SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número1Percursos neurobiológicos do processo de decision-making: o papel das emoções no comportamento humano índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.1 Belo Horizonte abr. 2010

 

RESUMO DE DISSERTAÇÃO

 

A psicose como escolha de uma posição subjetiva: da "escolha da neurose" em Freud à estrutura e os modos de gozo em Lacan

 

Psychosis as a choice of a subjective position: from the "choice of neurosis" in Freud to the structure and modes of enjoyment in Lacan

 

La psicosis como elección de una posición subjetiva: de la "elección de la neurosis" en Freud a la estructura e los modos de goce en Lacan

 

Camila Alvarenga Côrtes *; Prof.ª Dr.ª Ilka Franco Ferrari (orientadora) **

 

 

O ponto de partida dessa dissertação é o que Freud, na "Carta 125" (1899) de sua correspondência com Fliess, chama de problema da "escolha da neurose" e a frase de Lacan, em "A ciência e a verdade" (1965), que "Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis".

A importância de se tomar a psicose pela via de uma escolha e não como determinação tem relação a um propósito ético da psicanálise que visa à responsabilização do sujeito e que implica uma desculpabilização da família, da sociedade, da genética ou dos neurotransmissores quanto à existência de sujeitos psicóticos.

O percurso da investigação da psicose como uma escolha tem início na obra de Freud, passando pela primeira clínica de Lacan, chegando a seu termo na última clínica deste autor.

No primeiro capítulo, intitulado "Freud e a questão da ‘escolha da neurose’", abordou-se o tema da etiologia das neuroses na obra freudiana. Partiu-se do ponto em que o autor se questiona a respeito do problema da "escolha da neurose", antes mesmo da criação da psicanálise, época em que Freud já se questionava sobre a etiologia das neuropsicoses. Estas abarcavam o que ele chamou posteriormente tanto de neuroses como de psicoses, permitindo então que se tomasse sua expressão para pensar também numa escolha da psicose.

Inicialmente Freud entendia as neuropsicoses como formas de defesa do Eu frente a ideias sexuais intoleráveis, diante das quais o mecanismo do recalque se imporia. A incidência do recalque caracterizaria, então, cada forma de neurose específica.

Poder-se-ia pensar que o Eu, responsável pelo recalque, seria também responsável pela "escolha da neurose". No entanto, seu mecanismo não era claro. Por que o recalque ocorreria de forma diferente em cada tipo de neurose se o funcionamento do aparelho psíquico se dava pelo princípio do prazer? Freud apontava então que a definição do tipo de recalque dependeria da cronologia da ocorrência das cenas sexuais na infância, inicialmente abordando esse ponto pela teoria da sedução, passando, em seguida, à teoria da fantasia.

Desde essa época inicial, Freud apontava que a hereditariedade poderia ser um fator a mais, que influenciaria a "escolha da neurose", mas que não era algo determinante.

Passa-se então à abordagem da primeira tópica freudiana, em que o autor teorizou as três instâncias, Ics, Pcs e Cs e a teoria da libido. De acordo com ela, as neuroses de transferência seriam aloeróticas e as neuroses narcísicas (posteriormente denominadas como psicoses) autoeróticas. Nesse momento, o problema da "escolha da neurose" era tomado como relativo à fixação da libido em pontos do desenvolvimento. Cada estágio do desenvolvimento da sexualidade poderia fornecer possibilidades de fixação, aos quais a libido poderia fluir regressivamente. Freud afirma, nesse momento, que os fatores constitucionais de tais fixações seriam tanto hereditários quanto efeitos de experiências infantis.

No Caso Schreber, Freud tem a oportunidade de apontar o mecanismo de recalque na paranoia, relativo a uma retirada da libido dos objetos e seu retorno para o Eu, com base em suas teorizações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico e as relações do sujeito com a realidade.

A partir de então, o autor não mais utilizará o termo "escolha da neurose", mas abordará os conflitos entre as instâncias psíquicas propostas em sua segunda tópica, Eu, Id e Supereu, considerando as relações com as pulsões e a realidade. De acordo com essa nova proposição, a neurose seria decorrente de um conflito entre o Eu e o Id, e a psicose, entre o Eu e o mundo externo. O Eu seria a instância central do psiquismo, tendo que servir a três senhores ao mesmo tempo, a saber, o Id, o Supereu e a realidade.

não realização de um desejo infantil era tomada como etiologia comum à neurose e à psicose, sendo que o efeito patogênico dependeria não da não realização do desejo, mas da atitude do Eu frente a isso, que poderia permanecer fiel à realidade ou subjugar-se ao Id, afastando-se dela.

Nesse ponto, toma-se a famosa frase freudiana, "Wo es war, soll Ich werden", traduzindo-a com Lacan por "Ali onde se era, é meu dever que eu venha a ser". Essa frase é importante para se considerar que o Eu advém em um lugar onde antes não estava. Dessa forma, ele não é propriamente o agente de uma escolha, mas há algo que opera no lugar onde ele virá a ser.

A essa questão pode-se aproximar a elaboração de Freud sobre as funções do juízo. De acordo com ele, haveria duas funções: a de atribuição, que diz respeito à inclusão ou expulsão do Eu de um objeto considerado bom ou mal, respectivamente, e a de existência, o teste de realidade, relativa à verificação da existência de um objeto na realidade.

A emissão de juízos é uma função intelectual, que surge do jogo de forças dos impulsos pulsionais primários, e não supõe um sujeito que a realize. O juízo age no lugar onde um sujeito virá a ser, podendo-se localizar, então, uma atividade que parte do lugar onde o sujeito irá constituir-se.

Freud pesquisa então a relação da criança com a realidade da castração, pela via do fetichismo. Ele percebe que, nesse caso, um mecanismo diferente do recalque ocorre e o nomeia de Verleugnung. O que fica posto em questão é o posicionamento da criança frente à castração materna, que se impõe como realidade perante a qual ocorrerá uma afirmação ou uma rejeição.

Apesar de definir com clareza o mecanismo do fetichismo, em oposição ao recalque na neurose, Freud não consegue realizar o mesmo em relação à psicose, ainda que tenha dado indícios de que percebia como bastante diferente o "recalque" da psicose em relação ao da neurose. É Lacan, ao trabalhar os textos freudianos, e definir neurose, perversão e psicose como três estruturas distintas, que tomará o termo freudiano Verwerfung, traduzindo-o como forclusão.

A partir desse ponto, introduz-se o segundo capítulo, "A primeira clínica de Lacan: ‘não fica louco quem quer’".

Esse capítulo se inicia com o esclarecimento do que se entende por sujeito e escolha quando se fala em psicose como escolha subjetiva. Isso porque dizer sujeito que escolhe não é correto, já que, no momento em que tal escolha ocorre, não se pode dizer ainda que ali há um sujeito e sim que ali um sujeito irá advir. Assim, em cada momento do ensino de Lacan, o agente da escolha é abordado de forma distinta, de acordo com suas elaborações do momento, e o próprio uso do termo escolha é também modificado, usando-se também decisão, assentimento ou escolha forçada, seguindo também as indicações e termos lacanianos.

A primeira abordagem de Lacan a respeito da constituição subjetiva é relativa às suas teorizações sobre a aposta em uma causalidade psíquica, e não orgânica, para as psicoses, momento em que ele falará sobre a "insondável decisão do ser".

Posteriormente a isso, quando trabalha a constituição do Eu no estágio do espelho, aponta que cabe à criança se alienar a uma totalidade imaginária referente a uma imagem que vem do outro.

Em seu primeiro ensino, a psicose é teorizada como decorrente da forclusão do Nome do pai, tomada como um acidente, uma falha estrutural. Nessa época, Lacan aponta que o "sujeito em sua inefável e estúpida existência" está totalmente implicado em sua constituição, mas diz também da importância da relação com os pais, de forma que a escolha aponta então para certa limitação e arbitrariedade, já que depende de algumas contingências da vida do sujeito.

Outra teorização de Lacan a respeito de uma escolha subjetiva é encontrada em suas elaborações sobre o mecanismo da privação, em que fica posta para a criança a possibilidade de se aceitar ou recusar a privação materna, entre ser e não ser o falo.

Lacan usará a expressão freudiana pela primeira vez, localizando-a como o primeiro assento da orientação subjetiva, que ocorreria em relação a das Ding, sendo a primeira escolha subjetiva que orienta toda a função do princípio do prazer. A partir desse ponto, em sua teoria, pode-se localizar a importância da relação do sujeito com as pulsões, para além da relação com o significante. O sujeito advém da relação com a pulsão.

Ao trabalhar as operações de alienação-separação, constitutivas do sujeito, Lacan indica que o sujeito não é dado de início, mas se constitui a partir do campo do Outro. Frente a essas operações lógicas, o sujeito deve se posicionar, assentindo ou não com a alienação. A essa escolha forçada Lacan dá o nome de vel da alienação. Ela diz respeito a uma obrigação do ser falante em se posicionar frente à linguagem, que se apresenta para todo ser humano. Na psicose, esse assentimento não ocorre, havendo um mecanismo que opera no sentido de não assentir com a afirmação primordial.

Lacan indica que o sujeito não é causa de si e, se há uma causa, esta é relativa ao objeto a.

A segunda e última vez que Lacan usa o termo de Freud é para dizer da importância de como os pais apresentam o desejo ao sujeito. Nesse momento, ele afirma que a escolha da neurose é chamada assim impropriamente, já que ela é feita no nível em que se apresenta para o sujeito, o saber, o gozo e o objeto a.

A questão da relação ao gozo na constituição subjetiva fica cada vez mais evidente no ensino de Lacan. A mãe não é mais apresentada pela via do "Desejo da mãe", como já mediada pela lei simbólica, mas como um "grande crocodilo de boca aberta", evidenciando o capricho materno.

Passa-se então ao último capítulo, "A segunda clínica de Lacan: ‘Todo mundo é louco, quer dizer, delirante’", em que a ênfase não é mais no simbólico, como na primeira clínica, e sim no gozo e no real. O matema S(A/) é usado pelo autor para explicitar a falta fundamental presente para todo ser falante, ou falasser, como ele passa a dizer.

O sujeito então surge da relação indizível com o gozo, e a escolha passa a ser relativa a um modo de gozo. As formas clínicas são vistas como diferentes formas de defesa contra o real, já que, frente a ele, todo falasser é chamado a se posicionar. O vivente trata o encontro traumático com o gozo de formas distintas, tratamento sempre particular, assim como a amarração do nó borromeano.

Quando Lacan afirma que "Todo mundo é louco, quer dizer, delirante", a perspectiva da primeira clínica de que haveria uma condição que deveria ser cumprida para a constituição de uma psicose, a saber, a forclusão do Nome do pai, fica abalada, e o que fica em questão é que sempre falta um elemento para enlaçar real, simbólico e imaginário, sempre falta um significante no campo do Outro. É o que Miller define por forclusão generalizada.

Lacan, ao final de seu ensino, ainda apontará que "entre loucura e debilidade mental, não temos senão escolha", indicando que, frente ao real, cabe escolher a via da debilidade, ou seja, o seu tratamento pela via simbólica, constituindo o inconsciente enquanto débil para tal, como um engano, ou não tratar o real por essa via, como na psicose. A forma do tratamento do real é que caracteriza então o modo de gozo de cada falasser.

As indicações de Miller e Soler de que o gozo elege o sujeito são preciosas, conforme apontam para a questão do sujeito como uma defesa contra o gozo. É em relação à pulsão que o sujeito irá constituir-se, e a escolha se dá desde o gozo, desde a pulsão.

Quanto a esse ponto, ressaltou-se o posicionamento da criança em relação à mãe, especialmente no que toca a questão da pulsão invocativa. A mãe deve falar à criança, mas cabe a esta ouvir e fazer-se escutar. No entanto, a criança pode apresentar uma recusa nesse nível, como se pode perceber nos casos de autistas.

Ao final do ensino de Lacan, é interessante que se possa fazer um retorno aos primórdios da obra freudiana. Freud, ao tecer elaborações sobre o aparelho psíquico, aponta para a existência de um registro de traços de percepção, nomeado de WZ, que seria relativo a um momento em que não se poderia falar em subjetividade propriamente dita, mas que seria crucial, relacionado ao advento do sujeito. Em algum momento, um desses traços poderia constituir-se no traço inaugural do inconsciente. Freud apontava que uma falha na tradução de um registro para outro poderia ocorrer e que tais falhas justificariam as diferenças entre as neuropsicoses. Haveria um mecanismo funcionando na tentativa de evitar o desprazer, antes mesmo do advento do sujeito. Relacionando as elaborações de Freud com as de Lacan, nota-se que o vivente é chamado a posicionar-se, de alguma forma, frente ao gozo.

Ao final da pesquisa, foi possível concluir que é possível se pensar em escolha pela psicose ou na psicose como uma escolha subjetiva, de formas distintas, nos diversos momentos das obras de Freud e Lacan, tomando o cuidado de ressaltar que tal escolha não é realizada independentemente do que é apresentado ao vivente, mas que, frente ao que lhe é apresentado, cabe a este um posicionamento.

 

 

Recebido: outubro de 2009
Aprovado: maio de 2010

 

 

* Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, orientadora: Prof.ª Dr.ª Ilka Franco Ferrari. Avenida Deputado Cristóvam Chiaradia, 288, bloco 2, apto. 204, Buritis, Belo Horizonte-MG. E-mail: ca.alvarenga@terra.com.br.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons