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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.14 no.2 São Paulo dez. 2013

 

SEÇÃO ESPECIAL

 

A vida da orientação na vida do século XXI: constrangimentos e desafios1

 

The life of counseling in 21st century life: Constraints and challenges

 

La vida de la orientación en la vida del siglo XXI: constreñimientos y desafíos

 

 

Maria Eduarda Duarte

Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho inscreve-se no registo geral de uma reflexão sobre a vida da orientação na vida do século XXI: realista, responsável, contido e empenhado, e sistémico. É realista, porque articula as disponibilidades teóricas com as necessidades reais. É responsável e contido, porque define as opções que são prioritárias em matéria das necessidades de desenvolvimento pessoal e, portanto, de justiça social. É empenhado, porque pretende passar a mensagem de que nem tudo se resolve numa perspectiva economicista, mas gerindo, teórica, social e politicamente, e na base das aprendizagens, os meios que estão disponíveis. E é sistémico, na medida em que olha para os assuntos de que se ocupa numa perspectiva global e interdependente. Pretende-se, assim, contribuir para a reflexão e também para a criação de condições de intervenção no domínio da orientação.

Palavras-chave: aconselhamento, orientação, carreira


ABSTRACT

This work proposes a reflection on the life of guidance in the 21st century: realistic, responsible, restrained and committed, and systemic. It is realistic because it articulates the theoretical possibilities with real needs. It is responsible and restrained because it defines priorities based on the needs of personal development and therefore social justice. It is committed because it conveys the message that not everything is solved in an economistic perspective, but by managing - theoretically, socially and politically, and on the basis of learning - the means that are available. And it is systemic, since issues of interest are treated in a global and interdependent perspective. The aim is thus to contribute to the reflection and also to create conditions for intervention in the field of counseling.

Keywords: counseling, guidance, career


RESUMEN

Este trabajo se inscribe en el registro general de una reflexión sobre la vida de la orientación en la vida del siglo XXI: realista, responsable, contenido, empeñado y sistémico. Es realista porque articula las disponibilidades teóricas con las necesidades reales. Es responsable y contenido porque define las opciones que son prioritarias en materia de las necesidades de desarrollo personal y, por lo tanto, de justicia social. Es empeñado porque pretende transmitir el mensaje de que no todo se resuelve desde una perspectiva economicista, sino administrando teórica, social y políticamente, y con base en los aprendizajes los medios que están disponibles. Y es sistémico en la medida en que mira hacia los asuntos de que se ocupa en una perspectiva global e interdependiente. Se pretende, así, contribuir para la reflexión y también para la creación de condiciones de intervención en el dominio de la orientación.

Palabras clave: asesoramiento, orientación, carrera


 

 

Abordar a orientação na segunda década do século XXI, significa pensar de uma maneira diferente daquela como se pensava no final do século XX. Para pensar diferente, é necessário reunir um conjunto de pressupostos e aceitá-los como tais. A primeira verdade (ou o primeiro pressuposto) tem a ver com a aceitação e o reconhecimento do passado histórico transformado hoje em legado que permite o entendimento e sustenta o que se precisa fazer, hoje.

A segunda verdade tem a ver com a aceitação de que a investigação, actualmente, é, e metaforicamente, como a trama de um tecido cujo produto final poderá, temporariamente, ajustar-se ao nosso corpo, proporcionando bem-estar e conforto: a investigação universalmente designada por top-down, o processo através do qual os cientistas fazem uso da teoria para dar ordem à realidade, para formular hipóteses, e proporcionar os princípios orientadores no que é o caos e a multiplicidade da realidade; e a investigação bottom-up, que mais não é do que o ponto de partida e a realidade que determina a fonte de novas experiências, actualiza e inova as teorias científicas, permitindo assim o desenvolvimento contínuo e a adaptação a essa realidade, aliás as duas únicas maneiras de produzir conhecimento (Duarte & Cardoso, no prelo). Esta trama, isto é, relacionar o estudo que parte da teoria com o estudo que decorre da prática determina colocar a investigação ao serviço das pessoas.

A terceira verdade parece evidente: esse mesmo estudo (de teóricos e de práticos) só tem significado se se consubstanciar em intervenções colocadas ao serviço do bem colectivo e da promoção do trabalho digno e decente. E a quarta verdade, a mais simples de todas, é aceitar a transitoriedade dessa mesma verdade; se não for assim, prevalecem pensamentos dogmáticos ou absolutistas que mais não servem e são servidos por compadrios e interesses que dificilmente se cruzam com a missão de criar e aplicar modelos que sustentem os contextos, a diversidade e a individualidade. Portanto, assumir que todo o processo de orientação, hoje, é um processo de construção da vida, incluindo a vida de trabalho, uma forma de intervenção social na medida em que se investe de um sentido de obrigatoriedade, isto é, uma outra reinscrição na história da orientação, porque o trabalho já não é, já não pode ser conotado com a origem da palavra trabalho, o tripalium2, o objecto de tortura ao qual eram amarrados os escravos... por não trabalharem! Tirar de cada um a capacidade de transformar o conhecimento em acção, preparar cada um para enfrentar tarefas diversificadas, é uma outra maneira de olhar para a orientação. Neste século de tanta ousadia, também à orientação cabem ousadias marcadas por uma consciência de carácter programático que se deve proclamar: "audendum est", o que se deve ousar: inscrever na orientação a ausência de cisão ou sismo conceptual. A especulação sobre o carácter científico, por exemplo, do aconselhamento no paradigma Life Designing (Savickas et al., 2009), não provém de uma dimensão cognitiva a que outros domínios mais ou menos discursivos seriam eventualmente alheios: a vida de trabalho integra o mundo científico, que deverá ser, acima de tudo, radicalmente humano.

Assumindo-se este conjunto de pressupostos, assume-se também que uma das prioridades para a terceira década do século XXI é o desenvolvimento do capital humano, isto é, o que permite criar valor como contrapoder à artificialidade do tecnológico (Duarte, 2012) em conjugação com a promoção do trabalho decente para todos os indivíduos, tal como preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (International Labour Office, 2006), promovendo, entre outras iniciativas, a organização de redes sociais como factor de influência para a promoção da globalização dos direitos sociais (Kott & Droux, 2013).

Uma das formas de tornar real essa promoção, ou seja, de a tornar visível no quotidiano, passa pela refundação da orientação e do aconselhamento em orientação. Um dos pilares para essa refundação assenta no que tem sido realizado no domínio da psicologia das carreiras, que já não são, na actualidade, nem lineares nem previsíveis como num passado não muito longínquo, mas inseridas na construção de projectos de vida (Duarte, 2009a). Projectos de vida que endossam um dos princípios fundamentais do trabalho decente: a compreensão de que a força de trabalho é uma fonte de dignidade pessoal, de estabilidade familiar, promotora de paz e de democracia, que estimula o crescimento económico e o desenvolvimento pessoal.

Procura-se, então, e num primeiro momento, enquadrar o desenvolvimento da orientação considerando as grandes questões relacionadas com a utilidade (as disponibilidades teóricas) e o realismo da investigação (as necessidades reais), nomeadamente ao nível do impacto e da eficácia na promoção de políticas que pretendem apostar no desenvolvimento da orientação, designação aqui utilizada no seu sentido mais geral e que inclui a orientação enquanto promotora de informação; a orientação enquanto promotora de actividades de natureza psico-pedagógica; e a orientação enquanto processo de aconselhamento psicológico. A utilidade da orientação reside no modo como intrinsecamente o mundo nela se condensa e dá a conhecer a sua utilidade: as noções de indivíduo e de contexto, radicando cada vez mais no próprio núcleo do entendimento humano, devem trabalhar firmemente para uma espécie de ancoragem da ideia de individualização; trata-se afinal de colocar o trabalho adentro do pessoalismo e da intersubjectividade.

Assim sendo, torna-se cada vez mais necessário trabalhar com as pessoas para as ajudar no desenvolvimento do seu capital intelectual, de competências e de investimentos que preconizem desenvolvimento. No contexto actual, a construção de aparelhos teóricos que se possam adequar a cada contexto respondendo, ou procurando responder, à pergunta que a todos inquieta: o trabalho tem lugar na vida de cada um só para dar sentido à existência de cada um? Para procurar dar respostas quer ao indivíduo, quer ao colectivo, a principal referência da orientação já não é ajudar na escolha de um projecto profissional, mas antes ajudar num processo de construção de vida (Duarte, 2009a), incluindo a vida de trabalho. Responder aos desafios da sociedade de hoje, como a crise económica, a precariedade do trabalho, a ausência de fontes de financiamento, a explosão do trabalho "indecente", pode e deve ser feito articulando as disponibilidades teóricas com as necessidades reais.

Num segundo momento, apresenta-se um conjunto de princípios orientadores que visam a recriação, ou refundação da orientação e do aconselhamento vistos como um dos desafios para a promoção da qualidade e do bem-estar. Princípios orientadores responsáveis e contidos na medida em que não assumem compromissos universais, e definindo de entre as várias opções de investimento social, económico e político aquelas que são prioritárias em matéria das necessidades de desenvolvimento pessoal e, portanto, de justiça social.

Num terceiro momento, pretende-se deixar uma reflexão fundamentada no princípio universal dos direitos da pessoa: toda a ciência tem que ser empenhada, porque nem tudo se resolve de uma maneira economicista, mas sim, gerindo, teórica, social e politicamente e na base das aprendizagens, os meios (todos, incluindo os aparelhos teóricos) que estão disponíveis - e isso faz-se com dedicação, com abertura ao diálogo, com a ida ao terreno, com o falar olhos-nos-olhos com as pessoas, lidando com os seus problemas mas também com as suas esperanças e o seu juízo crítico. Por fim, pretende-se salientar o carácter sistémico da orientação: um dos grandes desafios que se colocam à vida da orientação, são, avant la lettre, olhar para os assuntos de que se ocupa de uma maneira global, no entendimento de que nada funciona isoladamente, mas sim de uma forma articulada e interdependente.

 

O desenvolvimento da orientação: as disponibilidades teóricas e as necessidades reais

No início do século XX, a teoria e a prática da orientação vocacional começam a surgir em vários países. Neste novo domínio do conhecimento, podem destacar-se pioneiros como Parsons, nos Estados Unidos da América, Munsterberg, na Alemanha, Christiaens, na Bélgica, Claparède, na Suíça, Binet e Piéron, em França, Faria de Vasconcelos, em Portugal, Mira y López e José Germain, em Espanha, sem esquecer a projecção que estes três últimos tiveram na América Latina (Ferreira Marques, 1993); e no Brasil, a partir dos anos 70, é consensual considerar a influência que os trabalhos e a presença de Rodolfo Bohoslavsky tiveram nesta área (Duarte, 2000).

Até aos anos 50, a orientação tinha como principal objectivo a escolha de uma profissão e o sucesso profissional. O papel do orientador consistia em analisar as capacidades do indivíduo e compará-las com as exigidas pela profissão, escolhendo-se então a profissão que melhor se adequava àquelas capacidades. Esta abordagem caracteriza-se pela importância que os atributos mensuráveis têm enquanto preditores de sucesso vocacional: a psicologia das diferenças individuais, à qual está subjacente o método de determinação das aptidões, incluindo as profissionais, procura determinar a relação entre as capacidades do indivíduo e a escolha da profissão. E a sociedade? Uniformizada, estandardizada. O indivíduo actua de acordo com o expectável pela família e de acordo com os padrões sociais em que se movimenta: acaba a escola no momento certo, casa-se no momento certo, tem filhos no momento certo. O imperativo? O da responsabilidade de actuar de acordo com as regras sociais determinadas pelos contextos nos quais o indivíduo se movimenta.

O avanço nas ciências humanas, o aparecimento de grandes empresas, e ainda a intensificação da industrialização (refira-se, como exemplo, no Brasil, o aparecimento da empresa Petrobrás) estão na origem da criação de novos empregos e de novas profissões. Os grandes sectores empregadores de então, como a agricultura e o pequeno comércio, dão lugar às grandes fábricas. Acompanhando estas evoluções, começam a surgir outras teorias alternativas na área da orientação vocacional, o que conduz a importantes mudanças conceptuais, passando-se dos modelos profissionais para os modelos de carreira, sendo de destacar os trabalhos de Ginzberg e colaboradores, e, principalmente, os de Donald Super, que, já em 1942, situa a orientação vocacional num processo dinâmico, isto é, a escolha profissional é um processo desenvolvimentista que começa na infância e se prolonga na vida adulta (Duarte, 2000).

Trata-se de uma nova construção social da realidade: da uniformização vai-se caminhando para a individualização. Os movimentos de desenvolvimento de carreira, da educação das carreiras balizam a aprendizagem e salientam o conhecimento e o envolvimento no desempenho de papéis. Trata-se, afinal, da segunda transição: a carreira existe porque é possível "subir na vida" e ir deixando de fazer parte da massa amorfa de uma cadeia de montagem.

A orientação vai-se assumindo numa perspectiva mais ampla: a mudança da expressão "orientação vocacional" para "orientação da carreira", nos EUA, e a mudança de designação "orientação profissional" para "orientação escolar e profissional", na Europa, no início dos anos 60, não têm apenas um carácter semântico, mas realçam a importância de outros objectos de estudo no âmbito da orientação: os processos de tomada de decisão, os auto-conceitos, o estilo de vida, os valores, os tempos livres, a escolha livre e fundamentada, as diferenças individuais, e a flexibilidade e capacidade para lidar com a mudança (Herr & Cramer, 1996), vão ganhando uma verdade científica, demonstrada pela prática ao nível do aconselhamento, intervenção e avaliação em orientação.

Hoje, as mudanças sociais, económicas e políticas que estão a ocorrer por todo o mundo, os problemas que afectam grandes sectores da população - desemprego, falta de qualidade de vida, transições da escola para o trabalho ou trabalhos - , tem contribuído para a consolidação das novas perspectivas sobre orientação; de facto, a orientação emparceira com a vida na medida em que pode ajudar os indivíduos a tomarem consciência das suas próprias carreiras, dos seus estilos de vida e das suas opções, e pode ajudar a atribuir maior importância à vida das pessoas (Duarte, 2006). Carreiras, vistas agora como a história de vida de cada um, porque a carreira como percurso ou trajecto caracterizado por sucessivas promoções profissionais e ascendência profissional tende a circunscrever-se a um número cada vez mais limitado de profissões.

Assim sendo, para a compreensão da vida da orientação na vida do século XXI, terá que se considerar novos e vários aspectos, nomeadamente os parâmetros que balizam a sua utilização: o conhecimento de novos modelos e técnicas, de novos utensílios de trabalho, para proporcionar uma relação de ajuda mais rica com o orientando no sentido de lhe permitir melhor enquadramento nesta sociedade em que cada um é responsável pelo que quer fazer de si. Os conceitos de sociedades líquidas (Bauman, 2007) e de sociedade de indivíduos (Elias, 1991) magnificamente introduzidos por Guichard (2009) no domínio da orientação, interpretam o pulsar da sociedade actual. O mundo de hoje aponta para que cada vez mais haja cada vez menos instituições fortes, cada vez menos modelos ideológicos que balizem formas de estar, ou estilos de vida. A função das grandes instituições sociais como, por exemplo, as religiões, as ideologias, ou até os partidos políticos, nas sociedades ocidentais industrializadas, perderam significado (Guichard, 2012), como que se foram esvaziando de conteúdo. Aliás, assiste-se, hoje, a movimentações sociais um pouco por todo o mundo, que, muito provavelmente (a história o dirá) procuram outras formas e outras maneiras de representatividade, e de significados que de algum modo possam enquadrar as aspirações e as esperanças, que mesmo retidas, não deixam a condição humana. A sociedade deixou de ser colectivista (Hofstede, 1991), isto é, sociedades em que é o colectivo que se interroga sobre o que cada um deve fazer para contribuir para o bem comum. Vive-se, de facto, em sociedade de risco, onde o único contraponto que nos resta é não perder o sentido identitário, os nossos valores fundamentais, ou seja, pegar em acontecimentos e conseguir inscrevê-los nas perspectivas pessoais (Guichard, 2012). E como consegui-lo sem reflectir sobre a deontologia e também a ética?

A deontologia (Aristóteles, trad., 1998) trata dos deveres a cumprir, numa actividade ou campo determinados. Se espreitarmos os étimos ou origens das palavras, verificamos que, ao contrário de outras palavras que se vão afastando em significado das suas origens, até pela própria transformação que esta nossa metrópole global vai impondo, a deontologia permanece fiel às suas origens: desenhada a partir dos elementos gregos déontos - δε′ουτος), "necessidade, conveniência", e - lógos (λóγoς) (Bailly, 1965) "matéria de estudo, juízo, inteligência", a palavra deontologia significa "estudo, tratado ou ciência do que é conveniente, do que é necessário, do que é oportuno". Entendendo-se, então, deontologia como o "conhecimento daquilo que deve fazer-se", tem que se considerar a preparação ao nível da competência científica, ao nível da competência técnica, e ao nível da competência deontológica. Quer isto dizer que, quer a competência científica, quer a competência técnica, são necessárias, mas não suficientes: o que enquadra a relação de ajuda é a competência deontológica. É a necessidade de tornar a orientação real, ou seja, assumi-la como conveniente, necessária e oportuna.

E a ética (Aristóteles, trad., 1998) afastou-se do seu significado original: contrariamente ao que se supõe, a palavra é de etimologia fácil mas de difícil semântica (Liddell & Scott, 1996): derivada de êtikê (ηθικη′), "conforme aos costumes, moral", que por sua vez deriva de êtos ('ηθoς), "uso, costumes, carácter", refere-se a "lugar onde se está" e a "carácter"; aplicada à conduta humana, designa a ciência normativa - a moral. Hoje, é muito axiologia (os valores), a sua interiorização, os "imperativos individuais". Trata-se, afinal, do que Guichard (2009) apelida do sentido identitário, dos valores fundamentais, de pegar nos acontecimentos e ser capaz de os integrar nas perspectivas pessoais.

Trata-se da dimensão ética colocada na vida da orientação na vida do século XXI: a orientação já não pode ser encarada só como a relação de ajuda para tomar decisões relacionadas com escolhas profissionais; trata-se, hoje, de um processo de co-construção, de proporcionar experiências de mudança, de reinscrever a identidade narrativa (portanto, pessoal e única) de maneira a encontrar novas possibilidades de construção de si, incluindo no papel de trabalho. A dimensão ética da orientação, e em particular do aconselhamento em orientação, exige a reflexão do conselheiro sobre si próprio na relação que pode conduzir ao confronto sobre duas éticas: a sua e a do cliente.

A perspectiva epistemológica que alimenta a psicologia da construção da vida, incluindo a vida de trabalho, e a procura de resposta à pergunta que nos inquieta (o trabalho tem lugar na vida de cada um para dar sentido à existência de cada um?) contribui para dar corpo a este encontro de princípios, que constituem a trama, o "tecido" que veste os ideais de solidariedade, de justiça social, de realização pessoal, de trabalho decente, de liberdade. Chamar a ética para a vida da orientação na vida do século XXI, é dar sinónimos à recusa de verdades absolutas separadas das vidas das pessoas. Trata-se de um acto interpretativo da decisão ética que engloba a singularidade individual e as singularidades do contexto em que ocorre a relação de ajuda (Betan, 1997).

Assim sendo, a orientação e o estudo sobre as carreiras são, hoje, uma condição da educação, englobando o social e o económico, o cultural e o político, a gestão e o desempenho; quer isto dizer, habilitar as pessoas para o melhor uso possível das suas condições de vida, estudando, afirme-se de novo, o que é conveniente, necessário e oportuno, e sem nunca perder de vista os imperativos individuais.

O realismo e a utilidade da investigação, seja ela top-down ou bottom-up, só fará sentido se tiver impacto: articular disponibilidades teóricas com necessidades reais, de modo a que nada do que existe deva ser esquecido, e, por isso, construir aparelhos teóricos que se podem ajustar a cada contexto, não se assumindo compromissos universais mas, antes, definindo, de entre as várias opções de investimento social, económico e político, aquelas que são prioritárias em matéria das necessidades de desenvolvimento pessoal e, portanto, da justiça social.

De facto, esta última afirmação deveria inscrever-se no ponto seguinte deste texto (os princípios orientadores que visam a recriação da orientação), mas, mesmo correndo o risco da redundância, importa salientar que a afirmação pertence também às grandes questões relacionadas com a utilidade e o realismo da investigação: referir princípios para analisar, conhecer e interpretar as realidades, considerar de que são feitos os "tecidos" (ou seja, os contextos) é o que exige a humanidade, é o que a razão aconselha, é o que a política não pode temer.

De facto, a orientação já não é o que era, já não pode ser o que era. A orientação, no sentido lato da palavra, tem que distinguir diferentes níveis de intervenção: a intervenção ao nível da informação sobre o que é a organização do trabalho, a intervenção de natureza psico-pedagógica para ajudar no desenvolvimento de competências (Guichard, 2012); e o aconselhamento de carreira / vida. Este assunto abre o caminho para a reflexão sobre os princípios orientadores que visam a recriação da orientação e do aconselhamento em orientação.

 

Recriação, ou refundação da orientação e do aconselhamento: desafios para a promoção da qualidade e do bem-estar

Em termos gerais, as teorias da psicologia da carreira, as do século XX, giram em torno de quatro grandes dimensões: a exploração, de si próprio e do meio, o planeamento, a formação da identidade, e a maturidade vocacional que engloba componentes cognitivas e afectivas (Duarte, 2009b). Trata-se da vida da orientação na vida do século XX. Trata-se de teorias vocacionais, não de teorias de aconselhamento. Este é um ponto fundamental.

A orientação e o aconselhamento, hoje, devem encontrar respostas fundamentais para a sobrevivência: para quê fazer projectos para o futuro, quando esse futuro é cada vez mais incerto? Então, qual o desafio? O ponto de partida é o conhecimento sobre a realidade actual, depois é considerar a diferença entre o planeamento (o objectivo a atingir) do século XX e o desenvolvimento de atitudes estratégicas no século XXI. Tome-se a metáfora da balança e entenda-se que a orientação e o aconselhamento devem ajudar o indivíduo a equilibrar ambos os pratos: de um lado, estão as possibilidades, reais; e, do outro, o entendimento dos recursos que cada um tem para transformar as possibilidades em projectos profissionais, ou seja, torná-los reais. Dependendo dos recursos, ajustam-se os objectivos, ou seja, não se parte do objectivo, mas quer-se chegar a ele. Portanto, a orientação encorpada de uma atitude estratégica. Dar forma a essa atitude e transformá-la num dos pilares da orientação e do aconselhamento nos dias de hoje implica, pelo menos, identificar alguns dos conteúdos que alimentam as atitudes estratégicas.

Atente-se, então, ao conceito de atitude estratégica. Encontrar e trabalhar procedimentos para que o indivíduo saiba e consiga formalizar e investir no desenvolvimento do conjunto das suas competências para aproveitar as oportunidades nos contextos em que actua. No paradigma da construção da vida, sugerem-se caminhos para tornar real a capacidade de transformar acontecimentos imprevistos em oportunidades (Savickas et al., 2009). A reactividade, a flexibilidade e a adaptabilidade, são exemplos de competências que se podem trabalhar com o indivíduo. Trata-se de dar significado a novas palavras, e de as ir edificando na busca da singularidade. A reflexibilidade naquilo que ela comporta de auto-construção, de auto-organização, de auto-socialização (Savickas, 2011).

A narratibilidade naquilo que ela comporta de histórias de vida. Na perspectiva da construção da vida ou life designing, trata-se de lidar com as meta-competências, com os temas de vida, com a singularidade, com a adaptabilidade, com a identidade, ou seja, encontrar um outra ética, o tal imperativo moral, tantas vezes ignorado nesta sociedade cada vez mais pobre, cada vez mais desengajada do sentido de justiça social, cada vez mais governada sem nenhum sentido dos deveres a cumprir. Em suma, ajudar os indivíduos a perceber como é que interpretam e representam a realidade e executam as tarefas que o contexto lhes coloca, qual o significado que lhes dão, e como interagem essas representações (Guichard, 2009) na sua história de vida. Utilize-se as palavras de Mário de Andrade (1993, p.71):

Abancado à escrivaninha em S. Paulo

Na minha casa da rua Lopes Chaves

De supetão senti um friúme por dentro

Fiquei trémulo, muito comovido

Com o livro palerma olhando para mim

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu deus!

Muito longe de mim

Na escuridão ativa da noite que caiu

Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,

Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,

Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

(Mário de Andrade, "Descobrimento")

De facto, este poeta brasileiro exemplifica magnificamente o significado de representação: a representação é uma re-presentação: torna presente (uma vez que "presente" evoca o aqui e o agora) o que pode ser também ausente ou passado. O espaço e o momento do aqui e agora que cada (re)presentação ocupa não tem extensão ou duração, ou seja, é o significado do verbo representar: trazer clara e distintamente antes do pensamento, especialmente pela descrição ou pelo acto da imaginação; representação é primeiro que tudo uma figura, seja ela actual ou mental (Dicionário Houaiss, 2001).

Também Italo Calvino (1990) tem uma frase notável no seu escrito La strata di San Giovanni: "uma explicação geral do mundo e da história deve levar em conta, antes de mais nada, a localização da nossa casa...". Desse lugar vemos o mundo, e, de facto, as coisas são como são. A experiência do mundo, bem como das suas representações, existe na proporção da experiência que cada um tem da localização da "nossa casa". Qualquer um pode acreditar num desengajamento intelectual ou numa retirada de natureza existencial, mas não é possível viver desligado de tudo. Todos nós chegamos a um ponto em que a nossa imaginação, a nossa maneira, o nosso enorme sentido de realidade, enfim, a nossa verdade, torna-se um sinal de como relacionamos tudo com a nossa experiência e a representação que temos do mundo.

Trata-se, afinal de uma coisa muito simples: cada um é o que é por ser diferente de outros indivíduos, e sendo diferente o indivíduo é o que é porque foi o que foi, onde o foi. Recorrendo a uma linguagem menos poética, trata-se, num primeiro momento da integração de três grandes perspectivas: a personalidade, naquilo que respeita às diferenças individuais dos traços, a montagem de estratégias promotoras de adaptabilidade (o desenvolvimento decorre de uma adaptação aos contextos), e os temas de vida para a procura de motivação (Duarte, 2009a). Num segundo momento trata-se de uma mudança de paradigma: da personalidade para a identidade, da maturidade para a adaptabilidade, da certeza da escolha para a descoberta dos temas de vida. Tome-se como exemplo o conceito multidimensional de adaptabilidade (Savickas, 2005; Savickas et al., 2009) e a sua operacionalização (Duarte et al., 2012; Teixeira, Bardagi, Lassance, Magalhães, & Duarte, 2012): um indivíduo preocupado com o futuro da sua vida de trabalho, que pretende assumir o controlo da sua própria vida, que tenha curiosidade sobre si e sobre o meio que o rodeia, que tenha o sentido de cooperação e que manifeste confiança no seu futuro, tem, quase seguramente, maior flexibilidade em encarar o futuro, que é incerto, e está melhor preparado para enfrentar transições nos diferentes papéis que desempenha ou desempenhará. De facto, a adaptabilidade é também representativa de um simbolismo cultural e do comportamento adstrito à localização da "nossa casa", no sentido em que coloca no futuro alguma coisa do passado.

Em síntese, a vida da orientação e do aconselhamento na vida do século XXI é feita de co-construção, porque o conselheiro é um co-construtor, um facilitador que suporta a re-escrita da narrativa do cliente, de forma a permitir uma compreensão de como esse cliente interpreta e representa a realidade (Duarte, 2010). Enfim, colocar os pratos da balança num equilíbrio dinâmico entre as aspirações e as esperanças, o juízo crítico e as realidades, entre os objectivos pessoais e as condições do mercado de trabalho. É um espaço e um tempo dialógico, onde a reflexão partilhada, o falar olhos-nos-olhos, a importância dada à intersubjectividade e ao contexto de co-construção, podem tornar real este encontro de princípios de solidariedade, de justiça social, de liberdade, tal como já referido.

Enfrentar as exigências sociais constitui um outro tema nuclear na refundação da orientação e do aconselhamento. As competências de carreira ou capital de carreira referidas por DeFillipi & Arthur (1996), diferenciadas em três grandes categorias de competências (o saber o quê, o saber a quem e o saber porquê) continuam actuais na sua essência, mas incompletas nos seus conteúdos.

Retome-se o relatório para a UNESCO elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (International Commission on Education for the twenty first century, 1996). De acordo com este relatório, a educação deve assentar em quatro grandes pilares: aprender a conhecer, para saber, para ter o conhecimento não específico de qualquer função, mas que prepara para o futuro (ex. matemática, psicometria); aprender a fazer, o saber-fazer para ter conhecimentos mais específicos, com o objectivo de uma execução imediata (ex. ensinar a soldar ou a ler cartas de candidatura), com o objectivo de melhorar o desempenho e a adaptação à função para ser polivalente; aprender a viver com os outros, isto é, aprender a ser, o saber-ser: a transmissão de conhecimentos que facilite a tomada de consciência para a modificação de comportamentos e atitudes (ex. humildade científica quando se sabe cada vez menos) com o objectivo de evolução. Permito-me acrescentar um outro pilar: apreender, deter o investimento produzido, para se poder tirar partido e ter um papel activo nos contextos em que se actua. Apreender para encontrar um sentido em si, para ter um sentido de si, a única maneira que permite o saber fazer, depois de aprender a conhecer; o saber ser, depois de aprender a viver com os outros. Aprender a ser depois de promover o conhecimento de si e apreender que a sua história de vida se vai inscrevendo na elaboração da sua própria narrativa embutida de complexidades cognitivas, de redes sociais, de aprendizagens específicas, enfim, o que o torna único e capaz de lidar e enfrentar o caos. Ajudar o outro a não perder o sentido de si permite criar a força necessária para, num mundo em que a máxima é cada vez mais "cada um por si", não se diluir ou liquefazer-se sem ter deixado o seu próprio legado: sou capaz de lidar com as transições, sou capaz de enfrentar projectos de trabalho, sou capaz, porque apreendi a força do meu "Eu", sou capaz de integrar os movimentos de carreira na minha história de vida; e, mais, sou capaz de lhe atribuir um significado.

E então, como colocar todos estes aspectos no século XXI? Considerando que a orientação e o aconselhamento são tarefas socialmente produzidas: é o conjunto de experiências que se vão fazendo, que são ensaios que permitem desenvolver os saberes e os diversos modos de se relacionar consigo próprio, fundamentais para os indivíduos se orientarem no resto da sua existência, grande parte deles como trabalhadores precários, grande parte deles como colaboradores em projectos ou missões depois dos quais, uma vez terminados, devem partir para outro projecto e pôr de novo à prova as suas competências. Da cadeia de montagem do princípio do século XX, para o desenvolvimento da carreira até ao final do século passado, para chegar, hoje, ao olho de boi (Duarte, 2009b), onde predomina o trabalho precário.

 

A orientação e o princípio universal dos direitos da pessoa

A orientação e o aconselhamento devem também incluir uma reflexão fundamentada no princípio universal dos direitos da pessoa: toda a ciência tem que ser empenhada, porque nem tudo se resolve de uma maneira economicista, mas sim, gerindo, teórica, social e politicamente e na base das aprendizagens, os meios. O legado do séc. XX no que respeita às teorias sobre orientação da carreira e o nível de teorização que grande parte delas alcançaram (como, por exemplo, a adequação entre as aptidões e a escolha de uma profissão; ou, a perspectiva desenvolvimentista life span - life space (Super, 1980) foi um pequeno grande passo para se entender a individualidade enraizada num sistema de generalidade conceptual, permitindo que hoje se trabalhe a orientação e o aconselhamento no instrumental do construtivismo (Savickas, 2012) e do construcionismo social (Gergen, 2001) procurando deste modo seguir o trilho para o conhecimento mais profundo do indivíduo.

Olhando para o passado, ao mesmo tempo que se constata o presente, talvez seja possível entender-se melhor a contemporaneidade, e talvez se possa reconhecer grandes marcas de teorização. No limite, pode até questionar-se se os estudos são científicos, uma vez que produtores de leis gerais; ou se se pode usar o termo teorização somente como um termo meta-crítico, retirando qualquer pertença à teoria psicológica. Pode até assumir-se que os estudos de carreira são só um quadro conceptual ou uma extensão de outras psicologias. Pode até considerar-se que os estudos sustentados no construtivismo e no construcionismo social não são mais do que uma construção do nosso imaginário orientado menos para a organização dos dados e mais para as histórias de vida e temas de vida, procurando as interacções entre a individualidade e os contextos (a situação política, económica, social etc.). Contudo, também se pode aceitar e ter conhecimento de que todos estes caminhos, todos relacionados uns com os outros, podem ser inclusivos. É a proposta para o século XXI: o conhecimento dos meios sociais e culturais para se entender como é que cada um constrói a sua experiência e a integra na vida de trabalho. Trata-se da construção da realidade: repensar a orientação e a sua importância para a promoção do indivíduo e da sociedade, conhecendo os meios sociais e culturais, ajudando, deste modo, na edificação de sociedades mais abertas onde as aspirações de cada um se possam tornar e virar realidades. De um lado, a promoção da pessoa, e do outro, incomodar os decisores políticos para que coloquem as políticas de orientação ao serviço das pessoas.

É isso que se propõe no paradigma da construção da vida (Duarte, 2009a; Savickas et al., 2009), onde o aconselhamento assenta num processo colaborativo entre o conselheiro e o cliente na promoção de mudanças, é o espaço dialógico que permite a reflexão mútua e que deve conduzir à transformação do cliente, ajudando a re-escrever a narrativa identitária de maneira a abrir novas possibilidades de reconstrução do self na sua vida de trabalho, ou seja, um processo de auto-construção, sustentado no conhecimento daquilo que Guichard (2009) apelida de formas identitárias subjectivas, ou dito de outra forma, o tal imperativo moral que nos permite vivenciar éticas diferentes, mas que conduzem à construção de sociedades mais justas que vivem do desenvolvimento pessoal. Assim sendo, a orientação do século XXI terá que ser realista: ter os pés bem assentes na terra da realidade; terá que ser responsável e contida e, por isso, equilibrada e rigorosa; terá que ser empenhada, e por isso preparada para enfrentar situações difíceis; e construída de modo a aproveitar todas as sinergias provindas de vários sectores, sendo, por isso, sistémica.

 

Conclusão

Numa sociedade cada vez mais economicista e desenfreada à procura não se sabe bem de quê, a solidariedade, a tolerância, e a grande aposta que é a igualdade de direitos, são da responsabilidade de todos os que lidam com a procura do bem-estar e da qualidade, e serem promotores de denúncias que atentem contra a dignidade humana, para ajudar na procura de outros caminhos, aqueles que levam a educar considerando as potencialidades de cada indivíduo, a pôr o dedo nas questões certas, e não só falar delas, a lutar pelas competências já referidas que englobam a defesa dos grandes valores da humanidade: a liberdade e oportunidades a pessoas diferentes.

Quando se escrever, ou reescrever, a história da psicologia nos primeiros 50 anos do século passado, verificar-se-á sobre a predominância das análises de natureza quantitativa: a tarefa de construir teorias psicológicas sustentadas em metodologias que garantissem uma escorreita e linear organização dos dados, conduzindo assim à generalização descritiva, sem considerar outro qualquer método mais explicativo, era a condição necessária para tornar a teoria universal. Hoje, procura-se uma ciência de intervenção que seja capaz de lidar com a construção da vida e com um conjunto de decisões sobre a utilização da vida de trabalho; claro que é também uma questão empírica na permanente busca da evidência, evidência essa que, na perspectiva da construção da vida, ou no paradigma Life Designing, se coloca na busca permanente da singularidade.

A individualidade de cada cientista integra uma história de conhecimento organizado, de procedimentos organizados para produzir conhecimento, e de uma linguagem para os comunicar. A interpretação dos resultados ou de afirmações pode ser diferente das produzidas por outros cientistas, mas, para que a interpretação seja aceite, tem que evidenciar que partilha a sua verdade única e diferente com a solidariedade do conhecimento geral baseado no consenso sobre a escolha de alternativas. Para a interpretação ser aceite como correcta, ela tem que ser consistente com o consenso. Em síntese, ser membro de uma comunidade científica é actuar de acordo com as fases de consenso dentro de um espectro alargado de diversidade, na medida em que toda a argumentação deve não só justificar qualquer posição teórica adoptada, mas também revelar e interpretar a evidência que é antecipada por um modelo. Encontrados os dados, eles encontram o seu lugar no argumento imbuído de regularidade, tornando-se, por consequência, a evidência de alguma coisa.

A grande diferença entre a vida da orientação na vida do século XX, e a vida da orientação na vida do século XXI, está na construção, melhor, na co-construção, e na maneira de analisar e interpretar. A evidência é sempre evidência de alguma coisa, e só existe no contexto de uma teoria que os pode predizer. A teoria explica os dados e transforma-os do impredizível para as consequências predíziveis dos princípios subjacentes. Os dados são aquilo a que Einstein (1934) refere como a compreensão simpática da experiência: quando o insight surge, os princípios teóricos e os dados tornados evidência são revelados simultaneamente. É o conhecimento colocado ao serviço das pessoas através das sinergias que produzem inovação - a teoria e a prática.

A vida da orientação no século XXI já não é o que era. O desenvolvimento da carreira, enquanto caminho linear e previsível, dá lugar à individualização, ou seja, dá lugar à história de cada um. A vida da orientação na vida do século XXI exige uma certa antecipação do futuro, mas é da responsabilidade de quem lida com o outro colocar nesse futuro a esperança como fazendo parte do caminho. Criar condições de intervenção no domínio da orientação e do aconselhamento é um imperativo moral, é uma obrigação. Intervenção no domínio da informação, ajudando o indivíduo a encontrar respostas para as diferentes organizações de trabalho; intervenções ao nível da orientação, ajudando as pessoas a desenvolverem maneiras específicas de se relacionarem com elas próprias e com as actividades de trabalho. Intervenções ao nível do aconselhamento, ajudando o indivíduo, na procura do sentido Junguiano (Jung, 1939) de "individuação": a procura do caminho para ser completo, a procura do caminho para a integração.

Afinal a vida da orientação na vida do século XXI tem que ser responsável, contida e empenhada, e sistémica. A orientação portadora de uma série de marcas, por exemplo, culturais, psicológicas, sociais; a orientação construída sob a égide do autor, do seu discurso, que está sob a sua alçada, nele imprimindo as suas marcas, nele deixando os sinais do seu futuro. Autor inquieto, porque preocupado com o bem-comum; autor empenhado porque portador do sentido de humanismo; autor decidido porque capaz de intervir. A busca incessante pela singularidade, pela diferença, só tem sentido se, depois de constatada, conseguir ser aplicada. A orientação do século XXI procura essa diferença. A democracia deve aplicá-la.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Maria Eduarda Duarte
Universidade de Lisboa
Faculdade de Psicologia
Alameda da Universidade, P-1649-013
Lisboa, Portugal
E-mail: mecduarte@fp.ul.pt

Recebido 24/07/2013
Aceite Final 30/10/2013

 

 

Sobre a autora
Maria Eduarda Duarte é Doutorada em Psicologia, Área de Orientação Escolar e Profissional pela Universidade de Lisboa, é Professora Catedrática (Professora Titular) da mesma Universidade, coordenadora do Programa de Mestrado e de Doutoramento em Psicologia, Área de Psicologia dos Recursos Humanos.
1 Conferência de abertura proferida no XI Simpósio Brasileiro de Orientação Vocacional & Ocupacional, realizado de 3 a 5 de Julho de 2013 na Universidade de S. Paulo (USP), Brasil.
2 Em latim vulgar, TRIPALIUM, étimo de trabalho, designava um aparelho constituído por três varas cruzadas, a que os escravos eram atados a fim de serem submetidos a tortura (Corominas, 1954).