se o sujeito que procura o analista é um psicótico "aquém" da crise, "que tipo de posição o seu pedido, a sua demanda, podem colocar o analista na transferência? O analista é interpelado como um saber sem agente, sem sujeito suposto. O que está sendo interpelado é o saber psicanalítico".3

Este pedido de passeio num saber, por um paciente "aquém" da crise, pode redundar numa crise caso o analista o receba como um pedido terapêutico produzindo uma injunção a referir-se ao Nome-do-pai.

Freqüentemente, este tipo de interpelação do analista por um paciente fora da crise surge numa temporalidade singular.

Esta, provavelmente, já deu início no seu processo e na verdade o que o paciente está procurando é um lugar onde possa atravessar a crise, acompanhado, onde ele possa enfrentar, na transferência, a exigência paterna que já está comprometendo o seu saber.

O sujeito que se encontra numa situação quando ainda não deu início a uma elaboração de uma metáfora delirante vai organizar uma transferência em relação à posição imaginária de um grande Outro devorante. Estabelece-se assim uma relação direta, mortal com a Demanda do Outro.

No crepúsculo, não há defesas que garantam uma significação subjetiva.

Neste contexto, qualquer intervenção pode ser tomada como imperativo de sacrifício ao gozo do Outro. Que o analista venha a ser objeto de uma espécie de erotomania mortífera da parte do sujeito é uma decorrência da cura do psicótico. O que o analista não pode é caucionar esta posição que, se sustentada por ele, implicaria a manutenção do analisando em posição de objeto de gozo do Outro. Cabe ao analista manobrar a transferência num sentido de dirigi-la como objetivo estratégico de barrar o gozo do Outro que invade o sujeito na psicose. Para isso é fundamental que saiba em que lugar o analisando o situa.

Na verdade, às vezes torna-se difícil distinguir o analista do Outro, não só quando o sujeito lhe pede que suporte sua busca de uma metáfora de substituição, como quando se oferece ao seu gozo.

Em ambas vertentes da transferência o analista é a testemunha dessa conjunção do real e do simbólico onde o psicótico arrisca perder-se a todo momento.

Trata-se então de desalojar o paciente deste lugar de objeto a; de reintroduzir o gozo em uma função de semblante. Na condição onde o processo vinha até então sendo desenvolvido pelo sujeito psicótico com um Outro à sua medida, o analista é convocado a deslizar-se nele, marcando a sua presença pelo seu silêncio. É esta presença silenciosa que provocará o sujeito no sentido de dirigir ao analista cada vez mais explicitamente suas associações. É um silêncio que põe travas, que objeta as manobras a que se submete o paciente.

Este apelo à verbalização tem papel relevante nos momentos em que se manifesta certa proximidade de passagem a ato; constitui-se assim uma interdicção que faz barreiras ao gozo.

Uma questão impõe-se aqui acerca de como atuar com o simbólico da palavra sobre o real do gozo. Como ocorre a interpretação? Não se trata da interpretação como efeito de significação. É a obtenção de uma metáfora delirante, reduzida ao estado de convicção delirante que poderá promover uma estabilização.

O sintoma é a resposta que o sujeito dá à questão de saber o que ele é para o Outro. A resposta que o sintoma aporta nas psicoses não se organiza em torno da falta que supõe uma simbolização, mas em torno da foraclusão. A significação ocupa sentido maior no sintoma psicótico.Ela encobre a ausência de ordenamento da cadeia significante que se apresenta aí.

A paranóia se apresenta como uma resposta ao que quer o Outro. A esquizofrenia se define por não se articular no campo do significante, mas no do corpo. Na paranóia, os significantes se desencadeiam e a significação se desenvolve desmesuradamente, enquanto que, na esquizofrenia e no autismo, as palavras soltas e o mutismo representam toda a articulação significante.

Na esquizofrenia, vamos nos defrontar com uma multiplicidade de significantes, sem ancoradouro na significação fálica. São significantes dispersos à semelhança dos seus órgãos.

O paranóico, com sua metáfora delirante, tenta ancorar esses múltiplos significantes em uma significação. Constrói um saber externo à metaforização oferecida pelo Nome-do-pai, este, que é, exatamente o significante de um pacto, de um contrato que o sujeito faz com o Outro para repartir o gozo. Desse contrato, ambos são tributários, o sujeito e o Outro. Se falamos de delírio a propósito da metáfora elaborada pelo psicótico, é porque esta metáfora fracassa na reprodução desse contrato. Se esta metáfora proporciona o que Lacan chama de estabilização é por poder devolver uma função da palavra que organiza o campo da linguagem.

É o que Schreber revela através do seu escrito num esforço de manter-se no campo do significante.

Na fase inicial do seu processo, ele se crê à "borda do buraco". As imagens do corpo despedaçado são predominantes. Constrói um delírio dando vazão à proliferação do seu imaginário. Passa por uma fase do "tempo sagrado", quando se sentia vítima de uma conspiração dirigida por Flechsig. Elabora a "construção do mundo", delírio que pouco a pouco aparece como um compromisso puramente verbal. A metáfora delirante "Mulher de Deus" vai promover uma transformação do gozo. O gozo já não se encontra à mercê do capricho do Outro, pois o sujeito nele toma parte. Esta metáfora e a da "Ordem do Mundo" constituem-se como elementos que fundam sua posição de sujeito em oposição à ameaça de ser "deixado largado". Resolve a pergunta aberta para ele sobre procriação e, para nós, revela sua passagem da esquizofrenia à paranóia. Freud reconhece a constituição da metáfora delirante de Schreber como um trabalho autoterapêutico.

Há uma coisa em comum nestas duas psicoses. Em ambas, não existe barreira ao gozo do Outro. A passagem de uma para outra corresponde a um transporte do gozo do corpo para um gozo localizado num Outro subjetivado.

Voltando à questão do lugar em que o analisando situa o analista na transferência poderíamos dizer que na esquizofrenia prevalece uma transferência organizada em relação a uma demanda imaginária do Outro e uma postura de sacrifício, de entrega do sujeito em relação a esta demanda. Convém ressaltar que, se esta é uma relação prevalente, não impede contudo uma contínua oscilação dialética na tentativa de constituir uma metáfora delirante respondendo a uma exigência paterna.

Na paranóia o que se impõe é uma transferência organizada em relação à exigência paterna no real.

O analista se defronta aqui numa situação difícil, ou seja, não ocupar o lugar desse Outro absoluto e ao mesmo tempo manter o laço analítico.

A proposta de Lacan é que os alienistas se tornem "secretários do alienado"4, tomando ao pé da letra o que este lhes conta. Trata-se de saber escutar aquilo que os psicóticos manifestam de sua relação com o significante, relação esta que se estabelece num registro diferente da do analista que, por sua própria constituição de neurótico, poderá sentir-se tentado perseguir um ideal de normalização. Para isso tentará possibilitar ao paciente a construção de uma metáfora como se ele pudesse recalcar o pólo paterno que está no Real como se estivesse no simbólico. Dessa forma, o saber fica com o analista e o que sustentará o paciente será sua filiação delirante a este. Isso implicaria a manutenção de um laço sem fim.

Se uma análise do psicótico é possível, ela deve passar por uma experiência onde o analista, pelo lugar que ocupa na relação transferencial, possa esvaziar o gozo do Outro que o paciente lhe atribui.

Aqui, uma posição ética com o paciente psicótico se aproxima daquela para com o paciente neurótico.

Contudo ainda que o analista ponha-se no lugar de orientar a direção da cura do psicótico, de criar condições para fazer advir o significante e barrar o gozo proibido àquele que fala, ainda assim, é difícil formalizar o final da análise de um psicótico.

 

BIBLIOGRAFIA

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* Trabalho apresentado na 1&ºJornada Norte-Nordeste do Circulo Brasileiro de Psicanálise – Salvador – Bahia, outubro de 1993.
** Psicanalista. Círculo Psicanalítico da Bahia
1 FREUD, S – ESB – Vol. XII – Imago– pág. 166.
2 LACAN, J. – Escritos 2 –Siglo Veintiuno Editores – pág. 513 à 564
3 CALLIGARIS, C. – Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Artes Médicas – pág. 76 e 77
4 LACAN, J. – Seminário 3 – Jorge Zahar Editor– pág. 235 a 236

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