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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2017

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n1p405-417 


ARTIGOS

 

 

ENTRE A RODA E O PALCO: REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DE UM GRUPO DE CULTURA POPULAR NA IMERSÃO DO ESPETÁCULO

 

BETWEEN THE CIRCLE AND THE STAGE: REFLECTIONS ON THE EXPERIENCE OF A POPULAR CULTURE GROUP IN THE SPECTACLE

 

ENTRE LA RUEDA Y EL ESCENARIO: REFLEXIONES SOBRE LA EXPERIENCIA DE UN GRUPO DE LA CULTURA POPULAR EN LA INMERSIÓN DEL ESPECTÁCULO

 

 

Adriana Dias Gomide Araújo*; Olga Rodrigues de Moraes von Simson**; Maria Luísa Magalhães Nogueira3***

 

 


Resumo

Este texto parte de uma experiência de pesquisa que visa discutir os processos de inserção de grupos culturais na lógica da espetacularização. A partir da psicossociologia, refletimos sobre as transformações emergentes no processo de visibilidade do grupo “Meninas de Sinhá” do Bairro Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte. Buscamos levar em conta o desafio da pesquisa qualitativa, que pressupõe o estabelecimento de vínculo entre pesquisador e sujeitos pesquisados. O recurso metodológico usado na pesquisa, da qual é extraída esta reflexão, foi o método de História de vida, mas focamos aqui a experiência grupal, a mudança na forma de apresentação (da roda para o palco) e a inserção no modelo de produção cultural profissional - questões tratadas pela líder e fundadora do grupo, no momento das entrevistas. Por fim, é proposta uma leitura sobre o processo do vínculo grupal e sua permanência, sem, contudo, desconsiderarmos as contradições aí presentes.

Palavras-chave: Cultura. Grupo. Psicossociologia. Espetáculo.


Abstract

This text results from an experience of research to discuss the processes of insertion of cultural groups into the logic of spectacle. From a psychosociologal viewpoint, we discuss the changes that emerge through the visibility process reached by the group Meninas de Sinhá, of Alto Vera Cruz, in Belo Horizonte. We try to take into consideration the challenge of qualitative research, which assumes the establishment of a bond between the researcher and the ones who participate in the study. The methodological resource used for this research, from which this reflection is extracted, was the one of History of life, but we focused here the global experience, the changes in the form of presentation (from the circle to the stage) and in the form of production for the scenery of a professional cultural production - issues that have been dealt with by the leader and founder of the group, at the time of the interviews. Finally, a reading on the process of the group bond and its permanence is proposed, without, however, disregard for the contradictions that lead there.

Keywords: Culture. Group. Psychosociology. Spectacle


Resumen

Este artículo parte de una experiencia de investigación para reflexionar sobre los procesos de inserción de grupos culturales en la lógica de espectacularización. A partir de la psicosociología, discutimos las transformaciones emergentes en el proceso de visibilidad del grupo Meninas de Sinhá, del barrio Alto Vera Cruz, en Belo Horizonte. Buscamos aún plantear el desafío de la investigación cualitativa que presupone la creación de lazos entre investigador y sujetos investigados. El recurso metodológico utilizado en la investigación, de la cual se extrae esa reflexión, fue el método de Historia de Vida, enfocando la experiencia grupal, el cambio en la manera de presentación (de la roda para el escenario) y en la forma de producción para la esfera de la producción cultural profesional – cuestiones estas abordadas por la líder y fundadora del grupo en el momento de las entrevistas. Por fin, una reflexión sobre el proceso de vínculo grupal y su permanencia se propone, sin por ello desconsiderar las contradicciones ahí presentes.

Palabras clave: Cultura. Grupo. Psicosociología. Espectáculo.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Italo Calvino, no livro Cidades invisíveis, apresenta Irene, uma cidade que não se pode conhecer vendo de fora. "A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali;" (Calvino, 2005, p. 115). Essa cidade, como várias outras cidades fantásticas contadas pelo autor, é muito interessante, "[...] todos olham para baixo e falam de Irene".

Este texto parte de uma experiência de pesquisa cujo objetivo é refletir sobre os processos de inserção de grupos culturais na lógica da espetacularização, bem como sobre o lugar do palco e da visibilidade, dos financiamentos das leis de incentivo à cultura e do reconhecimento que daí resulta. Tal como a cidade Irene, esse lugar mostra-se luminoso e desejado, revelando ao mesmo tempo seu potencial de aprisionamento.

Este é, também, um texto-convite. Falar da pesquisa e da psicossociologia é tocar naquilo que reverbera constantemente. As escolhas teóricas são atravessadas pelos afetos que mobilizam o pesquisador, o qual "está engajado nas questões que lhe atraíram a atenção, está sempre engajado, de forma profunda e muitas vezes inconsciente, naquilo que executa". (Queiroz, 2008, p. 15). O trabalho com o método de História de vida1 e com metodologias que exigem a criação de vínculos entre pesquisador e sujeitos pesquisados impõe a necessidade de perscrutar o inconsciente, as escolhas, as intencionalidades, para poder prosseguir e enfrentar os desafios próprios da pesquisa qualitativa. Isso não significa que em outras pesquisas o inconsciente do pesquisador não esteja presente, mas que o espaço para sua negação ou desconsideração pode ser uma realidade.

A escolha pela psicossociologia exige o movimento da reflexividade, o reconhecimento de pontos de encontro, movimento que não é nada simples e que geralmente aciona angústias, desdobrando-se em questões éticas reveladas pela constatação do contraditório e dos limites de sua revelação. Afinal, o que se coloca em jogo quando um vínculo é estabelecido e se sabe que determinadas análises podem descortinar ilusões necessárias?

Para tanto, partiremos de um breve relato sobre o contexto da pesquisa, iniciada em um programa de pós-graduação lato sensu, continuada em seguida no mestrado e doutorado (Araújo, 2004, 2006, 2014)2. Temos o recolhimento da história de vida de uma líder comunitária responsável pela criação de um grupo de cultura popular, conhecido amplamente na capital mineira. Trata-se do "Grupo Cultural Meninas de Sinhá", que durante muito tempo foi conhecido com o nome "Grupo de Cantigas de Roda Meninas de Sinhá".

Formado, majoritariamente, por mulheres negras, da terceira idade, moradoras do Alto Vera Cruz, em sua origem encontra-se o olhar da líder comunitária Valdete Cordeiro para um fenômeno: mulheres que tomavam medicamentos em grandes quantidades, em consequência de problemas psíquicos e sociais. Desde o nascimento do desejo de reunir essas mulheres para buscar uma solução, quando a principal ideia era "quem sabe, se uma descobrir que o problema da outra é maior, isso ajuda", uma longa história se processa.

Do bate-papo, das brincadeiras, da expressão corporal e dos trabalhos manuais, elas acabaram formando um grupo de cantigas de roda que visitava diversos locais da cidade de Belo Horizonte, apresentando um pouco das esquecidas cantigas, anteriormente conhecidas como cirandas. O efeito terapêutico desses encontros propiciou o abandono dos medicamentos por algumas mulheres na terceira idade que se viram reconhecidas pela prática artística.

Ainda que isso não se tenha dado exatamente dessa forma, o que se encontra no início da história do grupo é um mito fundador que conferiu sentido a sua prática, sentido para o público que se alimenta de um enredo promotor de um vínculo grupal (Enriquez, 2001). No princípio, localiza-se uma prática ritualística, de encontro, sem exigências de performance e virtuosismo. Não era preciso saber dançar nem cantar, mas o sofrimento psíquico e a necessidade do encontro e do cuidado eram razões suficientes para o ingresso naquele grupo de mulheres.

Essa prática recebeu o olhar da produção cultural a partir de patrocínio da Telemig Celular em 2007, quando foi lançado o CD "Tá caindo fulô". No mesmo ano o grupo recebeu o Prêmio Cultura Viva. Em 2009 a empresa Natura reeditou o CD "Tá caindo fulô". Dos prêmios conquistados, destacam-se o 6o Prêmio Rival Petrobrás de Música (2008) e Melhor Grupo da Categoria Regional do Prêmio TIM de Música (2008). Em 2014 foi lançado o DVD Meninas de Sinhá, patrocinado pela FIAT (Grupo Cultural: Meninas de Sinhá, 2017). A produção cultural, ao burilar e incrementar a prática do grupo, viabilizou outros espaços de reconhecimento, além daqueles conquistados com uma história aparentemente simples de formação de um grupo.

No recolhimento da narrativa de Valdete, uma fala foi registrada de forma clara e enfática: o grupo não poderia receber cachê. Nesse relato dado pela fundadora no ano de 2004, ela pensava que a entrada do cachê colocaria em risco a existência do grupo. Naquele momento, foi externada a preocupação com a possibilidade de o dinheiro ser capaz de desvirtuar a prática do grupo. Categoricamente ela dizia: "Exigimos lanche e transporte, e se entrar dinheiro o grupo acaba!" A finalidade dos encontros era trocar experiências, divertir e melhorar a autoestima das integrantes, podendo ser dito que aquela prática tinha um cunho terapêutico, caminhando na contramão das exigências de uma apresentação artística. Outro elemento que com o tempo sofreu alterações foi o círculo que a líder observava estar presente na vida das mulheres: a função terapêutica da roda era percebida e valorizada pelo grupo e sua plateia.

Com o passar do tempo, o dinheiro inevitavelmente entrou por meio do investimento de produtoras culturais que apostaram no potencial do grupo, encantando-se com sua história. O grupo gravou CDs, viajou por muitas regiões do país, ganhou prêmios, participou de filmes, gravou DVD e se apresentou no exterior. A roda convidava o público a se misturar, e as apresentações, após a história da formação do grupo ser contada, ganhavam mais aplausos.

Posteriormente, instrumentos foram introduzidos, a roda se desfez pela exigência de outro formato no palco, o cachê passou a ser exigido e, em 2009, o grupo, que teve sua história iniciada em 1996, como "Meninas de Sinhá", passou a ter uma produtora cultural exclusiva.

O mito fundador merece atenção porque, desde o início da formação do grupo, ele tem se configurado como a história oficial que não deixa de ser contada nos diferentes espaços de apresentação. O grupo necessita oferecer um ideal convincente para que os membros possam se identificar com sua causa, a ponto de cada um sacrificar um pouco de sua vida para fortalecer o coletivo. Enriquez (1997, p. 69) afirma que não pode existir ideologia "sem indivíduos convertidos mais ou menos em ídolos".

É interessante notar que o ideal compartilhado pelo grupo, ou seja, o mito de superação das mulheres, implica a exposição de suas imagens, pois o que se encontra como o avesso da superação é a identificação com o adoecimento psíquico. Mesmo não sendo essa a realidade de todas as integrantes, de forma tácita o mito é consentido e incorporado em prol de um projeto maior.

Em 1996, o grupo mudou seu nome para "Grupo de Cantigas de Roda Meninas de Sinhá", e sua projeção e reconhecimento foram impulsionados pela atmosfera política e cultural então presente na capital mineira. Seu nascimento, em 1989, passou a ser identificado com o momento em que o Centro Cultural do Alto Vera Cruz foi inaugurado, após sete anos daquele olhar da líder para um fenômeno que a havia intrigado.

Em 2008 o grupo foi registrado como associação, e seu nome passou a ser "Grupo Cultural Meninas de Sinhá". Essa mudança já aponta para o efeito do processo de transformação de uma prática mais ritualística para uma prática encampada pelo universo do espetáculo, por meio do fomento das leis de incentivo à cultura e da presença de produtoras culturais apostando em um grupo nascido em uma favela de Belo Horizonte.

Outro aspecto a ser considerado é o laço afetivo do grupo com a líder. De acordo com Freud (1921/2011)3, o laço afetivo dos indivíduos com o líder é fator primordial para a existência do grupo. Foi por meio de um processo de identificação que as mulheres conferiram sentido e potência à vida do grupo. A líder Valdete faleceu no ano de 2014. Sua perda exigiu o repensar da trajetória do coletivo, que viveu então um momento difícil, pois sua dissolução era um risco vivido, o qual foi evitado pela presença de uma pessoa importante na história do grupo e que ocupa o lugar de produtora cultural. De certa forma, foi ela quem mostrou ao grupo que ele tinha ultrapassado sua criadora (Enriquez, 2001), podendo continuar a existir. Essa mudança da posição da líder teve seu início desde o momento em que a produtora cultural se estabeleceu de forma fixa no grupo, e, como pesquisadora, que criou vínculo4 com essas mulheres, acolhi, em diversos momentos, angústias e queixas de Valdete, que percebia a perda do controle e um processo que era maior do que ela própria, desejando voltar no tempo, abandonar o grupo, criar outra coisa no lugar, e necessitando enfrentar tudo o que ele trazia de contradição para sua própria vida. Ao mesmo tempo eu ouvia as dificuldades da produtora cultural com as ditas resistências do grupo e sua líder.

O grupo foi capaz – e isso não ocorreu de forma consciente – de acionar efeitos múltiplos em suas integrantes e nos espectadores. A identificação, considerada pela psicanálise como "a mais antiga forma de ligação afetiva" (Freud, 1921, p. 63), enlaçou grupo e público em um processo capaz de reativar sentimentos e valores gregários.

2. ENTRE A CIRANDA E O PALCO, A EXPERIÊNCIA E O ESPETÁCULO

As cantigas e a roda foram termos suprimidos, e o nome, alterado. O nome é aquilo que identifica, que procura transmitir uma ideia plena de conteúdo. A supressão dos antes distintivos "cantiga" e "roda" pode ter vários significados. O que não se pode deixar de observar é que a introdução do "cultural", em lugar daqueles elementos, transmite noções que merecem atenção. Se a cantiga definia o grupo, este agora se abre para outros ritmos e possibilidades, tendo a intenção de ser reconhecido como parte da cultura em seu amplo sentido. O popular ainda se justifica por ser, simplesmente, originário do povo; contudo, não se pode mais identificá-lo como conhecimento advindo do povo.

Os saberes das mulheres foram submetidos aos saberes dos especialistas. O que se percebe é o encontro de interesses, de olhares, de saberes, que se misturam e recriam a cultura, sem conseguir se desvencilhar das disputas pelo poder de seus conhecimentos. As assimetrias continuam prevalecendo. Cabe reconhecer que o tensionamento de forças foi responsável por um novo resultado, que por sua vez passou a compor com o amadorismo original outras expressões.

A roda ou círculo, símbolo arquetípico (Jung, 1964), presente na vida das mulheres, como observado pela líder comunitária, no início da história do grupo, foi responsável pela promoção da atividade e gerou seus efeitos terapêuticos.

O círculo é um estado, uma condição, uma forma, uma ordem que toca inconscientemente. Ele nos lembra os ciclos, o movimento, o deslocamento, o retorno, a força; revela as partes unidas, as aberturas; delimita o dentro e o fora; inclui, convida e exclui o que não entra.

Juntamente com o processo de espetacularização do grupo, perdeu-se a conexão circular entre as integrantes e a força vital que tal conformação conferia ao conjunto. Para Weil (1996, p. 462), "o círculo é o símbolo da bela monotonia; oscilação pendular da monotonia atroz". Portanto, é preciso compreender essa passagem ou mudança do círculo para o palco e suas implicações psicológicas.

Para Santos (2008), o espaço só pode ser considerado a partir da apropriação que os atores fazem dele. Nessa ótica, parece ser profícuo observar como as mulheres do Meninas de Sinhá se apoderaram do espaço, ao longo da história de vida do grupo. Se, no começo, elas se encontravam e estabeleciam trocas em roda, hoje os encontros passam cada vez mais a ser mediados pelas agendas institucionais, marcadas por eventos culturais da cidade, por contrapartidas previstas em editais (como os da Lei de Incentivo à Cultura), e as reuniões tornam-se ensaios. Estes e as apresentações tomam outra espacialidade, deixando a roda para trás.

Não há aqui um julgamento de valor; busca-se evitar um discurso romântico, idílico, e considerar as contradições presentes em cada momento, tendo como foco o que essas mulheres passaram a viver. Isto é, à medida que se inserem e ganham visibilidade no cenário cultural nacional, que outras trocas se estabelecem, que princípios passam a reger o cotidiano, que experiências aí vêm se assentando? Assim, parece interessante interrogar: o que significa abandonar a forma do círculo, da roda, da ciranda? Esse é um índice importante da mudança para o espetáculo, na história do grupo "Meninas de Sinhá".

Uma breve travessia pela história da arquitetura ocidental ajuda a tornar visíveis os elementos simbólicos que participam desse processo de passagem da roda para o palco. Partindo do teatro grego, como um tipo de edifício que emerge na Grécia antiga com funções específicas, paralelas às do "edífíciotemplo", retangular, identifica-se que: "Finalmente, o teatro representa, depois do templo, a maior contribuição grega à história da arquitetura. Desenvolveu-se a partir de um anel circular, destinado à representação significativa do drama existencial." 5 (Norberg-Schulz, 2004, p. 29, tradução nossa).

Nesse cenário, atores se destacavam, assumindo posições distintas das do público espectador. No entanto, o público, desde seus lugares destinados nas escadarias das arquibancadas, era parte integrante do próprio espetáculo, bem como da paisagem circundante, como sugere Norberg-Schulz (2004). O ambiente era vivido como um todo, incluindo atores, público, paisagem, além de texto, dramas e sentimentos. E, assim, é possível pensar como o espetáculo era a própria experiência, sendo o teatro grego um campo de ação para as várias artes. Há, nesse teatro, nesse palco, na relação ali estabelecida entre público e artista, uma mistura mais presente ou, pelo menos, mais visível do que a do teatro/palco italiano. Há ali o semicírculo, e tudo o que essa configuração de roda favorece, bem como a ausência do contraponto exterior/interior.

No entanto, ainda que haja roda, semicírculo, há um palco – não se pode desconsiderar a importância do palco no teatro. Tampouco dá para desconhecer como o palco foi uma conquista para o "Meninas de Sinhá", sobretudo uma conquista de reconhecimento. O palco é compreendido aqui para além do recorte físico, pois, conforme o ponto de partida – da geografia humana de Milton Santos –, o espaço nunca é apenas um receptáculo.

O palco é o espaço onde se faz o artista, com reconhecimento social previsível. Essa possibilidade identitária e de alteridade fica disponível às mulheres do grupo, a partir de resistências que não deixam de revelar contradições. Ainda que elas não se identifiquem com o adoecimento psíquico antes de integrarem o "Meninas de Sinhá", a cada apresentação em que a história de formação do grupo é recontada, imaginariamente ela reenvia as mulheres para esse lugar, o do adoecimento, conferindo ao coletivo uma história de salvação por meio da prática grupal. O reconhecimento pelo público criou outros lugares identitários, os quais são, simultaneamente, simbólicos e espaciais. Era preciso ocupar, com os corpos, outros lugares na cidade e na sociabilidade. Portanto, ocupar um palco não é em si algo ruim, pela entrada no mundo do espetáculo. Se há um desgaste gerado por essa entrada, e existem perdas, devem-se considerar os aspectos construtivos da desestabilização identitária, das novas relações de alteridade, geradas por essa espacialidade.

Tomando esse lugar do círculo como metáfora, num primeiro momento é possível pensar que as integrantes do "Meninas de Sinhá" experimentaram, justamente, uma busca por centralidade e ordenamento. O círculo funcionava nesse sentido, operando como um nivelador, colocando-as em posições de simetria, o que favorecia a troca entre os pares, o reconhecimento recíproco. Por outro lado, hoje, na cena do palco italiano, na forma mais explícita do espetáculo, o que detém a centralidade é outro elemento, talvez por elas já verem saturada aquela necessidade inicial de troca e pertencimento. Não seria para o outro que a cena existe, hoje em dia? De fato, é sempre para um outro, ou melhor, há sempre um outro. E esse outro, a dimensão inalienável da alteridade, constitui o sujeito. Porém, o que mudou? Talvez, no momento em que o grupo se fundava e se consolidava, houvesse uma dimensão mais visível e necessária de trocas entre as mulheres, de percepção do outro por semelhança, pertencimento, identificação. Hoje, talvez, haja um segundo outro como mediador: o espetáculo. O que passa a trazer distintas questões a serem absorvidas, assimiladas e elaboradas na vida das mulheres do grupo.

Para Debord (1997, p. 14), "O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens". Ainda segundo esse autor, o espetáculo é nada mais do que a forma contemporânea da mercadoria, geradora de uma estrutura de passividade organizada, que seria, por sua vez, a Sociedade do Espetáculo. Nesse contexto, vai acontecendo, paulatinamente, uma colonização da vida cotidiana por meio da mercadoria e da ideologia, tal como previu Marx (1978), mas com novas qualidades. O que interessa dessa discussão é essa possibilidade da passividade. Seria a entrada do "Meninas de Sinhá" no círculo cultural uma forma de reprimir as características de resistência e transformação, tão presentes nos primórdios da história do grupo?

No espetáculo, há a aceitação de que o outro viva o que não se pode viver – consome-se. Imagens, modos de vida e signos são consumidos. Seguindo Debord (1997), há aqui a importante separação entre ator e espectador. Sair do círculo não é incluir o espectador, mas dele ainda mais se separar?

3. MENINAS DE SINHÁ: VÍNCULO GRUPAL E PERMANÊNCIA

Na perspectiva da psicossociologia, é interessante notar a definição de grupo proposta por Aymard (2002), pois ela indica que o termo carrega em si uma tensão digna de observação:

Do italiano groppo ou gruppo (1668), o termo é portador de uma significação em tensão. Do sentido primitivo, "nó", "agregado", podemos entender, por um lado, o que reúne, o que liga entre si vários elementos, e por outro, o que prende, o que aprisiona. O que liga e/ou o que imobiliza põe em jogo a natureza das relações entre as partes de um conjunto conforme essas relações serão directas ou indirectas. (Aymard, 2002, p. 87)

Essa é uma referência fundamental para a reflexão sobre o grupo, na concepção psicossociológica, porque a ideia de ligação entre as partes é produtora de uma ambivalência. Por um lado, é explicitado o sentido da potência dessa reunião que agrega e transforma, e, por outro, é explicitado o sentido da reunião que aprisiona.

De acordo com Enriquez (2001, p. 62), todo grupo se sustenta pela existência do vínculo que se estabelece entre seus membros, do desejo de permanência, de pertencimento e de diferenciação dos demais grupos. Dentre os elementos que propiciaram a manutenção do grupo, demarca-se o estabelecimento desse vínculo, fortalecido pelos processos da idealização, da ilusão e da crença.

Em sua Psicologia das massas e análise do eu, Freud (1921, p. 58), ao desvelar o fenômeno grupal, indicou o amor ao outro e aos objetos como aquele capaz de frear o amor a si mesmo. Dessa forma, a viabilidade da vida social se dá com a vinculação aos grupos que oferecem causas nas quais os indivíduos possam se engajar, fazendo do seu investimento libidinal um meio de satisfação das pulsões.

A libido se apoia na satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que nela participaram. Tal como no indivíduo, também no desenvolvimento da humanidade inteira é o amor que atua como fator cultural, no sentido de uma mudança do egoísmo em altruísmo. (Freud, 1921, p. 59)

No entanto, pode-se observar com o "Grupo Cultural Meninas de Sinhá" como é notória sua capacidade em vincular as mulheres e lhes oferecer um espaço terapêutico, inicialmente incitado pela possibilidade da fruição da espontaneidade, quando o corpo pode se expressar e se movimentar sem as prescrições habituais.

Muitos foram os estudos desenvolvidos tendo por base a experiência desse grupo de mulheres. O grupo movimentou mais do que a produção cultural; ele mobilizou estudantes e pesquisadores, que construíram suas trajetórias de pesquisa investindo na compreensão dos processos internos do "Meninas de Sinhá".

A roda, que não é roda de criança, traz a presença de um símbolo arquetípico. Ela provoca vibrações e sensações no público, que nela se integra; e, no tempo em que a roda era espaço aberto, convite para se misturar, não importava a qualidade da melodia, a ausência dos instrumentos nem o refinamento estético que o espetáculo clama. O amálgama do grupo é afetivo convoca à busca de sentido, expõe a necessidade do tornar-se símbolo.

São outros os ideais propostos pela psicossociologia. Ela admite o envolvimento, o encontro, a dúvida, a construção e a desconstrução. Abre espaço à vida dos bastidores da pesquisa, permitindo seu aparecimento e reflexão.

São outros os valores que o grupo Meninas de Sinhá evoca, valores que não são facilmente vencidos pelo mercado de consumo, pois permanecem internos e potentes para, em qualquer oportunidade, serem reativados. No entanto, a pesquisa científica pretende desvelar a realidade para compreender suas contradições, sugerir novos conhecimentos e ações ou simplesmente descrever os processos que envolvem essa realidade. Ao admitir o envolvimento entre pesquisador e sujeitos pesquisados, ela os enlaça em uma armadilha, pois a psicossociologia já mostrou como a tarefa de análise é limitada ao trabalhar exatamente com as idealizações e ilusões que sustentam a existência dos grupos e coletivos.

REFERÊNCIAS

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*Professora Adjunta do Centro Universitário UNA e da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.E-mail: adriana. araujo@prof.una.br ou adriana.araujo@cienciasmedicasmg.edu.br.
** Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.E-mail: simson@superig.com.br.
***Professora Adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais.E-mail: marialum.nogueira@gmail.com.
1 As autoras deste artigo, Araújo e Nogueira, trabalharam em suas pesquisas de mestrado com o método de história de vida e foram orientadas pela Profa. Dra. Vanessa Andrade de Barros.
2 A pesquisa de doutorado (2014) foi orientada pela Profa. Dra. Olga Rodrigues de Moraes von Simson e foi desenvolvida a partir da metodologia da história oral.
3 A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.
4 A alternância da forma gramatical não é aleatória, corresponde a um recurso linguístico para dar conta de um investimento de caráter pessoal de uma das autoras.
5 "Finalmente, el teatro representa la mayor contribución griega a la historia de la arquitetura. Se desarrolló a partir de un anillo circular destinado a la representación significativa del drama existencial".

 

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