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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.19 no.2 Porto Alegre dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Arranjos familiares e possibilidades terapêuticas em um serviço de saúde mental infantil

 

Family dynamics and therapeutic possibilities in a mental health service for children

 

 

Vania Bustamante1,I; Isabela Santos2

IInstituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho visa refletir sobre a inclusão da família na assistência à saúde mental infantil. O estudo foi realizado em um serviço que atende crianças acompanhadas de suas famílias. Teve como objetivo caracterizar os arranjos das famílias que frequentam o espaço e refletir sobre as principais demandas trazidas. As famílias participantes foram agrupadas em três arranjos – nuclear, extensa e monoparental - e os motivos de procura organizados em cinco tópicos. Identifica-se algumas situações comuns entre as famílias pesquisadas: conflitos entre genitores em relação à criação dos filhos; preocupação em torno das consequências da separação dos pais; desafios da monoparentalidade e para avós que assumem a responsabilidade de cuidar dos netos. Finalmente, destaca-se a necessidade de que os serviços estejam preparados para conhecer e acolher diversas configurações familiares visando fortalecer funções paternas e maternas para além da existência dos pais biológicos.

Palavras-chave: Saúde mental, Crianças, Famílias.


ABSTRACT

This paper reflects on the inclusion of family care into mental health care for children. This study took place in a service for children accompanied by their families. The family arrangements of the participating families who frequent the centre were observed. They were grouped into three types - nuclear, extended and single parent - and the reasons for seeking the service were organized into five topics. We identified some common situations among the surveyed families: conflicts among parents regarding child rearing; concern about the consequences of parental separation; challenges faced by single parents and grandparents who take on the responsibility of caring for grandchildren. Finally, we highlight the need for services to be better prepared to meet and welcome families of various configurations in order to strengthen paternal and maternal functions other than those of biological parents.

Keywords: Mental health, Children, Families.


 

 

Introdução

O presente estudo visa contribuir com a incipiente discussão sobre o trabalho com famílias na assistência à saúde mental infantil com base na reflexão sobre os arranjos e as demandas familiares de frequentadores de um serviço de saúde mental infantil em Salvador. Para desenvolver a proposta, inicialmente apresentamos o contexto brasileiro atual de assistência à saúde mental infantil, enfatizando os desafios para o trabalho com as famílias.

A demanda por assistência em saúde mental para o público infantil é crescente. Isto pode ser visto em estudos epidemiológicos que mostram altas taxas de prevalência de problemas de saúde mental em crianças e adolescentes e apontam insuficiência na oferta de atenção (Assis, Avanci, Pires & Oliveira, 2010; Paula, Miranda & Bordin, 2010). Por outro lado, a tardia inclusão da saúde mental infantil e juvenil na agenda das políticas brasileiras e internacionais está associada ao fato de que os saberes sobre diagnósticos e possibilidades terapêuticas são construções recentes e ainda incipientes (Reis, Delfini, Dombi-Barbosa & Bertolino Neto, 2010; Couto & Delgado, 2010),

A construção da Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil no Brasil, formulada em 2002, é um esforço para vencer a lacuna assistencial histórica nesse campo, quando o cuidado de crianças com deficiência era delegado às instituições filantrópicas ou associações de pais e familiares. Além desse aspecto, a política também busca superar a prática institucionalizante de lógica higienista. A referida política está pautada em princípios baseados em uma ética e em uma lógica de cuidado onde: 1) cada criança e adolescente a cuidar é um sujeito de direitos responsável pela sua demanda; 2) o acolhimento é universal para quem chega ao serviço de saúde; 3) as ações devem ir além do espaço físico do serviço; 4) a intersetorialidade orienta o trabalho; 5) o território é considerado como lugar psicossocial do sujeito (Amstaldenn, Hoffmann & Monteiro, 2010).

No Brasil, o Centro de Atenção Psicossocial – Infância e Adolescência (CAPSIA) é o primeiro dispositivo criado especificamente para organizar a atenção a crianças e adolescentes com base territorial. É ordenador da rede e porta de entrada ao sistema que deve contar com leitos psiquiátricos em hospitais gerais pediátricos e serviços de urgência e emergência (Brasil, 2005). Idealmente todos os serviços de saúde do território devem compor a rede. Nesse contexto, a articulação entre saúde mental e atenção básica é primordial. A implantação da política tem importantes carências, entre elas o lugar em que é colocada a família (Lauridsen-Ribeiro & Tanaka, 2010).

Mascarenhas (2010) enuncia que é preciso conceber o sujeito como estruturado na relação com o Outro e a família é o espaço onde esse processo se realiza, permitindo a entrada da criança na cultura humana. Romagnoli (2004) afirma que a estrutura familiar desejante, que dá suporte à linguagem, é fundamental para a humanização. É no mundo fantasmático da família que o sujeito é introduzido na cultura, permitindo acesso ao simbólico. Visto isso, nesse território são construídas realidades, formas de enxergar e se colocar no mundo, permitindo a emergência de crenças e sintomas. É preciso então considerar que a criança necessita de apoio emocional, social e psicológico, e que a família é a responsável direta por esse suporte (Monteiro et. al., 2012). Ao mesmo tempo se faz necessária a oferta de estratégias de cuidado para os familiares (Favero-Nunes & Santos, 2010), pois, como afirma Cavalcante (2001), não se deve subestimar a complexidade da perturbação que afeta as famílias, a potência e a amplitude da dor.

Algumas publicações sobre o lugar das famílias na assistência à saúde mental infantil apontam importantes dificuldades no acesso aos serviços e na assistência recebida. Um estudo realizado por Favero-Nunes e Santos (2010), com mães de crianças com transtornos autísticos, mostrou o percurso traçado por essas mães na busca do diagnóstico e tratamento. Os autores apontam falta de apoio social e dificuldades de acesso a recursos especializados, assim como despreparo dos profissionais em fazer diagnósticos, principalmente em crianças muito novas. Monteiro et. al. (2012) realizaram um estudo com famílias atendidas em um CAPSIA em Fortaleza. O estudo apontou que os familiares, na maioria das vezes, percebem que o comportamento da criança ou adolescente mudou, sendo considerado anormal e estranho e a partir desse estranhamento é que se inicia a busca por tratamento. Entretanto, a acessibilidade ao serviço especializado ainda é muito difícil devido à sobrecarga desses serviços e a falta de preparo dos profissionais.

Com base em uma ampla experiência de pesquisa e de supervisão clínico institucional no município de Campinas, Onocko-Campos (2012) aponta a existência de importantes falhas na atual política pública de saúde mental para crianças, pois as intervenções não observam o contexto, a cultura e as redes do sujeito e o efeito disso muitas vezes é a fragilização dos sujeitos na família. Ao refletir sobre as funções das políticas públicas em saúde mental para crianças e adolescentes, a autora lembra que uma das maiores provocações do psicanalista Donald Winnicott teria sido afirmar que “não existe essa coisa chamada bebê” e, com isso, aponta a centralidade da criança e sua família. A autora argumenta que “não há como atendermos crianças gravemente perturbadas, ou em risco sério de sê-lo, sem acolhermos e trabalharmos também clinicamente com as suas mães, e com seu ambiente” (p. 143). Portanto, é preciso que serviços de saúde mental, tais como o CAPSIA, percebam que “o trabalho com a dupla mãe-filho faz parte das suas tarefas primárias e não é um acréscimo inesperado!” (p. 143). A autora lança mão dos conceitos psicanalíticos “função materna” e “função paterna” afirmando que o Estado, através de diferentes serviços e setores, deveria comparecer como referente terceiro nas situações em que a função paterna não é exercida, por exemplo, onde não há um ambiente que favoreça a relação mãe-bebê.

Borges (2005) aponta que existe consenso na Psicanálise, quanto ao fato das funções materna e paterna terem um papel central no desenvolvimento e estruturação do psiquismo da criança e na formação da personalidade do adulto. Para Winnicott, a figura materna constitui o ambiente primitivo do bebê. A relação inicial com a mãe, na fase de dependência absoluta, é considerada a mais importante na estruturação da subjetividade. Esta função é subdividida em três: 1) A apresentação do objeto. 2) Holding, que significa sustentação, física ou psíquica; 3) Handling, que refere à manipulação do bebê enquanto é cuidado (Nassio, 1995). Quanto à função paterna, Winnicott (2005) discute que este servirá de suporte emocional nos primeiros anos de vida, o que favorece um maior envolvimento com a criança. Caberia à função paterna estar próxima à mãe desde a gestação, para que ela possa se dedicar ao cuidado do filho. Em um segundo momento, espera-se a saída do estado narcisista da criança, com a entrada da função paterna com a qual a criança reconhecerá a figura de um terceiro, possibilitando assim a sua inserção nas relações sociais. Borges (2005) explicita que tais funções não se limitam a maternidade e paternidade biológica, mas dizem respeito a todos aqueles que exercem funções de cuidado e educação de crianças, o que requer atributos e aptidões que vão se modificando de acordo com o desenvolvimento das mesmas.

A pesar de existir consenso sobre a importância de incluir a família na assistência à saúde mental infantil, encontramos poucos trabalhos que descrevem intervenções dirigidas a este grupo. Uma importante experiência de pesquisa e extensão, envolvendo assistência a crianças e suas famílias, vem sendo desenvolvida na Universidade Federal de Uberlândia. Trata-se de atendimentos ambulatoriais a crianças e seus pais. A psicoterapia é conduzida por uma dupla de terapeutas. Paradivini & Chaves (2012) apontam o grande potencial desse trabalho para fortalecer as relações entre pais e filhos. Paradivini, Próchno, Perfeito & Chaves (2009) sinalizam que se trata de uma intervenção psicanalítica que pode ser nomeada de intervenção-mediação, onde: “A intenção está em promover o enlace simbólico, isto é, intervir a partir de tudo o que se passa no campo de afetação para que os processos de significação possam advir” (p. 103). Outra experiência que deve ser citada aqui é o trabalho de Almeida et. al. (2007) que realizam grupos de pais e grupos de crianças de curta duração e que têm finalidade de triagem e diagnóstico. Os autores destacam o potencial do trabalho como experiência de formação de profissionais e também para fortalecer os vínculos familiares construindo metáforas em torno do sofrimento.

Encontramos estudos de caracterização de usuários de serviços de saúde mental infanto juvenil - tanto ambulatórios e clínicas escola quanto CAPSIA - que trazem alguns dados sobre as famílias. De um total de doze estudos encontrados em publicações brasileiras entre os anos de 1989 e 2011, apenas três trazem informações e reflexões sobre as famílias. Melo e Perfeito (2006) realizaram um estudo em uma clínica escola com base em dados dos atendimentos infantis. Descrevem que 58,3% das crianças residem com seus pais, 20,9% moram com a mãe, 9,4% com familiares, e 5,8% residem com a mãe ou o pai em um novo casamento. Com base em dados qualitativos dos atendimentos afirmam que em vários casos existe fragilização dos laços familiares e os pais têm dificuldade para suprir as necessidades emocionais dos filhos. Nesse sentido, considerando que 58,9% das crianças residem com ambos os pais, os autores levantam a hipótese de que “... o problema não é a estrutura familiar em que a criança vive, ou seja, o modelo de família, mas a falta de condições psicológicas adequadas nos adultos que têm como função o cuidado da criança” (p. 248)

Reis, Delfini, Dombi-Barbosa e Oliveira (2010) realizaram uma caracterização do público que frequenta um CAPSIA através da análise de prontuários. Levantaram informações sobre o principal responsável pela renda familiar e também sobre o principal cuidador, que em 56,9% dos casos é a mãe. Entretanto o estudo não reflete sobre os achados. Algo semelhante se observa no estudo de Cunha e Beneti (2009), que realizaram uma pesquisa em uma clínica escola em Porto Alegre. Os autores afirmam ter encontrado resultados semelhantes aos de Melo e Perfeito no que diz respeito aos arranjos familiares.

Nos estudos citados não identificamos reflexões sobre a diversidade existente nas famílias e uma possível relação como o tipo de demandas apresentadas. Sobre isso pretendemos refletir no presente estudo. Nessa perspectiva, e diante da diversidade de modos de viver em família que vem sendo apontada (Drieu, 2015), consideramos pertinente fazer referência ao estudo sobre arranjos familiares desenvolvido por Amazonas, Damasceno, Terto e Silva (2003). Ao refletir sobre as possíveis implicações dos diversos arranjos familiares as autoras tecem importantes considerações:

“Não sabemos ainda quais serão as vantagens ou desvantagens que cada uma delas acarretará para o ser humano, principalmente para as crianças, uma vez que, por serem formas recentes, não permitem uma avaliação fundamentada. O que podemos dizer de todas essas transformações é que, apesar de tanta diversidade, ainda é grande a dificuldade que sentimos em aceitar as diferenças. A sociedade persiste na transmissão do modelo de família nuclear tradicional, com pai provedor e mãe dona de casa em tempo integral, como o ideal, e vê com maus olhos as novas configurações familiares” (p. 12).

As autoras realizaram um estudo em uma escola pública de Recife tendo como participantes crianças e suas familiares. Definiram arranjo familiar como: “membros de uma família, consanguíneos ou não, residentes no mesmo domicilio” (Amazonas et. al. 2003, p. 15), destacando que está foi uma escolha metodológica e que não se trata de igualar família a grupo doméstico. O referido estudo identificou grande diversidade de arranjos familiares: nuclear (32,7%), extensa (24,5%), recasados (16,3%); monoparental (14,3%), adotiva (8,2%), abrangente (4,1%).

As citadas autoras chamam a atenção sobre a existência de diferenças na distribuição de frequência dos arranjos familiares em relação com a faixa etária das crianças. Assim, o modelo de família nuclear está presente em maior proporção entre crianças de 6 a 7 anos (35.7%) e se reduz à medida que aumenta a faixa etária (27% na faixa entre 10 e 11 anos). A família extensa está presente para 14% das crianças entre seis e sete anos e aumenta para 27% quando estas têm entre 10 e 11 anos. As famílias recasadas também tendem a aumentar conforme aumenta a idade das crianças.

Com base nos elementos trazidos até aqui colocamos como objetivos do presente estudo: caracterizar os arranjos das famílias que frequentam o projeto Brincando em Família e refletir sobre as principais demandas trazidas. Isto contribuirá para compreender os desafios para o cuidado oferecido às famílias, na sua diversidade, nos serviços de saúde mental. No entanto, antes de descrever os aspectos metodológicos deste estudo é preciso apresentar o referido projeto e seus fundamentos.

Sobre o projeto Brincando em Família

Trata-se de um serviço que visa oferecer suporte ao desenvolvimento e à saúde mental infantil. Constitui um projeto de ensino, pesquisa e extensão da Universidade Federal da Bahia que funciona dentro de uma biblioteca pública de Salvador. Em cada turno de três horas uma equipe composta por uma psicóloga e três ou quatro estudantes de psicologia recebe crianças acompanhadas de seus familiares, que podem frequentar livremente o espaço. O projeto oferece atenção tanto no plano da promoção quanto da prevenção e recuperação da saúde e tem como embasamento teórico a psicanálise e mais especificamente os conceitos de “acolhida” (Holmes, 2012) e a metapsicologia do cuidado (Figueiredo, 2009).

Para Holmes (2012), a acolhida é o eixo central do atendimento em grupo com crianças e seus familiares e se desdobra em quatro dimensões: aceitação, conexão, brincadeira e empoderamento. A aceitação é necessária para que cada sujeito seja pensado na sua singularidade. Sendo cada membro da família considerado um indivíduo, os comportamentos dos cuidadores e da criança são aceitos e apenas os pontos positivos desses comportamentos são comentados. As intervenções são realizadas sempre no sentido de encorajar a reflexão do cuidador e conectar os sentimentos que envolvem a família, colocando a criança no centro do diálogo e não a deixando à parte. O brincar é visto como na terapia psicodinâmica no consultório, sendo não estruturado, centrado na criança e não intrusivo. O empoderamento é visto como mecanismo terapêutico na medida em que promove a independência das famílias, não respondendo e não sugerindo soluções, favorecendo com que as pessoas reflitam sobre as suas preocupações.

Figueiredo (2009) faz referência a dimensões do cuidado, nas quais a figura de alteridade, ou seja, o agente de cuidado pode ser entendido a partir de duas categorias – presença implicada e presença em reserva. Exercer essas duas funções é fundamental para o cuidado integral, pois a primeira se refere ao “fazer coisas”, enquanto que a segunda requer neutralidade e silêncio. O agente de cuidado em presença implicada apresenta-se em três modalidades: Sustentar e conter, Reconhecer e Interpelar e reclamar, sendo que cada modalidade está relacionada com um modo da figura de alteridade.

O autor aponta a complementaridade entre as três modalidades de cuidado e diz que estas têm de estar em equilíbrio para a instalação de uma capacidade de fazer sentido no indivíduo. Por outro lado, para além da presença implicada, o cuidado exige certo afastamento: a presença em reserva, pois mesmo o equilíbrio nas funções da presença implicada requer ausência. O cuidado poderia ser pensado como estar presente e ao mesmo tempo fazer outras coisas. Quando o cuidador se permite estar em ausência, canaliza para o sujeito um espaço criativo no qual ele poderá exercitar sua capacidade para brincar, fantasiar, pensar e criar o mundo de acordo com as suas possibilidades. Na presença em reserva, o agente de cuidado chama à ação. Figueiredo (2009) ainda discute os extravios e excessos nas funções de cuidado e aponta que é preciso que o cuidador possa se desapegar, cuidar de si e deixar-se ser cuidado por outro, por exemplo, permitindo a entrada de um terceiro na relação, ou ainda percebendo que mesmo o objeto de cuidado pode cuidar do seu cuidador.

No Brincando em Família o trabalho vai ao encontro da perspectiva de Mascarenhas (2010), quando afirma que uma das funções da criança é favorecer uma movimentação na família, e, nesse sentido, as queixas em torno da criança são indicadoras de que uma mudança precisa acontecer. Segundo a autora, “a criança promove um sair do lugar que instiga a família a se movimentar em busca de ajuda” (p. 238).

No cotidiano dos atendimentos, quando a família traz espontaneamente demandas, a equipe realiza uma avaliação ao longo de aproximadamente quatro encontros. A partir do quinto encontro pode ser dada uma devolutiva, na qual o acolhedor responsável pela criança dialoga com a família sobre as suas impressões e propõe objetivos para frequentar o projeto, formulando assim um projeto terapêutico singular. Em alguns casos, pontuamos a necessidade de tratamentos complementares, tais como avaliações ou acompanhamentos com outros profissionais.

 

Método

O presente estudo possui um componente quantitativo e outro qualitativo. A parte quantitativa constitui um estudo descritivo exploratório transversal que teve como propósito descrever uma ou mais variáveis e analisar a sua incidência em um dado momento (Hernandez, Fernandez & Baptista, 1998).

A amostra foi constituída por 91 famílias que frequentaram o serviço em 2013 e cujas fichas de acompanhamento foram preenchidas adequadamente. Para o presente estudo constituíram o banco de dados as variáveis: 1) Arranjos familiares e 2) Queixas expressas espontaneamente nos primeiros encontros. Os dados referentes a tais variáveis foram retirados das fichas e acompanhamento, armazenados em um banco de dados e submetidos a uma análise descritiva através do SPSS versão 10.0 para Windows.

O arranjo familiar foi definido com base na perspectiva apontada por Amazonas et al. (2003) que considera um arranjo familiar aos membros de uma família, residentes no mesmo domicilio. Criamos três tópicos para a referida variável: 1) Família nuclear (a criança mora com o casal parental que às vezes é produto de um recasamento); 2) Família monoparental (a criança mora apenas com um dos pais); 3) Família Extensa (convivem pelo menos três gerações na mesma casa, incluindo também famílias onde avôs são os principais responsáveis pelo cuidado infantil).

Para caracterizar a variável “queixas trazidas pelas famílias nos primeiros atendimentos” utilizou-se a categorização desenvolvida por Rangel, Bustamante e Belo (no prelo): 1) Sem queixa, quando a família não explicita um motivo para frequentar o espaço; 2) Procura por um espaço de socialização; 3) Problemas de comportamento, englobam agressividade, agitação, desobediência, entre outros; 4) Problemas internalizantes envolvem dificuldades afetivas, tais como timidez, medo, processos de luto devido à morte de seres queridos ou separação dos pais; 5) Dificuldades no desenvolvimento incluem atrasos em aquisições do desenvolvimento e problemas de aprendizagem na escola. Para categorizar as queixas consideramos a principal demanda ou queixa trazida espontaneamente pela família durante os primeiros encontros, o que não constitui um diagnóstico e às vezes difere da compreensão que a equipe desenvolve sobre a criança e sua família.

Para a análise qualitativa foi escolhido um caso de cada um dos três arranjos familiares mais presentes no projeto. Outros critérios de escolha foram: ter frequentado o serviço durante um período suficiente para que a equipe pudesse conhecer a criança e sua família e apresentar características comuns a outras famílias atendidas.

Em relação ao componente qualitativo, seguindo Harper e Thompson (2012), pode se afirmar que este estudo está afinado com a perspectiva “big q”, onde os dados foram obtidos dos registros dos atendimentos realizados no projeto, sendo que as pesquisadoras também participam da equipe que realiza os atendimentos, ou seja, têm um envolvimento com os dados de forma reflexiva.

Na análise dos dados qualitativos identificamos pontos em comum com a proposta da Ethnomethodology/Conversation Analysis, pois esta foca no contexto interacional da conversa, buscando delinear as “regras” do local de interação. O registro documental ocorre na medida em que a interação acontece e tais registros constituem os dados que serão analisados (Rapley, 2012). Assim, após cada turno de atendimento, a psicóloga coordenadora elabora um relato geral e cada um dos estagiários escreve sobre as crianças que acompanhou de perto durante o atendimento. Os relatos dos atendimentos são documentos elaborados cotidianamente pelo grupo de acolhedores. Além de serem arquivados para fins da pesquisa, os relatos são discutidos semanalmente em reuniões de supervisão. Nesse sentido, ao chegar ao serviço, os frequentadores são informados sobre a pesquisa e são convidados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), deixando claro que o acesso ao serviço não dependeria da assinatura do referido documento.

Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa de uma unidade da Universidade Federal da Bahia (Parecer 120.687). Vale destacar que, como parte dos cuidados éticos, todos os nomes utilizados são fictícios e alguns dados sobre as crianças e suas famílias foram adaptados.

 

Resultados

Dentre as 91 famílias participantes no estudo, 47 (52%) foram incluídas na categoria nuclear/conjugal, 23 (25%) foram consideradas extensas e 21 (23%) monoparentais. A tabela 1 apresenta a distribuição da queixa predominante em função do arranjo familiar.

 

 

A categorização distingue entre famílias que não apresentaram queixas (27%) e aquelas que explicitaram a necessidade de um espaço lúdico e de socialização para as suas crianças (4%). No que diz respeito às queixas trazidas pelas famílias do arranjo nuclear, 42.5% não trouxeram demandas inicialmente e 8.5% disseram estar em busca de um espaço de socialização para os filhos. Os problemas de comportamento foram apontados como um problema em 32% das famílias desse arranjo.

De forma geral, no que diz respeito às famílias monoparentais, 57% trouxeram que as crianças estavam passando por um processo de luto desencadeado, na maior parte das vezes, pela separação dos pais. Em alguns casos esse processo era consequência da morte de um familiar próximo. Já as famílias classificadas como extensas trouxeram como queixa mais recorrente problemas de comportamento (65%).

A seguir serão apresentados três casos típicos onde serão marcados os seguintes momentos: a chegada ao projeto, processo de formulação da demanda e as intervenções terapêuticas propostas.

Nara tem cinco anos e mora em um arranjo nuclear, que inclui o pai e a mãe. Chegou ao projeto com sua mãe, após terem visto um cartaz informativo sobre o projeto na porta da biblioteca. A mãe relata espontaneamente que a filha tem se mostrado muito agitada desde que os pais começaram a se desentender. Eles discordam quanto à criança frequentar a escola: o pai acha que ela só deveria fazê-lo aos seis anos e a mãe já a colocou desde o ano passado. O casal cogita a possibilidade de separar devido aos conflitos.

Desde os primeiros atendimentos percebeu-se que Nara apresenta agitação em suas brincadeiras, mas, no geral, não expressava agressividade. Até a situação que chamou uma criança do projeto de “neguinho feio”, isso, porque, ele não fez o que ela queria. Depois apareceu o relato de ela ter batido na cara de um tio, porque ele havia lhe contrariado. Parece que Nara precisa de limites, e isso faz reflexo na sua voz aguda e na altura com que fala não só com as crianças, mas, com as acolhedoras, sempre gritando. Mostra-se autoritária quando faz alguma solicitação.

O posicionamento da mãe frente a esses comportamentos chama a atenção. Em relação à agressão disparada contra outra criança no projeto, ela não se mostrou ativa em fazer alguma intervenção. Uma hipótese é que a preocupação da mãe em dar tudo de melhor para a filha esteja sendo confundida com dar tudo o que ela quer, fazendo com que ela generalize essa onipotência também para outras pessoas.

Além disso, o conflito de valores dos pais que culminou em um conflito concreto na relação do casal pode estar influenciando o comportamento de Nara, até porque parece que se instaurou certa rivalidade entre a mãe e o pai, a primeira, aquela que dá tudo, se esforça pela criança, e o segundo, o que nada faz pela filha. Talvez, a mãe esteja ainda mais ligada à filha depois de toda a situação.

Esses pontos observados foram devolvidos à mãe após alguns atendimentos. Também foi proposto investigar melhor como é a relação de Nara em casa e na escola e com outras crianças. Reforçou-se a necessidade de presença do pai, porque independente deles estarem em conflito é preciso que esteja claro para Nara e para os dois que ele é pai dela, e deve estar implicado na educação da filha. Mesmo que discordem das abordagens, precisam chegar a um acordo, visando o bem da filha.

Neste caso o projeto teve a tarefa de acolher mãe e filha, chamando a atenção sobre a necessidade de incluir o pai, dado que este convive com ambas. Esta não é realidade mais comum entre as famílias que frequentam o projeto. A ausência da figura paterna no cotidiano familiar é a realidade de grande parte das famílias, como veremos a seguir.

O caso que ilustra o arranjo monoparental é o de Mauro, um menino de quatro anos que mora com sua mãe. Foram encaminhados pela escola de Mauro. A queixa apresentada pela escola traz informações de que a criança demonstra agressividade e falta de interesse em atividades escolares, reagindo de forma emotiva quando a professora o aborda. A ficha de encaminhamento aponta que a escola fez algumas intervenções com Mauro, mas concluíram que ele precisava de algum atendimento especializado.

Mariana é separada do pai de Mauro que reside em outro estado. Ela afirma que o pai buscava o filho para passar as férias com ele, mas que há certo tempo ele não faz mais isso. Mariana aponta que o filho sente muito a falta do pai, manifestando isso através de sua conduta, tendo dificuldades nos estudos e sendo agressivo com os colegas.

No projeto, Mauro apresenta-se com um desenvolvimento adequado a sua idade. Participa das brincadeiras com interesse e entusiasmo. Não foram observadas manifestações de agressividade no projeto. A maneira pela qual Mauro manifesta saudade do pai, e a chateação com toda a situação, parece ser a forma que ele pôde expressar isso. Manifestações somáticas de febre foram relatadas por sua mãe Mariana.

Ao longo dos atendimentos, conversamos com Mariana sobre a necessidade de compreender a agressividade de Mauro como forma de expressão dos seus sentimentos, ressaltando a importância dela continuar favorecendo a possibilidade dele se expressar com palavras e através do brincar.

Foi manifestada a aceitação (Holmes, 2012), apontando para Mariana que deve ser difícil para ela lidar com toda a situação, ser mãe e ao mesmo tempo tentar suprir a ausência paterna, e também ser dona de casa, trabalhadora, estudante e uma mulher solteira. Foi pontuado também para Mariana questões a respeito da cobrança que ela faz a Mauro e a ela mesma, com o objetivo de que ela reflita sobre isso. Ao longo dos meses que frequentaram o projeto percebemos mudanças importantes na díade: menos choro em Mauro, junto com mais proximidade afetiva por parte de Mariana.

No cuidado oferecido a Mariana e Mauro foi preciso fortalecer a função materna realizando em alguns momentos a função paterna, no sentido de possibilitar a entrada de um terceiro que, em alguns momentos eram acolhedores do projeto, porém sem negar a falta que Mauro sentia do pai.

O caso de Ed ilustra o arranjo familiar extenso. Ed tem seis anos, chegou ao projeto com sua avó Elisa. Soube do espaço através de uma vizinha. Elisa disse que acha o neto agressivo. Ed atualmente vive com sua mãe e a avó, esta última é quem assume o papel de cuidadora da criança, sendo responsável também pelo seu sustento. Tem ainda uma irmã mais nova que vive no interior com a avó paterna. Seu pai é usuário de substâncias psicoativas e chegou a passar um tempo em uma casa de recuperação. Ed não tem contato com o pai atualmente. Segundo Elisa os dois eram muito próximos, mas afastaram-se por conta do problema do pai com entorpecentes. A avó e a mãe da criança têm uma relação difícil, Elisa diz não concordar com os comportamentos da filha e com a falta de cuidado desta com Ed.

Elisa diz que acha Ed agressivo e autoritário. Disse que percebeu a agressão maior por parte dele, quando um dia ele a chamou de “mãe” e ela como estava chateada e com raiva dele, disse que não era sua mãe e sim avó. Relatou também, que algumas vezes Ed a chama de “feia” e outros termos semelhantes. É agressivo com ela, batendo inclusive, e há momentos em que é carinhoso. Relata que, quando ela o corrige com palmadas, ele começa a gritar, diz que está saindo sangue, que ela o esta agredindo, que é “malvada” e “perversa”. O que a faz se sentir com remorso de ter batido nele.

Após alguns atendimentos foi possível perceber que Ed tem se mostrado bastante agitado e agressivo na maneira de brincar e no modo de falar com algumas crianças. Apresentou dificuldade em aceitar as regras e em compartilhar alguns brinquedos. Parece haver em Ed uma introspecção que não é nomeada. Talvez não saiba expressar seus sentimentos, o que é comum na sua faixa de desenvolvimento.

Diante do que foi trazido e observado, foi traçado um projeto terapêutico que consiste em acolher ou aceitar a raiva, agressividade ou agitação dele, verbalizando o motivo da mesma para que ele possa nomear e entender o que está sentindo; assim como sugerir brincadeiras onde Ed possa expressar sua agressividade. E, em outro momento, ou intercalando, propor brincadeiras para lidar com as regras, onde ele poderá ser contido pela equipe que exerceria a função paterna. Esta é a maior dificuldade de Elisa: dar limites ao neto. É importante também proporcionar uma oportunidade para que esta reflita sobre o que ela espera do neto e que lugar este ocupa em sua vida. Assim, o projeto funcionou como um terceiro que dá suporte à relação de Ed e Elisa e ao mesmo como um espaço que acolhe a singularidade de cada um.

 

Discussão

A partir dos dados apresentados, alguns achados mostraram-se relevantes. Assim como em outros trabalhos (Melo & Perfeito, 2006; Cunha & Beneti, 2009), no presente estudo verificamos que existem diversos arranjos familiares – principalmente o nuclear, monoparental e extenso - sendo que a maioria das crianças vive em um arranjo familiar nuclear. Entretanto, o presente estudo avança ao tecer relações entre arranjos familiares e motivos que a família explicita para frequentar o projeto.

O arranjo familiar nuclear é o que apresenta um maior número de famílias que não apresentaram demanda ou estavam apenas em busca de um espaço para socialização, somando 51% do total de famílias pertencentes a esta categoria. Sobre isto, Wagner, Tronco e Armani (2011) apontam a existência de uma influência positiva entre a qualidade da relação conjugal e o relacionamento pais-filhos. Isso não significa uma superioridade dessa forma de arranjo, mas pode indicar que boa parte dos casais que levaram seus filhos ao projeto possui uma relação conjugal que se reflete positivamente no desenvolvimento das crianças, funcionando como um fator de proteção para essas famílias.

Ainda relacionado à influência da relação conjugal frente ao bem-estar dos filhos, foi significativo o número de famílias que procuraram o projeto por conta de processos de separação conjugal, que de alguma forma, refletiram nas crianças. No caso das famílias monoparentais, o luto foi uma queixa frequente, na maioria das vezes ligada a situações de separação dos pais.

No caso de Mauro, a criança demonstra sentir muita falta do contato com o pai. Este vive em outro estado e não tem sido ativo no seu papel de pai nos últimos meses. A escola traz que Mauro tem se mostrado emotivo e diz frequentemente que quer ver o pai. Isso tem influenciado no seu rendimento escolar e no relacionamento com professores e colegas. Esse exemplo demonstra como um processo de separação pode ser vivenciado pelas crianças. Nunes-Costa, Lamela e Figueiredo (2009) relatam que no processo de separação, pode estar presente uma falta de comunicação entre pais e filhos decorrente da ideia de que falar sobre o assunto perturba as crianças, ou elas não irão entender o que se passa. Assim, os pais não tocam no assunto da separação e os filhos, em consequência disso, mantêm seus sentimentos escondidos e acabam expressando através de sintomas. Os citados autores afirmam que o modo como os pais lidam com esse acontecimento, principalmente os seus níveis de sintomatologia psicopatológica, relaciona-se com os níveis de ajustamento da criança.

Vale lembrar que os efeitos do processo de separação dos pais não são os mesmos para todas as crianças, variando de acordo com a idade, personalidade, grupo familiar, herança, atitudes religiosas e étnicas, saúde física, situação socioeconômica. Quando se associa a outros fatores de risco, como o conflito interparental, pode desencadear trajetórias desenvolvimentais caracterizadas por uma inadequada adaptação, com piores níveis de saúde física, sintomatologia psicopatológica, pior rendimento acadêmico e comportamentos de risco. (Raposo et al. 2011)

Wagner et al. (2011) alertam que uma das grandes dificuldades na separação conjugal é a diferenciação entre conjugalidade e parentalidade. Tanto os aspectos positivos quanto os negativos da relação que se estabeleceu durante a união influenciarão a forma como esse processo se dará. Segundo as mesmas autoras, um casal que, apesar dos conflitos, consegue separar-se mantendo respeito mútuo e tendo como objetivo comum o bem-estar dos filhos, poderá amenizar as perdas e o sofrimento que essa situação pode causar para eles.

Sobre as famílias monoparentais, quase todas são chefiadas por mulheres, apenas uma criança era criada pelo pai, sem a presença da mãe. Esse dado está de acordo com o que afirma Trad (2011) ao apontar o aumento do número de famílias chefiadas por mulheres e de lares sem a presença de pais e parceiros. A mulher vem progressivamente ocupando uma posição de destaque no tocante ao sustento familiar, ora compartilhando com o parceiro essa posição, ora assumindo o papel de provedora da família.

Esse panorama remete à questão dos papéis ocupados por homens e mulheres na dinâmica familiar. Diferentes autores sinalizam o fenômeno da centralidade da mulher na tarefa do cuidado, especialmente quando este é dirigido às crianças. Entretanto, as mudanças em curso no que diz respeito à questão de gênero, revelam a incorporação progressiva do homem na vida doméstica ou no cuidado dos filhos. A posição masculina se vê afetada no contexto das relações. O ideal igualitário nas relações de gênero vem favorecendo a emergência de um ideal de “pai” para o qual a paternidade é entendida como uma oportunidade de participar ativamente no cuidado dos filhos. Vale salientar que esses processos podem variar bastante entre os diferentes grupos sociais. No universo das classes populares, a divisão de papéis é mais definida. Via de regra, caberia à mulher a responsabilidade de educar, socializar e cuidar dos filhos e aos homens o sustento da família. (Oliveira & Bastos, 2000)

Ainda no tocante à caracterização das famílias que frequentam o projeto Brincando em Família, é interessante notar o papel que os avôs, sobretudo as avós, desempenham no cuidado das crianças que frequentam o projeto. Mesmo nas famílias em que pais e avós coabitam, os últimos tendem a desempenhar um papel de protagonismo no cuidado dos netos. Muitos deles são os responsáveis por acompanhar as crianças no espaço. No caso de Ed, mesmo com sua mãe vivendo com ele, a avó possui sua guarda e assume o papel de cuidadora principal.

Segundo Dias & Araújo (2002), os avós são os principais agentes socializadores das crianças depois dos pais. As autoras apontam como os principais motivos que levam muitos avós a assumirem a criação dos seus netos: o uso de álcool ou drogas pelos pais, pais que trabalhavam o tempo inteiro ou com problemas emocionais, e o fato de que eles não querem os netos em lares adotivos. No que diz respeito ao relacionamento de avós e netos, algumas variáveis como, idade, gênero, mediação dos pais e ocorrência de eventos disruptivos influenciam na qualidade desse relacionamento. As referidas autoras ressaltam ainda que atitudes conflitantes entre pais e avós podem gerar comportamentos desajustados dos netos. Nesse sentido, Elisa refere que os pais de Ed não estão em condições de cuidar dele. Por outro lado, percebemos também o grande conforto emocional e companhia que representa para ela a presença do neto, algo também apontado em estudos sobre avós que criam netos (Mainetti & Wanderbroocke, 2013).

 

Considerações finais

No presente trabalho mostramos que existem diversos arranjos familiares e múltiplas demandas e queixas que chegam aos serviços de saúde mental. Chamamos a atenção sobre algumas tendências, por exemplo: a menor presença de queixas quando se trata de crianças que moram com ambos os pais, o número significativo de crianças que moram em arranjos monoparentais e cujas mães expressam preocupação com os efeitos da separação dos pais na situação da criança; os problemas de comportamento como a queixa mais frequente. Nada disto pode ser colocado como uma afirmação generalizante sobre arranjos familiares e queixas em saúde mental. Trata-se apenas de famílias que frequentam um serviço de saúde. Nesse sentido, o presente estudo vai ao encontro de Ceccarelli (2007) quando afirma que não existe uma forma de organização familiar ideal que garanta um desenvolvimento mais sadio para a constituição do sujeito.

A preocupação aqui foi com descrever as demandas, as atitudes da equipe e alguns movimentos que foram terapêuticos. Nesse sentido, mostramos que o espaço tem potencial para oferecer cuidados a todas as famílias, funcionando às vezes como um terceiro que acompanha a relação da díade mãe-criança ou avó-neto no sentido de fortalecer as relações e a aceitação de cada pessoa na sua singularidade.

No Brincando em Família, a maioria das famílias atendidas, e nas três apresentadas aqui, as mulheres – no lugar de mães ou avós - são as principais cuidadoras das crianças. Consideramos imprescindível que este fenômeno não seja naturalizado, que os homens - como pais, tios, avós, irmãos - sejam convocados e ao mesmo tempo, que os serviços públicos apóiem as funções paterna e materna, visando o seu legítimo exercício. Para isso é preciso refletir sobre “Qual deveria ser a função da política pública, a função do estado como referente terceiro que deveria comparecer ali onde, por exemplo, não há um pai que possa garantir o ambiente favorável a essa mãe?” (Onocko- Campos, 2012, p. 138). Certamente não se trata de exigir o tempo todo ações dessas mulheres – cumprir horários e prescrições – mas de dar um suporte, aceitando os funcionamentos, entendendo-os como o melhor possível em cada momento (Holmes, 2012).

É preciso continuar desenvolvendo estudos sobre as famílias de crianças que são atendidas em serviços de saúde mental. Considerar tendências que podem estar mais presentes em cada arranjo familiar pode contribuir para construir modos mais criativos de incluir a família na assistência. Isto não implica uma visão determinista. Trata-se de reconhecer as peculiaridades de cada momento vivenciado na vida familiar, considerando que as mudanças são constantes, tal como Amazonas et. al (2003) demonstram. Finalmente, é preciso lembrar a grande precariedade das condições de vida de algumas das famílias atendidas, que precisam de uma assistência psicossocial que não se esgota no que um serviço específico pode oferecer.

 

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Endereço para correspondência
Vania Bustamante
E-mail: vaniabus@yahoo.com

Enviado em: 20/05/2015
1ª revisão em: 06/12/2015
Aceito em: 21/12/2015

 

 

1 Psicóloga, doutora em Saúde coletiva, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão em temas envolvendo o cuidado infantil, saúde mental infantil, família, paternidade e gênero.
2 Psicóloga, Estudante de residência em saúde do adulto.

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