ARTIGOS

 

Conflitos conjugais: possíveis origens

 

Marital conflicts: possible origins

 

 

Helena Centeno Hintz^{1, I, II, III}

^I Domus- Centro de Terapia Individual, de Casal e Família
^II Editora da Revista Pensando Famílias
^III Associação Gaúcha de Terapia Familiar – AGATEF

Endereço para correspondência

 

 

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RESUMO

Muitos indivíduos casados passam por mudanças significativas em suas vidas durante os anos de convivência conjugal, incluindo mudanças de identidade, mudanças de papéis no casamento e fora da família como na vida profissional e social e mudanças no relacionamento com seus próprios pais. Sendo o conflito conjugal uma experiência de âmbito universal, torna-se pertinente pensar como os relacionamentos de casal evoluem ao longo do tempo. A discórdia entre os cônjuges mostra-se, muitas vezes, inevitável, quando duas pessoas buscam integrar suas vidas, provocando conflitos que variam em frequência e intensidade. O objetivo deste estudo é refletir sobre o que pode ocasionar os desentendimentos em uma relação cujo início, provavelmente, foi de amor e de vontade de compartilhar momentos importantes de sus vidas.

Palavras-chave: Conflito conjugais, Teoria do apego, Narcisismo, Reatividade conjugal.

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ABSTRACT

Many married individuals go through significant changes in their lives during the marital years, including identity changes, role changes in marriage and outside the family as well as in professional and social life, and changes in the relationship with their own parents. Since marital conflict is an experience with a universal scope, it becomes pertinent to think about how couple relationships evolve over time. Discord between spouses is often unavoidable when two people seek to integrate their lives, causing conflicts that vary in frequency and intensity. The objective of this study is to reflect on what can cause disagreements in a relationship whose beginning, probably, was of love and desire to share important moments in their lives.

Keywords: Marital conflict, Attachment theory, Narcissism, Marital reactivity.

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O início de um relacionamento acontece com um encantamento de uma pessoa pela outra, apreciando o que percebe ser os seus valores e características pessoais. A vontade de estar junto e repartir todos os momentos de sua vida com o outro instaura-se fortemente em seu interior e a sensação de felicidade conquistada transparece em sua face. Há o desejo de uma proximidade emocional maior, de intimidade especial com o outro. Com o transcorrer deste relacionamento, estabelece-se um comprometimento de viverem juntos com a crença de assim estarem tanto em situações boas, felizes, de realizações, como nas situações difíceis, de dor e tristeza. À medida que se desenrola a trama dos sentimentos de amor, vínculos antes experienciados com as figuras paterna e materna vão sendo revividos, consciente ou inconscientemente. Sua individualidade, sua diferenciação como ser único, é conquistada através deste relacionamento primeiro e fundamental, isto é, através das relações estabelecidas entre pai-mãe-filho.

Os papeis de homem e mulher estão adquirindo diferentes características nos contextos atuais, tanto no ambiente privado como na sociedade. É nesta realidade que os casais almejam um estado de bem-estar mútuo, na satisfação de suas necessidades básicas, oportunizando uma vivência de intimidade conjugal plena. Isso aponta para um amadurecimento e grau de comprometimento importantes, que estruturam a formação da família. A construção desta intimidade, que tem uma característica de ser contínua, constitui-se um grande desafio aos cônjuges.

Entretanto, nem sempre essa construção se dá de forma progressiva e positiva. Frequentemente, os casais enfrentam situações bastante difíceis que podem gerar conflitos entre os parceiros. Tais situações podem atingir os relacionamentos conjugais de uma forma bem abrangente, incluindo culturas diferentes, etnia, religião, e outros contextos. Os conflitos vividos pelos casais variam bastante em sua intensidade e nos motivos que os desencadeiam. Muitas vezes assumem uma conduta agressiva e muito crítica entre si, tornando a convivência difícil e, de certa forma, esgotante. Os cônjuges tentam modificar sua comunicação ao expressar sentimentos ou necessidades, mas não conseguem porque estão enredados na forma que conhecem de interagir. Tornam-se, assim, bastante reativos um ao outro em suas colocações e respostas.

Neste estudo serão abordadas algumas ideias sobre conflitos vividos por casais e seus padrões de interação interpessoal em busca de um melhor entendimento e possibilidades de atendimento terapêutico mais eficiente.

 

Método

O presente estudo apresenta uma revisão narrativa da literatura com a ilustração de dois casos clínicos fictícios. Através da revisão de conceitos apresentados nas teorias discutidas foi analisado os casos apresentados, dando enfoque na origem de possíveis conflitos que surgem nos casais, com o objetivo de ilustrar os conceitos apresentados. Os casos descritos são fictícios, não implicando em questões éticas.

Conflitos Conjugais e a Teoria do Apego

Durante as últimas décadas, a teoria do apego tem sido utilizada por estudiosos como uma estrutura para compreender como funcionam os relacionamentos adultos. Através da exploração do histórico de apego que um indivíduo desenvolve, pode-se compreender os possíveis conflitos conjugais que ele venha a ter em seu relacionamento conjugal (Besharat, 2003).

Schachner, et al. (2012) afirmam que no relacionamento conjugal, os parceiros estão em igualdade de condições, mas, muitas vezes, se sentem sob ameaça, com medo, feridos e, portanto, necessitando de proteção. Os parceiros oscilam entre ser empáticos apoiando-se mutuamente ou envolvendo-se na busca de uma gratificação sexual. Estes relacionamentos pautam por ter emoções e comportamentos de bem-estar. Segundo a teoria do apego, a relação amorosa é dinâmica, incluindo capacidades de apego, de cuidado e sexuais (Feeney, 2003, citado por Schachner, et al., 2012). As emoções e comportamentos vividos em um relacionamento são reflexos desses três sistemas citados. Dentro do conceito que um envolvimento conjugal envolve duas pessoas relacionando-se continuamente, Hazan e Shaver (1987, citado por Schachner, 2012), no intuito de estudarem os relacionamentos classificaram os estilos de apego como “seguro, evitador e ansioso”. Os pesquisadores da área do apego foram desenvolvendo a classificação dos estilos de apego de três para quatro categorias sendo apego seguro, ansioso ou preocupado, evitador medroso e evitador desconsiderador, correspondendo “aos quatro quadrantes de um espaço bidimensional, definidos por ansiedade e evitação” (Schachner, et al., 2012, p. 19).

Besharat (2003) em seu estudo, afirma que indivíduos com estilo de apego seguro tendem a se envolver em relacionamentos onde se evidenciam maior interdependência entre os cônjuges, confiança e satisfação na relação. Indivíduos que apresentam estilos de apego inseguros são passíveis de apresentar maiores problemas no relacionamento conjugal. Apresentam maior risco de sucumbir ao estresse de possíveis desentendimentos conjugais.

Andolfi (1996) refere que se encontramos uma família em que o relacionamento familiar não está adequado, poderemos pensar que um ou ambos os cônjuges não elaboraram uma separação efetiva das suas respectivas famílias de origem ou que ainda mantêm dependência afetiva de seus pais. Esta dependência impede que a relação conjugal seja equilibrada.

Johnson (2012, 2019) ao desenvolver sua teoria sobre terapia de casal, Emotionally Focused Therapy (EFT), utiliza como fundamentação a Teoria de Apego de Bowlby. A autora refere que um vínculo de apego seguro entre parceiros é básico para uma relação de amor positivo reforçando sua interação conjugal. O casal se sente confiante e confortável na dependência mútua, dando e recebendo apoio. Johnson refere que sentimos medo quando discutimos com a pessoa que amamos, medo de perder esta pessoa. Se o vínculo estabelecido entre o casal é inseguro, o medo da perda é intenso e opressivo. Se estes comportamentos são ocorrentes, os parceiros se tornam defensivos e aos poucos vão se desligando emocionalmente.

Estas categorias auxiliam muito no entendimento da interação amorosa, permitindo que o funcionamento fique acessível ao terapeuta de casal, propiciando maior efetividade em seu trabalho com casais.

Os estilos de apego no casal podem ser melhor entendidos no caso relatado a seguir²

Luís e Marta

Luís e Marta estão casados há 12 anos, ele está com 46 anos e ela com 44 anos. Ambos têm uma filha de 10 anos, Laura. Luís tem uma filha de seu primeiro casamento, que está com 21 anos e mora com a mãe. O casal procurou atendimento porque os cônjuges se sentem distantes um do outro, quando conversam sempre terminam discutindo.

Luís queixa-se que Marta não colabora com ele, passando muito tempo ou cuidando de Laura e das atividades da casa, ou ficando grande parte do seu tempo nas redes sociais. Sente que ela está distante dele, não se interessando em manter uma aproximação carinhosa. Marta sempre tem um motivo para manter este distanciamento.

Marta relata que o relacionamento com Luís é difícil, porque se sente “cobrada” em suas atividades, não recebendo um gesto de carinho para com ela. A aproximação que ela sente de Luís é para terem relações sexuais apenas, mas parece não haver amor, como ela desejaria que houvesse. Ela acredita que Luís já chega em casa aborrecido com os acontecimentos do trabalho e que descarrega nela seu mau humor, não ouvindo o que ela tem para dizer. Comenta que após ele se mostrar sem paciência, ela não tem vontade alguma para uma aproximação carinhosa e, muito menos, desejar ter relações sexuais com ele. Marta procura muito a aproximação com Laura, envolvendo-se excessivamente nos cuidados com ela.

O casal refere que não deseja se separar, mas gostaria muito de melhorar a convivência, entendendo-se sem as brigas constantes.

Ambos os cônjuges mostram um apego ansioso, sentindo-se ameaçados mutuamente em diversas situações de sua convivência. Esperam determinadas reações de disponibilidade mútuas, o que não está acontecendo entre os dois. Estão insatisfeitos um com o outro, sem receberem o apoio esperado, deixando-os em um estado de irritação quase que constante. Marta mostra insegurança ao aproximar-se de Luís, ela se vê mais frágil, passando, muitas vezes, a evitá-lo como uma reação defensiva. Ela diz que teme a rejeição de Luís, por isso ela se mantém afastada. A dinâmica relacional do casal está fundamentada no conceito sistêmico de circularidade ou bilateralidade, isto é, o que está afetando um dos parceiros, afeta o outro dentro de uma sequência circular. Neste movimento de ir e vir, os comportamentos disfuncionais são mantidos.

O nível de ansiedade existente no casal explicita os conflitos que o casal vivencia no relacionamento, evidenciando o grau de sofrimento que os parceiros relatam, revelando também questões de poder e de evitação de toque entre o casal. As pessoas muito ansiosas se sentem incompreendidas, sendo frequentemente desvalorizadas pelo outro, passando a exigir mais do parceiro para se sentirem supridas em suas necessidades, o que raramente acontece.

Ambos, Marta e Luís, têm um apego inseguro, provocando as reações entre ambos. Durante os atendimentos, muitas vezes, eles ficaram centrados nos relatos de hostilidade gerados pelas situações difíceis que estavam enfrentando, como as que a filha de Luís trazia no convívio com eles. Luís se mostrava incomodado ao ouvir Marta falar de sua filha, reclamando das atitudes dela e exigindo que ele tomasse providências que ela acreditava serem necessárias. Marta repetia que Luís permitia que a filha interferisse na vida deles e que ela influenciava negativamente a irmã.

Em um estudo realizado por Feeney (2003, citado por Schachner, et al., 2012), o cônjuge que tiver alta ansiedade, com apego inseguro e ansioso, pode se sentir apoiado se seu parceiro tiver um apego seguro. No caso de Luís e Marta, Luís em várias situações procura tranquilizar Marta, que aceita seu apoio, mas seguidamente volta ao comportamento de afastamento ou distância, porque ainda refere não sentir que Luís a ame o suficiente. Ela precisa muito de manifestações de carinho para desejar ter relações sexuais com ele.

O desejo em manter uma proximidade amorosa com um parceiro estabelecendo uma intimidade emocional e sexual idealizada, pode, aos poucos, ir revelando a existência de algumas deficiências no outro e no relacionamento e, naturalmente, novos aspectos vão sendo agregados à imagem do outro. Estes aspectos incorporados tanto podem ter características boas como ruins. Há um constante enriquecimento de valores, de emoções compartilhadas que vão transformando a paixão em um amor estável (Dicks, 1967, In 1993).

A teoria do apego fundamenta claramente os vínculos em um relacionamento conjugal, abrindo as possibilidades de um tratamento ser eficiente em casos de conflitos e sofrimentos de um casal.

Conflitos Conjugais e o Narcisismo

Há casais em que um dos parceiros apresenta a necessidade de centralizar as atenções, com necessidades que precisam ser satisfeitas pelo seu parceiro. Quando isso não acontece, reage agressivamente com o outro, com críticas fortes e desqualificadoras. O cônjuge precisa e espera muito dele, para afirmar suas capacidades e possibilidades de realizações. Essas necessidades, frequentemente, são egocêntricas, o que impede de ser sensível às perspectivas do parceiro. Segundo Willi (1985), o indivíduo com essas características pode ser identificado como narcisista, sente-se inseguro e não percebe o cônjuge como alguém independente, precisando que ele o preencha e complete. Cônjuges portadores dessas características possuem um relacionamento onde se constata uma convivência intensa, porém com muitos conflitos, com situações permeadas por uma acentuada força destruidora, causando grande sofrimento aos dois parceiros.

Whitaker refere que um “...casamento transita da distância à proximidade, e esta abrange ambos os componentes, ódio e amor, e que a intimidade e a vulnerabilidade elevam a temperatura do amor e do ódio” (1995, p. 26).

O parceiro com características narcísicas tem dificuldade em estabelecer relações mais profundas. Ele procura alguém que o ame de forma incondicional, que concorde com ele aceitando suas ideias e propostas. O sentir-se feliz precisa ter a conotação de que os objetivos do casal contemplem concretizar suas aspirações e que o cônjuge também aceite seus objetivos. É frequente que em casais com esta interação, o membro aceite os desejos do cônjuge, procurando preencher suas necessidades, uma vez que acredita que o outro está certo e mostra-se seguro no que propõe, enquanto ele sente insegurança, não se atrevendo a inovar e ter objetivos diferentes. Configura-se uma idealização do parceiro, identificando-se com ele. O parceiro com as características narcísicas fica numa posição de poder (Kernberg, 2011).

Entretanto, o parceiro narcisista constantemente desvaloriza o outro, por sentir inveja de forma inconsciente. Apresenta dificuldade na capacidade de manter interesse pelas necessidades do parceiro, não se sensibiliza com as suas experiências subjetivas nem do relacionamento, ocorrendo um relacionamento baseado mais em negociações do que de interação. O aceitar as experiências e necessidades do outro implica em possíveis distorções causadas pelas suas projeções de que ele não está dando a devida importância que espera receber, desencadeando comportamentos agressivos (Kernberg, 2011). A interação conjugal adquire um caráter competitivo, revivendo sentimento de insegurança e de baixa autoestima ao perceber que seu poder na relação está diminuído. A relação perde a estabilidade se o cônjuge não aceitar ser o instrumento das projeções do parceiro narcisista.

Feldman (1982) apresenta o conceito de vulnerabilidade narcisista para compreender o início dos conflitos conjugais. Fenomenologicamente, ela se manifesta como reação a uma rejeição ou censura real ou imaginária, quando há o desenvolvimento de expectativas narcisistas irracionais e inibição do desenvolvimento da empatia.

O seguinte caso exemplifica a relação conjugal com características narcísicas.

Ana e Carlos

Ana busca atendimento para entender o comportamento atual de seu marido, Carlos. Ana está casada com um homem que se diz apaixonado por ela, que a admira por sua beleza e postura social. Espera que ela sempre agrade aos amigos e que os encante com seus conhecimentos sobre arte. Apesar de amá-la e dizer que gosta muito do seu jeito de ser, ele planejava como ela deveria se comportar com ele, com sua família e amigos. No início do relacionamento, Ana acreditava que ele estivesse mostrando interesse por ela e que a cuidava, evitando situações que pudessem incomodá-la. Com o tempo, foi percebendo que Carlos se mantinha distante, não tendo interesse pelo que ocorria em sua vida. Ana tem uma vida profissional exitosa, o que era motivo de orgulho para ele, mas agora não se interessa mais em saber como ela está e evita falar sobre este assunto. Quando Carlos sentiu que ela estava obtendo reconhecimento sem ser através dele, sua gratificação narcisista diminuiu e ele deixou de se interessar por Ana. Passou a ter comportamentos mais agressivos com ela e até mesmo desvalorizá-la em suas realizações profissionais, como reação a um estado de insegurança e de diminuição de sua autoestima. Ana já não o valorizava como Carlos esperava. A ideia dela era separar-se, pois estava vivendo uma relação que trazia muita infelicidade e insatisfação.

O parceiro narcisista, enquanto se sente dominando o outro, que suas ideias e atividades estão sendo bastante valorizadas, permanece na relação de forma amorosa, com trocas de carinho e cuidados. Abre a possibilidade de discutir suas ideias, entretanto não fica confortável se elas não são quase que totalmente aceitas, uma vez que não consegue lidar facilmente com as diferenças. Em diversas situações a inveja se manifesta, ocasionando sérios conflitos, com comportamentos agressivos e de desqualificações graves. A inveja se configura como uma resposta antecipada a uma possível perda do poder que precisa exercer. Este caso mostra a dificuldade de uma relação com o outro e com uma restrita capacidade de amar. A interação do casal fica permeada de conflitos contínuos.

Segundo Weeks (2014), quando a interação conjugal é entremeada por feridas narcísicas em ambos os membros do casal, com sentimento de abandono e censura internalizados ao longo de suas vidas, apresentam maior dificuldade no atendimento terapêutico. Há um processo de compulsão à repetição em ambos os cônjuges com projeções negativas que intensificam as feridas existentes, criando padrões de rejeição, falta de segurança e impedimento de compartilharem sua vulnerabilidade. Apresentam um relacionamento onde suas emoções não são compreendidas, entrando em discussões conflituosas, sem um fim definido. Há casais que verbalizam estar se destruindo como pessoas, sem sentir respeito um pelo outro. Estes comportamentos mais regressivos têm sua origem nas dinâmicas da primeira infância com comportamentos de negligência, falta de segurança, rejeições e outros. O resultado na vida adulta é de sentimento de rejeição, baixa autoestima e pensamentos destrutivos. Como defesa contra a vulnerabilidade emocional são desenvolvidos comportamentos de relacionamento interpessoal distantes e reativos. Nos relacionamentos, defende-se com comportamentos de raiva, ataque e isolamento.

A proximidade vivida em um casal torna-se perigosa para estes indivíduos. A agressividade de um membro tanto pode criar comportamento agressivo no outro como pode gerar maior passividade, causando mais irritabilidade e sensação de rejeição.

Estes comportamentos internalizados precocemente, tendem a se repetir ao longo da vida adulta. Aos poucos, o parceiro passa a ser percebido como aquele que o rejeita, sendo, assim, o causador de seu sentimento de rejeição na interação, tornando-se culpado por isso (Satir, 1985). Segundo esta autora, se um dos parceiros ou ambos têm baixa autoestima, mecanismos de projeção serão mais intensamente utilizados e, consequentemente, terão dificuldades na solução de conflitos e tendência a comportamentos de rejeição. Seguidamente os parceiros se isolam, ou têm comportamentos onde expressam raiva e agressão. Forma-se um padrão de reação e defesa entre os cônjuges, difíceis de serem modificados, onde uma possível construção interacional diferente não se concretiza. É constante o retorno à dinâmica conhecida ao sempre mencionarem o comportamento desagradável que anteriormente o parceiro mostrava. Esta reação conspira contra qualquer possibilidade de inovar na interação. Isso se torna mais claro na comunicação do casal, quando a resposta a um comentário feito vem carregada de sentimentos pessoais de crítica ao outro. Muitas dessas respostas são projeções ao escutar um comentário. Pode-se dizer que a escuta está contaminada por sentimentos anteriores de rejeição e emaranhamento interpessoal. Esta dinâmica ao se tornar repetitiva, compromete o relacionamento conjugal, levando a conflitos constantes.

Amor Maduro

Segundo Kernberg (2011), a capacidade de perdoar o comportamento ofensivo do outro e de pedir perdão é uma demonstração de um amor maduro, com a possibilidade de reconstruir a relação após sérios conflitos. O autor comenta que esta posição é diferente de um comportamento com características masoquistas de submissão, onde não há a confiança no outro, e sim uma relação que não é fiel à realidade. Nesta posição não há uma avaliação profunda do outro e um real interesse em seus sentimentos, a intimidade do casal permanece prejudicada limitando a melhora do relacionamento conjugal. A tentativa a evitar a projeção no outro de sentimento de culpa assim como ter a possibilidade de reparação são extremamente importantes para um relacionamento mais espontâneo e maduro. Em um relacionamento amoroso seguro há a possibilidade de um ficar desgostoso ou mesmo enfurecido com o outro, mas a comunicação desse furor não abala o amor existente entre ambos, isto é, a raiva manifestada não é suficiente para afetar o amor, prevalecendo a confiança na reparação do relacionamento.

Em um amor maduro, transparece a confiança em poder mostrar a sua vulnerabilidade ao outro sem receio de que isso seja jogado contra si em possíveis desentendimentos conjugais ou que se sinta em desvantagem ou frágil frente ao outro. Esta conduta de aceitação do outro com suas necessidades diferencia-se de um apego ansioso e desesperado que envolve um medo de perder o outro, levando a uma relação dependente e sufocante.

O amor maduro que implica o compromisso de amar a outra pessoa, com o reconhecimento de que essa pessoa é alguém livre, que ninguém pode ser forçado a amar mais do que é natural. Se a pessoa amada não for capaz de responder ao amor de alguém, isso tem que ser aceito, e o processo de luto pelo fim do relacionamento ser tolerado.

O caso a seguir mostra a possibilidade de construção de um amor maduro.

Joana e Mário

Joana e Mário, um casal de, aproximadamente, 40 anos, procurou atendimento, porque frequentemente tinham sérios conflitos, com muita discussão e agressões verbais, tais como insultos e sarcasmos. Ambos trabalhavam, mas desqualificavam agressivamente suas atividades profissionais. Joana se queixava que o marido não respeitava seu trabalho e não colaborava nos trabalhos domésticos. Mário dizia que ela era muito exigente com a manutenção da casa e que ele deveria fazer tudo conforme seu desejo. Ela se queixava que Mário não era capaz de cuidar do filho de cinco anos, enquanto ele se dizia capaz e o problema era Joana confiar nele. Os conflitos eram constantes.

Na terapia, o casal foi capaz de compreender os sentimentos e o ponto de vista um do outro, entendendo suas próprias reações emocionais e cognitivas. Ele compreendeu que, na realidade, esperava que a esposa não o criticasse nem discordasse dele. Joana percebeu que esperava que o marido prestasse mais atenção a ela e fizesse o que lhe solicitava. Constataram que ambos estavam preocupados em satisfazer suas próprias necessidades e que as do outro estavam sendo esquecidas.

Através da história das famílias de origem e do uso do genograma, ele se conscientizou que seus pais sempre consideravam tudo o que ele fazia como extremamente certo e não permitiam qualquer contrariedade sobre isso. Mário percebeu que, em seu desenvolvimento, não aprendeu a ser avaliado em suas decisões. Joana constatou que tinha intensos sentimentos de hostilidade em relação ao pai por ignorá-la e por "abandoná-la" quando se separou de sua mãe. Aos poucos, durante o processo terapêutico, o casal foi conquistando diferentes possibilidades de relacionamento ao adquirir novas habilidades de resolução de problemas. A comunicação entre eles se modificou, passaram a expressar o que desejavam de forma construtiva, como “gostaria que você pudesse fazer o que te peço, em lugar de “você nunca faz o que peço”. Essa mudança no relacionamento permitiu o aumento da intimidade do casal, contribuindo para uma melhora considerável em ambos.

Algumas Intervenções Terapêuticas

Casais com acentuados padrões disfuncionais em seu relacionamento apresentam um processo de mudança bastante difícil. O terapeuta ao lidar com esses casais deve mostrar empatia com o seu sofrimento, cuidado ao se referir às questões trazidas. Estar ciente que o processo não será contínuo, com melhoras e regressões sucessivas, considerando-se as características já descritas desses casais. Falar sobre essas possibilidades ajuda o casal a não se desesperar com seus movimentos de melhoras e recaídas na terapia. Muitas vezes isso se manifesta quando a comunicação sobre a intimidade do casal é o ponto em questão na sessão terapêutica.

Trabalhar com os conteúdos dos desentendimentos, como por exemplo: “eu não sou cuidado por ela”, possibilita vir à tona emoções, sentimentos e pensamentos que poderão estar relacionados ao início da vida de ambos no convívio com as famílias de origem. Isso permite a quebra de padrões repetitivos e conflituosos, transformando a comunicação crítica e destrutiva do casal em uma comunicação mais afetiva e cuidadosa. A realização do genograma do casal durante a terapia possibilita as manifestações de emoções e padrões existentes nas famílias de origem que podem ser os fundamentos desses sentimentos.  A compreensão de que os comportamentos atuais podem ser projeções de conteúdos vividos anteriormente, viabiliza ao casal construir uma nova forma de relacionamento. Identificar os comportamentos negativos ou destrutivos permite a elaboração dos mesmos e abre a possibilidade de dar a eles novos significados. Isso torna os parceiros autores de sua própria história interrelacional.

 

Conclusão

O trabalho do terapeuta com casais que apresentam padrões interrelacionais com a conflitiva descrita é bastante exigente, entretanto, se o casal está disposto a trilhar o caminho da mudança, torna-se muito satisfatório. Quando os casais entendem que o comportamento do outro não tem a finalidade de causar mágoas e a escuta torna-se adequada ao comportamento real, a construção de novos sentimentos torna-se viável. Os casais criam maior capacidade de compreensão das necessidades do outro, interrompendo o processo projetivo de seus sentimentos e, consequentemente, a diminuição do sofrimento vivido.

 

Referências

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Kernberg, O. F. (2011). Limitations to the capacity to love. International Journal Psychoan, 92, 1501–1515. doi: 10.1111/j.1745-8315.2011.00456.x

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Endereço para correspondência
Thiago de Almeida
E-mail: hchintz@terra.com.br

Enviado em: 11/11/2020
Aceito em: 16/12/2020

 

 

¹ Psicóloga, Psicoterapeuta de Indivíduos, Casais e Famílias. Sócia fundadora, Docente, Supervisora e Membro da Coordenação do Domus- Centro de Terapia Individual, de Casal e Família. Editora da Revista Pensando Famílias. Presidente da Associação Brasileira de Terapia Familiar - ABRATEF – 2014/2016. Presidente da Associação Gaúcha de Terapia Familiar – AGATEF – 2006/2008, 2016/2018, 2018/2022.
² Os dados do caso relatado são fictícios, assim como algumas situações do relacionamento conjugal, a fim de preservar a identificação de possíveis atendimentos.