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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

O Manifesto do Funk Ostentação: uma leitura psicanalítica do discurso de dois adolescentes e a sua relação com o funk

 

The manifest of funk ostentação: a psychoanalytic reading of the discourse of two adolescents and their relation with brazilian funk music

 

El manifiesto del funk ostentação: una lectura psicoanalítica del discurso de dos adolescentes y su relación con el funk

 

 

Luciana Costa Pires1; Jacqueline de Oliveira Moreira2

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe fazer uma reflexão teórica movida a partir de fragmentos de falas de dois adolescentes que vivem em um contexto social de criminalidade violenta proeminente e suas singulares relações com o funk ostentação. Fundamentadas na teoria psicanalítica, buscamos compreender como as composições deste gênero musical podem ocupar um lugar privilegiado na dinâmica psíquica desses adolescentes. Nestas circunstâncias, lançamos mão de contribuições importantes da psicanálise sobre a intrínseca vinculação entre o sujeito e a civilização. A análise das duas falas nos conduziu aos conceitos freudianos de "narcisismo" e de "sublimação". Os adolescentes relatam um laço particular com a música que pode se apresentar como confirmação do envolvimento com a criminalidade ou, em oposição, como uma construção sublimatória para o excesso de agressividade, via a composição musical.

Palavras-chave: Funk ostentação; Adolescência; Narcisismo; Sublimação; Psicanálise.


ABSTRACT

This article proposes to make a theoretical reflection based on fragments of speeches by two adolescents living in a social context of violent criminality and their unique relations with funk ostentação (Brazilian music genre which has ostentation as its lyrics' main subject). Based on psychoanalytical theory, we sought to comprehend how compositions associated to this musical genre can occupy a privileged place in these adolescents' psychic dynamic. In these circumstances, important psychoanalytical contributions regarding the intrinsic bond between individuals and civilization have been considered. The analysis of the two speeches led us to the Freudian concepts of "narcissism" and "sublimation". Both adolescents report a particular bond with music that may present itself as confirmation of the link with criminality or, in opposition, as a sublimatory construction for the excess of aggressiveness by way of musical composition.

Keywords: Funk ostentação; Adolescence; Narcissism; Sublimation; Psychoanalysis.


RESUMEN

Este artículo se propone a hacer una reflexión teórica movida a partir de fragmentos de discurso de dos adolescentes que viven en un contexto social de criminalidad violenta prominente y sus singulares relaciones con el funk ostentação (género de la música brasileña que tiene ostentación como tema principal de sus letras). Desde una orientación fundamentada en la teoría psicoanalítica, buscamos comprender cómo las composiciones de este género musical pueden ocupar un lugar privilegiado en la dinámica psíquica de esos adolescentes. En estas circunstancias, utilizamos contribuciones importantes del psicoanálisis sobre la intrínseca vinculación entre el sujeto y la civilización. El análisis de los dos discursos nos condujo a los conceptos freudianos "narcisismo" y "sublimación". Los adolescentes relatan un lazo particular con la música que puede presentarse como confirmación de la participación con la criminalidad o, en oposición, como una construcción sublimatoria para el exceso de agresividad vía la composición musical.

Palabras-clave: Funk ostentación; Adolescencia; Narcisismo; Sublimación; Psicoanálisis.


 

 

O presente artigo tem como objetivo central apresentar algumas reflexões teóricas sobre a relação entre dois adolescentes moradores de áreas com alto índice de criminalidade violenta e o funk ostentação. Não pretendemos determinar todos os possíveis laços entre a adolescência e este estilo musical e nem todas as possibilidades de relação entre este ritmo brasileiro e os dois adolescentes em questão. Sustentadas pela teoria freudiana, pretendemos realizar um recorte no discurso destes dois adolescentes e usar a teoria como ferramenta de leitura dos possíveis lugares que o funk ostentação pode ocupar na dinâmica psíquica destes sujeitos.

A discussão em questão se sustenta na escuta de dois adolescentes através do vínculo estabelecido com o Programa Fica Vivo!, que integra a Política de Prevenção Social à Criminalidade da Secretaria de Estado de Defesa Social do Governo de Minas Gerais (SEDS) e tem como objetivo geral contribuir para a prevenção e a redução de homicídios dolosos de adolescentes e jovens em áreas com alto índice de criminalidade violenta. O programa tem como público-alvo adolescentes e jovens de 12 a 24 anos de idade que, de modo especial, se encontram envolvidos com a criminalidade do local onde moram (onde o programa exerce suas atividades). Dentre as atividades executadas pelo Fica Vivo!, estão oficinas de esporte, cultura e arte, além da realização de projetos e ações sociais junto a outros serviços públicos que visam à proteção integral desses adolescentes e jovens. Neste âmbito, parece-nos fundamental assinalar que as vivências de que propomos fazer uma leitura se localizam na adolescência.

Embora a adolescência não tenha sido trabalhada enquanto um conceito próprio da psicanálise freudiana, sua compreensão através deste aporte teórico nos faz considerá-la como sendo o tempo lógico do sujeito se posicionar frente às transformações advindas da puberdade e às demandas sociais que exigem dele um árduo trabalho de elaboração do seu desamparo. Desde o ensaio freudiano de 1905 sobre as transformações da puberdade (Freud, 1905/1996), depreendemos que esta não é apenas uma fase do desenvolvimento humano, mas é, sobretudo, um momento de transição em que há uma relação única entre o indivíduo e sua escolha objetal.

No contexto atual onde o consumo assume um papel-chave nos arranjos sociais e subjetivos, sublinhados pelos ideais hedonistas e narcisistas da cultura pós-moderna, os adolescentes, em específico, são seduzidos pela oferta de objetos e produtos proclamados pelo capitalismo com uma promessa de satisfação irrestrita ao consumi-los e ostentá-los. Apesar do caráter homogeneizador dos imperativos "consuma!" e "ostente!", nem sempre os meios legais e socialmente aceitos para obtê-los são ofertados na mesma proporção isonômica. Com isso, a criminalidade pode surgir como um atalho para acessar esses objetos e produtos. Sem perdermos de vista a perspectiva da psicanálise do caso único, o permanente envolvimento no cometimento de atos infracionais por parte dos adolescentes parece consonar com a ideia do sociólogo britânico Mike Featherstone de que "a cultura de consumo contemporânea parece estar ampliando o leque de contextos e situações em que esse comportamento é considerado adequado e aceitável" (Featherstone, 1990, p. 48).

Assim, a constante prática de atos infracionais parece materializar, em parte, a irrupção de um movimento que surge na adolescência de o sujeito se lançar em condutas de risco que, apesar do sofrimento que causam ao adolescente, "[...] devem ser interpretadas como buscas identitárias e apelos à vida" (Le Breton, 2012, p. 43). Como forma de acentuar a própria existência, esse envolvimento de alguns adolescentes com certas atitudes que evidenciam o caráter efetivo e irredutível do próprio eu, na pós-modernidade o interesse em afirmar-se como a "majestade, o consumidor", parece pertinente observar uma estreita afinidade com a introdução da teoria freudiana ao conceito de narcisismo. Por outro lado, em uma conduta menos arriscada, porém não com menos marcas, o adolescente pode encontrar uma forma de se enlaçar socialmente por via da arte, como, por exemplo, da música. Nesta conjuntura, o adolescente enceta composições genuínas que parecem tracejar para ele um certo destino para externar o que internamente já não dá mais conta de silenciar. Diante disso, parece-nos acertada a compreensão do conceito de sublimação embasado pela psicanálise freudiana. Tais circunstâncias retratam os dois fragmentos de falas que analisaremos neste artigo sob uma leitura psicanalítica da relação dos adolescentes com o funk ostentação. A escolha por esses dois enunciados se deu pelo ponto de atenção que os mesmos provocaram durante intervenções de trabalho juntamente com o público adolescente em situação de vulnerabilidade, destacando-se o alto índice de criminalidade violenta. Desta maneira, concordamos que:

Um dispositivo útil para a análise da articulação da construção da subjetividade aos laços sociais possíveis em dados grupos sociais é destacar o que os enunciados e a enunciação presentes na cena social sobre referentes fundamentais da organização social e psíquica elucidam sobre o imaginário dos grupos sociais, que atribuem lugares específicos ao sujeito (Rosa, 2004, p. 339).

Sustentamos nossa análise então, a partir de uma revisão bibliográfica consoante aos preceitos de autores clássicos (Freud, 1930/1996; Debord, 1967/2003; Lasch, 1983) e contemporâneos (Birman, 2005; Lacadée, 2011; Le Breton, 2012), especialmente considerando uma interface entre a psicanálise e a sociologia que nos proporcionasse articular teoria e prática, ao passo que identificamos o funk ostentação enquanto manifestação musical destacada e celebrada pelos adolescentes que escutamos. Foi possível encontrar produções científicas (God, 2016) que tratassem sobre a influência da música nas vivências subjetivas e coletivas, no entanto, poucas ainda estabeleciam uma discussão mais direta com o funk ostentação. Foram localizados alguns estudos (Neves, 2016; Pereira, 2010; 2014) nos campos teóricos da história e da música que contribuíram para nossa análise do lugar que o funk ostentação pode ocupar na economia libidinal dos dois adolescentes a quem reportamos.

O que os adolescentes ouvem das estrofes ritmadas pelo funk ostentação e o que cada um nos diz sobre o que elas representam para si, "nos permite acesso a um ponto de vista rico sobre seus impasses e saídas, sobre suas perspectivas sobre a própria civilização e a relação com a coletividade, sobre como buscam participar ou destruir os entornos" (God, 2016, p. 11). Para tanto, antes de chegarmos às reflexões teóricas acerca dos papéis que este gênero musical pode realizar no funcionamento psíquico desses adolescentes, partimos de uma explanação sobre o surgimento desse estilo musical e como ele se conecta à adolescência.

 

O Manifesto do funk ostentação na adolescência

Temos como hipótese que o funk ostentação propõe uma exaltação do capitalismo e do consumo enquanto regentes da sociedade pós-moderna e que, através do funk ostentação, substancializam em letras de música seus ditames. Mas, afinal, o que nos é manifestado a partir do funk ostentação? Com base nos estudos de Neves (2016), "as batidas que caracterizam o funk no Brasil se desenvolveram a partir das apropriações feitas das músicas emergentes da cultura periférica dos Estados Unidos [...]" (Neves, 2016, p. 26). Em um momento de crise socioeconômica, os moradores, majoritariamente jovens dos guetos das grandes cidades norte-americanas (em destaque a cidade de Nova Iorque) inventaram meios para expressarem seus descontentamentos com a realidade vivenciada naquela época. Foi assim que a cultura hip-hop se consolidou por lá entre os anos 1970-1980.

Originalmente, seus pilares são constituídos por: Graffiti (arte de rua caracterizada por desenhos e/ou inscrições feitos geralmente em paredes e muros de espaços públicos); Breakdance (dança de rua criada como manifestação popular de jovens contra o movimento de gangues que tomava a cidade de Nova Iorque na década de 1970; Rap (abreviação para rhythm and poetry – ritmo e poesia, gênero de música urbana ritmado por uma vertiginosa declamação de rimas que simbolizam, via de regra, questões cotidianas vivenciadas pela comunidade negra e das periferias); e DJing (atividade executada por um disc jockey (DJ), que seleciona e reproduz uma lista de músicas para um determinado público em eventos e/ou locais próprios para dançar).

Posteriormente, entre as décadas de 1990-2000, a essência dessas expressões artísticas serviria para o surgimento do funk enquanto um gênero musical predominantemente difundido nas periferias do território brasileiro. De início, o funk ganhou notoriedade nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, onde, gradativamente, foi se tornando uma apropriação cultural dessas localidades. No contexto carioca, a vertente do funk conhecida por suas letras que exaltam um forte apelo sexual, facções criminosas, posse de armas, tráfico e consumo de drogas e a criminalidade em geral como meio de conquistar poder e ascensão social é denominada "funk proibidão".

Tendo o consumo e a criminalidade enquanto predicativos da eleição da vertente do funk celebrado pelos adolescentes que escutamos, verificamos com Pereira (2010) que o funk proibidão disseminado pelos MCs cariocas também foi sendo amplamente aderido nas periferias paulistas. Vale ressaltar que a sigla MC se refere ao acrônimo de "Mestre de Cerimônias", tal como são conhecidos, principalmente, os compositores e intérpretes ligados ao rap e ao funk.

Ainda segundo Pereira (2010), uma diferença marcante entre o estilo carioca e o funk propagado pelos MC's de São Paulo, é "uma diminuição radical das referências diretas à criminalidade, por um lado, e, por outro, a adoção constante e intensa da temática do consumo e das marcas" (Pereira, 2014, p. 6). Com isso, o funk ostentação consagrou-se com esta denominação, entoado pelos MC's da região metropolitana de São Paulo e da Baixada Santista que, em suas letras e videoclipes, salientam o consumo às vias de uma ascensão social por meio dos bens e produtos adquiridos e ostentados.

Foi a partir de uma ampla utilização do espaço rizomático da Internet (Nobre, 2010), que o funk ostentação ficou reconhecido nacionalmente. Em suas letras e vídeos, observamos a incitação ao consumo de roupas e acessórios de marca, bebidas alcoólicas e outras drogas, automóveis com altos valores mercadológicos, além de smartphones e outros gadgets. Conforme assimilamos a partir da teoria lacaniana, o termo gadgets se refere aos objetos fabricados pela ciência que na sociedade onde o consumo ocupa o lugar da produção enquanto anteparo da lógica capitalista, recebem um sobejado investimento, deixando o sujeito em uma ligação subalterna e contínua com esses objetos.

Ainda que originalmente o funk ostentação trate do consumo, é possível encontrar composições consideradas pertencentes a este estilo musical que associam o incentivo de consumir tais objetos, o status e suas prerrogativas à criminalidade. Como nos asseverou Costa (2008), os atos análogos aos crimes contra o patrimônio são ressaltados na pós-modernidade por seu caráter de acesso imediato aos bens de consumo, ao dinheiro e a outros ganhos patrimoniais. Tratam-se dos crimes tipificados nos artigos 155 a 183 do Código Penal Brasileiro e têm como exemplo furto, roubo, receptação, latrocínio, extorsão e estelionato. Podemos considerar uma correlação dessas penalidades a autorias de tentativas e execuções de homicídio e a entrada para o tráfico de drogas. No caso dos adolescentes e jovens de 12 a 18 anos de idade, são consideradas as disposições gerais acerca da prática de ato infracional e das medidas socioeducativas estabelecidas entre os artigos 103 e 128 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por meio dos imperativos do consumo e da ostentação, o sujeito é evocado a dar um posicionamento para suas eleições, as quais, na sociedade atual, muito frequentemente, passam pela satisfação granjeada pela obtenção e ostentação de gadgets.

Sob um novo direcionamento que precisa dar às escolhas objetais, distanciando-se das referências infantis, a adolescência se torna o momento suscetível para o sujeito constituir suas identificações. No caso dos adolescentes sobre quem refletiremos, em face do descrédito com que sua vida é concebida e às insuficiências simbólicas peculiares da pós-modernidade, acentuadas pelas condições precárias dos aglomerados onde vivem, a criminalidade se torna uma saída plausível (Guerra et al., 2010). Na sua imaginação, o lugar ocupado por seu envolvimento e permanência na criminalidade serve ao adolescente como uma possibilidade de se igualar aos demais sujeitos que, pela lógica do discurso capitalista, são assim reconhecidos através da aquisição e do esbanjamento de objetos de consumo. Pressupomos então que no contexto pós-moderno, poder ser equivale-se a poder ostentar. Nesta perspectiva, fazemos coro ao que Debord (1967/2003) afirmou sobre a sociedade do espetáculo, em que a supremacia da aparência em detrimento do ser acaba por interferir na inversão da vida concreta em representações espetaculares.

Por meio de um discurso homogeneizador do consumo e da ostentação dos famigerados gadgets, cujo deleite se dá de forma narcísica, o que salta aos olhares dos outros não é nada mais senão um espetáculo que impõe para o adolescente uma nova roupagem para suas identificações através das marcas amplamente anunciadas pelos veículos midiáticos. Na sua concepção particular, mas também partilhada por outros, o encontro com esses objetos produziria uma satisfação ilimitada, passando a funcionar no psiquismo desses adolescentes como uma extensão do próprio corpo, sendo impossível, portanto, abrir mão dessa "completude".

Através do funk ostentação, os adolescentes encontram uma forma de fazer laços que os reposicionem no lugar de sujeitos. Ao elegerem o funk ostentação como trilha sonora de seus devires, os adolescentes escutam nas interpretações dos MCs uma espécie de voz de comando que parece tamponar o vazio que ecoa dentro deles. Com uma abundância de nomes, marcas e estilos de armas, roupas, acessórios, automóveis, drogas e outros objetos de consumo, bem como certas situações por eles almejadas, ao serem anunciados pelo funk ostentação soam para esses adolescentes como um hino, como por exemplo a música " Vida Bandida", do MC Smith:

Whisky Royal Salute, garrafa de porcelana
Gasta 20, 30 mil todo final de semana
Do alto do camarote chovia nota de 100
Eu portava equipamento que nem a polícia tem
Segurança máxima do lado, arsenal muito pesado
E o bloco mais afiado
Exército fardado de Lacoste ponta a ponta na favela
Que desafiou a morte para vencer a miséria
[...]
Amante do dinheiro e do perigo, mal exemplo a ser seguido
Maquinista do trem bala, odiado e perseguido, porém
Mas com o sistema o desabafo é no gatilho
[...]

Ao analisarmos esta letra, podemos identificar objetos de consumo que fascinam os sujeitos, por seus altos valores pecuniários. Na letra, destacam-se o whisky em garrafa de porcelana, sinônimo de luxo no setor de bebidas alcoólicas e a marca de roupas que, com um "crocodilo verde" estampado em seus vestuários e acessórios, tornou-se um símbolo de garbo entre pessoas das mais altas classes sociais. Pela posse de armas e do lugar mais "VIP" em uma festa, isto é, como uma pessoa muito importante (Very Important Person, em inglês), o sujeito atrai os olhares para si ao se tornar, pelo seu envolvimento e prestígio no mundo do crime, um exemplo a ser seguido. Por meio dessa "proteção" camuflada em objetos de consumo e pelo ideal indestrutível criado por seu envolvimento com a criminalidade, o adolescente acredita estar amparado por esses condutos de felicidade plena, tal como anunciados pelo capitalismo. Para melhor entendermos isso, partimos para o primeiro enunciado que nos propomos analisar, considerando o conceito freudiano de narcisismo.

 

Eu posso, logo eu ostento

Sob este horizonte teórico, trazemos o caso de Antônio, adolescente de 13 anos, morador de um aglomerado comandado pela disputa entre facções criminosas pelo domínio do tráfico de drogas daquele território. O nosso contato com Antônio se deu em uma unidade do sistema socioeducativo onde ele cumpria medida cautelar de internação provisória por sua reincidência no cometimento de ato infracional análogo ao crime de roubo.

A direção da unidade nos convidou para realizarmos uma atividade com alguns adolescentes internos, cuja proposta era de dialogarmos sobre as vicissitudes que os trouxeram até aquela situação de internação provisória. Antes de iniciarmos os diálogos com os adolescentes e também para termos um ponto de condução para isso, reproduzimos em áudio e videoclipes algumas músicas do funk ostentação consideradas como hinos pelos adolescentes. Esta atividade com as músicas foi sugerida pela direção do Centro de Internação Provisória que identificou uma predileção pelo estilo musical supracitado, manifestada pelos próprios adolescentes em seus atendimentos habituais, solicitando uma ação na unidade que pudesse ter o funk ostentação como um recurso a ser utilizado. A partir disso então e, após a execução das músicas na ocasião corrente, foi questionado sobre se eles percebiam alguma relação entre as letras do funk ostentação e suas trajetórias até aquele momento.

Assim, Antônio nos despertou a atenção ao revelar em sua fala que "a gente também quer ostentar. Aí vem o funk que parece entrar na nossa mente e diz que a gente pode". Ao escutarmos esta assertiva de Antônio, que teve anuência por parte dos demais adolescentes ali presentes, demarcamo-la como um ponto-chave para uma futura reflexão sobre o lugar que o funk ostentação pode ocupar na dinâmica psíquica desses adolescentes, não apenas àqueles em envolvimento com a criminalidade, mas, fazemos este recorte tendo em vista o trabalho junto a este público em específico. Ao pensarmos nesta hipótese, com base no que Antônio nos enunciou, levamos em conta uma leitura psicanalítica sobre este possível laço entre o adolescente e a música, compreendendo que esta seja uma via latente, mas, existente, entre o sujeito e a cultura. Acreditamos que esta seja uma estratégia pertinente de se investigar sobre os laços e arranjos pulsionais que se inscrevem no campo dos afetos para esses adolescentes e que "[...] esses MC's lançam ao mundo em alto e bom som" (God, 2016, p. 11).

Como consequência disso do que ouvimos de Antônio, tomamos a liberdade, quase como uma licença poética, de reformular o afamado argumento cartesiano "penso, logo sou", a fim de sintonizá-lo às premissas atuais da pós-modernidade que nos parece mais evidente que a afirmação que representa o indivíduo na sociedade de consumo é a de que "eu posso, logo eu ostento". Ao acrescentarmos o pronome pessoal "eu", demarcamos bem quem é o sujeito da ação, especialmente se considerarmos o tempo presente da cultura do narcisismo. Embora se trate de um conceito originalmente cunhado pela psicanálise freudiana, conforme nos foi anunciado por Lasch (1983), o narcisismo pode ser pensado também enquanto uma característica própria da cultura.

Neste sentido, cabe-nos salientar que, a partir do conceito de narcisismo estabelecido por Freud em 1914, o que está em jogo é a libido enquanto energia substancialmente sexual e irrefutável no funcionamento do psiquismo. Ao defender a ideia de que haveria um investimento sexual no próprio eu, entendemos que este não é uma realidade originária, mas que se constitui a partir do encontro com o outro. Ao aproximarmos o eu e o outro enquanto encontro indispensável para o desenvolvimento do próprio eu e também da civilização, o fazemos a partir das reflexões psicanalíticas dos fenômenos sociais que não deixam de levar em consideração a singularidade com que cada fenômeno se apresenta para cada sujeito em seu constituir-se. Para Freud (1914/1996), o narcisismo é um aspecto crucial à formação subjetiva do eu. Com a concepção de um narcisismo originário, o sujeito encontra no próprio eu a sua fonte de investimento libidinal, para depois então direcioná-lo para os objetos e os ideais. Nesta particularidade do eu enquanto objeto libidinal, é que "o fluxo libidinal estanca, e, embora guiada pelo princípio de prazer, a libido egóica funciona primordialmente segundo a vertente deste princípio que, de acordo com Freud, visa a evitar a dor e a privação" (Costa, 1988, p. 116. Grifo do autor). No entanto, esse direcionamento da libido para o mundo externo é parcial, o que faz com que o sujeito, mesmo ao se convergir para o lado do outro, sempre detenha em seu eu algo deste investimento libidinal.

É interessante também frisar a formulação freudiana acerca do eu ideal e do ideal do eu. O eu ideal seria o resultado da experiência que durante a infância credita à criança a posse de uma perfeição inabalável de que não será fácil abrir mão ao longo da vida. Entretanto, ao ser reprendido pelas regras e leis estabelecidas pela vida civilizada, defronta-se com a impossibilidade de conservar esta impecabilidade. A partir disso, o indivíduo passa então a projetar traços da imagem idealizada na forma egóica, constituindo o ideal do eu como tentativa de reconquistar a perfeição narcísica perdida em sua infância, "[...] na qual ele era o seu próprio ideal" (Freud, 1914/1996, p. 101). A leitura freudiana sobre o narcisismo coloca a problemática do desamparo humano em evidência para a constituição do sujeito, em especial no que tange à relação com a civilização. No contexto de uma cultura do narcisismo (Lasch, 1983), esta condição de desamparo estrutural do ser humano, nestes tempos pós-modernos, "[...] é levada a um ponto tal, que torna conflitante e extremamente difícil a prática da solidariedade social" (Costa, 1988, p. 127).

Nesses tempos sombrios, assim considerados por Costa (1988), há, portanto, uma derrocada dos princípios sociais e de justiça. Assim, prevalecem as representações e imagens conservadoras do eu narcísico de que "tudo pode". Especialmente para os adolescentes, como bem nos certificou Antônio, sobrevém uma certeza de que, com os compassos do funk ostentação, o vazio que lhes acomete será plenamente preenchido pelo consumo ostentativo. Contudo, como Freud (1930/1996) já nos assegurou, não há apaziguamento suficiente para o mal-estar causado pela infindável ambivalência entre o sujeito e a cultura. Ainda mais na sociedade pós-moderna que, privilegia os ideais culturais do consumo narcísico e hedonista e, ao fracassar na criação de formas de acolhimento do desamparo, faz com que este se amplie. O adolescente pode então se lançar repetidamente em condutas de risco com a expectativa de corresponder e ser amparado por tais ideias.

Ao traçarmos este paralelo entre a teoria psicanalítica e o envolvimento constante do adolescente em práticas infracionais, como é o caso de Antônio e, além disso, relacionarmos ao que nos é manifesto pelo funk ostentação, não inferimos que a música seja o fator determinante para o adolescente se envolver e permanecer envolvido com a criminalidade, tampouco conferimos a este público a exclusividade de tais predileções. Ao longo da trajetória das pesquisadoras no trabalho com adolescentes em situação de vulnerabilidades, especificamente o alto índice de criminalidade violenta, foi possível observar outras saídas genuínas que adolescentes encontram para dar vazão para seus imperativos pulsionais, seja pelo esporte, pelos estudos, pelo trabalho formal, por exemplo.

Ao resgatarmos o ponto de vista da antropóloga Alba Zaluar (1994), compreendemos que a afirmação como a de Antônio de que ele e os demais adolescentes também fazem parte do que "todos querem" se sustenta através de uma identidade vinculada a aspectos de virilidade, poder e individualismo que são representados, por sua vez, pela posse de armas e drogas, pela disposição de matar, pela quantidade de dinheiro e bens de consumo e, principalmente, pelos acessórios e roupas de marcas famosas por seus altos valores pecuniários. Mesmo sendo cópia, e não original, pois, o que importa é parecer que tem, qualidade peculiar à sociedade do espetáculo (Debord, 1967/2003), "a roupa parece ser o objeto de consumo que, do ponto de vista individual, oferece a oportunidade mais clara e acessível para fugir à identificação de pobre, ou pelo menos a ilusão de poder fugir dessa identificação" (Zaluar, 1994, p. 103. Grifo da autora). Ao tentarem desviar-se desses estigmas que "ninguém quer ter", os adolescentes, como Antônio nos enunciou, acabam encontrando no funk ostentação um meio que justifica e traduz para eles seus imperativos pulsionais. Nestas circunstâncias, a música extrapola a característica de ser apenas uma junção entre letra e melodia, tornando-se um enunciado próprio que os leva a acreditar então que tudo podem, especialmente por pertencerem ao mundo do crime.

Este particular vínculo entre o adolescente, o consumo e a criminalidade, ressaltados nas letras do funk ostentação e por Antônio, nos leva a refletir sobre as concepções formuladas por um psicanalista contemporâneo atento às dimensões da adolescência. Para Stevens (2004), para além de um caso único, esta vinculação consiste num fenômeno de ordem estrutural da nossa sociedade. Sob os efeitos dos avanços da ciência e da consequente universalização da cultura que apaga a exceção por meio dos ditames do consumo e da ostentação, somos considerados, assim, "todos iguais". A verificação de que ninguém está isento das ordens "consuma!" e "ostente!" promove, por sua vez, efeitos devastadores de segregação. Logo, "hoje, a adolescência rima, por um lado, com segregação [...] Tem-se aí a organização de substitutos sintomáticos sociais para a adolescência, que se conjuga ao efeito segregativo da sociedade capitalista de hoje nessa proporção do todos iguais" (Stevens, 2004, p. 37-38. Grifo do autor).

Na tentativa de se compor de uma maneira diferente, o adolescente pode eleger uma via menos mortífera do que a criminalidade, porém não menos angustiante e sem marcas para ele. Embora o funk ostentação seja estereotipado pelas classes dominantes por ser uma expressão musical originada nas periferias brasileiras, o adolescente que desponta como compositor e intérprete desse gênero musical nos aponta uma possibilidade outra de fazer laço com a música. Deste modo, introduzimos a nossa segunda reflexão teórica referente a um outro adolescente que pudemos acompanhar por um tempo maior do que Antônio, que nos apresentou seu enunciado em apenas um encontro. Essencialmente, o segundo fragmento de fala será analisado a partir das concepções freudianas acerca de uma das vicissitudes da pulsão, ou seja, é por meio do conceito de sublimação que apresentamos o caso do MC Jorge.

 

Salve, Jorge!

Jorge é um adolescente de 15 anos, morador de uma comunidade com alto índice de criminalidade violenta e comandada por traficantes de drogas que, segundo o garoto, já o chamaram para "fazer nome no mundo deles". Ainda que tenha pensado em aceitar tal chamado, Jorge sempre tentou se "salvar desse caminho que não tem volta". Apesar de ajudar a mãe em casa, "fazer uns corres" com seu avô e frequentar a escola, Jorge não achava nessas atividades "nada de interessante que pudesse tirar da cabeça essa ideia de entrar para o mundo do crime". Era notória a influência que o adolescente tinha em seu grupo de amigos e até mesmo entre lideranças comunitárias que o definiam como um líder nato. Não à toa os comandantes do tráfico daquele território notaram nele uma figura promissora para "seus negócios". Isso também nos foi possível observar a partir do nosso contato com Jorge, que aconteceu através de sua participação em oficinas voltadas à cultura hip-hop ofertadas pelo Programa Fica Vivo! no território onde morava, especificamente, de Graffiti e Breakdance.

Desde o nosso primeiro contato em uma visita a uma dessas oficinas, Jorge, visivelmente adornado com roupas e acessórios "da moda", manifestou sua predileção musical pelo funk ostentação. Ainda que as atividades nesses espaços não fossem exclusivamente ministradas com esse objetivo, Jorge, incentivado pelos "oficineiros" que o acompanhavam e que também eram MCs, logo começou a encetar a criação de composições próprias e com versos bem característicos da proposta do funk ostentação. Ao se apresentar como MC Jorge, o menino pareceu tracejar por meio da música uma certa manobra para o que não mais se silenciava dentro dele, especialmente diante das prerrogativas adquiridas pelo consumo anunciado pelo capitalismo como "[...] a condição necessária para a felicidade, talvez até para a dignidade humana" (Bauman, 1998, p. 56). Em uma de nossas conversas, MC Jorge nos enunciou o seu desejo: "eu quero me destacar pela minha arte e não pelo destino que todo mundo traça pra nós", referindo-se ao estigma que os adolescentes que moram nas periferias brasileiras carregam consigo, isto é, de que "a única chance pra preto e pobre subir na vida é no crime".

Nestas circunstâncias, MC Jorge e outros adolescentes que também buscam transcender a partir da arte às normatizações que os fixam em um lugar predeterminado socialmente nos levam a concordar com o psicanalista Orlando Cruxên, que, esclarece-nos que no tratamento artístico das pulsões o que se objetiva é "[...] elevar o espírito e adocicar a barbárie a fim de se ter acesso a um ganho moral" (Cruxên, 2004, p. 9). Assim, parece-nos irrefutável neste momento a compreensão acerca do conceito de sublimação, especificamente na teoria freudiana, na qual é definido como um processo sem relação direta com a sexualidade, sendo o resultado do desvio ou inibição da pulsão sexual. Ao ser assim anunciada na retórica freudiana, algo nos lembra também a noção de sublimação para a química, difundida por Antoine Lavoisier no século XVIII, que corresponde à passagem direta de uma substância em estado sólido para o estado gasoso, sem passar pelo estado líquido. Desta maneira, a sublimação faz permutar a finalidade sexual por outra que incide no desejo e o rege moralmente.

Segundo a descrição de Laplanche e Pontalis (2001), a sublimação é postulada por Freud como um processo que explica as atividades humanas que não têm qualquer relação aparente com a sexualidade, mas encontram na força da pulsão sexual o seu elemento propulsor. Logo, tanto as atividades artísticas quanto as investigações intelectuais seriam processos sublimatórios cuja pulsão sexual foi desviada para uma meta não sexual, isto é, a criação ou a produção de objetos socialmente valorizados.

A ideia de valorização social está presente na maioria das elaborações freudianas sobre o processo sublimatório, portanto, com esta noção, podemos depreender que o destino da pulsão pela via da sublimação está intricado diretamente na experiência do sujeito e a civilização. Ao afirmarmos isso, consideramos a noção de sublimação na primeira tópica da obra freudiana enquanto um caminho que a pulsão trilha em um certo sentido de se colocar em uma posição complementar ao princípio de prazer, sendo um novo destino para a sexualidade. Na compreensão freudiana neste primeiro momento de seus escritos, o ato de sublimar por si só parecia ocasionar uma certa aquietação no criador perante a sua criação. Isto porque, segundo a interpretação de Birman (1999), na primeira tópica teríamos uma crença freudiana em uma possível harmonia entre as exigências pulsionais e as normas culturais, sendo então a sublimação "uma experiência de espiritualização, de ascese, pela qual a subjetividade seria purificada de seu erotismo perturbador" (Birman, 1999, p. 132).

No entanto, já na segunda teoria das pulsões, Freud (1920/1996), ao considerar o dualismo entre pulsão de vida e pulsão de morte, anunciou, pois, uma força de fusão e de desfusão. O psiquismo seria marcado pela luta entre uma força de vida que visa a conexão e uma força de morte que se movimenta na direção de uma desconexão. A problemática da pulsão de morte acentua a ideia do desamparo como constitutivo do humano. Somos sujeitos originalmente desamparados e, por isso, somo seres gregários, precisamos do outro para viver. O conceito de sublimação dentro deste novo horizonte teórico recebe novos tons. Ainda que a sublimação se refira a um movimento de construção de um novo destino para a força que pulsa dentro de nós, este movimento não é harmonioso ou purificador, pois as marcas do desamparo e da angústia são inerentes ao sujeito humano.

É neste sentido, inclusive, que interpretamos o caso do MC Jorge, que, mesmo vislumbrando um enobrecimento perante os outros a partir de sua arte, não passa por esse processo sem ser marcado pela falta e pela angústia genuinamente humanas. Ainda que funcione como uma tentativa de contornar o desamparo, o processo de dessexualização presente na sublimação entendida pelo viés da segunda tópica freudiana faz operar uma desfusão das pulsões. A separação entre pulsão de vida e pulsão de morte libera, pois, a força destrutiva da última. Destarte, no processo de dessexualização e, na consequente sublimação, a fusão entre as pulsões que permitia a neutralização da pulsão de morte é desfeita. Parece-nos interessante pensar, então, que na segunda tópica a sublimação não se opõe à sexualidade, mas a sua novidade está localizada na posição que o conceito de desamparo ocupa na dinâmica psíquica. O desamparo é o destino humano por excelência e na tentativa de dominá-lo torna-se necessário constituir destinos eróticos e sublimatórios para a pulsão. De acordo com Birman (2005), em sua segunda versão na obra freudiana, o conceito de sublimação:

Não é um ato de espiritualização, mas de lateralização, não se desprendendo o sujeito do seu registro corpóreo. Pelo contrário, a sublimação implica a horizontalização das ligações do sujeito com os outros, pela tessitura de laços sociais e pela produção de obras no campo desses laços (Birman, 2005, p. 211. Grifos do autor).

Nesta direção, a sublimação, sem deixar de honrar a sua noção no discurso científico da química, ou seja, a transformação direta do estado sólido para o estado gasoso, pode ser concebida como uma ação exigente. Ao saltar etapas (no caso da química o estado líquido), o ato de sublimar produz um objeto intercambiável que faz laço com o outro. Como nos foi possível analisar com o caso do MC Jorge, o adolescente ao destacar a sua relação com o funk ostentação a partir de composições próprias e do seu interesse em ser reconhecido por elas, traça um novo destino para a pulsão de morte que invade impetuosamente os adolescentes diante dos embaraços trazidos pelas transformações advindas da puberdade. Ao sublimar, a criação artística torna-se neste sentido o objeto capaz de vincular o sujeito e o outro. Ao mesmo tempo, o processo de elaboração e a produção final deste objeto não são isentos de sofrimento, pois, ao concebermos a sublimação em sua acepção final na teoria freudiana, já não podemos entendê-la como uma ação aprazível como outrora foi pensada por Freud.

De modo especial, o fundador da psicanálise nos fez compreender isso em seu célebre ensaio sobre "O mal-estar na civilização" ao afirmar que o indivíduo não conseguirá se afastar do desprazer durante o tempo em que tentar subsistir em sua relação com a cultura, a qual, por sua vez, sempre exigirá em contrapartida à satisfação, um sacrifício (Freud, 1930/1996). Apesar disso, não podemos deixar de concordar com Freud que "a sublimação da pulsão constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada" (Freud, 1930/1996, p. 103).

Dessa forma, a sublimação pode oferecer outros destinos para a pulsão, mas não deixa de se constituir por uma dimensão de sofrimento. Isso acontece porque a sublimação se dá enquanto um destino novo para a pulsão que arde dentro do sujeito, que precisa abrir mão do que seria então o destino da satisfação. Com isso, perde-se em sofrimento, mas, por outro lado, tem-se um objeto que torna possível o intercâmbio intersubjetivo e a circulação libidinal. Trata-se do objeto da pulsão, passível de ser interpretado e por isso, compartilhado.

É justamente com a definição dos aspectos e das vicissitudes da pulsão estabelecida por Freud em 1915, que a problemática da alteridade entra em cena para a psicanálise (Moreira, 2003). Por isso, o objeto da sublimação torna-se uma via possível para o sujeito fazer laço, presumindo, portanto, a existência do outro. Entretanto, a complexidade posta pelo conceito de sublimação nos faz compreender que o objeto produzido a partir desta ação pode, simultaneamente, servir como um novo direcionamento, mas também como restrição para o circuito pulsional, que na pós-modernidade é marcado pelos imperativos "consuma!" e "ostente!". Com isso, o funk ostentação parece ser esse objeto sublimado pertinente aos ditames pós-modernos, proporcionando-nos uma leitura singular acerca dos diferentes lugares que a música pode ocupar na dinâmica psíquica dos adolescentes envolvidos, direta ou indiretamente, com a criminalidade.

 

Uma última estrofe

Mesmo sem findarmos a nossa investigação sobre o assunto, podemos depreender, como vimos com Antônio e Jorge, que o funk ostentação tendo dado o tom aos compassos da adolescência, permitindo-nos articular este estilo de música a alguns dos preceitos fundamentais da psicanálise. Por mais que discutamos aspectos característicos de um cenário sociocultural, não perdemos de vista a perspectiva psicanalítica do caso único ao trazermos a leitura de fragmentos de fala desses dois adolescentes que nos mostraram como o funk ostentação pode funcionar enquanto uma saída particular para os impasses enfrentados no momento, como nos lembrou Lacadée (2011), da mais delicada das transições.

Logo, com o funk ostentação identificamos que o consumo em excesso nos diz da relação direta com o objeto que o sujeito estabelece atualmente. O poder e a imagem de ser "o cara" a partir da aquisição desses bens de consumo nos levou a pensar no narcisismo enquanto arranjo cultural e subjetivo que os sujeitos, especificamente os adolescentes, não abrem mão. A criminalidade, ressaltada pelo envolvimento com práticas ilícitas, a posse de armas e o consumo de drogas, aparece, muitas vezes, para esses adolescentes como um caminho possível na busca por um sentido para sua própria existência, como nos foi possível argumentar acerca do que o adolescente Antônio nos manifestou em nosso encontro. Ao escutarmos dele que a música entra em sua mente e o autoriza, em certa medida, buscar por poder, posse e prestígio via criminalidade, escutamos também sobre sua maneira de contornar o real, isto é, aquilo que é indizível pela palavra e que irrompe, especialmente, com a chegada da adolescência.

Já a enunciação de MC Jorge nos apresenta uma outra via encontrada pelo adolescente para os arranjos que o sujeito precisa dar a seu circuito pulsional. A sublimação nos indica um novo destino para a pulsão, porém, esse processo não é dissociado da angústia causada pelo destino humano do desamparo. A música, ritmada pelo funk ostentação, possibilita a formação de alternativas de investimento libidinal que, não tendo como se eximir da sua condição de desamparo, fazem os adolescentes, como MC Jorge, avistarem uma possibilidade de construírem uma forma particular de existir e de estabelecer laços com o outro, através da criação de suas composições.

A conclusão a que chegamos com esta pesquisa é a de que, à luz do aporte teórico da psicanálise, os destinos que cada adolescente traça para seu circuito pulsional, por mais que lhe pareça conceder "superpoderes", não lhe é sem angústia e consequências. Precisamos lhe oferecer uma escuta que, acima de tudo, favoreça o acolhimento de seus destemperos e a construção de compassos cada vez mais sintonizados com a sua singularidade.

 

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Endereço para correspondência
Luciana Costa Pires
E-mail: luciana.psicossocial@gmail.com

Recebido: 03/09/2017
1ª reformulação: 01/03/2018
Aprovado: 10/05/2018

 

 

1 Psicóloga e socióloga, mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Bolsista do Programa CAPES/PROSUC.
2 Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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