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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. vol.11 no.3 Itatiba jul./set. 2012
Avaliação psicológica no adolescente: objeto de mediação terapêutica
Psychological assessment in teen: object of therapy mediation
Evaluación psicológica en el adolescente: objeto de mediación terapéutica
Catherine Azoulay1
Instituto de Psicologia da Universidade de Paris
Portador de vida, o exame psicológico enfatiza as competências: aquelas que já temos, as que podemos adquirir, as que devemos desenvolver. Ele deve ser o revelador do prazer de aprender, presente em todo indivíduo humano, pois esta é uma das formas que o gosto de viver assume (Debray, 1998, p. 119).
RESUMO
Referindo-se aos trabalhos de autores franceses antigos e atuais que contribuíram para a reabilitação da avaliação psicológica na prática clínica, este texto focaliza o interesse da avaliação psicológica de orientação psicanalítica como objeto de mediação com fins terapêuticos. Ele tenta mostrar, apoiado em uma ilustração clínica de uma avaliação psicológica de uma adolescente de 16 anos, de que modo a utilização da avaliação pode se inscrever em uma abordagem global de tratamento do sujeito.
Palavras-chave: avaliação psicológica; psicodiagnóstico; psicoterapia psicanalítica; testes psicológicos.
ABSTRACT
Referring to the work of former and current French authors who contributed to the reinstatement of psychological assessment in clinical practice, this text focuses the interest of psychological assessment of psychoanalytic orientation as an object of mediation with therapeutic aims. Supported by a clinical illustration of a psychological assessment of a 16-year-old adolescent, it means to show how the use of the assessment can be inserted into a global approach for treating the subject.
Keywords: psychological assessment; psych diagnosis ; psychoanalytical psychotherapy; psychological tests.
RESUMEN
Con base en trabajos de autores franceses antiguos y actuales que han contribuido a la rehabilitación de la evaluación psicológica en la práctica clínica, este texto enfoca el interés de la evaluación psicológica de orientación psicoanalítica como objeto de mediación con fines terapéuticos. El estudio busca mostrar, con el respaldo de una ilustración clínica de la evaluación psicológica de una adolescente de 16 años de edad, de qué manera el uso de la evaluación puede inscribirse en un abordaje global de tratamiento del sujeto.
Palabras-clave: evaluación psicológica; psicodiagnóstico, psicoterapia psicoanalítica; tests psicológicos.
A partir da descoberta dos primeiros testes psicológicos, no início do século XX, principalmente na França, com a conhecida escala de inteligência de Binet e Simon (1905), a avaliação psicológica conheceu períodos de glória e períodos de declínio. Há alguns anos, os testes vêm se reerguendo do descrédito que haviam sofrido durante os anos 1970-80, após os movimentos de 1968. Nessa época, os testes eram considerados instrumentos que só serviam para encerrar sujeitos em compartimentos e para rotulá-los como doentes mentais, ou para reduzir os pacientes ao estado de um objeto de estudo, desencarnando-os.
Com efeito, assistimos nesses últimos anos a uma retomada da demanda por testes, particularmente do grande público, com um interesse particular pelos testes de QI, em função da questão central de certos pais para se assegurarem do bom funcionamento da inteligência de seus filhos, com uma pergunta suplementar implícita ou explícita: meu filho seria intelectualmente precoce? Desse modo, após severo questionamento, a avaliação psicológica encontrou um lugar ao lado da sistematização psicopatológica a qual ela se associa. Duas correntes se desenvolveram paralelamente:
a corrente da psicologia clínica neurocognitiva, com excelente desempenho no campo da pesquisa em psiquiatria e em neuro-psiquiatria, bem como no campo da avaliação clínica cognitiva, particularmente com pacientes portadores de déficits neurológicos. Essa abordagem do funcionamento cognitivo pode ser chamada de conduta clínica, na medida em que pode transmitir ao sujeito um sentido que fornece esclarecimentos sobre ele mesmo, por meio de um encontro que se pretende inter-humano.
a corrente psicodinâmica utiliza os aportes da teoria psicanalítica em todas as etapas da avaliação psicológica e mais especificamente na interpretação dos testes de personalidade, ditos projetivos, tais como o Rorschach. Nesse contexto, a avaliação psicológica é considerada como uma oportunidade oferecida ao sujeito para que ele possa se expressar em uma relação individualizada por meio de um material mediador, relação na qual a dimensão transferencial e contratransferencial deve ser considerada. Enriquecida pela referência psicanalítica, a avaliação psicológica permite dar conta do funcionamento psíquico de um sujeito em sua totalidade, a partir das noções de conflitos intrapsíquicos e de mecanismos de defesa, com o objetivo de resituar o sofrimento ou a demanda do sujeito nesse conjunto.
Na França, a avaliação psicológica baseada em uma compreensão psicanalítica inscreve-se na continuidade dos trabalhos de Guillaumin (1965), Perron-Borelli e Perron (2001), Perron (1997), Debray (1998, 2000) e, para os testes projetivos mais especificamente, Anzieu (1992), Rausch de Traubenberg (2000), Chabert (1998), Brelet (1986), Shentoub (1990), Boekholt (2006), Emmanuelli e Azoulay (2009). Qualquer que seja o modelo que oriente a aplicação e a interpretação de uma avaliação psicológica, é indispensável livrar-se da ideia ilusória de uma objetivação dos resultados dos testes, na medida em que o funcionamento psíquico humano não pode responder às mesmas leis que regem as ciências da natureza.
Ora, a referência a normas estatisticamente validadas é o que justifica a própria designação de testes: cada teste é construído e adaptado segundo critérios de sensibilidade, fidedignidade e validade muito bem codificados, baseados em uma experimentação sobre uma amostragem representativa da população geral. Nesse sentido, o teste tem um valor que pode parecer opor a normalidade à patologia de modo rígido. Entretanto, como a psicanálise mostrou perfeitamente, o sujeito só existe na e graças à diferença em relação à norma: é no próprio movimento que ao mesmo tempo o aproxima e o afasta de uma posição mediana, isto é, normativa, que o sujeito se define, se diferencia, se singulariza. A função dos testes, e consequentemente a do psicólogo que os maneja, é antes de tudo a de captar essa singularidade e, portanto, colocar essa referência normativa a serviço do indivíduo e não o contrário, o indivíduo a serviço da norma. A partir disso, os testes podem garantir uma real função de mediação.
Nas instituições, a avaliação psicológica é solicitada para contribuir com a avaliação diagnóstica. Os objetivos do exame são múltiplos e a preocupação com o diagnóstico não deve ser exclusiva, mais particularmente com os adolescentes, cujas possibilidades de evolução são muito variadas: seus objetivos podem ser o de redinamizar um tratamento para um paciente esquecido, de determinar a capacidade de autonomia de um sujeito ou de retomada da frequência à escola, ou de uma formação, de trazer, com o auxílio de um teste-reteste, elementos prognósticos relativos às possibilidades de mudança, de esclarecer o acesso a uma proposta terapêutica, ou, de modo mais clássico, efetuar uma avaliação de funcionamento cognitivo e de personalidade no início, no meio ou no final da hospitalização.
Os resultados dessa avaliação, devolvidos oralmente à equipe, com mais frequência no momento de uma síntese sobre o paciente, se inscrevem em uma compreensão dinâmica do funcionamento do paciente, o que significa que eles devem idealmente abrir-se para uma articulação dos pontos de vista dos diferentes profissionais. Considerando-se o funcionamento psíquico em seu conjunto, é a própria fala do sujeito que se expressa por intermédio dos testes, e que o psicólogo deve poder retransmitir aos diversos profissionais responsáveis pelo tratamento, de modo a que esta fala seja ouvida e integrada no protocolo de tratamento.
Os resultados dos testes também são transmitidos ao paciente e, com o adolescente, o recurso ao espaço transicional de Winnicott (1971) ainda é um apoio pertinente para o psicólogo. Como enfatiza Emmanuelli (1999):
O psicólogo se situa em um espaço transicional que faz eco ao desejo paradoxal do adolescente ser compreendido sem sê-lo. Para o clínico, trata-se de levantar o que está impedindo de se ver, de dar sentido ao que não é compreendido, mas com a preocupação de esclarecer o percurso futuro, respeitando as zonas de sombra, por ora necessárias. Do mesmo modo, na entrevista final com o adolescente, não se trata de dizer tudo sem nuances, tampouco de tudo fazer dizer durante a avaliação. Parafraseando Winnicott, o psicólogo deveria ser apenas suficientemente competente e evitar o desejo de mostrar a extensão de sua compreensão, para respeitar as possibilidades de integração do adolescente (p. 37).
Ilustração clínica
Eva, 16 anos, foi-me encaminhada por seus pais, a conselho de uma tia que também é minha colega, para que eu realizasse uma avaliação de personalidade. Nesse contexto, trata-se de uma demanda espontânea da parte de seus pais, o que é cada vez mais frequente nos consultórios de psicologia.
Os pais se preocupam com a filha, pois ela parece triste, quase não tem amigos e não consegue tomar as rédeas de seus estudos. Recentemente, ela havia ficado um tempo na Alemanha na casa de uma família e as coisas não se passaram muito bem, nem com a família, nem com os jovens de sua idade e ela parecia estar ainda pior do que antes. O pai, com quem falei ao telefone mais do que com a mãe, está mais ou menos convencido de que as dificuldades encontradas por sua filha estão ligadas a sua superdotação: ela tem problemas na escola porque é superdotada. Ele mesmo é um homem com status social elevado, diplomado nas melhores escolas de administração de empresas da França e dos Estados-Unidos. Ele pensa ter vivido o mesmo que sua filha em função de sua inteligência, mas que, ao saber disso, somente o trabalho e a vontade, com a ajuda dele, permitirão a Eva superar essas dificuldades. Sua mulher e sua irmã aconselharam que Eva se submetesse a testes de personalidade, mas ele não via necessidade disso. Contudo, ele aceita.
Três meses antes, Eva havia sido atendida por uma psicóloga de sua região, no oeste da França, para uma avaliação intelectual. No momento da aplicação do teste de nível intelectual, ela passava por grandes dificuldades escolares no período equivalente ao primeiro ano do segundo grau (no Brasil), mantendo uma média geral ligeiramente superior a 102, enquanto que antes de sua chegada ao primeiro colegial (no equivalente ao início da oitava série do ensino fundamental) ela era brilhante. Eva repetiu esta oitava série.
A psicóloga observa que Eva se queixa de seus numerosos esquecimentos, culpa-se por não encontrar uma solução e expressa um forte sentimento de desvalorização diante de jovens de sua idade. Ela questiona sua capacidade, pensa que seu pai a superestima e descreve a irritação desse último com sua evolução escolar. Diante da psicóloga, Eva se mostra sensível, vulnerável, emotiva, transmitindo um grande sofrimento.
Os resultados do teste de nível intelectual indicam um QI Total de 137, com uma escala verbal de 143 e uma escala de desempenho de 117. Conforme os resultados dos diversos subtestes, a diferença de mais de 20 pontos entre as duas escalas deve-se atribuir a dois movimentos correlatos:
- de um lado, um superinvestimento da esfera verbal que evidencia a qualidade do aprendizado escolar e a hiperadaptação concreta (19 pontos no subteste Compreensão);
- de outro lado, em função de uma lentidão relativa nos subtestes que mobilizam o registro da abstração e remetem às referências espaciais (Cubos: 12 pontos, Armar objetos: 11 pontos, Código: 9 pontos).
A Psicóloga conclui sobre a necessidade de Eva tomar consciência de que seus resultados atuais não são o reflexo de suas possibilidades, que seria uma pena que ela repetisse o ano novamente e que ela deveria continuar sua psicoterapia como um auxílio para superar suas dificuldades. A partir das recomendações de seu clínico geral é que Eva é acompanhada por mais de um ano por uma psiquiatra e psicoterapeuta cognitivo-comportamental, a cada quinze dias. Essa terapeuta também lhe receitou antidepressivos desde o início das sessões. Segundo ela, os transtornos depressivos são menores e passíveis de melhoria com o tratamento.
Ora, segundo a tia de Eva, os distúrbios da jovem são mais inquietantes do que parecem. Ela já havia recomendado aos pais de Eva que esta fizesse uma avaliação psicológica completa, mas eles preferiram restringir-se ao teste de nível intelectual. A tia considera que a terapia iniciada pela jovem não é adequada, começando pelo próprio espaçamento entre as sessões (uma vez a cada 15 dias). Na realidade, ela teme que Eva se inscreva em uma patologia familiar maníaco-depressiva: com efeito, dos dois lados, paterno e materno, existem antecedentes dessa patologia, com tentativas de suicídio, o que será confirmado pelos pais, mas como algo menor e até mesmo banalizado por eles. Segundo a tia, a terapeuta não teria evocado claramente essa possibilidade, provavelmente em função da idade de Eva.
Assim, recebo Eva em um terreno que opõe a tia e a terapeuta quanto à psicoterapia, bem como a tia e o pai de Eva, sem que a mãe consiga se posicionar nessa questão. Na entrevista, descubro uma moça morena e pálida, de rosto sério e olhar intenso e profundo revelando uma expectativa dolorosa. Ela se veste de modo muito austero para uma jovem de 16 anos: vestido de cor escura até o tornozelo, mangas compridas, não usa nem maquilagem nem adorno. Seus cabelos, puxados para trás, estão presos num rabo de cavalo baixo. Seu jeito não é o de uma adolescente do século XXI. Ela parece sair de um romance de Flaubert.
No entanto, o contato se estabelece com certa facilidade e Eva mostra confiança ao se expressar. Ela me explica que há mais ou menos dois anos os seus resultados escolares baixaram muito. Ela liga essa situação ao fato que, no primeiro colegial, foi pressionada por um professor de francês que queria obrigá-la a participar oralmente da aula contra a sua vontade. Ela passou a fechar-se cada vez mais. Seus pais acabaram ficando preocupados. Ela se consultou então com uma psiquiatra que lhe receitou antidepressivos. Ela conta que o último verão foi muito difícil para ela, pois foi mandada para um centro de escotismo na Alemanha por cinco semanas. Ela se sentia muito mal, chorava frequentemente, não conseguia se relacionar com os outros jovens, nem com a família na qual residia. A psiquiatra dobrou as doses de antidepressivos por ocasião da volta às aulas. Ela acha que voltou aos poucos a se sentir melhor, durante alguns meses, mas que as notas muito baixas nos seus boletins escolares eram um grande motivo de angústia para ela, pois não sabia o que fazer para melhorar os seus resultados. A avaliação de nível intelectual que acabou fazendo a tranquilizou e a levou a pensar (como o seu pai) que os seus problemas decorrem do seu alto nível intelectual.
Antes da aplicação do teste, ela me diz que tem poucos amigos e que não convive com as pessoas com quem ela gostaria de conviver, que é hipersensível e que pensa que seu pai o é também, que ela encontrou a fé há pouco tempo e que, quem sabe, gostaria de se tornar uma freira. Ela também diz que se sente muito próxima de um primo de primeiro grau de seu pai, ele também triste e tomando antidepressivos. Ela diz ainda que tem períodos de exaltação, principalmente à noite, quando acontece de ela se por a dançar e exteriorizar suas emoções.
Metodologia e clínica da aplicação dos testes projetivos.
A aplicação dos testes Rorschach e TAT mostrou-se demorada e penosa, tanto para Eva quanto para mim. Foi preciso adaptar as condições de aplicação, em relação às modalidades habituais, para tornar a situação projetiva suportável para as duas protagonistas3.
O protocolo de Rorschach de Eva apresenta 245 respostas (a média na população geral se situa entre 20 e 30 respostas), das quais 170 nas três primeiras pranchas, e isto com um ritmo excessivamente rápido. A partir da prancha IV, formulei uma nova instrução mais restrita: fornecer em torno de dez respostas para cada prancha, o que ela conseguiu fazer, pois não mais ultrapassou o número de treze respostas por prancha, mantendo sempre o mesmo ritmo verbal e as mesmas formas de abordagem das pranchas. Frente a essa hiper-excitabilidade psíquica que eu não esperava, optei por não proceder ao inquérito [lenquête] que segue habitualmente as respostas espontâneas. Com efeito, pareceu-me que as perguntas colocadas pelo inquérito teriam levado Eva a extrapolar novamente o quadro de maneira descontrolada. Nessas circunstâncias excepcionais, não foi possível cotar as respostas nem estabelecer um psicograma. Portanto, baseei minha interpretação do Rorschach nos seguintes pontos: 1- a dinâmica das respostas entre continuidade e descontinuidade (qualidade dos laços psíquicos), 2- a capacidade das representações em permanecer inteiras (bases identitárias), 3- as modalidades de expressão dos afetos (identificação e avaliação dos movimentos depressivos).
O TAT expõe imagens figurativas, na maioria das vezes com personagens, cuja instrução dada é a de contar uma história para cada imagem4. Esse teste foi aplicado segundo as modalidades clássicas do método francês de Vica Shentoub (14 pranchas) sem necessidade de adaptação do procedimento de aplicação, já que Eva se adaptou às instruções, ou seja, contar uma história, sem que isto provocasse nela um excesso de expansividade verbal. O protocolo de TAT foi cotado usando-se a folha de cotação da versão 2003 de Chabert C. e Brelet F., e interpretado segundo o método da Escola de Paris (avaliação das problemáticas conflituais a partir do tratamento possível ou não do Édipo e da referência à perda).
Resultados
No Rorschach, a precipitação dos pensamentos que se sucedem, e até mesmo se sobrepõem, a derrapagem nas expressões abstratas, quase herméticas, ou ainda, imagens que tocam os confins do real, dão conta de sua extrema dificuldade em manter o controle de um mundo imaginário que lhe escapa e de um pensamento sempre fugidio. As representações surgem ora como descontínuas, sem ligação lógica entre elas, ou submetidas às associações por contiguidade ou por consonância. Apesar disso, não há traços de risco atual de desestruturação identitária ou de invasão pulsional. A identidade parece construída, mas subsiste uma dúvida sobre sua estabilidade no momento de uma solicitação regressiva como é o caso aqui, devido a certo número de respostas de imagens de partes do corpo.
Nesse fluxo verbal, distingue-se claramente uma alternância entre movimentos depressivos e antidepressivos, como duas faces intercambiáveis de uma mesma medalha, situando a problemática geral desse protocolo em um registro depressivo de aparência pré-genital. A impossibilidade, para a psiquê, de acalmar o ritmo de seu pensamento, de assegurar de algum modo uma pausa mental para permitir que uma distância reflexiva se instaure, obstrui nesse momento qualquer possibilidade de elaboração dessas dificuldades.
Exemplo: Prancha II: (50 respostas)
Dois Papais Noeis, duendes dançando, um vestido, um ânus, pessoas rindo, que estão em boa forma, a morte, a velhice, seios também, pessoas más rindo, uma borboleta também, uma dor, uma dor de garganta, um cavanhaque, um sorriso falso, um mal-estar, pés, uma mão que aponta, uma pistola, um bico de águia, um abutre, (...pausa longa...) tristeza também, o diabo, um colarinho, um pescoço, um cinto, dobras do vestido, a fuga, uma dançarina que faz ponta, impressões digitais, alguém que segura uma coisa assim (faz o gesto de uma pinça com dois dedos), meias, pernas, enfim, panturrilhas, alguém deitado, lobos que abrem a boca ou que urram, enfim, que gritam, que estão com as orelhas abaixadas, um homem político, um homem triste..., ketchup, um lança-chamas, um velho maluco, o nariz pontudo, alguém no fundo da água e que tenta empurrar, encontrar uma saída, mas está com a cabeça na rocha, uma rã disfarçada de Dark Vador, uma pinça, um nariz aquilino, um busto, a língua do cachorro, o contato, quase contato, desenhos animados, o bairro 18, gotas de chuva que escorrem de um chapéu pontudo, enfim, um chapéu de feiticeira, a neblina e a luz, no fim nuvens que não são totalmente negras, a pintura e bochechas, um músculo, músculos contraídos com o esforço, peixes vermelhos, uma queimadura, uma ferida irritada e pronto.
Ressalto ainda que Eva estava como que fascinada pelas pranchas, levada contra a vontade, em um movimento regressivo que a jogava nas profundezas de si mesma, a um lugar psíquico constituído de cantos e recantos alternadamente sombrios e luminosos, por demais sombrios ou por demais luminosos. Depois da aplicação do teste, ela me disse o quanto ficou surpresa ao ver-se confrontada com pensamentos que a ultrapassavam: tudo ia muito, muito rápido em minha cabeça.
O TAT
No TAT, a apresentação das pranchas leva Eva a modalidades de funcionamento radicalmente diferentes, até mesmo opostas às do teste de Rorschach. Os relatos, de fato muito abundantes no plano da produção verbal e com frequentes mudanças de rumo, inscrevem-se em uma labilidade temperada por mecanismos de controle da realidade e por uma surpreendente capacidade de articulação da temporalidade. Com efeito, a maioria das histórias possui um início, um desenvolvimento com dramatização das situações e um fim, permitindo a certos conflitos uma saída favorável e até mesmo uma elaboração. No entanto, as representações pulsionalmente investidas colocam em cena um mundo interno habitado por uma grande riqueza imaginária.
Os conflitos sempre aparecem triangulados dentro de uma problemática edípica ainda muito carregada de afetos e de representações agressivas e libidinais, correspondendo ao que é esperado no processo evolutivo da adolescência. A isso, associam- se momentos discretos de derrapagens da lógica secundária, incursões rápidas e imediatamente recuperáveis de associações hipercondensadas, sem fracassar na articulação das pranchas no nível edípico.
É interessante observar que, nas primeiras pranchas, os relatos fazem repetidamente referência a temas sobre a questão da escola, como um deslocamento da problemática edípica, em que se projetam conflito interno e culpabilidade. Depois de algumas pranchas, o deslocamento não é mais necessário e os relatos se inscrevem claramente na referência edípica. As pranchas, cuja solicitação latente remete à depressão, são tratadas de modo lábil, dramatizando a perda; as representações e os afetos depressivos são reconhecidos e nomeados sem recurso às defesas observadas no Rorschach; a ameaça de perda refere- -se a objetos de amor parentais, como um retorno da culpabilidade sobre si mesma.
Associadas à problemática edípica expressam- se dificuldades narcísicas ligadas à questão do acesso ao saber, principalmente no início do TAT. Essas dificuldades permanecem também como transitórias e articuladas à falta de autoestima, própria da adolescência e não afetam o funcionamento em seu conjunto.
Exemplos de relatos de histórias
Prancha 1
É a história de um menininho que ganhou um violino em seu aniversário e não é absolutamente o que ele queria ganhar, o que ele esperava, e ele começa a estudar violino porque seu pai queria que ele o fizesse, isto o embriaga, ele não quer, além disso, é um menininho vesgo, então ele não vê bem as cordas do violino e ele tenta, seu pai o estimula, mas ele não tem realmente vontade. Então, em certo momento, ele quebra o violino e seu pai fica furioso, ele diz que ele não quer tocar violino e seu pai lhe diz que pelo menos ele disse e também não vou mais obrigá-lo a fazer coisas que você não quer.
Prancha 7GF
É a história de uma filhinha de papai, sem coração, enfim, ainda criança e sua mãe tenta ensinar-lhe coisas, ela tenta ensinar-lhe a ler e ela não dá a mínima, ela olha para fora, ela não presta a menor atenção a isto (... pausa longa...) ela olha com inveja o menino que está do lado de fora, que é livre, que está colhendo maçãs e que lhe sorri. Ela está ao mesmo tempo enciumada, perplexa, apaixonada e altiva e depois, finalmente, por um momento tudo vai ser muito difícil com sua mãe, que não é suficientemente rigorosa e que não consegue fazer- -se respeitar e ela também, em dado momento, vai fracassar, mentir, como Sophie, e ela também vai crescer e vai assumir o fato de que ela não é livre, ao mesmo tempo não estará completamente revoltada contra sua família.
Síntese das duas técnicas
O funcionamento de personalidade de Eva se desenvolve num leque bastante amplo: no nível pior, já que o mundo interno é solicitado sem barreiras nem limites a sua expressão, o pensamento foge num movimento de aceleração psíquica, tendo como pano de fundo a luta contra a depressão que evoca o início de um processo maníaco-depressivo, sem risco atual de desorganização identitária. A medicação antidepressiva pode estar exacerbando essa tendência maníaca.
No nível melhor (no TAT), em função da sustentação perceptiva que coloca um quadro de pensamento estruturante, o funcionamento expressa um registro neurótico lábil, rica e amplamente mentalizado, cujos aspectos ao mesmo tempo depressivos e narcísicos concordam com a realidade do processo de adolescência. O quadro externo oferece assim uma função de continente aos processos psíquicos que podem desdobrar-se nele de maneira satisfatória.
Todavia, esses movimentos muito contrastados, entre um teste e outro, evoca a presença de uma clivagem entre as duas modalidades de funcionamento psíquico, entre processo primário e processo secundário, entre ligação e desligação, entre aspectos psicóticos e neuróticos e colocam necessariamente a questão da funcionalidade e da eficácia dessa defesa. Nesses testes, Eva mostrou a extensão, a diversidade e a profundeza de seu mundo interior, expressando a medida de sua receptividade e a dimensão da hipersensibilidade que a caracteriza.
Esses aspectos podem ser considerados tanto como fontes de vulnerabilidade e de sofrimento quanto como fontes de riqueza e originalidade pessoais. Nesse contexto específico, parece que o que ocorre na esfera intelectual e no campo escolar seja o reflexo daquilo que o conjunto de sua personalidade abrange: grandes riquezas e capacidades pessoais colocadas em tensão com dificuldades de gestão dos processos de pensamento, em função de uma sobrecarga afetiva, implicando distúrbios tímicos.
Entrevista devolutiva
A entrevista devolutiva ocorreu na presença de Eva e de seus pais. Mencionei os distúrbios psíquicos de Eva, e principalmente sua personalidade marcada pela clivagem e aspectos depressivos, ressaltando igualmente a dimensão protetora da clivagem e os recursos ligados à hipersensibilidade. O clima da entrevista estava muito carregado emocionalmente, inclusive para mim, os pais se reconhecendo sucessivamente na evocação dos traços de personalidade de sua filha.
Durante a entrevista falou-se do risco de ruptura da clivagem sob o efeito da acuidade da pressão do processo da adolescência e da importância de se ajudar Eva a conter sua intensidade. O acompanhamento terapêutico uma vez a cada quinze dias não era suficiente para conter uma possível ameaça de ruptura e Eva, assim como seus pais, admitiram isto perfeitamente. Entramos em acordo sobre uma terapia do tipo frente a frente, duas vezes por semana, com uma terapeuta diferente da sua psiquiatra, de maneira a não misturar os dois tratamentos que devem ser complementares, sem risco de confusão.
Estávamos no meio do mês de junho, as férias estavam se aproximando e tudo já tinha sido programado para o verão. Dessa vez, Eva passaria suas férias numa casa de campo da família, com seus pais, tio e tia, primos e primas, o que parecia deixá- -la contente. Os três juntos expressaram o desejo de esperar o mês de setembro para empreender o que fosse necessário para um acompanhamento.
Pedi para que os pais, com o acordo de Eva, transmitissem o relatório dos testes à terapeuta que ela iria ver ainda uma vez antes das férias. Ainda sendo a mesma jovem, de rosto sombrio, Eva usava naquele dia um vestido de verão florido e multicolorido, possível reflexo, pensei, da clivagem do seu eu.
Discussão
O envolvimento de Eva na aplicação do teste correspondia ao que ela esperava desses testes: a resposta a questões existenciais que a preocupavam e para as quais atualmente ela tentava encontrar uma saída dessexualizadora na atração pela religião e na ideia de entrar para uma ordem religiosa. Os testes mostraram o que Eva tentava expressar a seus próximos: um funcionamento clivado, suscetível de apresentar aspectos neuróticos e edípicos mais adequados, enquanto medida de adaptação a um contexto externo, assegurando uma função de continência; e aspectos pré-genitais de aparência francamente maníaca, sob o efeito de uma hiperexcitabilidade psíquica desencadeada por uma permissividade em relação a solicitações de natureza regressiva. A terapeuta e a tia, a mãe e o pai podiam perceber então em Eva movimentos psíquicos em contradição entre eles, mas cada um tendo razão naquilo que percebia.
No retorno das férias, soube pela tia que Eva havia decidido procurar ela própria uma nova terapia com duas sessões por semana. Algumas entrevistas familiares também foram frutíferas. A mãe de Eva também se engajou em uma psicoterapia. Alguns meses depois, soube que Eva havia retomado seus estudos dentro de uma carreira artística, que ela estava feliz com isto e que estava bem melhor.
Assim, podemos pensar que Eva talvez tenha conseguido oferecer-se o presente que correspondia a seu próprio desejo. O que pôde representar para Eva a aplicação do teste de nível intelectual, e em seguida dos testes de personalidade, nesse percurso, que a conduziu, desde o início de sua adolescência, de um mal-estar crescente de tonalidade depressiva para essa escolha de vida em que ela parece ter se estabelecido? Jamais saberemos com certeza, mas podemos pensar que a aplicação dos testes encontrou seu lugar em um caminho psíquico, como mediadores entre Eva e os diferentes protagonistas de seu meio; ou ainda, entre ela e seus objetos internalizados para situar o lugar de seu sofrimento e verbalizá-lo. É possível que a aplicação dos testes tenha mobilizado para Eva um real investimento a serviço do reconhecimento e depois da apropriação subjetiva de seu mal estar, levando a um tratamento que terá ela própria escolhido pôr em prática.
Conclusão
Guillaumin (1965) evoca a relação entre o teste e o jogo, pois diz ele: o teste propõe uma atividade real e irreal ao mesmo tempo. Graças ao caráter lúdico dos testes, o sujeito e, eventualmente, o próprio examinador, conseguem liberar-se mais ou menos completamente de certas sobredeterminações (p. 92).
Mais adiante, ele coloca uma proposição que será desenvolvida alguns anos mais tarde por Anzieu e Chabert (1992) sobre os testes projetivos, sobre a analogia entre testes e objetos transicionais: O material concreto do teste constitui uma espécie de objeto intermediário que não deixa de ter algumas analogias teóricas com os objetos transicionais, que alguns psicanalistas contemporâneaos descrevem no material lúdico das crianças. Tal objeto pertence ao sujeito sem lhe pertencer (p. 121).
Anzieu e Chabert (1992) prolongam essa reflexão: eles constatam o paradoxo da situação projetiva que consiste em pedir que se imagine a partir do que é percebido nas pranchas, ou, em outros termos, de respeitar a realidade do material, ao mesmo tempo criando imagens ou cenários que não estão aí representados. Para eles, trata-se de um paradoxo winnicottiano na acepção do duplo pertencimento, interno/externo, fantasmático/perceptivo, que permite a criação do objeto transicional. Os objetos figurados nas pranchas são identificados como formas banais, próximas do real e ao mesmo tempo investidos como suporte de um cenário fantasmático, de um sistema de representações e de afetos, cuja conotação subjetiva e o pertencimento ao espaço da ilusão são admitidos pelo sujeito (p. 26).
Assim, o objetivo do exame psicológico, de acordo com uma conduta clínica pode ter uma dupla finalidade:
- Primeira finalidade: a abertura para a capacidade de dar sentido ao sofrimento e no máximo para a tomada de consciência da possibilidade de mudança. Trata-se de permitir ao sujeito de dar sentido, ou de iniciar uma atribuição de sentido a uma situação psíquica que ele tem dificuldade para apreender e que o faz sofrer. Toda a arte da entrevista devolutiva consiste em operar uma dupla convergência simultânea: por um lado entre a demanda e a resposta manifestas, e por outro entre o sofrimento do sujeito e a possibilidade de tomada de consciência e de mudança. A entrevista devolutiva que fecha formalmente uma solicitação de avaliação psicológica deve ser, de fato, um encontro de abertura (Perron, 1997, p. 152).
- Segunda finalidade, decorrente da primeira: favorecer o investimento ou o reinvestimento do funcionamento psíquico e das condutas intelectuais. O objetivo é fazer com que o sujeito, criança, adolescente, adulto, qualquer que seja o grau de sua patologia, se interesse por seu funcionamento psíquico, sensibilizando-o ao que está em jogo nele no nível intrapsíquico, não apenas no plano dos processos de pensamento utilizados, mas também no que diz respeito aos mecanismos defensivos de luta contra a angústia. Tudo isso, como diz Debray (2000), para mostrar ao sujeito a parte decisiva que lhe cabe em uma atividade muitas vezes percebida como imposta do exterior, automática e sobre a qual ele não tem meios de ação (p. 111).
Referências
Anzieu, D. & Chabert, C. (1992). Les méthodes projectives. (9a ed.). Paris: PUF. (Original publicado em 1961) [ Links ]
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Recebido em maio de 2012
Reformulado em junho de 2012
Aceito em julho de 2012
Sobre a autora:
Catherine Azoulay: Psicóloga clínica, Psicanalista vinculada à Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), trabalhou no serviço de psiquiatra de adolescentes e de jovens adultos no Institut Mutualiste Montsouris, Paris, France. Professor Assistente na Université Paris Descartes- França, Instituto de Psicologia Laboratório de Psicologia Clínica, Psicopatologia e Psicanálise.
1Endereço para correspondência:
Maître de Conférences Laboratoire LPCP, EA 4056 Institut de Psychologie 71 avenue E. Vaillant 92100 Boulogne-Billancourt E-mail: catherine.behar-azoulay@parisdescartes.fr
2NT: na França a nota máxima é 20.
3No que diz respeito tanto à prática da aplicação dos testes projetivos quanto da avaliação psicológica na sua totalidade, penso que existe uma teoria da clínica da aplicação que deve ser ajustada, dentro de certos limites, à prática da clínica, em particular para os casos difíceis.
4Há alguns anos, C. Chabert (1987) teorizou a complementaridade do Rorschach e do TAT na abordagem do funcionamento psíquico, apoiando-se nas solicitações latentes destes dois testes que expressam, muito esquematicamente para o Rorschach, o registro da identidade e para o TAT o registro das identificações.