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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.19 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

https://doi.org/issn.19982-1492v19n1a7 

ARTIGOS

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v19n1a7

 

O significado do consumo de psicofármacos pelos familiares de pessoas com transtorno bipolar

 

The meaning of psychotropic drugs use by family members of people with bipolar disorder

 

Significado del consumo de psicotrópicos por familiares de personas con trastorno bipolar

 

 

Danubia Cristina de Paula1; Kelly Graziani Giacchero Vedana2; Adriana Inocenti Miasso3

Universidade de São Paulo – USP, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Familiares são importantes cuidadores de pessoas com transtorno bipolar (TB), podendo estar vulneráveis ao assumir esse cuidado e buscarem algum tipo de apoio, como o consumo de psicofármacos. O objetivo deste estudo foi compreender o significado que os familiares cuidadores atribuem para o próprio consumo do psicofármaco. Trata-se de estudo qualitativo com 32 participantes que utilizou o Interacionismo Simbólico (referencial teórico) e a Teoria Fundamentada nos Dados (referencial metodológico). Os dados foram analisados em três etapas: codificação aberta, axial e seletiva. O familiar é impactado por ter que assumir o cuidado e precisa buscar alternativas para se adaptar às dificuldades e efeitos disso. Assim, ele busca o consumo de psicofármacos, mas tal consumo é visto e compreendido de maneiras diferentes ao longo do processo de utilização. Os resultados desta pesquisa oferecem maior compreensão do fenômeno estudado e subsídios para a melhoria da assistência para essa clientela.

Palavras-chave: familiares cuidadores, psicofármacos, transtorno bipolar, teoria fundamentada nos dados.


ABSTRACT

Family members are essential caregivers of people with bipolar disorder (BD) and may be vulnerable upon assuming this care, seeking some support such as the use of psychotropic drugs. The objective of this study was to understand the meaning that family caregivers attribute to their psychotropics use. This is a qualitative study with 32 participants that used Symbolic Interactionism (theorical reference) and the Grounded Theory (methodological reference). Data were analyzed in three steps: open, axial and selective coding. The family member is impacted by having to assume the care and needs to look for alternatives to adapt to the difficulties and effects of this care. Hence, they seek the use of psychotropics, but this consumption is seen and understood differently throughout the utilization process. This study offers a better understanding of the studied phenomenon and subsidies to improve the assistance to this clientele.

Keywords: family caregivers, psychotropic drugs, bipolar disorder, grounded theory.


RESUMEN

La familia es importante cuidadora de personas con trastorno bipolar (TB) y por asumir ese cuidado se quedan vulnerables a la búsqueda de apoyo por medio del consumo de psicofármaco. Por ese motivo, el objetivo de este estudio fue el de comprender el significado que los familiares cuidadores atribuyen al proprio consumo de psicofármaco. El estudio ocurrió por análisis cualitativo de 32 participantes y utilizó el Interaccionismo Simbólico (referencial teórico) y la Teoría Fundamentada en Datos (referencial metodológico). El análisis de datos ocurrió en tres etapas: la codificación abierta, axial y selectiva. El familiar es impactado por asumir el cuidado y necesita buscar alternativas para adaptarse a las dificultades y efectos de eso. Por lo tanto, se busca el consumo de psicofármacos, pero dicho consumo es visto y comprendido de diferentes maneras a lo largo del proceso de utilización. Los resultados de esta pesquisa ofrecen una comprensión más grande del fenómeno estudiado y ofrecen también subsidio para perfeccionamiento de la asistencia a eses clientes.

Palabras clave: familiares cuidadores, psicotrópicos, transtorno bipolar, teoria fundamentada en los dados.


 

 

Introdução

O Transtorno Bipolar (TB) é um importante transtorno que, usualmente, tem início precoce, é recorrente e associado a perturbações sociais, queda do funcionamento ocupacional da pessoa diagnosticada (Gutierrez-Rojas, Martinez-Ortega & Rodrigues-Martin, 2013), elevadas taxas de morbidade e mortalidade (Costa, 2008; Crump et al., 2013), maior risco de suicídio (Pompili et al., 2013), custos sociais e pessoais (Fagiolini et al., 2013), e prejuízos aos familiares, especialmente aqueles que assumem a função de cuidadores (Gutierrez-Rojas, Martinez-Ortega & Rodrigues-Martin, 2013).

A partir da proposta da desinstitucionalização em saúde mental, a família passou a ser reconhecida como protagonista na promoção e manutenção de saúde da pessoa com transtorno mental (Santos, Eulálio & Barros, 2015). Nesse sentido, ela se depara com a realidade do cuidado e responsabilidade na reabilitação para suprir as necessidades básicas da pessoa com transtorno mental, coordenar suas atividades, realizar a administração medicamentosa, oferecer apoio social, suportar custos, lidar com comportamentos perturbadores e com possíveis episódios de crise (Tabeleão, Tomasi & Quevedo, 2014).

Em face da responsabilidade do cuidado, das possíveis alterações negativas na saúde física e emocional dos familiares cuidadores, como sobrecarga e diminuição da qualidade de vida, e da dificuldade para esses cuidadores encontrarem auxílio nos serviços de saúde e encararem tal responsabilidade, considera-se importante pensar sobre o consumo de psicofármacos pelos familiares cuidadores e quais os fatores e significados envolvidos nessa utilização.

O psicofármaco é considerado importante instrumento de cuidado em saúde mental. A prevalência mundial de consumo de psicofármacos tem sido elevada (Mark, 2010) e contribuíram para o crescimento desse consumo o aumento do diagnóstico de transtornos psiquiátricos na população, a introdução de novos psicofármacos pela indústria farmacêutica e a possibilidade de novas indicações terapêuticas (Leonor & Ernesto, 2012).

No Brasil, ainda há poucas pesquisas voltadas para a investigação da prevalência do consumo de psicofármacos na população geral (Rocha & Werlang, 2013) e é necessária a realização de estudos capazes de compreender os fatores envolvidos na utilização desses medicamentos. No caso do consumo por familiares cuidadores de pessoas com TB isso pode ser muito importante, pois não se sabe ao certo se essas pessoas buscam o psicofármaco como alternativa de apoio diante da responsabilidade de cuidado com a pessoa com TB.

A investigação do consumo representa muito mais que o conhecimento sobre a prevalência, possíveis fatores associados e o significado desse consumo; por meio dela é possível ver possibilidades e limites na temática, investir em novos desafios no campo da saúde mental, pensar sobre novas maneiras de cuidado e trabalho em saúde, além da reflexão crítica sobre o assunto.

Pensar sobre o consumo de psicofármacos por familiares cuidadores de pessoas com TB é olhar para uma lacuna da literatura que pode fornecer novas possibilidades de investigação científica e a transposição desse conhecimento para a prática profissional. Os sintomas apresentados pelos familiares podem representar indício da necessidade de um cuidado mais direcionado. Considerando isso, o objetivo deste trabalho foi compreender o significado que o familiar cuidador atribui ao próprio consumo de psicofármacos.

 

Método

Este estudo qualitativo seguiu as diretrizes dos critérios consolidados para relatos de pesquisa qualitativa – COREq (Tong, Sainsburg & Craig, 2007), teve como questão norteadora da pesquisa a compreensão do significado do próprio consumo de psicofármacos pelos familiares cuidadores de pessoas com TB e empregou o Interacionismo Simbólico (IS) como referencial teórico e a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) como referencial metodológico.

O Interacionismo Simbólico refere-se à particularidade do ser humano de interagir, interpretar, definir e agir no cotidiano, tudo isso de acordo com os significados que ele atribui para cada situação vivida. Consiste em uma perspectiva de análise na qual as experiências humanas são o foco, considerando como caráter primordial a natureza das interações e a dinâmica das atividades (Charon, 1989). Tal referencial teórico foi escolhido para a compreensão do significado do consumo de psicofármacos pelos familiares cuidadores por possibilitar a compreensão do fenômeno estudado a partir do processo de interação.

A TFD serviu como referencial metodológico e permitiu a construção de uma teoria sobre o significado do consumo de psicofármacos pelos próprios familiares a partir da organização, análise e sistematização dos dados coletados. Permitiu também a combinação de raciocínio indutivo e dedutivo para a apreensão não só das condições relevantes relacionadas ao consumo de psicofármacos pelos próprios familiares cuidadores, mas também como eles respondem a condições e consequencias diferentes perante suas ações, sem com isso perder o rigor científico necessário (Strauss & Corbin, 2008).

Este estudo foi realizado em três serviços públicos de saúde mental em um município do interior de São Paulo, Brasil. Esses serviços são referências na cidade para o cuidador em saúde mental e foram escolhidos devido a sua relevância para evidenciar o fenômeno estudado.

No total, 32 familiares cuidadores de pessoas com TB foram incluídos no estudo. Os critérios de inclusão foram: idade igual ou superior a 18 anos; ser capaz de se comunicar verbalmente em português; ser mencionado pela pessoa com TB como o membro da família mais envolvido no cuidado dessa pessoa; estar envolvido nas tarefas cotidianas de cuidado da pessoa com transtorno bipolar (não necessariamente residindo na mesma casa que a pessoa com TB) e referir consumir algum tipo de psicofármaco no momento da realização da entrevista.

Os critérios de exclusão foram: pessoas com TB sem apoio familiar ou com apoio somente de familiares com menos de 18 anos de idade; pessoas com TB falecidas ou que abandonaram o tratamento antes do contato inicial ser realizado; familiares cuidadores que não puderam ser contatados por telefone e não responderam após as tentativas de contato via carta e que visitavam esporadicamente a pessoa com TB, que morava sozinha.

A variabilidade interna da amostra foi obtida em relação às experiências e características pessoais dos familiares cuidadores que consumiam algum tipo de psicofármaco e a coleta de dados só cessou após a saturação dos dados, momento no qual o objetivo foi alcançado e o acréscimo de novas informações não contribuiria ou acrescentaria dados para a compreensão do consumo de psicofármacos.

A coleta foi realizada entre outubro de 2013 e dezembro de 2016 concomitantemente com a análise de dados, como o recomendado pela TFD (Strauss & Corbin, 2008). Antes do início da coleta, um estudo piloto com cinco familiares cuidadores foi realizado para avaliar a questão norteadora e a condução da entrevistadora no processo de entrevistas.

As entrevistas foram abertas e gravadas individualmente em áudio e tiveram a duração de aproximadamente 30 minutos. Os participantes foram entrevistados em local privativo e cada pessoa participou de uma ou duas entrevistas. A entrevista inicial foi baseada na questão norteadora: fale como é para o(a) senhor(a) utilizar o(s) psicofármaco(s) [dizer o nome do(s) psicofármaco(s) utilizado(s)] e novas questões foram acrescentadas para a compreensão do consumo de psicofármacos pelos próprios familiares cuidadores. Na segunda entrevista, os participantes foram convidados para esclarecimento ou complementação de dados considerados pertinentes e o preenchimento de algumas lacunas que surgiram após a primeira entrevista.

A análise dos dados se deu pelos procedimentos de codificação aberta, axial e seletiva sugeridas pela TFD (Strauss & Corbin, 2008). Na codificação aberta os dados coletados foram conceituados a partir da análise detalhada e minuciosa, divididos em partes menores, denominadas incidentes, e nomeados provisoriamente por uma palavra ou frase, considerando o significado embutido em cada fragmento. A nomeação dos incidentes originou os códigos, também provisórios, que, após exaustivas comparações em relação às suas semelhanças e diferenças, resultaram nas categorias, um nível mais abstrato desse processo de análise (Strauss & Corbin, 2008).

Na codificação axial ocorreu o processo de reorganização e reagrupamento dos dados anteriormente divididos na codificação aberta. Nessa etapa, houve a integração entre as categorias e subcategorias, o que possibilitou o cerne de explicações mais completas e precisas acerca do fenômeno estudado. Subcategorias foram construídas no processo de categorização e responderam a questões sobre o fenômeno, como por exemplo: "Como?", "Por exemplo?", "Quando?", "Onde?", "Por quê?", "Quem?" e "Com quais consequências?" (Strauss & Corbin, 2008).

A codificação seletiva foi o último processo da análise, momento no qual ocorreu a integração final dos dados (Strauss & Corbin, 2008). A formação da categoria central surgiu a partir da junção das categorias organizadas no processo anterior e representa a real relevância do fenômeno de investigação (Flick, 2009). Nesse processo houve o refinamento da teoria, por meio da revisão do processo de análise e busca de possíveis falhas e a consequente validação interna possibilitando, assim, o desenvolvimento de uma teoria realmente fundamentada nos dados obtidos (Strauss & Corbin, 2008).

O estudo recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa e cumpriu as orientações referentes a pesquisa com seres humanos. O sigilo foi preservado e todos os participantes assinaram o termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Resultados

No total 32 familiares cuidadores de pessoas com TB participaram do estudo e 84,4% (27) eram do sexo feminino; 28% (9) com 60 ou mais anos de idade; 40% (13) com ensino fundamental incompleto; 59,4% (19) eram casados/amasiados; 50% (16) de religião evangélica; 31,2% (10) com trabalho regular; 43,7% (14) eram mãe ou pai da pessoa com TB; 68,7 (22) consumiam antidepressivos no momento da entrevista e 65,6% (21) utilizavam apenas um tipo de psicofármaco.

O significado do consumo de psicofármacos pelos próprios familiares cuidadores foi apresentado por meio de quatro categorias e suas subcategorias (Quadro 1).

 

 

Convivendo com a pessoa com transtorno bipolar e temendo o TB

A convivência com uma pessoa com diagnóstico de TB envolvia mudanças na dinâmica familiar, sentimentos, medos, receios, emoções e a sobrecarga relacionada ao cuidado. Os familiares cuidadores sentiram diretamente os efeitos desse cuidado e convivência e apresentaram dificuldades para estar em um cotidiano marcado pelo transtorno de humor.

Porque a pessoa não está no normal dele. Ele não sabe o que está fazendo, o que está falando e faz coisa absurda. Então, que nem, ele já saiu pelado na rua, já me agrediu, já agrediu pessoas. Então ele não está no normal dele, né [...]. Fico muito preocupada, porque tem hora que ele está bom, mas tem hora que ele fica meio estranho. Ele fica parado olhando para um canto e é quando dá as crises nele. (F21)

A responsabilidade do cuidado, para alguns dos entrevistados, foi acompanhada de sobrecarga associada principalmente à presença de ansiedade e de incertezas relacionadas às mudanças de humor. Contudo, os familiares cuidadores que se sentiam sobrecarregados relataram encontrar maneiras de adaptar-se ao convívio com a pessoa com TB.

Foi necessário buscar novas maneiras de relacionamento e comportamento na dinâmica com a pessoa com TB e apesar de ter sido um processo difícil, os entrevistados alegaram que chegou um momento em que eles ficaram "acostumados" com as transformações cotidianas, como se a única solução possível fosse aceitar a função de cuidador e seguir a vida.

Ele muda toda hora de jeito e isso me estressa. Uma hora tá feliz e na outra hora já tá gritando. Fico cansada com isso [...]. Já perdi dois empregos porque precisava acompanhar ele na consulta. Isso desgasta, porque é o sustento da casa. (F20)

Ah, o tempo vai passando e a gente vai... vai acostumando com a vida que a gente leva. Tem que ajudar uma pessoas assim, né, então você vai acostumando. (F27)

O medo/receio dos familiares cuidadores em desenvolver um transtorno mental perante o convívio familiar apareceu como aspecto importante.

Até eu fico com medo de passar pelo problema que ela passou. Aí eu fico pensando: Meu Deus, será que eu vou fica igual a minha mãe? Eu vou e tomo outro remédio. (F7)

Recorrendo ao uso do psicofármaco e conseguindo cuidar da pessoa com TB

O processo percorrido pelos familiares até o consumo de medicamentos iniciou-se com a percepção de sintomas ou de situações difíceis no cotidiano familiar, envolveu o reconhecimento da necessidade de ajuda e aceitação dos psicofármacos como alternativa de cuidado.

Na percepção dos entrevistados, a presença de sintomas/problemas com intensidade variada precedeu à necessidade do consumo de psicofármacos. O processo de aceitação da necessidade de cuidar da própria saúde mental não foi rápido para todos os participantes, sendo que alguns buscaram auxílio apenas quando problemas muitos graves passaram a fazer parte do seu cotidiano.

Demorou bastante tempo pra eu ver que estava precisando... é, tipo assim... no começo, o médico me falou que eu tinha que procurar orientação, o médico dele. Mas só que eu pensei que eu ia conseguir, mas eu vi que eu não estava conseguindo mais e eu ficava de noite, eu colocava a mão na cabeça. Eu falei: Eu preciso de ajuda, porque senão a próxima vai ser que eu que vou estar. (F22)

Então eu entrei em pânico, comecei a sofrer muito, eu comecei a ficar, acho, que mais doente do que ele, porque eu só chorava, eu parei de comer, não tinha mais vontade de viver e aí foi onde eu fui procurar um psiquiatra, e aí ele falou que eu tinha que me tratar para poder ajudar ele. (F24)

O reconhecimento da necessidade do consumo de psicofármaco foi acompanhado por percepções dos benefícios do consumo, entre os quais destacaram-se a redução ou eliminação de sintomas, equilíbrio para "olhar os problemas de outra perspectiva", a possibilidade de ter melhores condições para prover o cuidado.

A medicação não fez eu lidar melhor com os problemas, a medicação agiliza a situação nos sintomas da saúde, né, mas para eu lidar com meus problemas, eu tenho que lidar com a minha cabeça, lidar comigo, cuidar de mim. (F17)

O consumo de psicofármacos também apareceu como alternativa para dormir melhor e/ou mais facilmente. Permitiu mudanças na qualidade e quantidade de sono e descanso para o corpo e a mente, principalmente para os familiares cuidadores que se consideravam mais inquietos, ansiosos e com maiores problemas familiares.

Para mim é bom, sabe por quê? Porque eu tomo ele... não conseguir dormir é irritante... dá uma irritabilidade bastante grande, mas depois que eu tomo o diazepam, eu deito na cama ali e nem vejo a hora, nem sei como é que eu durmo. Faz assim ‘puf’ na hora. (F5)

Mudando o uso do psicofármaco sem orientação profissional

O consumo de psicofármacos pelos participantes do estudo estava cercado de particularidades e não havia homogeneidade no seguimento das instruções e prescrições médicas, pois as experiências de vida, os sentimentos, crenças, grau de conhecimento e poder de decisão serviram como base para a tomada de decisões em relação ao modo de consumo do psicofármaco.

Só que eu não tomo ele contínuo. Às vezes eu tomo a semana inteira, às vezes eu tomo 2,3 dias e paro. (F7)

Para dois familiares cuidadores, o consumo de psicofármaco teve início sem prescrição médica, alternando entre períodos de uso contínuo e uso pontual. Nesses casos, o consumo ocorreu sem orientação profissional, sendo que um dos entrevistados consumia o psicofármaco seguindo recomendações da pessoa com TB.

Na verdade, não fui eu que tirei conclusão né, foi minha mãe que me enfiou o remédio. Eu não perguntei nada, eu não sabia que era diazepam. Eu tomei porque eu estava nervosa. (F8)

Desvantagens do consumo e expectativas frustradas

Apesar do consumo do psicofármaco ser considerado predominantemente positivo, foi possível constatar ressignificações do seu uso ao longo do tempo. Inicialmente, os familiares cuidadores consideravam o medicamento como a grande solução para todos os problemas e, posteriormente, suas expectativas eram reduzidas.

Os aspectos negativos e/ou relacionados ao encerramento da utilização do psicofármaco também estiveram presentes. Os efeitos colaterais apareceram como importante justificativa para que alguns dos entrevistados resolvessem tentar seguir sem a utilização do psicofármaco.

Sim, no começo eu sentia. Eu sentia porque na hora que eu tomo ele, se eu como, o intestino solta. No começo sentia muita náusea também. (F22)

Alguns medos, crenças e diferentes percepções em relação ao psicofármaco foram expressos pelos entrevistados. Para alguns familiares cuidadores, houve a percepção do psicofármaco como ajuda, mas não como solução dos problemas de suas vidas. Foi preciso entender que a melhora nos sintomas indesejáveis não resultou necessariamente em mudanças na vida, e sim em um "empurrão" para começar tais mudanças.

Eu tenho medo de parar e me dar de novo aquelas coisas ruins, porque no primeiro médico que eu fui, ele disse que em agosto tiraria. Mas como depois eu passei para a saúde mental, o doutor continua. Isso eu tenho medo. De parar e dar aquelas coisas ruins de novo. Então eu acho que vou continuar. (F21)

Tenho medo de tomar esses remédios e acabar com alguma doença séria na cabeça! (F13)

Não dá para depender só de remédio. Tua vida não muda completamente, simplesmente é um empurrão para começar a fazer dar certo. (F20)

Alguns familiares cuidadores tentaram ficar sem o uso do psicofármaco por algum tempo, pela questão da dependência, de considerarem o psicofármaco como droga ou pela persistência dos efeitos colaterais durante a utilização.

A medicação ajudou muito. Eu já tentei ficar sem, porque tem dia que a gente acha que não precisa. Então eu já fiquei assim, tipo, uma semana sem, e eu percebo que vai indo, vai indo, eu vou começando com aquela coisa tudo de novo. É uma semana que eu consigo ficar sem medicação. (F24)

Estou tentando parar, porque a gente tenta sair porque é uma droga. Querendo ou não. Eu estou tentando pela segunda vez. (F23)

Já cheguei a para sim, para não ficar dependente disso. Parei uns quatro meses umas três vezes desde que comecei. (F32)

 

Discussão

As mudanças no cuidado em saúde mental e a implicação do familiar nesse processo afetam a vida daquele que assume a responsabilidade de ser cuidador. Para a maioria dos familiares cuidadores entrevistados que consomem algum tipo de psicofármaco, o medicamento aparece como alternativa inicial de cuidado para a busca de equilíbrio. Nos últimos anos, os psicofármacos têm sido a principal escolha de tratamento no cuidado em saúde mental e tal escolha pode ser justificada devido à boa segurança e tolerância de tais medicamentos, mostrada em alguns estudos controlados randomizados (Barbui et al., 2011; Nardi et al., 2012; Von Wolff et al., 2013).

Contudo, a busca pelo medicamento só acontece depois que os familiares cuidadores sentem, por bastante tempo, os efeitos negativos dos sintomas/problemas. Há uma lacuna entre a presença dos sintomas/problemas e o reconhecimento da necessidade de ajuda, para a retomada do controle da saúde e para prosseguir com o próprio cuidado e o do familiar com TB.

O Interacionismo Simbólico nos mostra que o ser humano é considerado ativo e tem determinações fixas e imutáveis (Charon, 1995). Com a interação com seu sintoma/problema, sua interpretação e influência mútua (do próprio sintoma/problema, de si mesmo, dos outros e do mundo), os familiares cuidadores conseguem perceber a necessidade de ação e busca de ajuda.

Na presente pesquisa, após a decisão de início do uso de psicofármaco, os entrevistados começaram a perceber os efeitos positivos do consumo. Houve diminuição e/ou desaparecimento dos sintomas, sensação de bem-estar e capacidade de retomar as tarefas cotidianas. A adesão aconteceu para 80% dos participantes, devido aos efeitos positivos e o consumo tornou-se algo realmente necessário.

O surgimento de psicofármacos com grande eficácia, o aprofundamento do conhecimento sobre os aspectos biológicos dos transtornos mentais, a possibilidade de melhoria na padronização dos diagnósticos psiquiátricos e a melhoria do acesso à informação e ao tratamento são fatores que contribuíram para o crescimento da busca e do consumo dos psicofármacos. Contudo, é preciso cuidado com a banalização do consumo de tais medicamentos, pois a medicalização do sofrimento psíquico tem ocupado importante espaço na nossa sociedade (Pombo, 2017).

A medicalização do sofrimento ou da vida humana é entendida como o movimento no qual há a tendência de tornar diagnosticável e tratável com medicamentos condições consideradas constituintes e próprias da existência humana (Soalheiro & Mota, 2014). O sofrimento psíquico começa a ser visto pelas pessoas como algo que deve ser suprimido, contido e abafado pela medicação em detrimento da compreensão de tal condição emocional.

É interessante perceber como o psicofármaco representou importante ajuda para os familiares cuidadores entrevistados. As outras modalidades terapêuticas foram citadas por minoria (12,5%) entre aqueles que consomem psicofármacos, mas essa busca só aconteceu após muito tempo de uso dos referidos medicamentos.

Tal resultado mostra que, além da urgência de ampliação do conhecimento em saúde mental para a população geral, é necessária melhoria do acesso aos outros tipos de modalidades terapêuticas, visando o cuidado que extrapole a diminuição de sintomas e permita a expansão do seu próprio entendimento físico e psíquico.

É necessária a adequada capacitação dos profissionais de saúde para o auxílio e orientação das pessoas que necessitam de cuidado em saúde mental, principalmente em relação à apresentação de diversificada possibilidade de cuidados, abordando diferentes tipos de modalidades terapêuticas. Também é preciso melhorar e ampliar a divulgação e oferta de tais modalidades, pois, muitas vezes, os familiares cuidadores não têm conhecimento dessas possibilidades.

Investir em saúde mental envolve investir na ampliação de possibilidades que promovam a expansão da compreensão de cuidado dos usuários com o seu corpo e sua mente. O conhecimento e a interação interior consigo mesmo possibilitam busca ativa, livre e consciente do cuidado em saúde que realmente convirja para as escolhas desses usuários.

Resultado interessante encontrado no presente estudo foi a busca do consumo de classes de psicofármacos com eficácia para insônia. Os benzodiazepínicos são amplamente utilizados para o tratamento de distúrbios ansiosos e do sono (Olfson, King & Schoenbaum, 2015).

Em muitos casos, a busca pelo psicofármaco pode ser a alternativa mais rápida, pois as intervenções relacionadas às alterações de comportamento em relação ao sono exigem disciplina e mudanças de hábitos. Além disso, há indícios de que, em curto prazo, as intervenções comportamentais e a utilização de benzodiazepínicos produzam resultados semelhantes em relação ao sono (Smith et al., 2002).

É notável a importância dada ao consumo de psicofármacos pelos familiares cuidadores entrevistados e a consequente adesão pela maioria deles. Contudo, o uso é cercado de particularidades, indo desde pequenas alterações na dosagem com a orientação médica até aqueles que utilizam tais medicamentos por conta própria.

Alterações na adesão acontecem com frequência para 20% dos participantes e podem ser justificadas neste estudo principalmente pelo déficit de conhecimento dos familiares cuidadores em relação ao mecanismo de funcionamento do psicofármaco, bem como pela presença dos efeitos colaterais, mostrando que os entrevistados também relacionam o consumo a desvantagens. Esses efeitos colaterais são sentidos especialmente no início da utilização, mas permanecem em alguns casos e levam os familiares cuidadores a interromper o uso do psicofármaco.

Para 10% dos participantes, a falta de informação, juntamente com a facilidade de acesso aos psicofármacos da pessoa com TB, permite que eles decidam usar o medicamento por conta própria. Desse modo, entender o perfil e significado do consumo de psicofármacos por familiares cuidadores de TB é relevante, principalmente porque ainda parece haver carência de conhecimento e informação sobre tais medicamentos.

Não é possível ignorar os efeitos colaterais presentes no consumo de psicofármacos, pois em alguns casos tais efeitos são bastante relevantes. Em estudo de revisão sistemática e meta-análise, mostrou-se o possível aumento da mortalidade associada ao consumo de hipnóticos e/ou ansiolíticos. Mesmo considerando as limitações na identificação da mortalidade por causa específica, o consumo pode estar associado ao seu aumento e os autores alertam para a necessidade de cautela na sua prescrição, pois há possibilidade de efeitos colaterais como: dependência, má-formação fetal, miastenia grave, apneia do sono, problemas de memória, sedação diurna e aumento da possibilidade de quedas em idosos (Parsaik et al., 2016).

A investigação do significado do consumo de psicofármacos para os entrevistados por meio da TFD permite olhar para as singularidades da amostra, evidenciando como o consumo é vivenciado de maneiras diferentes. Apesar dos benefícios já apresentados, três dos participantes da pesquisa não conseguiram perceber mudanças com o consumo de psicofármacos.

Desse modo, o consumo de psicofármacos produz significados diferentes de acordo com a interação que o familiar cuidador estabelece com tais medicamentos. Para alguns, o psicofármaco surge como resolução de sintomas e melhoria na qualidade de vida, para outros como possibilidade de fortalecimento e melhoria da qualidade e quantidade de sono. Contudo, há uma minoria que percebe o medicamento como tentativa frustrada de melhora, sem a identificação de reais benefícios.

A necessidade de assumir o cuidado também está relacionada às dificuldades de convívio, pois muitos modificam as próprias vidas para assumir essa responsabilidade. Outro aspecto importante nas interações estabelecidas e, consequentemente, no convívio consiste na dificuldade da pessoa com TB aceitar a presença do transtorno e, com isso, conduzir o tratamento da maneira adequada.

Ter um diagnóstico de TB é algo que precisa ser compreendido e respeitado. A pessoa acometida tende a abandonar a imagem do passado, de uma pessoa saudável, para vir a ser alguém que precisa ressignificar o seu self e estar no mundo como aquele que também tem um transtorno. Essa tarefa pode ser difícil, pois, considerando o Interacionismo Simbólico, o ser humano se relaciona com as coisas (objetos físicos, pessoas, situações, passado, futuro etc.) de acordo com os significados que essas coisas possuem para ele (Blumer, 1969), e é preciso elaborar novos significados em face do adoecimento.

Tal aspecto é relevante, porque os significados que a pessoa com TB atribui ao transtorno podem resultar na dificuldade de aceitação da própria condição de saúde e, consequentemente, na não adesão ao tratamento ou na sua realização de maneira inadequada (Freire et al., 2013), possibilitando a manifestação de crises severas, exacerbação da presença dos comportamentos considerados pelos familiares cuidadores como "estranhos" e "bizarros" e consequente aumento da dificuldade de convívio e cuidado pelos familiares.

Na literatura é possível encontrar estudos em que há resultados convergentes para com os achados da presente pesquisa no que se refere às dificuldades dos familiares cuidadores. Em estudo qualitativo sobre os aspectos subjetivos do cuidado da pessoa com transtorno mental no contexto da desinstitucionalização, identificou-se, em uma de suas categorias, a temática da incompreensão do transtorno pelos entrevistados (Oliveira, Cirilo & Costa, 2013).

Em estudo de revisão da literatura sobre familiares cuidadores no contexto da reforma psiquiátrica, aponta-se a necessidade de aprofundamento das questões relacionadas à pressão e demais aspectos envolvidos nos cuidados, antes fornecidos pelos serviços de saúde (Zuben, 2014). Em outra pesquisa, mostra-se que dentro do contexto da saúde mental, a desinformação, a discriminação, o preconceito e o receio levam muitas pessoas a olhar para os transtornos mentais como um estigma, como algo que deve ser evitado, rejeitado e temido, revelando a dificuldade de aceitação do transtorno (Prado & Bressan, 2016).

As recaídas e a necessidade de reinternação das pessoas com transtorno mental abalam estruturalmente a família (Cardoso et al., 2011), principalmente porque, durante as crises, as pessoas com transtornos mentais mais graves como o TB podem apresentar comportamentos suicidas, agitação e outros comportamentos preocupantes e difíceis de lidar (Townsend, 2014).

Resultados de estudo de abordagem qualitativa sobre os desafios do familiar no cuidado de pessoas com transtorno mental corroboram o impacto ocasionado pelas crises nos familiares cuidadores do presente estudo, pois os autores mencionam o agravamento do desgaste dos familiares nos momentos de crise. Rreferem também que o desconhecimento técnico e científico contribui para o aumento desse desgaste (Nascimento et al., 2016).

Considerando as premissas do Interacionismo Simbólico, assumir a função de cuidador é ter que assumir a capacidade de olhar para o mundo também a partir da perspectiva da pessoa com TB. Torna-se necessário ser capaz de interpretar a ação do parente acometido pelo transtorno e se alinhar à sua ação, possibilitando, por meio do processo de interação, o desenvolvimento do seu self e a aquisição de novos símbolos relacionados ao cuidado.

É possível tornar-se cuidador porque a interação envolve constante definição e redefinição de si mesmo, porém, o grau de dificuldade em aceitar a função de cuidado dependerá também de como essa dinâmica interna acontece. Considerando isso, é preciso pensar em uma prática clínica em saúde mental que considere a família e permita a compreensão e ajuda ao cuidador.

Os entrevistados da presente pesquisa sentem o processo de adaptação na convivência com a pessoa com TB como algo variado e particular, indo desde a busca de informações diagnósticas, aceitação do transtorno, empatia e respeito até atitudes de esquiva dos conflitos como possibilidades de adaptação nessa dinâmica de convivência. Contudo, alegam que chega um momento no qual eles ficam "acostumados" e a convivência acontece sem elevado grau de sobrecarga e desgaste emocional.

De acordo com estudo sobre a identificação de recursos adaptativos da família da pessoa com transtorno mental, o acúmulo de experiência pode ser importante recurso para a identificação prévia de crises e, com isso, há possibilidade de vivenciar situações menos desgastantes (Navarini & Hirde, 2008).

Porém, há outro fator de importância nessa relação, que é o modo como esse processo de adaptação é sentido subjetivamente pelos entrevistados. É possível ser familiar cuidador sem necessariamente adoecer, ou mesmo perder capacidade ocupacional, funcional e qualidade de vida.

A literatura aponta que os familiares cuidadores podem desenvolver, ao longo do tempo e da convivência, a capacidade de agir como cuidadores sem ignorar completamente suas demandas internas, mas também agindo e considerando a pessoa com TB, em um processo de interação social no qual ocupam lugar cada vez mais ativo na comunicação, interpretação e reação perante o outro (Vedana, 2011). Os familiares cuidadores servem como objeto para a pessoa com TB, utilizam os símbolos presentes nessa relação para definição e redefinição de seu self e conseguem, assim, se posicionar de maneira mais sadia perante o cuidado.

Tornar-se familiar cuidador envolve modificação de vida e, em alguns casos, necessidade de autocuidado por meio do consumo de psicofármacos, mas também significa percepção de si mesmo e aprofundamento da dinâmica e das relações familiares. É assumir de forma ativa e dinâmica novos modos de interação com a pessoa com TB, com a família, com a sociedade e o próprio self, para assim olhar para o mundo por meio de novas perspectivas e seguir produzindo símbolos que permitam uma representação social condizente com a sua realidade.

 

Limitações do Estudo

Este estudo tem como limitações o elevado número de recusas em participar do estudo, a falta de triangulação na coleta e análise de dados e o fato de o estudo ter sido desenvolvido com familiares cuidadores de pessoas com TB de três serviços de saúde públicos de um mesmo município brasileiro.

 

Conclusão

Este estudo é pioneiro sobre o assunto e traz informações relevantes sobre a temática do consumo de psicofármacos em familiares cuidadores de pessoas com TB. Possibilita o incremento da literatura e da prática clínica em saúde mental e permite a apresentação de sugestões para a melhoria dessa assistência ao familiar, como: fornecimento de informações pelos serviços de saúde mental sobre os transtornos mentais para as pessoas com TB e seus familiares; oferecimento de modalidades terapêuticas não farmacológicas para os familiares cuidadores; promoção de atividades que proporcionem melhoria na qualidade de vida e diminuição de sobrecarga dos familiares cuidadores e criação e valorização de espaços de troca de experiências entre os familiares com possibilidade de desenvolvimento de novos vínculos sociais e de apoio.

 

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Endereço para correspondência
Danubia Cristina de Paula
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Avenida Bandeirantes, 3.900 – sala 51, Ribeirão Preto, São Paulo – 14.040-902
Telefone: (16) 3315-3418
E-mail: danubiac.paula@gmail.com

Submissão em: 29/07/2020
Aceite em: 28/03/2022

 

 

1 Psicóloga. Doutora pelo departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo – USP
2 Enfermeira. Professora Doutora do departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo – USP.
3 Enfermeira. Professora Doutora do departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo – USP.

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