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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.19 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

https://doi.org/issn.19982-1492v19n1a2 

ARTIGOS

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v19n1a2

 

O cuidado infantil no pensamento winnicottiano à luz da Psicologia Psicanalítica Concreta

 

Infant care in winnicottian thought in the light of Concrete Psychoanalytic Psychology

 

El cuidado infantil en el pensamiento winnicottiano a la luz de la Psicología Psicoanalítica Concreta

 

 

Carlos Del Negro Visintin 1,I; Sueli Regina Gallo-Belluzzo 2,II; Fabiana Follador e Ambrosio 3,II; Tânia Maria José Aiello-Vaisberg 4,II

IPontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto objetiva demonstrar e debater, à luz da psicologia psicanalítica concreta, uma contradição vigente no pensamento winnicottiano, expressa pela coexistência de duas visões acerca do cuidado infantil e da maternidade. Organiza-se em três seções. Na primeira, apresenta a psicologia psicanalítica concreta como referencial teórico. Na segunda, explicita e detalha a contradição do pensamento winnicottiano sobre cuidado infantil e maternidade. Na terceira, articula uma leitura do texto winnicottiano a partir da psicologia psicanalítica concreta, situando-a como convergente com a ontologia do ser social de Lukács. Por fim, indica a possibilidade de conhecimentos psicanalíticos colocarem-se a serviço de iniciativas a favor de transformações sociais que buscam superação de visões essencialistas sobre a maternidade.

Palavras-chave: cuidado infantil, maternidade, psicologia psicanalítica concreta, D. W. Winnicott.


ABSTRACT

The aim of this article is to demonstrate and debate, in the light of concrete psychoanalytic psychology, a current contradiction in winnicottian thought expressed by the coexistence of two visions over infant care and motherhood. The reflections on the matter are shown in three sections. Firstly, concrete psychoanalytic psychology as a theoretical framework is set. Secondly, explanation and details on the contradiction of winnicottian thinking about infant care and motherhood are discussed. Thirdly, the articulation on a view of a winnicottian’s text from the point of view of concrete psychoanalytic psychology placing it as convergent with Lukács's ontology of social being is presented. Finally, the possibility of psychoanalytic knowledge being put at the service of initiatives in favor of social transformations seeking to overcome essentialist views on motherhood is indicated.

Keywords: child care, motherhood, concrete psychoanalytic psychology, D. W. Winnicott.


RESUMEN

Este texto pretende demostrar y debatir, bajo la égida de la psicología psicoanalítica concreta, una contradicción imperante en el pensamiento de Winnicott, expresada por la coexistencia de dos visiones sobre el cuidado infantil y la maternidad. Está organizado en tres secciones. En la primera, presenta la psicología psicoanalítica concreta como marco teórico. En la segunda, explica y detalla la contradicción del pensamiento de Winnicott sobre el cuidado infantil y la maternidad. En la tercera, articula una lectura del texto winnicottiano basada en la psicología psicoanalítica concreta, situándolo como convergente con la ontología del ser social de Lukács. Finalmente, indica la posibilidad de poner el conocimiento psicoanalítico al servicio de iniciativas a favor de cambios sociales que busquen superar las visiones esencialistas sobre la maternidad.

Palabras clave: cuidado infantil, maternidad, psicología psicoanalítica concreta, D. W. Winnicott.


 

 

Com este texto, propomo-nos demonstrar e debater uma contradição acerca do cuidado infantil e da maternidade, vigente nos textos de D. W. Winnicott, que constatamos a partir de uma leitura orientada pela psicologia psicanalítica concreta (Bleger, 1964/1984). Tal contradição se explicita por meio da coexistência de duas diferentes visões sobre o fenômeno, cujo estudo se justifica pelo fato de refletir dois modos contraditórias de abordar a condição feminina, sendo um deles a raiz de muitos males sociais, enquanto o outro pode ser tomado como fundamento que aponta para possibilidades de sua superação de modo construtivo e saudável.

 

Apresentação da perspectiva da psicologia psicanalítica concreta

Optamos por iniciar nossa exposição apresentando a psicologia psicanalítica concreta, perspectiva teórico-metodológica que adotamos. Trata-se de um referencial teórico que surgiu a partir da proposição, formulada por Georges Politzer (1928/2004), de criação de uma psicologia concreta. Celebrando o surgimento da psicanálise, como ciência capaz de tomar o fato psicológico em primeira pessoa, como drama, no sentido de experiência vivida, concluiu o filósofo que, se o saber freudiano fosse criticamente depurado de sua teorização metapsicológica, que equivocadamente coisificava o psíquico, em termos de um aparelho, poderia originar uma psicologia psicanalítica que revolucionaria o campo das ciências humanas.

José Bleger (1958, 1963/1984, 19641984), psicanalista argentino, profundamente envolvido com a criação de uma nova psicologia psicanalítica, comprometida com a promoção da saúde mental da população, e não apenas com a psicanálise individual da classe média intelectualizada, na clínica privada, encantou-se com a ideia de Politzer (1928/2004). Contudo, percebeu que seria necessário realizar um trabalho de precisão conceitual para que uma psicologia psicanalítica concreta pudesse substituir a metapsicologia, o que veio a realizar sustentando-se satisfatoriamente no entrecruzamento de uma visão filosoficamente dialética com uma perspectiva teórico-metodológica psicanalítica. Sendo assim, propôs novos conceitos, buscou fundamentos epistemológicos e detalhou um corpo de conhecimentos que contribuiu para que parcela expressiva de trabalhadores de saúde mental, neles incluídos os psicólogos, adquirissem uma consciência mais lúcida acerca da função social de suas profissões na América Latina.

Uma psicologia concreta partiria necessariamente dos atos dos seres humanos concretos, tendo em vista conhecer seus sentidos afetivo-emocionais. Inicialmente, adotando a terminologia do filósofo húngaro, Bleger (1958) entendeu que a nova disciplina teria como objetivo estudar o viver enquanto drama, ou seja, como experiência vivida. Posteriormente, veio a adotar o termo conduta, para referir o objeto de estudo da psicologia, seguindo assim a definição de Daniel Lagache (1948/1986), prestigiado professor que assumiria, em 1947, a cadeira de psicologia na Sorbonne. Entretanto, a conduta é concebida, por Bleger (1963/1984), como fenômeno sempre situado em termos sócio-culturais:

A conduta é sempre manifestação do ser humano num contexto sócio-cultural e tem, portanto, propriedades que não aparecem ou que não existem no nível biológico. Nesse sentido, toda a biologia – ao estudar o homem como ser vivo no nível dos demais seres vivos – recorre, em certa medida a um artifício, porque faz abstração da condição particularíssima e única do homem entre todos os seres vivos. Ao estudar órgãos e sua fisiologia, ou aparatos e funções, recorre-se a um artifício de fragmentação e elementarização de uma realidade muito complexa, difícil de captar como unidade (Bleger, 1963/1984, p.65).

Entendendo como produtiva uma epistemologia baseada no compartilhamento, por todas as ciências humanas, do mesmo objeto de estudo, a conduta, definida como manifestação de seres humanos concretos, em contexto sociocultural, Bleger (1963/1984) houve por bem reservar a noção de drama para qualificar a abordagem psicológica da conduta, que consiste em tomá-la enquanto experiência vivida. A abordagem da conduta enquanto drama

Significa realizar o estudo da conduta em termos de experiência, de acontecer ou de acontecimento humano, quer dizer, dentro do mesmo nível de integração no qual realmente ocorre; implica, portanto, em manter a descrição e o estudo da conduta no nível psicológico (...) de integração (Bleger, 1963/1984, p. 108).

Partindo da concretude do acontecer inter-humano, o autor critica teorizações reificantes, conforme as quais o ser humano estaria dotado de um aparelho psíquico atravessado por energias. Ou seja, rejeita a metapsicologia freudiana de modo resoluto, daí decorrendo a ideia de que o inconsciente não corresponderia a uma área do aparelho psíquico ou a partes inconscientes do ego, mas seria uma dimensão intersubjetiva existencialmente habitada pelas pessoas. A seu ver, todo ato humano, sintomático ou não, seria vínculo por excelência, a emergir a partir de campos de sentido afetivo-emocional humanamente produzidos. Os campos, por seu turno, estariam sempre inseridos em contextos macrossociais, com os quais estariam em constante e inevitável interação. Nesse sentido, a psicologia psicanalítica concreta corresponderia a uma teorização vincular-relacional (Greenberg & Mitchell, 1983).

Entretanto, cabe destacar que, na medida em que consiste numa elaboração teórico-metodológica fundamentada numa perspectiva dialética materialista, a psicologia psicanalítica concreta se diferenciaria da maior parte das teorizações relacionais, porque leva em conta contextos macrossociais, não se limitando a pensar o social como circunscrito ao registro familiar. Esse é um aspecto muito importante quando nos interessamos pelo estudo de sofrimentos socialmente determinados por questões estruturais como o classismo, o racismo e as relações hierárquicas de gênero. De fato, desde as pioneiras colocações de Politzer (1928/2004), passando pelos desenvolvimentos blegerianos, até os nossos dias, a psicologia psicanalítica concreta se mantém fiel à ontologia do ser social, tal como explicitada por Lukács (1968/2013).

De acordo com a ontologia do ser social lukacsiana, cujo estudo, entre nós, tem sido facilitado por vários autores, entre os quais destacamos Lessa (2015), é fundamental a distinção entre três esferas do ser, que Bleger (1963/1984) já levara em conta: a esfera inorgânica, a esfera orgânica e a esfera social. É na esfera social que podemos existir como pessoas e não apenas como organismos, que também somos. Assim, podemos conhecer o funcionamento biológico do corpo humano, de acordo com uma legalidade a que estão sujeitos todos os seres vivos, mas por essa via não alcançaremos características, qualidades e predicados que só estão presentes na condição humana, que só se realiza na esfera do ser social. Portanto, se buscamos compreender a pessoa em termos de experiência vivida, ou seja, de drama, devemos penetrar na esfera ontológica do ser social, pois a própria singularidade individual é, em si mesma, um fenômeno socialmente produzido apenas nessa esfera do ser.

 

Uma contradição no pensamento winnicottiano

Apoiados em uma leitura baseada na psicologia psicanalítica concreta, viemos a distinguir a vigência de uma contradição entre duas vertentes presentes no texto winnicottiano. A primeira vertente corresponde a uma visão fortemente afetada por um reducionismo biológico, na medida em que consiste na ideia segundo a qual a genetriz seria a melhor cuidadora dos filhos. A segunda vertente consiste numa visão sobre a natureza humana, que prevê a possibilidade de realização de potencialidades inexistentes nas esferas inorgânica e orgânica. Em presença de ambientes micro e macrossociais favoráveis, tais potencialidades se realizariam sob forma de capacidades que rumam no sentido ético do reconhecimento da humanidade do outro ser humano, que invocam cuidado, respeito e solidariedade. A contradição se expressa, portanto, na medida em que o cuidado materno seria, evidentemente, um caso particular de algo que, fazendo parte da natureza humana, acontece na esfera social e não na esfera orgânica do ser.

A partir da primeira vertente, vale dizer, aquela que considera o cuidado exercido pela mãe como biologicamente determinado, Winnicott (1945/2000, 1968/1988) veio a postular a ocorrência de um estado psicológico especial, que acometeria as mulheres no final da gestação e que se prolongaria por algumas semanas após o parto, ao qual se referiu como preocupação materna primária. Tal fenômeno, que facilitaria o tornar-se uma mãe suficientemente boa, basear-se-ia em um processo de identificação da mãe com o recém-nascido. A preocupação materna primária favoreceria o estabelecimento de uma sintonia com o bebê, cujas necessidades seriam, desse modo, mais facilmente percebidas e atendidas.

Este estado psicológico da genetriz caracterizar-se-ia como um retraimento da mãe em relação a outros interesses sociais, a fim de se dedicar e de se preocupar quase que exclusivamente com seu filho. De acordo com Winnicott (1945/2000, 1968/1988), caso não tivesse dado à luz, a mãe, nessa condição, receberia facilmente um diagnóstico psiquiátrico.

Diante do conceito de preocupação materna primária, Greenberg e Mitchell (1983) apontam que, na perspectiva winnicottiana, a alteração psíquica da mãe estaria enraizada em processos biológicos de evolução da espécie humana. De acordo com os autores, o texto winnicottiano descreve uma mãe absorvida e identificada com seu bebê por efeito de fantasias simbióticas, de modo que estaríamos frente a um traço adaptativo natural, que favoreceria o desenvolvimento infantil e, por conseguinte, a sobrevivência da espécie.

Segundo Winnicott (1945/2000), o estado de preocupação materna primária garantiria a saúde mental da criança, uma vez que o retraimento materno favoreceria o amadurecimento emocional do bebê nas fases mais primitivas, durante as quais ocorrem os processos de integração, personalização e realização. Eventuais falhas maternas, nessa fase inicial de dependência absoluta do bebê em relação à mãe, poderiam provocar prejuízos significativos, como o autismo e as psicoses infantis, que poderiam instalar-se mesmo no caso de crianças organicamente saudáveis.

No texto winnicottiano, a capacidade da mãe biológica de perceber as necessidades do bebê é altamente valorizada. Entretanto, parece-nos fundamental considerar o contexto cultural no qual surgiu a teoria da preocupação materna primária. Como bem lembrou Aching (2017), o psicanalista parece ter atendido mães que eram mulheres casadas que adotavam a divisão sexual do trabalho, vigente entre aqueles que não enfrentavam situações de pobreza, que obrigariam a mulher a complementar os ganhos do marido. Zavaglia (2020), por sua vez, recorda que a prática da psicanálise, na Inglaterra, durante o século passado, beneficiava-se do poderio imperial vitoriano, de modo que práticas culturais inglesas, incluídas aí aquelas relativas ao cuidado infantil e à maternidade, eram com certeza imaginadas como superiores.

Um último ponto merece ser mencionado. Como sabemos, o pessimismo freudiano harmonizou-se com a crença de que todo vínculo amoroso, aí incluído o amor materno, estaria baseado em processos identificatórios. Sendo assim, como o indivíduo seria basicamente egoísta, só chegaria a amar caso se iludisse, confundindo o ser amado consigo mesmo. Aparentemente, Winnicott (1971/1975) parece ter sido capaz de um posicionamento mais otimista, acreditando na possibilidade de as pessoas desenvolverem criativamente suas capacidades, quando favorecidas por ambientes humanos suficientemente bons. Contudo, não deixou de mencionar, diversas vezes, (Winnicott, 1945/2000) que a entrada da mãe em um estado psíquico alterado, favoreceria o atendimento do recém-nascido porque facilitaria a identificação da mãe com o bebê. É verdadeiramente curioso constatar, como pondera Aiello-Vaisberg (2006), que a possibilidade de a mãe ver o filho como alteridade e sensibilizar-se com sua necessidade de cuidado - pelo mesmo autor que percebeu a importância da criança poder ver a si mesma no olhar da mãe, que a enxerga em sua unicidade e singularidade (Winnicott, 1971/1975), - não seja claramente cogitada e assumida.

A segunda vertente do pensamento winicottiano, que aqui devemos focalizar, é aquela relativa à concepção do ser humano como dotado de um potencial criador, que pode direcioná-lo, na vigência de um ambiente favorecedor, ao desenvolvimento de capacidades tais como a de reconhecimento da humanidade do outro, requisito fundamental para mudanças no sentido da humanização radical do mundo em que vivemos, por meio da superação da violência e opressão contra indivíduos e grupos. Esse tipo de visão pode sintonizar-se com as especificidades da esfera ontológica do ser social, que é o espaço em que o ser humano cria seu próprio viver, onde a capacidade de agir, no sentido da participação ativa em processos de transformação de si e do mundo, tem lugar.

Abordando a concepção winnicottiana de natureza humana, Plastino (2012) afirma que esta se realiza com plenitude no cuidado do outro. Ou seja, cuidar nos definiria como humanos, existindo em todos como potencial, que se concretizaria em ambientes favoráveis. Podemos, assim, compreender a importância do ambiente humano, onde as pessoas coexistem e onde se desdobra a dramática da vida. Fica mais clara a percepção de que o humano pode agir ativa e criativamente sobre o ambiente, ou seja, que é capaz de gestualidade criativa e transformadora. Isso se dá na medida em que o ser humano não é entendido como um mero organismo, que reage instintivamente a estímulos ambientais, segundo a legalidade própria da esfera orgânica, mas sim como agente, cuja subjetividade é constituída pelo ambiente que, por seu turno, é constituído intersubjetivamente, segundo movimentos complexos, simultâneos e paradoxais (Winnicott, 1945/2000, 1952/2000).

Percebemos, nesta segunda vertente, que aquilo, que chamamos de sentido da vida, corresponde a uma dimensão do viver humano só encontrável na esfera do ser social. Se podemos definir a esfera orgânica como aquela em que só ocorre a reprodução do mesmo, ao entrarmos no mundo especificamente social e humano, defrontamo-nos com a produção do diferente, do novo que é, em sentido preciso, fruto da capacidade criadora. Vale lembrar Winnicott (1971/1975, p.102): "Descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que a vida merece ser vivida ou, então, que não podem viver criativamente e têm dúvidas sobre o valor de viver."

Na medida em que a saúde está relacionada a sentir-se vivo e real (Winnicott, 1971/1975), o potencial de vir a ser das pessoas em geral, e não só do bebê, está diretamente ligado a ser suficientemente bem acolhido pelo ambiente (Aiello-Vaisberg, 2017). Em outros termos, se sobrevivemos, como os demais mamíferos, só vivemos como pessoas se tivermos sido cuidados e se pudermos cuidar. Portanto, a possibilidade de o bebê humano, e de pessoas em outras faixas do ciclo do desenvolvimento, serem continuamente bem-recebidos pelo mundo – pois essa necessidade nunca deixa de vigorar -, passa pela consideração do respeito fundamental à sua humanidade, de modo que a criatividade pessoal possa ser exercida. Em outros termos, a gestualidade criativa, própria do humano, só poderá ocorrer criativamente caso o ambiente ofereça uma sustentação cuidadosa, solidária e ética, condição que não é biologicamente determinada, mas humanamente produzida na coexistência.

 

Uma contradição à luz da psicologia psicanalítica concreta

Para refletirmos sobre as duas vertentes, por meio das quais o cuidado infantil pode ser focalizado no e a partir do texto winnicottiano, apoiamo-nos em uma obra escrita para fins didáticos, na qual Bleger (1963/1984) faz uso da ontologia do ser social presente no materialismo dialético, posteriormente explicitada por Lukács (1968/2013), por meio do combate do que o psicanalista argentino designa como mitos sobre o ser humano: mito do ser humano natural, mito do ser humano abstrato e mito do ser humano isolado das condições concretas da existência social. Tais mitos traduzem uma visão antropológica, bastante corrente no mundo ocidental, que acarreta importantes consequências no âmbito da psicologia e da psicopatologia, seja na pesquisa, seja na prática clínica, de acordo com a qual a sociabilidade não inauguraria uma nova esfera do ser, mas corresponderia a simples epifenômeno orgânico, passível de ser conhecido exaustivamente pelas ciências naturais. Sendo assim, os mitos são considerados como perigosos por aqueles que, admitindo que o ser social depende obviamente da vida orgânica, como esta depende da esfera inorgânica do ser, acreditam nas capacidades humanas de criação de novas modalidades de coexistência.

Quando se pensa o humano reduzindo-o à sua natureza animal, sem reconhecer o salto que cria a ontologia do ser social, podemos chegar a produzir conhecimentos que podem apresentar certa utilidade no campo da saúde. Considerando-se a vida como conjunto de reações bioquímicas, que colocariam o corpo-máquina em funcionamento, tornamo-nos igualmente capazes de desenvolver tecnologias importantes para a saúde humana.

Por outro lado, quando se pensa o humano como dotado de uma natureza humana, que mantém dependência em relação à esfera orgânica, mas a ela não se reduz, passa-se a considerar a vida não apenas como fenômeno biológico, mas também como biografia individual e/ou coletiva, ao longo da qual o humano é criado por realidades e, simultânea e paradoxalmente, cria realidades. Nesse sentido, a cultura e o trabalho, na acepção mais ampla do termo (Lessa, 2015), tornam-se gestualidade criadora.

Podemos afirmar que a perspectiva blegeriana tem permitido um uso singular do pensamento winnicottiano5 para compreender atos humanos em geral e o cuidado infantil em particular, uma vez que tanto Bleger (1963/1984) quanto Winnicott (1956/2000) valorizam teorizações que mantenham máxima proximidade em relação à concretude do acontecer clínico, evitando, nesse modo, abstrações improdutivas. Por outro lado, ambos reconhecem a importância do ambiente na realização do potencial humano, que se renova a cada nascimento, ambiente esse que é, de fato, fruto de atos humanos, fruto da capacidade criadora dos seres humanos. Entretanto, vale ressaltar que Bleger (1958, 1964/1984), em função de seus interesses ético-políticos, confere uma ênfase muito maior aos contextos macrossociais, diferenciando-se, nesse sentido, do posicionamento winnicottiano. Tal fato decorre provavelmente, das circunstâncias de vida, pois enquanto o primeiro, filho de judeus migrantes, conhecendo as dificuldades vividas na periferia do sistema capitalista, comprometeu-se profundamente como latino-americano, o segundo exerceu sua prática sem conhecer os desafios sociais de que era poupado naquele que foi o mais poderoso país imperialista do mundo.

Quando pensamos o cuidado infantil, que tem sendo organizado, em sociedades capitalistas patriarcais, em termos de exercício da maternidade no âmbito da família nuclear, à luz de contribuições do feminismo materialista, novas possibilidades de compreensão descortinam-se diante de nós. Nessa perspectiva, a divisão sexual do trabalho atribui ao homem as atividades produtivas passíveis de serem remuneradas, enquanto a mulher se incumbe de atividades de reprodução cotidiana da vida, sem fazer jus a pagamento, num regime que pode ser comparado, sem exagero, à escravização vivida pelos negros. O trabalho reprodutivo abrange os chamados serviços domésticos, desde tempos em que, no domicílio, incluíam-se o cuidado de crianças, idosos e doentes, além das atividades artesanais, que hoje são assumidas por indústrias, tais como a da alimentação, a do vestuário e a de produção de produtos de limpeza. Nenhuma dessas tarefas, inclusive a criação dos filhos, é vista como trabalho, mas, sim, como ações por meio das quais se prolongaria a biologia feminina (Federici, 2019), o que se alinha à primeira vertente do texto winnicottiano, segundo o que aqui apontamos.

Aliando psicanálise e teorias feministas, Bueskens (2018) considera que a organização da sociedade patriarcal capitalista coloca a mulher numa posição claramente inferior em relação ao homem, o que gera efeitos subjetivos importantes. Um deles seria aquilo que denomina "dois modos de self", ou seja, dois tipos de experiência vivida. Por um lado, haveria um self individualizado, que se dá no âmbito público e laboral, e um self maternal, voltado para os cuidados com os filhos, com a família e com a manutenção da moradia. De acordo com a autora, a inserção da mulher no mercado de trabalho, tornando-a ausente do domicílio durante várias horas do dia, não foi suficiente para um remanejamento adequado da responsabilidade pelo trabalho reprodutivo, do que resulta a situação conhecida como dupla jornada.

Ao considerarmos uma ligação entre as considerações de Federici (2019) e Bueskens (2018), por meio de Hirata (2004), é possível entendermos que a dissociação dos dois selves (Bueskens, 2018), enquanto experiência vivida pelas mães, nessa organização socioeconômica específica, permanecerá relativamente intacta, caso a conciliação entre trabalho profissional e trabalho de cuidado infantil continue sendo vista como um problema da mulher trabalhadora e de mais ninguém. Nota-se, assim, que o problema é encaminhado de modo perverso, pois tira proveito do fato da mulher aspirar fortemente por independência financeira, para sobrecarregá-la sob alegação, mais ou menos implícita, dependendo das circunstâncias, de que o trabalho reprodutivo não seria pesado na medida em que requer habilidades biológicas femininas. Desta feita, formulações teóricas, no campo da psicologia, que não levem em conta determinantes sociais, podem não contribuir para o avanço das formas de convivência social mais justas, solidárias e respeitosas, porque impedem o correto equacionamento das questões em jogo. Incluímos nesse rol aquilo que, nesse texto, designamos como primeira vertente do pensamento winnicottiano sobre o cuidado infantil. Evidentemente, nossa crítica não consiste em atribuir intenções antifeministas a um grande autor, mas tem a finalidade de convidar pesquisadores e clínicos a repensarem questões relevantes que parecem não acompanhar certas mudanças sociais.

As alegrias e as tristezas da maternidade e do cuidado infantil são experiências que ocorrem na esfera do ser social, não cabendo confundi-las com eventos que, inserindo-se na esfera orgânica, caracterizam a vida biológica dos mamíferos. Como prática socialmente determinada, pode ser socialmente transformada. É nessa perspectiva que se insere a psicologia psicanalítica concreta, quando nos oferece a seguinte declaração: "(...) parece-nos importante partir da afirmação de que a psicologia estuda, ou deve estudar, seres humanos reais e concretos" (Bleger, 1963/1984, p. 15). Tal visão gera ânimo e esperança, uma vez que se fundamenta em firme e fértil solo teórico e epistemológico, favorecendo mudanças concretas de existência, além de incidir, obviamente, sobre as práticas clínicas de cuidado com mães (Granato, 2004).

Focando sobre a segunda vertente, aquela que enfatiza a criatividade e o potencial humano de cuidado, pensamos que o texto winnicottiano fornece bases para pensar uma ética do cuidado que não depende de gênero e sim do modo como concebemos a natureza humana, como expressão da ontologia do ser social (Lukács, 1968/2013). Desta feita, a segunda vertente, que estudamos no presente texto, alinha-se com uma antropologia que combate desigualdades e opressão em todas as suas formas.

 

Considerações finais

A ética do cuidado, quando esse não é pensado como atributo feminino e sim como potencialidade humana, possibilita que entendamos os seres humanos, independentemente de sua faixa etária, como pessoas singulares que se desenvolvem e realizam seus potenciais quando são sustentados em ambientes humanizados. Para Winnicott (1971/1975), o ser humano é dotado de potencialidades criadoras, vale dizer, transformadoras da realidade, cuja concretização depende do ambiente cultural. Uma dessas potencialidades seria a capacidade de se preocupar com o outro, ou seja, a capacidade de cuidar. Sendo um traço da humanidade, concluímos que tal capacidade não é exclusividade feminina, pois tanto homens como mulheres compartilham este potencial, embora a maioria dos homens, na sociedade contemporânea, esteja tolhida para desenvolvê-la em plenitude.

Plastino (2012) entende ser altamente relevante compreendermos que o pensamento winnicottiano dista enormemente das concepções clássicas acerca do superego, na medida em que considera que o sentimento ético corresponde ao pleno reconhecimento da humanidade do outro. Essa humanidade se vincula, diretamente, tanto à necessidade de dar como à necessidade de receber cuidado sob as mais variadas formas comportamentais, uma vez que a existência humana é coexistência. Por outro lado, o cuidado se apresenta diferenciadamente nas diversas fases e circunstâncias do devir vital, conforme estejamos diante de bebês, crianças, adolescentes ou idosos, diante de pessoas saudáveis, enfermas ou com deficiências, preparadas ou não preparadas para tarefas específicas, e assim por diante.

Se é verdade que os bebês necessitam ter suas necessidades reconhecidas, dada sua condição de radical dependência, o fato é que a biologia não impede que bebês, cujas mães, por exemplo, não conseguem amamentar, recebam os mesmos benefícios do leite humano, obtendo-o a partir de um banco que recolhe a produção de mulheres doadoras (Rodriguero et al., 2019). Assim, a necessidade que o embrião e o feto têm da higidez do organismo materno, no registro propriamente biológico, não se confunde com a necessidade de cuidado que apresenta depois de nascido, o que, aliás, permite que diferentes práticas de criação sejam utilizadas em diferentes ambientes culturais (Gottlieb & Deloache, 2016).

Por outro lado, as mães biológicas também apresentam necessidade de cuidado, no sentido de reconhecimento de sua humanidade, que compartilham com todas as pessoas. Se ainda hoje pensamos em necessidades específicas de mulheres ou de mães, é porque ainda não concluímos um processo de transformação que, felizmente, encontra-se em curso. Por este motivo, nesse momento, o reconhecimento da humanidade da mulher, bem como de todos os grupos que sofrem violências e discriminação, conforma-se como uma questão de suma importância, exatamente por vir a ser um antídoto contra a naturalização da maternidade.

 

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Endereço para correspondência
Carlos Del Negro Visintin
Av. dos Expedicionários, 228 - Jardim Fortaleza, Paulinia, SP, 13140-062.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1995-1047
E-mail: carlos.visintin@gmail.com

Sueli Regina Gallo-Belluzzo
Rua Camargo Pimentel, 872, Jardim Guanabara, Campinas, SP, 13073-340.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0160-9152
E-mail: suelibelluzzo@gmail.com

Fabiana Follador e Ambrosio
Rua Cristiano Viana, 441, conjunto 21, Cerqueira Cesar, São Paulo, SP, 05411-000.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5843-7545
E-mail: fabfoll@gmail.com

Tânia Maria José Aiello-Vaisberg
Av. Professor Mello Moraes, 1721 - Butantã, São Paulo - SP, 05508-030.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3894-1300
E-mail: aiello.vaisberg@gmail.com

Submissão em: 30/12/2020
Aceite em: 28/03/2022

 

 

1 Doutor em psicologia (bolsista CNPq), Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
2 Doutora em psicologia, Universidade de São Paulo.
3 Doutora em psicologia (bolsista CNPq), Universidade de São Paulo.
4 Livre docente. Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
5 A articulação das exigências da psicologia psicanalítica blegeriana com algumas teorias winnicottianas tem-se revelado fecunda, tanto no campo da pesquisa, quanto em termos de atuação clínica. Pela via dessa articulação, foi criado, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, o Estilo Clínico Ser e Fazer, que se concretiza por meio dos chamados enquadres diferenciados (Ambrosio, 2013; Aiello-Vaisberg, 2004).

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