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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. vol.11 no.3 Itatiba jul./set. 2012
O corpo vivido na psicose: método fenômeno estrutural do Rorschach
The body experienced in psychosis: structural method of Rorschach
El cuerpo vivido en la psicosis: método fenómeno estructural del Rorschach
Deise Matos do Amparo1,I; Andrés Eduardo Aguirre AntúnezII
IUniversidade de Brasília
IIUniversidade de São Paulo
RESUMO
Este estudo é baseado na análise do fenômeno estrutural do Rorschach e incide sobre o modo de ver e de expressar qualidades da linguagem. A questão do corpo em esquizofrenia será discutida com base na abolição do tempo e do espaço vividos. Apresenta-se o protocolo de Rorschach de uma paciente em crise psicótica, demonstrando como a fragmentação afeta o corpo e a visão em imagens. No Rorschach, a visão em imagens revela um espírito dissociado, e as longas ausências que se seguem às associações indicam uma inserção de palavras com uma estrutura de narrativa infiltrada na composição da imagem. Há uma busca frenética pelo significado com retorno do investimento para o próprio corpo como compensação pela ausência de imagens. O Rorschach, neste caso, demonstra o caminho das perdas; a paciente oferece seu corpo e seu despedaçamento como substituição para a imagem.
Palavras-chave: Rorschach; esquizofrenia; método fenômeno-estrutural.
ABSTRACT
This study is based on the structural phenomenon analysis of Rorschach and incises over the way of viewing and the expressive qualities of the language. The issue of the body in schizophrenia will be discussed over the basis of the abolishment of time and space experienced. A Rorschach protocol of a patient in a psychotic crisis is shown, demonstrating how the fragmentation affects the body and the viewing into images. In Rorschach, the viewing into images reveals a dissociated spirit, and the long digressions following the associations indicate an insertion of words with a narrative structure infiltrated into the composition of the image. There is a frantic search for meaning with the investment return to the own body as a means of compensation for the lack of images. Rorschach, in this case, marks the way of losses; the patient offers her body and the scattering as a substitution for the image.
Keywords: Rorschach; schizophrenia; structural phenomenon method.
RESUMEN
Este estudio se basa en el análisis fenómeno-estructural del Rorschach y se centra en cómo es la visión y las cualidades expresivas del lenguaje. Discutiremos la base mental para la abolición del tiempo y el espacio vivido del cuerpo en la esquizofrenia. Se presenta un protocolo de Rorschach de un paciente psicótico en crisis que muestra cómo la separación afecta el cuerpo en la visión en imágenes. En el test de Rorschach, la imagen vista revela el espíritu disociado, largas digresiones que acompañan a las asociaciones indican que se trata de un injerto de palabras con una estructura narrativa que se había infiltrado en la composición de la imagen. Hay una frenética búsqueda de sentido con el retorno de la inversión para el propio cuerpo como compensación por la ausencia de imágenes. El Rorschach en este caso, marca el camino de las pérdidas: el paciente ofrece su cuerpo y su desintegración como sustituto de la imagen.
Palabras-clave: Rorschach; esquizofrenia; método fenómeno-estructural.
Nos estudos sobre psicose, Minkowska (1956) descobre o mecanismo da cisão (spaltung) como sendo essencial na esquizofrenia e considera que ele se exprime, no Rorschach, diretamente na linguagem, no modo de visão, na triagem das respostas e no comportamento. Esse mecanismo constitui a base da tipologia de Minkowska, núcleo da noção de estrutura da psicopatologia fenômeno-estrutural, que se oferece como base para a compreensão das relações indivíduo/mundo na psicose. A esse respeito, algumas pesquisas têm sido realizadas com o método de Rorschach, na abordagem fenômeno- -estrutural, identificando a presença do mesmo mecanismo nesse quadro clínico (Amparo, 2002, 2004; 2010; Antúnez & Santoantonio, 2008; Helman, 1984; Samba, 1981; Santoantonio & Antúnez, 2002, 2010; Ternoy, 1984; Wawrzyniak, 1994).
Alguns autores mostram, como efeito desse mecanismo, que a imagem se dissolve, constituindo uma realidade heterogênea, estrangeira e singular, denotando alterações fundamentais do espaço e do tempo vivido (Delaunay, 1975; Wawrzyniak, 2000). Na abordagem fenômeno-estrutural, essas alterações da base mental são correspondentes às dissociações da imagem do mundo e do corpo e aproximam a lógica do mundo fantástico ao universo psicótico (Calois, 1987). É, então, sob a base da abolição do tempo e do espaço vivido que podemos discutir a corporeidade na esquizofrenia.
No Rorschach, a análise do corpo vivido coloca em evidência elementos de uma estética-sensível que implicam as noções de espaço e de tempo e envolvem o ritmo. As mutações das espacialidades são determinadas por uma lógica fantástica. Por exemplo: partes do corpo que sobressaem de forma independente, seres cadavéricos que surgem no espaço da realidade, figuras monstruosas e extraterrestres. Quando a visão em imagens se extingue, o tempo da lembrança e a presença do real idêntico a ele mesmo marcam as categorias de espaço e tempo. As alternâncias são encontradas nas digressões e descrições que introduzem diferentes momentos e excluem o tempo vivido, pois cada momento é cortado por uma eterna atualidade. Sobre esse aspecto, Delaunay (1975) descreve de que maneira o corpo vivido entra em ligação com o Rorschach na perspectiva fenômeno-estrutural, o que implica considerar como o espaço e o tempo são vividos.
Delaunay considera que podemos encontrar nos protocolos de pacientes psicóticos algumas configurações indicando a não permanência do corpo: a) corpo partido em dois e corpo esburacado do lado esquizofrênico; b) corpo fantasmático do lado subdelirante; c) corpo despedaçado dos momentos psicóticos com suas derivações hipocondríacas e depressivas que exprimem os órgãos internos dispersos e que aparecem no Rorschach como: transparência (radiografia), dissecação (corpo aberto, quebrado) ou simplesmente partes isoladas. Delaunay (1975) apresenta características do mundo fantástico e a unidade estrutural dos fenômenos que caracterizam o universo esquizofrênico no qual o mecanismo da spaltung (cisão) preside um processo de desdobramento que leva a uma dissolução das formas. Elas se alteram, se deformam, se transformam até o despedaçamento.
Nos protocolos, a imagem não se organiza segundo diferentes modalidades: as cores se degradam, as formas se esquematizam, temos então a predominância do fator formal sobre o movimento e a cor; as deformações e transformações monstruosas, as metamorfoses e a telescopagem2 denunciam a inconsistência formal. Dois mundos se misturam, promovendo um efeito monstruoso; a duração vivida não é possível. Na duração, a narração é descontínua, sendo que as imagens tendem a se espaçar como um filme entrecortado de falhas; no espaço, o mundo é heterogêneo no qual imaginário e realidade se misturam (por telescopagem) sem ligar-se verdadeiramente; os mecanismos, como racionalismo e evocação de lembranças compensam a carência de imagens.
De fato, o mecanismo de cisão atinge o corpo e se revela no Rorschach. Nos protocolos dos psicóticos encontramos: a) ideias de despedaçamento, nas quais partes do corpo são projetadas nas pranchas, indicando o processo dissociativo; b) cinestesias corporais que se infiltram no processo perceptivo e denunciam um vivido doloroso e fragmentado; c) predomínio de uma sequência lógica que une o fator formal racional, a desvitalização e as osteologias com as deformações, as transformações, as metamorfoses e o fantástico, d) nota-se o surgimento de seres fantásticos, teratológicos, híbridos que se transformam por metamorfose, deformação e gigantismo, indicando que corpo e mundo não se constituem; e) dificilmente há a apreensão da figura humana em movimento (K), integrando a cinestesia primitiva, isto indica que, na lógica racional do pensamento mórbido, a segmentação e os espaços em branco parecem ser insuperáveis, a unificação criadora de sentido não pode emergir na duração (Amparo, 2002, 2010).
Na psicose, a indiferenciação e a não aceitação do limite provoca uma forma de desenraizamento do corpo. O esquizofrênico, de forma particular, não habita o seu corpo, ele vive em um mundo de fragmentos onde cada parte pode tornar-se um centro de seu universo. Nesse sentido, as estruturas fundamentais de ordem simbólica que contêm a experiência primeira do corpo e estão no seio da linguagem encontram-se destruídas. Na dissociação da psicose fala-se em conflitos na espacialização do corpo vivido. Esses conflitos se passam ao nível da dialética externo-interno, objetivo-subjetivo, percebido- projetado, pois o aparelho psíquico se estende no espaço demarcando a (in)diferenciação (Menezes, 1996).
Método
Para ilustrar essa forma de apropriação do corpo vivido na psicose, propõe-se a apresentação de um estudo de caso de uma paciente (Laura, nome fictício), com diagnóstico de esquizofrenia. Laura foi acompanhada em hospital dia e houve autorização para a realização da pesquisa, por meio do termo de consentimento livre e esclarecido da paciente e dos seus familiares. Neste caso foi aplicado o método de Rorschach, com a paciente em crise. O protocolo é analisado por meio do método fenômeno-estrutural (Amparo, 2002; Amparo & Antúnez, 2008; Antúnez & Santoantonio, 2008; Barthélémy, 2006, 2008; Helman, 1980, 1984; Minkowska, 1956; Santoantonio & Antúnez, 2010; Yazigi & Villemor-Amaral, 2010).
Nessa abordagem de análise do método de Rorschach, a noção de estrutura está ligada ao estudo da linguagem, ao modo de visão e ao comportamento. Busca-se a lógica de funcionamento mental do indivíduo, pela análise dos mecanismos de corte e ligação, nos seus efeitos na linguagem e na visão em imagens. A linguagem-expressão oferece uma relação fundamental, particularmente dinâmica e viva, e por meio delas a vida mental toma forma. A psicopatologia fenômeno-estrutural coloca em primeiro plano as configurações e as características formais que se referem à pessoa considerada como um todo. A pesquisa dos fenômenos essenciais conduz em direção à base mental, determinada pelas estruturas essenciais que são o vivido do tempo e do espaço (Helman, 1980). Sob a análise dessas estruturas essenciais, tempo e espaço, se apreende o corpo vivido na esquizofrenia.
Nesse método, o estudo de caso é suficiente para aprofundar o modo de ser do paciente, tal como fundamentado por Karl Jaspers e Eugène Minkowski (Barthélémy, 2006). A análise fenômeno- estrutural do Rorschach nos convida a precisar seus caracteres fundamentais (Helman, 1980). Na estrutura de personalidade, observamos cuidadosamente os mecanismos que a compõem, singularizam e diferenciam cada sujeito. A análise fenômeno-estrutural realiza uma análise minuciosa da linguagem no Rorschach e traz em si a marca da expressão pessoal, do peculiar modo de ver e de tomar contato com o real, com os outros e consigo mesmo. É a marca de uma maneira de se situar e de se inscrever na existência (Barthélémy, 1997). Assim, a perspectiva fenômeno-estrutural procura estabelecer uma descrição rigorosa dos fenômenos e não se posiciona no estudo de inumeráveis casos, mas na compreensão profunda de casos particulares (Barthélémy, 1997).
Apresentação e Discussão de um caso clínico
A visão em imagens que comparece no Rorschach de Laura permite-nos acessar o seu espírito dissociado. As longas digressões, uma forma difluente de discurso que não segue um desenvolvimento lógico, acompanham as associações e mostram que se trata de um enxerto de palavras, uma estrutura da narrativa que infiltra a composição da imagem. Há uma busca desenfreada de sentido com retorno do investimento para o corpo próprio, como forma de compensação para a ausência das imagens.
A duração do exame é longa (53 minutos), sem correspondência na produtividade (R=15). A primeira etapa das associações ao teste é recheada de digressões e de elementos da história pessoal da paciente. Laura se reconta no Rorschach. O modo de apreensão é marcado com um número elevado de respostas globais (5 Gv, 8 G, 1DG), muitas vezes vagas e com uma localização imprecisa. Os outros fatores não têm uma expressão significativa. O pensamento de Laura é extremamente genérico e o contato com a realidade é restrito.
Em relação aos determinantes, encontra- -se um investimento formal baixo (F%=53,3) com uma ausência quase total de precisão. As formas são quase que exclusivamente negativas (F+%=6,25). As cores com a imprecisão formal (4CF) têm uma considerável presença no protocolo, mostrando a sua forte ressonância à afetividade. O protocolo é pobremente cinestésico na associação (1K-) e no inquérito (1K- e 1kanp). As cinestesias que aparecem são confabuladas, ou refletem um movimento autístico de partes de animal.
No que se refere à análise dos conteúdos, encontra-se uma tonalidade esquizóide, desde o início do protocolo, com apenas uma resposta de conteúdo humano. As outras fazem referência a sexo, abstração, e comentários sobre medo e estupro. As referências ao corpo, na forma de respostas anatômicas (Ant 2) e Osteológicas (Ost 3), são as marcas do teste, juntamente com respostas de conteúdo original negativo. No inquérito, nota-se um aumento significativo das respostas de conteúdo humano. Os outros fatores não têm uma expressão significativa. A visão em imagens imprecisa e vaga de Laura imiscuem-se em um protocolo em que as digressões com temáticas de atentado corporal, transformação corporal, autodestruição, adoecimento, perdas, sofrimento, perseguição, morte são a tônica do teste. As sensações cinestésicas de dores corporais misturam-se com a visão em imagens, as alucinações auditivas e visuais são correntes.
Em suma, o despedaçamento e segmentação do corpo aparecem sobre um fundo de ligação. Não é uma visão completamente dissociada, desvitalizada, mas é uma visão dissociada que busca sempre ser religada. Todos os elementos se aglutinam, não na imagem, mas na narrativa. Laura reconta histórias em que ela manifesta e desdobra essa segmentação, essa dissociação, que sempre está religada pela estrutura da narrativa. Há uma extrema dissociação, dolorosa e sofrida, que denuncia um corte, mas, sobre um fundo de ligação, encontra-se uma espécie de sensorialidade preservada. Em Laura é o fundo de sensorialidade que não deixa esquecer essa dimensão de luta desesperada, quando ela diz: eu não suporto mais, estou morrendo, quero desaparecer, ela fala, fala, fala... como se fizesse a ligação nessa recontagem. Ligação como uma tentativa de redesenhar os pedaços por meio das palavras que a todo o tempo recebem a ressonância do mecanismo da cisão. Pela palavra ela tenta, mesmo sem chegar a conseguir, fazer a conexão, a ligação dos pedaços.
A análise prancha a prancha, permite acessar a construção de linguagem e a visão em imagens, bem como a incidência dos mecanismos de corte e cisão (spaltung), em Laura. Essa análise remete as alterações do corpo vivido em um fundo mental de alterações do tempo e do espaço, tal como Minkowski (1997) pontuava sobre a esquizofrenia.
As respostas às pranchas do Rorschach
Prancha I: Laura tem dificuldades de entrar em contato com a prancha e com a tarefa perceptiva, parece perdida em seu mundo de fragmentos. A longa digressão que abre a expressão verbal de suas respostas indica o distanciamento vivido e a dificuldade de contato com a realidade.
No desenvolvimento da digressão, logo que entra em contato com a prancha, a narrativa é logorréica, a temática envolve invasão, dilaceramento e atentado corporal. Os verbos utilizados, operei, mexia em mim, abria, tirava, arrebentou revelam que a cisão atinge o corpo vivido.
O protocolo é delirante e produtivo do ponto de vista imaginativo. Em um discurso contaminado, permeado pelo tempo da lembrança (embora privilegie o passado, mistura passado e presente nos tempos verbais), as referências ao corpo e as sensações corporais fazem a suplência das imagens. Ao solicitarmos à percepção, ela reconta sobre o seu corpo: ...eu passava na pele, eu ficava agoniada, eu ficava doidinha porque a pele tava daquele jeito e eu com medo de câncer de pele essas coisas... minha pele ferida e eu ficava agoniada, eu dizia ...não tira isso da minha cara, tira, tira e arrancava tudo, eu não aguentava eu não suportava .... eu operei, a única operação que fiz foi a do cálculo ... isso aqui foi tudo aberto (mostra o corpo) isso aqui já foi aberto... (parte da digressão de Laura no início da aplicação do Rorschach, prancha I).
A primeira resposta do teste é uma global cinestésica, duas pessoas beijando e transando? (DG K- H/Sexo), e a referência que vem em seguida à sensação corporal, quando diz: isso não dói não?, empresta à cinestesia um caráter de atentado corporal bizarro. A sensação corporal infiltra na produção simbólica, o espaço que a diferencia da prancha não se constitui, é um só e mesmo continuum. No inquérito diz: a união dos corpos... o corpo todo junto numa intimidade, intimamente junto, apelando para uma ligação fusional, que não é suficiente para deter o despedaçamento das partes do corpo.
O pano de fundo é a angústia de diluição que coloca em questão dimensões relativa à origem e ao corpo. Laura é extremamente vulnerável, isto se evidencia na expressão: eu não sei como tô viva, que termina a associação na primeira prancha, denotando uma angústia intensa. Palem (1969) esboça uma concepção fenomenológica da esquizofrenia, concebida como angústia de fragmentação e como doença do esquema corporal. Outros autores, como Douville (1986), vão mais além e descrevem uma angústia de anulação do ser, uma diluição fundamental que determina o fracasso da construção simbólica.
O inquérito aumenta naturalmente a produção das respostas, mas não altera o tipo de percepção global; nas duas respostas seguintes ela diz: eu acho que isso aqui é uma fantasia ( ) fantasia de carnaval, de rato (DG EF Raio X/Hd); isso é chapa do corpo da gente, isso é chapa da cara (G F- H/Masc). Quando Laura analisa o detalhe é para novamente imprimir um caráter de globalidade e confabulação à resposta. As ideias de deformação corporal, de metamorfose e de contaminação comparecem nas respostas do inquérito nas quais a formalização é inconsistente ou mal vista (EF e F-). As imagens são fluídas, assim como a noção de espaço que poderia ser estabelecida com a precisão da localização.
Prancha II: antes de possibilitar o acesso ao campo da linguagem e ao mundo de formas, Laura coloca-nos, como Artaud (1972), em contato com o seu incomensurável sofrimento. Artaud dizia, eu sou um homem que tem muito sofrimento no espírito, e, nesse sentido, eu tenho o direito de falar. Eu sei como isso trafica lá dentro (p. 28); Laura denuncia seu sofrimento logo que entra em contato com a prancha, diz: Eu tô morrendo de dor, eu não aguento mais falar com dor sabe?, revelando a extrema e insuportável dor psíquica com que se defronta. O sentido não é evidente. Nesse caso, pode-se falar sobre os pacientes que têm dificuldades de ver em imagens, em um traumatismo por ausência de sentido, uma dificuldade em discernir entre o real e a realidade.
Nessa prancha, a desvitalização do corpo e a osteologia são a tônica, ela expressa: Isso é tipo um osso do corpo humano, é da coluna vertebral (G CF Osteo); Eu acho que é uma relação sexual não sei (Gv CF Sexo); ... um pedaço da coluna vertebral saindo sangue (G CF Osteo/Sgue). Temos três respostas com determinante cor-forma (CF), uma de conteúdo sexo e duas osteológicas, nas quais a forma da linguagem é indireta e introduz uma espécie de dúvida quanto à consistência da representação. As formalizações são mal constituídas e as expressões da cisão e do mecanismo de corte surgem na linguagem, quando diz: um pedaço. Laura se dirige à cor vermelha na primeira resposta, mas a intensidade da impulsão adquire uma forma linguística na terceira resposta, um pedaço da coluna vertebral saindo sangue (CF). Após essa resposta, novamente a digressão faz a suplência da visão em imagem em um discurso descontínuo e desconexo, diz:... olha eu posso ser um atleta, eu não chego a ser na natação (....). Laura oscila entre a dor insuportável de seu corpo, o ressentir cinestésico, que coloca em evidência o vivido corporal, e o deslizamento da linguagem com um encadeamento de narrativas, que torna o discurso escorregadio e inoperante.
Prancha III: o tempo longo de reação nesta prancha, 2 minutos e 15 segundos, anuncia um choque cinestésico, uma dificuldade de integrar o movimento na visão em imagens. As digressões perpassam as suas respostas, com temáticas relativas à roupa (envelope corporal), doença, autodestruição, movimentos fisiológicos e partes anatômicas internas do corpo são a tônica do protocolo logo no início da sua reação às pranchas: ... eu não entendo nada de medicina, mas dizem que hemorróidas quando faz cocô em mim dói, tem hora para fazer cocô o intestino dói para caramba para fazer cocô... A narrativa substitui a visão em imagens.
A única resposta à prancha, essas coisas todas são maldades (Gv F- Abst ), é uma global abstrata que serve inicialmente como continente para o conteúdo dissociado da cinestesia humana presente no inquérito: na cintura, são duas pessoas sem a perna, sem a cintura...nossa que ruim isso, duas pessoas carregando uma coisa, vendo sangue e sem as pernas e sem a cintura é isso aqui tá mais é transformando seres humanos em bicho por isso que sai sangue (G K- H/A (híbrido)/Sgue/Vest).
A cinestesia mostra que, em Laura, no tempo e na duração, a figura humana se dissocia e se transforma em algo entre o humano e o animal, uma imagem esquizóide do corpo, um corpo despedaçado e híbrido que evoca o fantástico na análise fenômeno-estrutural (Calois, 1987). Um atentado manifesto à imagem do corpo subsiste na dissociação e no despedaçamento. A expressão que Laura utiliza no final das suas associações à prancha, ... o mundo inteiro fica te massacrando, mostra o quanto ela ressente esse movimento na relação com o mundo. O mecanismo da cisão se expressa na imagem e na linguagem como denota uma série de expressões do inquérito: arrebentado ela todinha, massacrando, deixando ela só o bagaço de maldade.
Prancha IV: contrapondo a sensibilidade ao vermelho, da prancha anterior, nesta lâmina é o efeito Clob que tem lugar. O apelo de Laura, Doutora tô com medo... (Gv Clob Medo), mostra que ela é sensível ao clima da prancha. Uma sensibilidade disfórica e ameaçadora, uma angústia quase sensorial que não encontra representação simbólica e se mantém no registro do afeto com ressonância no corpo próprio, ela diz em seguida à resposta, Eu gosto da igreja de crente, eu não fui para a igreja católica por medo, a pressão, eu sinto uma pressão dentro de mim, eu fico desesperada com uma pressão dentro de mim e isso não é eu, não é eu que tô fazendo isso..., manifestando uma despersonalização pelo fenômeno de desposessão. Não se sabe se essa pressão é uma sensação psíquica ou física. Fica evidente, no entanto, que Laura é submetida a um campo de forças que a desespera. Esse campo de forças a pressiona desde o seu interior, a despersonaliza e a possui. Na continuidade da sua fala complementa: ...isso não sou eu, não é eu que tô fazendo isso. Pelo fenômeno de intrusão do outro em si, descrito por Tausk (2000) como síndrome de influência, aparece a perda do que é mais íntimo do privado, ela coloca isto em palavras, eu não sei o que fizeram com a minha cabeça.
A (in) diferenciação eu-outro se manifesta na alteração do espaço vivido. Laura não se apropria de seu corpo próprio e se perde no contato com a realidade. A longa digressão, na qual continua falando: eu não tenho memória e eu sei do sofrimento, em uma fórmula que reenvia à intensidade do sofrimento e ao vivido da perda, denota um pensar impossível.
Artaud (1972) também nos interpela de forma semelhante, dizendo: eu sou um homem que tem muito sofrimento no espírito e a esse título eu tenho o direito de falar. Eu sei como isso se trafica lá dentro (I, 28), sofrimento frio e sem imagens, sem sentimento (I, 73 e bibl. 8). É o vivido da perda da palavra, do vazio de imagens que deixa submersa uma angústia difusa, permeada de sofrimento, desespero, morte e perdas.
A segunda resposta, Um caracol... (D FA/( Ad)) vem como um flash, uma apreensão fugaz da realidade em um detalhe concreto, mas que perde na formalização. O efeito da fragmentação é percebido também no inquérito, aqui é a cabeça de uma lesma, que mantém o conteúdo no mesmo registro, mas ela vê a parte de um todo mal constituído.
A digressão que vem a seguir tem a tonalidade Clob da primeira resposta, circulando em temáticas de perda, morte e desespero. A finalização da associação com o enunciado eu queria ter a cabeça de um policial porque eu não aguentava filme de horror, coloca em relevo a problemática da diferenciação eu/não eu, em que tudo se organiza em relação ao sentimento de despersonalização e desposessão. Pode-se dizer que nos introduzimos em uma clínica do objeto parcial e do sujeito parcial. Em Laura, temos a impressão de que a cabeça é a cena, o objeto é trocado por outro, um corpo com outra cabeça. Essa dimensão reenvia a qualquer coisa da intrusão inquietante e estranha do fantástico (Calois, 1987) que é subjacente; uma cabeça que passeia e faz parte de outro corpo. A forma de misturar real e irreal traz aqui uma metamorfose inquietante que altera as noções de espaço e tempo.
Prancha V: a imagem banal, não, eu acho mas... não sei é uma borboleta (G F+- A (Ban), mostra novamente a sensibilidade de Laura ao clima da prancha, no entanto na construção formal da resposta banal ela é frágil, ela hesita. Laura entra em uma digressão sobre o pai falando: Meu Deus meu pai, às vezes é um ladrão inocente, às vezes é um ladrão, rouba porque tem inimigos que quer sujar o nome dele.
Na segunda resposta, carne junta (Gv FCarne), tenta juntar em uma global vaga o que é impossível. A imagem é negativa e esquizóide e remete a um registro sub-humano no qual a desvitalização é imperiosa. No inquérito, as ideias de transformação, atentado corporal e despedaçamento são as resultantes: Tem um ímã no coração (....) aí o ímã puxa outro ímã, põe o ímã dentro da casa com cimento para a pessoa ser puxada, ela se quebrar toda se acabar, virar bagaço (....) eu tô em desespero com essa doença.
A terceira resposta, isso aqui é estupro, isso aqui é deformar o rosto na cadeia (G F- Estupro) também tem uma formalização negativa e é acompanhada de ideias de deformação da face e atentado corporal. Continua a digressão na qual a cisão é a tônica da digressão, ... só o desespero te estoura tudo por dentro e mata. A autorreferência e a longa digressão na terceira resposta mostram a intrusão de outra temporalidade. As imagens são fluídas e inconsistentes, a realidade não se constitui. No inquérito continua: isso aqui é pra encobrir um estupro, passando pelo braço a genitália de um homem para chegar numa mulher, o órgão masculino e feminino juntos mais com anomalia, aberração da natureza para ninguém querer..., essa espécie de fuga da imagem com dois conteúdos diferentes para um mesmo local na lâmina, em uma temporalidade quase indistinta, mostra o mecanismo da telescopagem na abordagem fenômeno-estrutural, e revela um corpo vivido como monstruoso e com dificuldades para ascender à diferenciação. A interpenetração interdiz a capacidade de estruturar um espaço vivido.
As representações humanas em Laura assumem um aspecto bizarro, pois são marcadas pela perda da forma, como uma imagem fantástica. A forma humana não se organiza de maneira integrada e é sempre passível de aberrações. Em alguns pintores, como por exemplo, Francis Bacon, as representações humanas são marcadas pela perda da forma, mas a unidade do corpo permanece. Reconhecemos um corpo humano nas suas obras, embora este corpo se apresente deformado. Em Laura, é mais do que deformação, é uma desorganização profunda que atinge o espaço vivido e as possibilidades de construção de um mundo de objetos e de símbolos.
Prancha VI: como na prancha IV, em meio à sensibilidade ao clima Clob da prancha, participamos do dilaceramento corporal, reação que comparece no conteúdo da digressão quando fala: tira os olho, arranca os braço, retira o cérebro e por um mecanismo de desvitalização, da suplência do vital pelo mineral, ao dizer: tira o cérebro da pessoa e dá como diamante, eu não sei se põe diamante dentro do cérebro. No fundo da dissociação do corpo encontram-se elementos de ligação. Há muita sensorialidade no protocolo de Laura, mas com dificuldade de organização na representação.
Laura não vê em imagens. Ela fala... desliza em um discurso descontínuo, alucina e constrói significados com conotação persecutória de atentado e invasão corporal, ideias de morte e perseguição, como esta a seguir: ....agulha de injeção nos seus olhos e tira os olhos, a dor é de matar, arranca os braços, arranca as pernas e você lá fraco, eu tenho horror.
Sublinhamos como Laura é sensível ao clima da prancha e como a sua visão em imagens é marcada pela dissociação do vivido corporal e por uma grande sensorialidade caótica. Considerando esse aspecto, levantamos como questão: o quê, independente de toda dissociação, se constitui como organizador do seu mundo de formas (formdeutversuch) e do seu mundo?
Delaunay (1975) tratou de dois tempos na organização do tempo vivido, um primeiro, da recepção dos dados do real, e, um segundo, para conceber estes dados. Laura não pode ver outra realidade senão aquela do seu sofrimento e do caos do seu corpo. É o real do seu corpo que ressoa na prancha sem lugar para a concepção e organização das formas. Pode-se, então, falar aqui em abolição do espaço e do tempo vivido.
As únicas respostas à prancha VI são duas adicionais que surgem no inquérito e são mal formalizadas, isso aqui ainda seria uma cabeça idiota com chifres, para dizer que é diabo (D F- (Hd); esse aqui é uma pessoa aos pedaços, a cabeça pequeninha e o corpo grande, aqui os braço as pernas e a cabeça, a cabeça é pequena, para dizer que é santo (G F- Hd). A contaminação da primeira resposta revela o pensamento delirante. Na segunda resposta, o despedaçamento, a transformação e a desvitalização corporal continuam sendo a tônica.
Prancha VII: o contraste e a oposição antitética eu amo e eu não suporto é o pano de fundo de uma longa digressão inicial que marca a dificuldade de ver em imagens e a distância em relação à prancha. A visão em imagens parece difícil. A osteologia é a primeira resposta da prancha: Outro osso do corpo a bacia, a bacia... (suspira) (G F- Osteo) uma global, mal vista e sem localização precisa.
No inquérito, surgem duas respostas adicionais em um contexto de uma narrativa desconexa e disjuntiva: a cara da Virgem Maria criminosa e perversa, isso quase me matou dentro de casa. Isso aqui é aquela santa, por isso ela faz isso, acho foi, a face dela ser preta isso aqui é a face da santa, como se ela defendesse a pessoa de toda essa crueldade (Gv C (Hd)) e aqui é uma concha de peixe de macumba ( Dd F- Objeto fantástico). A primeira resposta é uma global vaga com conotações persecutórias. Na segunda resposta, o pequeno detalhe, um objeto fantástico, é delirante.
Os verbos abrir, enfiar, quebrar, meter, sufocar, que comparecem na digressão que vem em seguida à resposta, denunciam o mecanismo da cisão e marcam, ao final do inquérito, as temáticas de intrusão e dissociação ... abrindo uma pessoa sem anestesia colocando ela impecável em petição de miséria por dentro.... a pessoa se olha assim tá impecável mas só tá o bagaço por dentro.
Prancha VIII: Laura alucina. A visão em imagens é difícil e penosa. As digressões marcam o início da prancha com ideias de atentado corporal e revelam o mecanismo de cisão bem como a intensa fragmentação do corpo vivido: ... tô toda arrebentada, regaçada, rebentada, matada, estourada, eu sou só o bagaço aqui, só o bagaço aqui, aqui você tá vendo só o meu bagaço, eu sou um bagaço, você tá vendo só o meu bagaço...
A única resposta dessa prancha, cérebro doente (G F- Anat/Simb), é uma anatomia que parece ter também um caráter simbólico. Embora Laura não se refira à cor como elemento de determinação da imagem, a digressão com a temática de esfacelamento corporal estoura o fígado da gente, estoura o estômago, estoura o coração, clitóris, vagina, estoura tudo, que vem logo a seguir, sugere que a cor pode ter um efeito de encorajamento do despedaçamento do corpo.
O inquérito da resposta, cérebro doente, demonstra a instabilidade da visão em imagem. Laura constrói uma argumentação marcada pela contaminação quando diz: é cérebro humano sendo cérebro de um leão, ou então sendo de uma cobra enorme, a transformação da imagem na continuidade, a mistura de registros animal/humano, e a ideia de transformação denotam a sua instabilidade e inconsistência no tempo.
A resposta adicional da enquete, uma dentição de leão arrancando os braços e as pernas... (G kanp Ad/Hd), é uma global que se constitui por uma contaminação por generalização e extensão abusiva do conteúdo da imagem, do grande detalhe lateral banal. Ao mesmo tempo em que se percebe uma generalização abusiva, se encontra uma contração, uma parcialização que passa do leão à dentição do leão. Nessa prancha, aparece outro nível de parcialização: a boca que passeia sozinha, a dentição do leão que funciona como objeto parcial, denotando a alteração da estruturação do espaço corporal e do espaço vivido. Na realização da imagem, a cinestesia parcial animal, que implica uma continuidade no tempo e na duração, se dissocia e se segmenta levando a parte a fazer a função do todo.
Prancha IX: a perseveração osteológica é imediatamente registrada em uma forma mal vista, é outro cérebro doente (G F- Anat/Simb), que repete a resposta da prancha anterior. A seguir, por um mecanismo de transformação da imagem, a imagem inicial agrega outros elementos: uma mulher gerar uma criança no cérebro já pensou que coisa horrível, eu acho isso a pior maldade.
Normalmente, a parte rosa da prancha (D inferior) é frequentemente vista como bebê. No inquérito, como resposta adicional ela diz: Doutora isso aqui parece mais dois nenês pela metade saiu da trompa e os braços tão em cima com anomalia, porque não é normal, e os braços tão em cima (G F- H/Anat/(H)). Pode-se supor que, em Laura, qualquer coisa de um bebê se inscreve e é introduzida no seu mundo de uma forma delirante, sobrepondo duas imagens por um mecanismo de telescopagem. No inquérito, a ideia de deformação, a monstruosidade e o despedaçamento da imagem mal constituída denotam que estamos sempre no registro fantástico e na intrusão do corpo próprio.
Seguindo o mesmo movimento da prancha anterior, a cor estimula o despedaçamento e a narrativa sobre a fragmentação, ela diz:... quebra todos os meus ossos, a dor que eu senti era insuportável. Com essas palavras ela faz a suplência da ausência de imagens.
Prancha X: sublinha-se no protocolo de Laura um fenômeno que Delaunay (1975) esclarece no seu texto desta forma: quando não vemos em imagens, recontamos. Laura diz isso explicitamente no começo da prancha, outra coisa que quero te contar, em um mecanismo de suplência da imagem, após dar inicialmente na prancha uma resposta abstrata: é rivalidade (Gv Abst). Ela reconta sobre sua família, outra coisa que quero te contar, quando entro em casa do meu pai fico verde (....)duas mulheres amam o mesmo homem e são rivais (...) eu não sei se dói. Eu nunca fui estuprada, mas dói..., explicitando que há qualquer coisa que liga rivalidade, separação conjugal, dissociação familiar e dissociação corporal e psíquica. Nesse ponto, toca-se em elementos da sua história.
A resposta seguinte, Ácaro, hum! (faz gesto com o rosto) que nojo (faz cara de nojo) eu vejo ácaro eu já pus tanta porcaria na boca (G CF A/ kan), é mimetizada por Laura, com expressão de repugnância, para sustentar a visão em imagens. Em seguida, novamente entra em uma digressão, falando do seu desespero em viver: ... cada passo que dou é um desespero.
A referência à sensação corporal dolorosa marca a dificuldade de ver em imagens, explicitando o que Wawrzyniak (1998/1999) denomina trauma por ausência de sentido, quando discute sobre o trajeto da perda em Rorschach de pacientes psicóticos. Laura fala sobre isso quando conclui a associação no Rorschach e diz: eu queria saber por que isso eu não entendo nada, (...) há anos que eu não entendo nada. Ela nos mostra de que maneira o vazio psíquico da psicose é difícil de sustentar, refletindo a incapacidade de constituir sentido que corta o contato com o ambiente. Quando não vê em imagens não chega a fabricar um sentimento de realidade. A suplência, dolorosamente sentida, é a da recontagem, do esfacelamento do seu corpo.
Considerações Finais
A visão em imagens na sua duração permite visualizar diferentes formas de realização no Rorschach de psicóticos. Somos confrontados na particularidade desses protocolos com produções que caracterizam modos diferentes de realização. São estilos de visão em imagens que poderiam ser colocados em oposição, no entanto, pertencem a uma mesma estrutura de base.
Essas diferentes formas, quando tomamos um vocabulário da arte, podem ser aproximadas da ideia de estilos. Por exemplo, na pintura temos o caso de Picasso, que no mesmo espaço de um quadro esboça diferentes momentos sucessivos da imagem de uma pessoa, vista de frente e de perfil e a transforma em uma imagem criativa. Ou Bosch, que com suas representações híbridas e teratológicas, ilustra a intrusão fantástica na vida cotidiana. Ou Francis Bacon, que deformando as imagens dissolve a forma humana. Ou ainda, como ressalta Yazigi (1998), que El Greco com seu talento foi capaz de ultrapassar seu próprio estilo e de transmitir sua sensibilidade, sua sensualidade, sua fineza de sentimentos por intermédio da sua arte. El Greco encontra formas de sair do seu isolamento e se fazer comunicar. Os artistas são o contraponto criativo, jogam com o espaço e o tempo de forma diferente do esquizofrênico. Esse jogo é criativo e não fonte de naufrágio do sentimento de realidade.
No contexto da psicose, alguns autores tentam agrupar e indicar com precisão essa diferença de estilos, por exemplo, Ey (1954), na sua interpretação de delírio, diferencia o modo interpretativo do imaginativo, Pankow (1983) propõe considerar a oposição entre psicoses rígidas e fluidas. No contexto da análise fenômeno-estrutural, Wawrzyniak (1994) desenvolve um grupo de pesquisas no qual propõe explorar dois mundos, sendo um caracterizado pela ativação do onirismo, na ligação com o irreal e com o imaginário e outro caracterizado pelos delírios racionais que apresentam uma frieza lógica.
Nas nossas pesquisas (Amparo, 2002, 2010), encontramos na psicose uma modalidade de realização que pode ser considerada como uma atividade imaginativa rica com produções delirantes, sensibilidade ao clima da prancha e a outros fatores além da forma; é o caso de Laura. Outra modalidade de realização é perceptiva, com uma atividade imaginativa pobre, os chamados delírios racionais, em que o investimento é basicamente formal com diminuição da sensibilidade a outros fatores do teste; são os quadros marcados pelo racionalismo mórbido.
Mesmo considerando essa forma de agrupamento ao discorrer sobre a psicose, é importante pontuar as especificidades de estilos, nas formas de constituição da imagem e da linguagem, que designam particularidades na maneira de entrar em contato com o mundo. A noção de singularidade pode ser aqui pontuada. Laura apresenta no método de Rorschach uma atividade imaginativa rica, mas o encontro com ela é desestruturante. O seu protocolo marca o caminho das perdas, uma hipocondria delirante que oferece o corpo nas suas dores e despedaçamento como suplência da imagem.
Referências
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Recebido em novembro de 2011
Reformulado em maio de 2012
Aceito em agosto de 2012
Sobre os autores:
Deise Matos do Amparo: Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez: Mestre e Doutor em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo. Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1Endereço para correspondência:
Universidade de Brasília Departamento de Psicologia Clínica Campus Universitário Darcy Ribeiro -Asa Norte -CEP: 70910-900 - Brasília, DF Brasil E-mail: deiseamparo@unb.br
2Esse termo pode ser traduzido ao idioma português por interpenetração ou sobreposição, no entanto, para manter o estatuto de uma codificação conserva-se, neste trabalho, o termo no idioma francês, telescopagem. A telescopagem apresenta-se como a conjunção de imagens desconexas, como a confrontação de pontos de vista que se misturam e se excluem mutuamente. Esse termo pode ser traduzido por interpenetração ou sobreposição, no português, no entanto, para manter o estatuto de uma codificação conserva-se, neste trabalho, o termo do francês telescopagem. O termo telescopagem é utilizado na classificação da abordagem fenômeno-estrutural do Rorschach, introduzindo nuances na visão em imagens. Ternoy (1999) esclarece esse conceito propondo distinguir contaminação e telescopagem. A contaminação se apresenta como a forma de um amálgama autístico insensato. A telescopagem apresenta-se como a conjunção de imagens desconexas, como a confrontação de pontos de vista que se misturam e se excluem mutuamente.