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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.28 Rio de Janeiro jun. 2014
ENTREVISTA
Entrevista com Colette Soler
Colette Soler interviewed by Dominique Fingermann
Dominique Fingermann*
O desejo em questão
Por ocasião do XIV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil – A causa do desejo e suas errâncias, a Comissão Científica (coordenada por Angela Mucida) solicitou a Dominique Fingermann que realizasse uma entrevista com Colette Soler sobre o tema do Encontro Nacional. A entrevista foi publicada parcialmente no jornal O Estado de Minas, e aqui a apresentamos na íntegra.
Dominique Fingermann: O desejo está no âmago da descoberta do inconsciente e da Psicanálise... O desejo é a primeira palavra; seria ele a última palavra do inconsciente e da Psicanálise?
Colette Soler: É simples: no princípio da Psicanálise, o desejo foi a primeira e a única palavra da interpretação freudiana. No fim, com Lacan, ele permanece, mas não mais sozinho.
Dominique Fingermann: A Psicanálise, a Filosofia e a Publicidade também partem do princípio de que o desejo procede da falta. É possível, contudo, separar o desejo do gozo e da satisfação?
Colette Soler: O gozo e a satisfação são muito diferentes. O primeiro supõe o corpo; o segunda é um fenômeno do sujeito que tem esse corpo. O gozo, muito frequentemente, não satisfaz; ele tem mesmo, muitas vezes, um parentesco com a dor – desarmônica e insatisfatória –, e isso porque ele não faz laço com o Outro, ele separa mesmo. Quanto ao desejo, ele é, por definição, insatisfeito, falta-degozar, já que sua causa é aquilo que Freud chamava de objeto originariamente perdido, e Lacan, de objeto a – enquanto ele falta. É possível, porém, o que é algo complexo, gozar da falta-de-gozar – esta é uma das fórmulas do masoquismo dadas por Lacan.
Dominique Fingermann: O complexo de Édipo, no princípio do desejo inconsciente – tão contestado nos anos 1970 – permanece atual? Ele corresponde às novas configurações familiares contemporâneas?
Colette Soler: Não. O complexo de Édipo, tal como Freud o introduziu, não é mais atual, é apenas uma historinha, como diz Lacan. Digamos que ele seja o romance familiar da Psicanálise. Muito cedo, Lacan promoveu não um antiÉdipo, mas um "mais além do Édipo", que não o contestava, mas que o repensava, sem sacrificar a questão crucial, que era saber o que, para os falantes, funciona como princípio de orientação da libido e, portanto, de seus possíveis laços sociais.
Pois é preciso compreender bem que, por definição, o desejo que se funda a partir de uma falta estrutural – efeito de linguagem – é orientado para o gozo. Ele visa a um gozo que o fixe sem, todavia, estancá-lo. É preciso acabar com a oposição binária "desejo/gozo". Com certeza, é possível gozar sem desejar, e até mesmo desejar sem gozar (a não ser que se trate de simples gozo da falta); todo desejo, porém, vai na direção de um complemento de sua falta.
Será que estamos percebendo que quando postulamos "não há relação sexual", que repetimos com tanta frequência, recusamos de fato o universal da função paterna no que diz respeito à orientação dos desejos sexuados?
Essa constatação recusa particularmente a metáfora do pai, que o próprio Lacan produziu. Desenvolvi esse tema há bastante tempo e retomei-o em meu livro Lacan, o inconsciente reinventado (Cia de Freud, 2012). Com essa metáfora, Lacan fazia explicitamente do Pai um significante que, no Outro, era o significante do Outro, da lei do Outro. Rapidamente, porém, ele concluiu, às avessas, que "não há Outro do Outro" – o Outro é barrado e não responde sobre a questão do gozo. Donde a questão de saber o que é que preside, para cada um, as vias de seu próprio desejo. Pode ser o modelo paterno, mas trata-se, então, apenas de uma solução entre outras possíveis – donde a fórmula que diz que a função do Pai é uma versão de sintoma: père version [pai-versão/perversão].
Mais geralmente, a fantasia é uma montagem pela qual o desejo se articula com o objeto a, sem passar necessariamente pelo modelo da função paterna, e a metonímia que vale para o desejo é tanto metonímia do mais-gozar quanto metonímia da falta.
Neste ponto, Lacan, com seu mais além do Édipo, antecipou, e de forma impressionante, as evoluções do século, dando aos analistas os primeiros instrumentos conceituais que permitem pensar o estado atual da sociedade.
Dominique Fingermann: O que a Psicanálise poderia dizer sobre as novas configurações familiares desde os casamentos, adoções e educação das crianças por parceiros de mesmo sexo?
Colette Soler: Sobre esse tipo de questão o psicanalista pode apenas "constatar", dizia Lacan. O que quer dizer que, se se argumenta a favor ou contra, segundo a opinião de cada um, não se pode fazer isso em nome da Psicanálise.
O que é certo, contudo – na orientação lacaniana, com o mais além do Édipo conceitualizado por Lacan –, é que a função Pai é disjunta da estrutura da família tradicional.
Dominique Fingermann: O que se pode dizer sobre a sexualidade infantil hoje? A criança é um perverso polimorfo?
Colette Soler: A sexualidade infantil é hoje aquilo que ela foi no tempo de Freud. Ao descrevê-la daquela forma, Freud produziu um passo subversivo, cujo alcance vai bem além da criança. É agora admitido que os gozos ditos sexuais da criança não sejam nada mais do que aqueles das pulsões parciais, ligadas ao próprio corpo e às suas zonas erógenas. Restava concluir, como Lacan aí insistiu, que não é a criança que é perversa polimorfa, mas o gozo em si próprio – e não somente na criança –, ligado como é à captura da linguagem sobre o corpo, e ao defeito correlativo da relação sexual. Sobre este aspecto, como diz Lacan, o adulto e a criança estão em pé de igualdade. Não que uma criança seja um adulto; a diferença, porém, está em outro lugar – se é que existem adultos...
Dominique Fingermann: Lacan relaciona as patologias com as modalidades de desejo: desejo insatisfeito da histérica, desejo impossível do obsessivo, desejo prevenido do fóbico e desejo masoquista do perverso. Os seres humanos são todos doentes de desejo? Como situar a psicose com relação ao desejo?
Colette Soler: O desejo, qualquer que seja a sua forma, não é uma patologia, mesmo se os sujeitos se queixam dele. O que pode fazer com que se suponha isso é que as formas sendo mais ou menos conformes às normas do discurso social, o desejo em si mesmo é mais ou menos dissidente com relação ao que chamamos de normalité [normalidade] – "nor-mâle" [normal/nor-macho], diz Lacan, construída pelo discurso, que visa fabricar, digamos, desejo ou gozos-padrão. O psicanalista não pode entrar nessa "caça às diferenças", que está a cada vez mais se expandindo, em nome de uma falsa universalidade, que produz apenas homogeneidade e mesmice.
A questão do desejo na psicose é outra coisa. Ela propicia mostrar como uma doutrina mal ajustada pode levar a ignorar os fatos clínicos.
Partindo do postulado de que é necessário o pai para engendrar o desejo, com a angústia de castração, vimos analistas concluírem que a psicose excluía o desejo, e até mesmo a angústia. Mas, se olharmos as figuras mais eminentes da psicose, como sustentar que lhes falta desejo? É preciso, antes, rever o conceito de desejo, como estou convidando – vocês estão percebendo, creio eu. Com relação à angústia, se ela viesse do Pai, então as mais fortes, como as do melancólico, se tornariam impensáveis.
Dominique Fingermann: Você nos convida, portanto, a rever o conceito de desejo, que não seria mais, então, somente um efeito da castração, mas uma causa do falante, e até mesmo da fala?
Colette Soler: Sim. É a linguagem que engendra a causa do desejo, não o Pai, que tem outra função, que é antes a de apresentar uma versão de desejo e de gozo. É por isso que Lacan diz père-version [pai-versão/perversão], versão na direção do Pai.
Dominique Fingermann: O mundo contemporâneo sofre pelo desejo ou pelos desregramentos do gozo? "Tudo é possível, tudo é permitido" no século XXI. Seria este o fim do desejo?
Colette Soler: Você parece supor que os mais-gozar oferecidos pelo capitalismo satisfazem – o que não é o caso. Vejamos o que acontece de fato: tudo é permitido, e transformamos os desejos em direitos! tudo é possível, nós tentamos isso!, e na land of plenty o clamor da insatisfação do desejo sobe na porporção dos bônus de gozo.
Dominique Fingermann: O fim do ensino de Lacan permite ainda afirmar "o desejo é o desejo do Outro"? As consequências do ensino de Lacan no fim e a localização do inconsciente real mudam algo no desejo?
Colette Soler: O desejo é desejo do Outro significava que o desejo, em sua diferença para com a necessidade, é um efeito de operação da linguagem, a qual esvazia o real, faz furo ali. Neste sentido, o Outro como lugar da linguagem é a condição do desejo, e é possível dizer, como faz Lacan, "eu desejo enquanto Outro", porque a linguagem é incorporada. Mas, se falarmos daquilo que orienta o desejo de cada falante – a única coisa que interessa ao psicanalista –, então o desejo não é desejo do Outro – como havia dito ao responder sua segunda pergunta.
A concepção do desejo e seu lugar na estrutura não pararam de mudar no ensino de Lacan que, a cada etapa, reconfigura todas as noções analíticas. Recusar a metáfora era já mudar algo ali, como disse. Propor a concepção do objeto era um outro passo.
Referir-se ao inconsciente real, à alíngua e ao enodamento borromeano pelo sinthoma é um outro passo, sim. Que deve ser elucidado. Foi o que comecei a fazer em meu livro Lacan, o inconsciente reinventado.
Endereço para correspondência
E-mail: dfingermann@terra.com.br
Tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira
Revisão: Dominique Fingermann
* Psicóloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil - Fórum São Paulo. Coautora de Por causa do pior (Iluminuras).