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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.5 n.8 Barbacena jun. 2007

 

ARTIGOS

 

CAPS: laços sociais1

 

CAPS: Social Bows

 

 

Ana Marta Lobosque*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Busca-se mostrar que a perturbação na tessitura dos laços sociais na psicose não se reduz à figura do psicótico, mas concerne a certo impasse da ordem da linguagem , em seu poder de estabelecer e fixar sentidos. O restabelecimento desses laços requer outra relação entre loucura e cultura, mais fértil e generosa para ambas. O CAPS, como espaço aberto e acolhedor para as situações de crise, tem decisiva função a exercer, sempre seguindo as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e em constante interlocução com os movimentos sociais.

Palavras-chave: Psicose, Delírio, Centros de Atenção Psicossocial, Reforma Psiquiátrica, Movimento social.


ABSTRACT

In this article, the author shows that the disturbance in the social bows's course construction is not restricted to the psychotic one, but it's related to the language field's impasse, in its capacity of creating sense. The re-establishment of these bows requires another relation between madness and culture, more fertile and generous for both. The CAPS, as an open and welcoming space for crisis situations, has an important role to play, according to the Psychiatric Reformation's rules and in a constant interlocution with the social movements.

Keywords: Psychosis, Delirium, Psychosocial Attention Centers, Psychiatric Reformation, Social movement.


 

 

Cultura e loucura: reatando laços

A promoção de laços sociais é, certamente, função precípua dos dispositivos, das iniciativas e das ações que esse Congresso Brasileiro de CAPS aborda. Para bem exercê-la, cabe, inicialmente, examinar o que entendemos por tais laços.

Não se referem, a nosso ver, àquela sociabilidade superficial e frívola que facilmente se estabelece entre as pessoas para mascarar a mútua e geral indiferença. Tampouco concernem à obediência das normas ou ao seguimento de padrões. Nem frívolos laçarotes, nem duras amarras, os laços sociais não se destinam aos objetivos da adaptação e da normatividade: cumpre-lhes criar o tecido, ao mesmo tempo rigoroso e leve, que ofereça à cultura um corpo propício ao movimento do desejo.

De que forma, e até que ponto, o sofrimento mental grave - ou a psicose, se preferem - afetam os laços sociais assim concebidos? De forma radical, sem dúvida. Nas chamadas crises psíquicas, encontram-se perturbadas as possibilidades de pensar, de falar e de agir de forma compreensível, ou seja, as formas com que o sujeito pode se inserir numa cadeia de significações partilhadas socialmente. Um carro que passa, uma folha que cai deixam de ser ocorrências banais para se tornarem portadoras de alusões enigmáticas; estranhas revelações se manifestam; vozes se fazem escutar. De toda parte, enfim, surgem mensagens desconcertantes dirigidas ao sujeito, tomando-o, ao mesmo tempo, joguete e rei. O júbilo e o pânico muitas vezes se misturam: embora possa ser belo, o mundo que tais sinais anunciam é de penosa habitação. A invasão, a perseguição, as interferências se desencadeiam e afetam a apreensão do próprio corpo: perturba-se a regulação da dor e do prazer, da motricidade e do sono, do sexo e do apetite. Da proliferação dos neologismos à repetição das estereotipias, é também o corpo da língua que se mostra rasgado - perturbando seriamente, portanto, a tessitura dos laços.

Tal transtorno, surgido no seio da cultura, subverte a ordem que a constitui? Não se trata de ameaça à segurança pública: o problema não consiste no perigo suposto que a loucura traria à paz, à convivência, à legalidade. O que parece transtornar-se é esse espaço comum, no qual julgamos todos compreender-nos, comunicar-nos, falar a mesma língua - enlaçarmo-nos, enfim. O que se expõe, desta forma, é um certo impasse da ordem da linguagem - e, por conseguinte, da lógica mesma do pensamento - que aponta um limite em seu poder de estabelecer e fixar sentidos.

Quando esbarramos nesse limite, podemos encontrar maneiras diversas de lidar com ele. Contudo, nossa civilização reage com a estupidez do avestruz, que enfia a cabeça na areia diante de todo risco: ao deixar de ver, acredita que a cegueira o torna invisível... Empurrar forçadamente para fora de nós, para fora da cultura, aquilo que nasce das dificuldades inerentes ao próprio jogo - eis a estupidez que nos tornou prisioneiros desse dentro sem saída que os muros do hospital psiquiátrico vieram cercar.

Assim, não só por uma vida mais digna para os chamados loucos, mas pela vitalidade e pela pujança da própria cultura, urge estabelecer com a loucura outras relações: reatar - com eles, mas sempre entre todos nós - esses laços tão duramente rompidos.

 

O enlace dos CAPS

No seio desse projeto mais amplo, delineia-se um passo necessário: a oferta de cuidados aos portadores de sofrimento mental. Entram aqui, entre outros, os dispositivos certamente nucleares e essenciais que são os Centros de Atenção Psicossocial - os CAPS.

Eis como deve, a nosso ver, arquitetar-se um CAPS ou qualquer outro serviço substitutivo de hospital psiquiátrico: respeitando a peculiar topologia que nos revela a psicose quanto a uma certa forma de relação entre o dentro e o fora.

Afinal, essa oposição não é um dado natural, e sim produto de uma construção: na experiência psicótica, justamente, a suposta interioridade da vida psíquica não se desfaz? Ter os pensamentos lidos e divulgados - ou, pelo contrário, impostos - são relatos comuns de pessoas em crise. Lembramos, a esse propósito, a famosa frase de uma paciente de Clérambault: "Sofro de um pensamento que me é exterior".

Ao enfrentar tal condição, o CAPS deve se estruturar como espaço voltado para fora de si por manter, com a cultura, ligação mais estreita. Um espaço que saiba reconstruir certa privacidade psíquica, perdida na psicose, sem a qual é humanamente impossível viver, mas que só pode construir à medida que se abre para outros horizontes, inclusive os desconhecidos! Um espaço que convide o psicótico a povoar conosco o mundo humano, o que se faz não pela tradução de seus delírios nos significados da língua, e sim pela permissão de se inscrever, nessa língua, outros significados. Um espaço que sustente certas exigências minimamente necessárias ao convívio humano, mas que leve, por sua vez, a cultura a se indagar quanto à real legitimidade de cada uma de suas exigências.

O selo dessa arquitetura dos CAPS já se anuncia em seu umbral, onde se destacam, em primeiro plano, as portas abertas. O que se quer dizer com isto? Quer dizer exatamente portas abertas, sem trancas nem cadeados. Portas que dão acesso a um espaço cujo contorno não se faz por muros ou grades. A partir daí, é preciso sustentar as várias conseqüências dessa livre e essencial abertura.

Comecemos pelo acolhimento, esse laço primeiro. A porta aberta, a meu ver, significa, antes de tudo, que o CAPS não recua diante da gravidade de um quadro ou da intensidade de um transtorno; pelo contrário, sua razão de ser é encontrar cabimento para os momentos mais críticos da experiência da loucura. Trata-se de acolher, sem reserva ou temor, o sofrimento mental, quando insuportável, sem buscar pretextos para a recusa nem impor condições à hospitalidade.

Tal acolhimento se encadeia, por sua vez, com a oferta de um vínculo e a responsabilização por um cuidado. Abrir a porta não é apenas liberar a entrada e autorizar a permanência de cada um daqueles que chegam; trata-se de criar um lugar pelo qual se responde. Há que se delinear a direção de um tratamento, nunca a priori, e sim a partir daquilo que cada qual traz consigo. Afinal, descobrimos em cada problema a sua mais fértil possibilidade de solução, quando encontramos a maneira mais justa de formulá-lo.

Esse laço que se faz um a um exige, para se firmar, relações flexíveis e solidárias, tecidas nos CAPS. Se o homem cria objetos na mesma fábrica onde a linguagem se produz, se o homem, como quer Lacan, introduziu-se na linguagem ao criar artefatos, como um pote, o exercício da palavra, sobre as várias formas possíveis, exige mãos à obra: dos produtos das oficinas aos debates das assembléias, do desenho do bordado ao ritmo do batuque, do passeio projetado à festa realizada.

A experiência de tantos de nós nos CAPS mostra bem até que ponto o que parecia impossível deixa de sê-lo, para a nossa própria surpresa. Um resultado sequer suposto, uma saída até então impensada pode surgir quando já não se espera! Entre exemplos e lembranças, poderíamos seguir até o infinito nessa direção. Não podemos, porém, para oferecer respostas, deixar de abordar o que nos faz questão. Afinal, por um lado, não lidamos apenas com insólitas provocações e alegres desafios; estamos também às voltas com a repetição, a aridez, a inércia. Por outro lado, não podemos nem queremos fazer dos CAPS redutos de maravilhas acima ou à parte da insensatez do mundo; afinal, a incomunicabilidade e o isolamento jamais respeitaram laços!

Retornemos, pois, uma vez mais, às portas abertas, que devem ligar-nos às ruas e às estradas. Não queremos circular como visitantes de outras terras ou planetas, e sim como legítimos habitantes de um espaço geográfico, social e político que é também nosso, conquistando a cidadania dos verdadeiros laços sociais.

 

Laços sociais e políticas públicas

Essa dimensão que acabamos de atribuir às portas abertas merece ser o objeto da terceira e última parte desta exposição. Comecemos por lembrar que a implantação dos CAPS, assim como dos demais equipamentos, ações e iniciativas necessárias para uma reforma psiquiátrica efetiva, diz respeito essencialmente à elaboração e à implementação de políticas públicas, em todos os níveis e esferas de governo.

Assim, por mais sedutor que se afigure o trabalho de um CAPS, torna-se inócuo quando representa experiência isolada ou à parte, desconectada de estratégia de luta e de uma rede em construção. Dezenas de CAPS para uma megalópole serão inúteis, assim como um único CAPS para uma pequena cidadezinha se não fazem parte de um projeto de saúde mental voltado para a população como um todo, que visa assegurar a cada cidadão o direito essencial ao cuidado em liberdade.

Aqui está em jogo, naturalmente, a expressiva palavra de ordem Reforma Psiquiátrica - é no município que ela acontece. Afinal, projetos de saúde mental não só devem envolver e comprometer as autoridades locais, como também levar em conta o que é peculiar a cada cidade, considerando seu tamanho, sua história, suas correlações de força. Quantos CAPS abrir, quais outros equipamentos criar, qual fluxo estabelecer entre eles serão sempre opções locais, desde que articuladas num projeto, seguindo princípios acordados em instâncias de real expressividade como, para dar um exemplo recente e vivo, a III Conferência Nacional de Saúde Mental.

Tal exemplo nos remete à importância de uma política nacional de reforma psiquiátrica executada com firmeza. Inclui-se, aí, o cumprimento da decisão unânime dessa conferência, a saber, a extinção irreversível dos hospitais psiquiátricos, sucedâneos e similares, em todo o território nacional, com todas as medidas indispensáveis para tal: a fiscalização efetiva, sem margem para impunidades; o planejamento da volta para casa de cada um dos 70.000 brasileiros portadores de sofrimento mental ainda encarcerados; a apuração imediata e decidida das numerosas denúncias de violação de direitos humanos nessas instituições. Ao mesmo tempo, deve ocorrer o redirecionamento efetivo dos investimentos para a rede substitutiva, com incentivo aos gestores estaduais e locais para a sua implementação. E, ainda, a indispensável interlocução com a Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica e outras instâncias e movimentos afins, fazendo do controle social recurso não de retórica, mas de mudança, rompendo com um modo de fazer política, até hoje, marcado pelo autoritarismo e pela centralização.

Além disso, e, sobretudo, a política nos remete a outra dimensão do outro espaço público e revela toda a riqueza de suas possibilidades na história da saúde mental: os movimentos sociais, com o exemplo notável do movimento da luta antimanicomial. As aspirações mais consistentes e ousadas da nossa reforma psiquiátrica não nasceram dos doutos ou dos governantes; brotaram da organização paciente e cuidadosa de usuários, familiares e técnicos nos núcleos da luta antimanicomial. Com posicionamento de independência perante as instituições e seus gestores, sempre dispostos a dialogar e a não recuar diante do confronto, esses núcleos e a rede que organizam asseguram para a reforma, em âmbito macropolítico, um valioso aporte.

Mais que isso, porém, a luta antimanicomial foi nossa escola real no convívio com a loucura. Em tantos ônibus, atravessamos o Brasil de norte a sul; em naves delirantes, reviramos o mundo de ponta cabeça. Famílias fizeram de suas casas modestas embarcações; equipes inventaram modas nos ateliês mais simples; loucos nos fizeram sonhar com a estranha matéria de outras galáxias. Foi dessa forma, simplesmente, que a loucura passou a fazer parte de nossas vidas: sal da terra que tempera o prato, alento de vida que propicia a arte.

Para concluir, voltemos aos CAPS. Nenhum discurso teórico, por bem montado que seja, pode fundar as raízes dos que fazem os CAPS ou explicar os artefatos que produzem. Interlocutores de políticas sociais, atores de um debate comunitário, anfitriões generosos da loucura, hóspedes apaixonados de um pensamento em ato... o que serão, afinal, esses dispositivos inventados por uma causa, quando se atrevem a segui-la por onde for? Serão talvez, entre outras invenções, os testemunhos de outro mundo possível ou do impossível do mundo que segue sempre, pelas portas abertas, ao encontro daquilo que advém.

 

 

Endereço para correspondência
Tel.: (31) 3212.1751
E-mail: anamarta.lo@oi.com.br

Artigo recebido em: 18/1/2007
Aprovado para publicação em:11/2/2007

 

 

*Assessora da Escola de Saúde Pública em Minas Gerais.
1Texto apresentado em mesa-eixo do I Congresso Brasileiro de CAPS, em junho de 2004, em São Paulo- SP.

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