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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.9 no.2 São João del-Rei dez. 2014

 

ARTIGOS

 

O lugar da informalidade e do imprevisto na pesquisa científica: notas epistemológicas, metodológicas e éticas para o debate

 

The role of informality and the unexpected in the scientific research: epistemological, methodological and ethical notes for discussion

 

 

Mariana Barcinski

Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Possui mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e doutorado em Psicologia do Desenvolvimento pela Clark University (2006). Realiza pesquisa sobre violência e gênero, especificamente sobre a inserção feminina em atividades criminosas. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: discurso, gênero, violência urbana e identidade

 

 


RESUMO

A partir de um relato de experiência sobre o trabalho de campo em uma unidade prisional feminina, o presente artigo tem como objetivo discutir o lugar ocupado pela informalidade no processo de pesquisa. O argumento central é que as orientações do método científico - especialmente sobre a neutralidade e a objetividade necessárias à condução de protocolos rígidos de coleta e análise de dados - têm recorrentemente se configurado em obstáculos à consecução da pesquisa social qualitativa. Para além da rigidez das diretrizes metodológicas apontadas como adequadas ao referido método, a informalidade das relações estabelecidas no campo nos convida igualmente ao debate acerca das questões éticas que envolvem a pesquisa com seres humanos. O presente relato ilustrará a forma como a abertura à informalidade e ao imprevisto próprios do campo se configura em ferramenta essencial para a realização de pesquisas sensíveis às realidades concretas dos indivíduos investigados.

Palavras-chave: método científico, trabalho de campo, papel da informalidade, questões éticas.


ABSTRACT

From one experience report about the field work in a female prison institution, this article aims at discussing the role played by informality in the research process. The main argument is that the guidelines provided by the scientific method - especially regarding the need for neutrality and objectivity in order to follow rigid protocols for data collection and analysis - have recurrently been configured as obstacles to the conduction of social qualitative research. In addition to the rigidity of methodological guidelines indicated as appropriate to the particular method, the informality of relations established in the field also invites us to debate the ethical issues surrounding the research with human beings. The current report will illustrate the ways in which openness to informality and to unpredictability specific of the field constitutes an essential tool to conduct researches which are sensitive to the concrete realities of the investigated individuals.

Keywords: scientific method, field work, role of informality, ethical issues.


 

 

Introdução

Além das questões teóricas que elencamos como centrais aos nossos estudos sobre a criminalidade feminina, o trabalho de campo em instituições prisionais tem suscitado questões metodológicas, especialmente no que se refere à flexibilidade necessária à abordagem qualitativa em pesquisa. Munidos de nossos protocolos de entrevista e de observação, cuidadosamente planejados à luz da literatura disponível, as situações cotidianas têm nos questionado acerca da adequação de nossos métodos. As orientações metodológicas para a condução de um trabalho de campo científico e ético têm recorrentemente se mostrado insensíveis às dinâmicas e às formas de relações estabelecidas na vida concreta dos participantes.

Em pesquisas realizadas em unidades prisionais femininas no Rio de Janeiro e em Porto Alegre não raro nos vimos obrigados a empreender mudanças e adaptações em nossos planos de observação e entrevista, com o objetivo de captar o dinamismo das realidades encontradas nesses espaços. Os exemplos em que tais quebras de protocolo ocorreram são inúmeros, evidenciando a importância de informantes não previstos nos nossos projetos originais, bem como a riqueza de observações conduzidas nos locais onde a vida, de fato, se desenrola.

Foi nas filas de espera em dias de visitação que conversamos com os familiares de mulheres presas. Nessas ocasiões, nossa postura de proximidade nos rendeu relatos emocionados, sofridos e profundamente reais, não "contaminados" pelos espaços artificiais e pelos roteiros de entrevista que supõem um informante sempre disposto a colaborar com nossos estudos. Foi nos ônibus a caminho das unidades prisionais que tivemos contato pela primeira vez com a realidade de mulheres que visitavam seus parentes presos, carregando filhos e sacolas no cumprimento de uma rígida rotina semanal. E foram essas circunstâncias, não previstas e potencialmente não adequadas à condução da empreitada científica, que mais nos informaram sobre os fenômenos que gostaríamos de investigar.

Se, por um lado, o trabalho de campo nos convida ao questionamento da eficácia de nossos métodos, as diretrizes do método científico, sustentadas nas noções de neutralidade e objetividade, obstaculizam em grande medida a adoção de posturas mais sensíveis aos contextos pesquisados. A contaminação dos dados é sempre apontada como um risco natural da implicação do pesquisador, argumento sustentado pela premissa positivista de uma realidade empírica anterior e independente dos sujeitos que constroem esta realidade (Fraser & Gondim, 2004).

Ora, se a pesquisa qualitativa tem como objetivo promulgado buscar a interpretação que os sujeitos fazem da sua própria realidade, ela obviamente deve privilegiar os discursos espontâneos e as interações que tomam lugar na vida cotidiana (Poupart, 2006). Se essas interpretações e os discursos apropriados para a sua construção são indissociáveis do contexto de sua produção, o pesquisador qualitativo deve lançar mão de métodos, técnicas e análises que captem as singularidades desses contextos.

A abordagem qualitativa em psicologia, portanto, coloca em pauta questões sobre o procedimento empírico nas ciências humanas (Holanda, 2006). Contrastando com o rigor e a sistematização do método científico, consagrado pelas ciências naturalistas, tal abordagem enfatiza a necessária flexibilidade para a apreensão dos significados atribuídos pelos atores sociais.

DaMatta (1978), em sua descrição do trabalho do etnólogo, refere-se à fase existencial como aquela que deve promover uma síntese entre a história do pesquisador e a teoria aprendida na academia. É nesse momento, quando nos abrimos às lições que podemos extrair do campo, que a prática nos aponta as imprecisões e insuficiências do conteúdo teórico extraído dos livros e manuais. O autor segue, comparando o ofício do etnólogo ao de um tradutor que circula entre dois mundos, entre duas culturas permeadas por códigos e representações específicas. Ao discorrer sobre a utilidade dos manuais etnográficos, que descrevem com precisão as rotinas que garantem a coleta de dados válidos e aprofundados, DaMatta denuncia a negligência, na academia, dos aspectos românticos da disciplina. Trata-se, segundo o autor, dos momentos não previstos nos protocolos de pesquisa e nos planos de inserção no campo, quando

o pesquisador se vê obrigado a atuar como médico, cozinheiro, contador de histórias, mediador entre índios e funcionários da FUNAI, viajante solitário e até palhaço, lançando mão desses vários e insuspeitados papéis para poder bem realizar as rotinas que infalivelmente aprendeu na escola graduada (DaMatta, 1978, p.27).

O presente relato de experiência tem o objetivo de discutir de que forma a Psicologia tem (ou não) sido permeável às lições de outras disciplinas, especialmente no que se refere às estratégias metodológicas e às possibilidades de interpretação e entendimento que elas nos abrem. Através de um relato de campo, discutiremos a forma como os debates metodológicos, epistemológicos e éticos travados no âmbito acadêmico obstaculizam a abertura necessária ao imprevisto e à espontaneidade que se impõem ao tomarmos contato com esse mesmo campo. Nesse sentido, as prescrições acadêmicas acerca da condução ética e científica da pesquisa nos engessam de tal forma que nos tornamos cegos às imprevisibilidades e surpresas do cotidiano de qualquer pesquisador.

 

Lições (não) aprendidas

Segundo Spink (2003), o termo 'pesquisa de campo' é adotado na Psicologia Social para se referir a um tipo de pesquisa feito nos locais onde a vida cotidiana se desenrola e, portanto, fora dos contextos mais controlados do laboratório ou da sala de entrevista. A partir dessa concepção, o autor chama a atenção para a variedade de métodos de coleta e análise de dados que adotamos para empreender as interpretações das realidades encontradas no campo. Discute, ainda, a relação peculiar entre pesquisador e pesquisado na pesquisa tradicional que tende a separar o primeiro das realidades supostamente existentes antes e independente da sua empreitada de pesquisa. Nesse sentido, o campo, entendido simplisticamente como o local onde coletamos dados é uma realidade dada que devemos captar através de métodos rígidos e técnicas bem delineadas. Em contraste, é dessa forma que Spink (2003, p. 20) descreve o processo de trabalho de campo em psicologia social, especificamente aquele desenvolvido em seu Núcleo de Organização e Ação Social: "o processo [de pesquisa] foi descrito em termos da desnaturalização sucessiva [ou estranhamento] em relação à temática em foco, do olhar multidirecional e da ausência de um ponto predefinido de chegada ou término, a não ser o sentimento de 'ser suficiente'".

O que as discussões acima suscitam é o repensar necessário dos processos de pesquisa, bem como dos pressupostos teóricos e epistemológicos que fundamentam o seu delineamento. A postura de estranhamento e abertura acima referida é dificultada quando adotamos uma perspectiva positivista de ciência, negando as contradições próprias do objeto estudado, tomando sua aparência contextual como sua essência a ser desvelada e afirmando, enfim, a primazia do método sobre esse mesmo objeto (Casco, 2011).

Nessa forma de abordagem, os indivíduos são transformados em informantes de pesquisa e os contextos nos quais eles constroem suas vidas e seus significados são coisificados, dotados de um caráter estático que definitivamente não lhes é intrínseco. O campo como realidade a ser apreendida é imediatamente desprovido de seu dinamismo. Em outras palavras, tomamos o retrato que tiramos da realidade como a realidade em si.

Uma das formas de repensarmos a relação estabelecida entre pesquisador e pesquisado é a partir das metodologias privilegiadas pela Antropologia e pela Sociologia para o conhecimento das realidades encontradas no campo. A observação participante - cuja origem tem sido creditada ora à Antropologia, a partir dos estudos de Malinowski, ora à Sociologia, com a Escola de Chicago nos anos 20 - postula a participação do pesquisador no ambiente social que visa investigar. Ao interagir, às vezes por longos períodos de tempo, com os sujeitos em seus cotidianos o pesquisador tem acesso privilegiado aos significados atribuídos às práticas, às regras e às relações singulares estabelecidas em determinado contexto. E é essa inserção que coloca em questão a suposta neutralidade do pesquisador que, ao integrar o grupo pesquisado, transforma o campo de forma não intencional (Queiroz, Vall, Souza & Vieira, 2007).

A inserção do pesquisador no campo a ser investigado rompe deliberadamente com a dicotomia entre esse pesquisador e seu objeto de estudo. O primeiro é então reconhecido, segundo Mary Jane Spink (2007, p. 7), como "parte do fluxo de ações" que sucedem no campo. A autora elabora seus questionamentos metodológicos a partir da perspectiva construcionista de produção de conhecimento que privilegia os conhecimentos locais em detrimento dos universais, produzidos em contextos diversos daqueles em que são aplicados. Sob a mesma abordagem construcionista, Gergen (2008, p. 475) aponta para a especificidade do objeto da psicologia social, a saber, fatos instáveis e "irrepetíveis". Nesse sentido, o autor discute a impossibilidade da derivação de leis universais que expliquem esses fatos, uma vez que seu significado é sempre circunscrito historicamente. Por essa razão, ele defende o argumento de que a psicologia social é um inquérito histórico.

A valorização do conhecimento local, produzido pelas pessoas em seus contextos particulares de existência, é uma das principais características da Psicologia Comunitária Latino Americana. Ao elencar as pessoas da comunidade como protagonistas em seus processos de mudança, a psicologia comunitária questiona não somente a hierarquia entre conhecimento científico e conhecimento popular, mas os métodos por meio dos quais o conhecimento acadêmico é produzido (Scarparo & Guareschi, 2007). Fundamentada a partir da crítica sobre a aplicabilidade do conhecimento produzido nos gabinetes, a disciplina promulga a conexão indispensável entre teoria e prática (Lane, 1996). Portanto, a produção de conhecimento deve visar à transformação das realidades sociais, a partir da implicação política do pesquisador (Guzzo & Lacerda, 2007).

Freitas (1998) afirma que a inserção do psicólogo em comunidades nos convida ao questionamento das nossas certezas epistemológicas e filosóficas, especialmente quando essa inserção tem como objetivo lidar com questões que impactam o cotidiano das pessoas com as quais trabalhamos. A autora problematiza os instrumentais teóricos e metodológicos, apontando para a forma como nossos valores e concepções de homem e mundo sustentam nossas práticas como pesquisadores. Portanto, se entendemos os participantes como co-autores em processos de mudança - dos quais nós psicólogos somo mediadores -, é preciso que trabalhemos verdadeiramente em conjunto com esses participantes na definição dos objetivos e das estratégias de intervenção visadas. É nesse sentido que qualquer processo de transformação deve partir de demandas reconhecidas pela comunidade, assumindo seus membros o papel de investigadores internos, segundo Montero (1994).

As perspectivas aqui apresentadas têm em comum a preocupação com a descentralização do processo de produção de conhecimento e o questionamento da hierarquia entre pesquisadores e pesquisados, tradicionalmente imposta pela pesquisa científica. Se decidimos ouvir nossos participantes para então (re)pensarmos nossas estratégias metodológicas é porque entendemos que o conhecimento local, produzido por pessoas concretas em seus cotidianos, é tão valioso quanto os protocolos que produzimos a partir de uma sólida fundamentação teórica. A pesquisa social, notadamente a pesquisa qualitativa, tem como característica o questionamento da distância e do descompromisso político do pesquisador com os fenômenos estudados.

 

A regulamentação da ética

A inserção implicada do pesquisador no campo e na realidade investigada, bem como a admissão da centralidade do conhecimento produzido localmente, resulta em um questionamento dos preceitos éticos que regulam as pesquisas conduzidas na academia. Silveira e Huning (2010, p. 389) discutem que a existência dos comitês de ética em pesquisa é fundamentada na justificativa da "imperfeição ética humana". A possibilidade humana de transgressão de preceitos éticos na condução das pesquisas, portanto, garantiria a autoridade de certo grupo de pessoas que então legisla a ética entre pesquisadores e pesquisados, segundo as autoras.

Delegar a avaliação ética dos projetos de pesquisa a um comitê externo à relação que se estabelece no campo entre pesquisadores e pesquisados significa, em primeiro lugar, negar a capacidade desses atores de decidirem, a partir da natureza da relação estabelecida, o que se configura ou não como uma condução ética de pesquisa. Nesse sentido, restabelecemos uma relação assimétrica com os participantes que, a partir de uma perspectiva paternalista, são destituídos do poder de decisão de se engajarem ou não na relação proposta no trabalho de campo.

A atual resolução brasileira que regula a condução de pesquisas com seres humanos - a Resolução 466 do Conselho Nacional de Saúde - define pesquisa como o "processo formal e sistemático que visa à produção, ao avanço do conhecimento e/ou à obtenção de respostas para problemas mediante emprego de método científico". (Ministério da Saúde, 2012). Nesta definição encontramos alguns problemas que afetam notadamente os pesquisadores que conduzem pesquisas qualitativas. Primeiramente, há nela um pressuposto implícito de que o comitê de ética é capaz de avaliar a relevância do conhecimento produzido, em uma apreciação desconectada das realidades concretas e das percepções dos protagonistas do campo investigado. Ainda mais problemático, a partir da perspectiva implicada discutida neste texto, é a admissão do método científico como único capaz de produzir os conhecimentos ditos relevantes. Se o método científico, tal como discutido acima, se sustenta na obrigatoriedade da separação entre sujeito conhecedor e objeto conhecido, bem como nas noções de controle e não contaminação dos dados, como pretender a construção de um conhecimento verdadeiramente co-construído entre pesquisadores e pesquisados?

No nosso entender, algumas das premissas do método científico nos colocam questões éticas raramente discutidas nos comitês ou nos departamentos onde pesquisas são discutidas e regulamentadas. Como dito anteriormente, a necessária separação entre sujeito conhecedor e objeto a ser conhecido parte da premissa de que tal objeto não deve ser contaminado pelos gostos, afeições e valores do pesquisador. A possibilidade dessa separação se sustenta, em uma instância, na crença de que pesquisadores - diferentemente dos sujeitos pesquisados - não são situados socialmente e, portanto, não carregam consigo os hábitos, preconceitos e modos de ver o mundo característicos dos grupos aos quais são afiliados.

A feminista Donna Haraway (1988), ao explicitar as bases epistemológicas das teorias do standpoint, nos fala do caráter situado do conhecimento, o que significa reconhecer que esse conhecimento deve ser sempre contextualizado a partir das condições de sua produção. Oliveira e Amâncio (2006) propõem a incorporação da crítica feminista pela psicologia social, pautando a discussão sobre a responsabilidade na produção dos saberes e na afirmação de sua fundamentação sócio-histórica. Se o conhecimento é sempre produzido por indivíduos contextualizados social e historicamente, afirmam os autores, obviamente precisamos reconhecer a parcialidade do saber contextualizado, ao invés de enfatizarmos os "falsos universalismos da ciência positiva" (Oliveira & Amâncio, 2006, p. 601).

O que argumentamos a partir da noção de conhecimentos situados é que a velha discussão sobre a neutralidade científica, mais do que um debate técnico ou metodológico, se reveste de pelo menos uma questão ética fundamental, a saber, a afirmação de uma posição aparentemente não situada social e politicamente do pesquisador. Esta posição lhe garantiria acesso privilegiado e não contaminado às verdades dos indivíduos participantes em suas pesquisas.

A partir do relato de experiência do trabalho de campo em uma unidade prisional feminina, o objetivo é ilustrar as problemáticas teóricas, metodológicas e éticas aqui elencadas. O referido relato aponta para a necessidade de incluirmos em nossos protocolos de pesquisa a possibilidade do imprevisto, do informal e do não planejado. Nas palavras de DaMatta (1978, p. 24), de "todos esses intrusos que os livros, sobretudo os famigerados manuais das Ciências Sociais teimam por ignorar".

 

O relato

Chegamos à penitenciária feminina em um dia de visitas, no final de semana. Ao contrário do que imaginávamos a fila dos visitantes não se estendia para fora dos muros da instituição. Nossa expectativa justificava-se pelas experiências anteriores em unidades prisionais, onde as filas em dias de visita abrigavam centenas de pessoas. Na verdade, naquele sábado havia somente cerca de dez pessoas aguardando o início do horário de visita.

Percebemos uma carrocinha de lanches montada na calçada em frente à penitenciária. Ela não estava ali nas outras diversas vezes em que estivemos na instituição em dias de semana. A essa altura, frequentávamos essa unidade prisional havia mais de dois anos, entrevistando mulheres presas e agentes penitenciárias. Aproximamo-nos da carrocinha e iniciamos uma conversa com a mulher que cuidava dela.

Para nossa surpresa, na conversa informal travada com Vera - nome fictício com o qual passamos a identificá-la neste relato - durante cerca de 30 minutos (essa conversa viria a se repetir por mais 30 minutos no final de semana seguinte) aprendemos mais sobre as regras daquela instituição do que nos dois anos em que estivemos dentro dela como pesquisadoras. No entanto, mais do que informações que talvez pudéssemos obter por meios mais formais ou oficiais, a riqueza das conversas com Vera estava naquilo que de informal e cotidiano ela nos transmitia. E essa concretude, essa realidade empírica - passível de ser contada somente por personagens reais de histórias reais - não conseguiríamos apreender por relato algum de nossos participantes típicos.

Vera deve ter em torno de 40 anos, é negra, casada e tem dois filhos. No segundo dia em que conversamos, os três a acompanhavam em seu dia de trabalho. Os filhos brincavam no jardim em frente à penitenciária; vez por outra paravam a brincadeira para ouvirem atentos os depoimentos experientes de Vera.

O próprio trabalho de Vera já nos fala da necessidade de estarmos abertos à informalidade, à surpresa e ao inesperado que envolve qualquer processo (sensível) de pesquisa. Ela tem uma carrocinha de lanches, mas não vende nenhuma comida. Ela vem de sua casa aos sábados e domingos (dias de visita naquela unidade) empurrando a carrocinha que estrategicamente estaciona em frente à penitenciária. É primordialmente com ela que familiares contam para lidar com as desinformações e as arbitrariedades das instituições prisionais em geral e dessa, em especial. Ela sabe todas as regras de cor: o que entra e o que não entra em dias de visita, as comidas que familiares podem ou não levar nas sacolas trazidas às detentas e em que recipientes elas devem ser acondicionadas. Sabe também das roupas e sapatos que visitantes homens e mulheres podem vestir e calçar para serem liberados pela segurança da penitenciária. Vera não só sabe dessas informações, como oferece recursos para os desavisados lidarem com tamanhas arbitrariedades. Ela aluga chinelos, para que aqueles com tênis acolchoados ou aquelas com saltos altos não tenham que voltar para casa sem visitar seus familiares. Ela aluga potes transparentes do tamanho exato permitido pela segurança da penitenciária.

E obviamente Vera cobra pelos seus inestimáveis serviços. A falta de estrutura da unidade prisional faz com que seus serviços sejam utilizados por praticamente todos os visitantes. Afinal, onde poderiam deixar as chaves de casa e os telefones celulares, não permitidos dentro da prisão? Ela aluga um espaço em sua carrocinha para esses pertences proibidos.

E é nesse misto de amiga e prestadora de serviços que Vera estabelece uma singular relação com os visitantes. Ela os conhece pelos nomes, sabe das histórias das "presas de cada um". E, nesse sentido, conjecturamos que ela é mesmo parte da rede de apoio desses visitantes, rede frequentemente fragmentada pelo encarceramento de um membro familiar. Nos dias em que nos sentamos no banco ao lado da carrocinha, conversando com Vera, testemunhamos o afeto e a intimidade com que se tratavam. Ela perguntava sobre o processo da apenada, se a sonhada liberdade viria logo, perguntava sobre o restante da família, guardava os pertences que ficariam sob seus cuidados durante a visita e dava uma ficha com um número para que os visitantes os resgatassem na volta.

Em nossa primeira abordagem a Vera, perguntamos a razão de a fila estar tão esvaziada naquele dia, contrariando as nossas expectativas. Ela nos forneceu um acurado relato histórico sobre as visitas naquela instituição, justificando que os "bons tempos" (certamente "bons" para os seus negócios) haviam ficado para trás. Com a construção de uma nova penitenciária feminina nos arredores da cidade, quase metade das internas daquela instituição havia sido transferida para lá. A queda no número de presas obviamente se refletia na queda do número de visitantes. Vera sabia do que estava falando quando delineava esse histórico para nós. E foi esse conhecimento do nativo, que vive a realidade sem a necessidade de fontes secundárias para testemunhá-la, que nos chamou a atenção. Gostaríamos de saber mais sobre o local em que estávamos entrando e, principalmente, dessa relação peculiar que Vera estabelecia com o lugar e com as pessoas que ali circulavam.

O que descobrimos é que ela e sua família faziam parte da história que ela nos contava. Nos anos 2000, sua mãe fazia esse mesmo trabalho que ela faz agora, motivada pela demanda percebida nos dias em que visitava sua outra filha presa. No entanto, a senhora, tal como descrita por ela, tinha um tino muito especial para os negócios. No começo apenas guardava os pertences proibidos dentro da prisão. Com o tempo, começou a vislumbrar novas formas de fazer seu negócio crescer. Alugava lugares na fila, nos "bons tempos" em que elas se estendiam até o mercado vizinho à penitenciária. E cobrava valores diferentes dependendo do quão perto do portão de entrada fosse o lugar. Chegava ainda de madrugada à penitenciária e colocava sacolas suas para guardar as diferentes posições na fila, depois disputadas pelos familiares que se davam ao luxo de chegar quase no horário da abertura do portão. Além disto, a velha empreendedora vendia doses de vinho para aquecer os visitantes na fila durante o inverno. Segundo Vera, sua desgraça era provar sempre do vinho, o que lhe rendeu sérios problemas de saúde e resultou em sua morte precoce. Vera falava com orgulho dos negócios da mãe, que agora ela herdava, porém aparentemente sem o mesmo entusiasmo e espírito visionário.

Por fim, Vera ainda permeou nossas conversas com dicas metodológicas para a condução de nossas pesquisas. Segundo ela, os familiares devem ser abordados com essa mesma abertura e "simpatia" com que nós a abordamos em sua carrocinha. É assim que as pessoas nos contariam aquilo que queríamos saber, não com entrevistas prontas e blocos de anotações. O que Vera nos oferecia era uma opinião leiga sobre a forma adequada de nos aproximamos de nossos potenciais participantes. Uma opinião que aprendemos desde sempre nos bancos da academia a desqualificar como desinformada e ingênua, mas que vem - ao longo dos nossos anos de pesquisa social - nos sensibilizando a ouvirmos as vozes que vêm das margens, dos contextos onde os dramas sobre os quais teorizamos ganham sentido.

 

Conclusões

Os encontros e as conversas travadas com Vera não puderam ser incluídos em nossos relatórios formais da pesquisa com os familiares de mulheres presas naquela penitenciária. Isto porque no projeto enviado ao CEP de nossa instituição ela não constava originalmente como participante da pesquisa. Durante alguns meses guardamos as histórias de nossa informante imprevista como anedotas a serem compartilhadas em momentos informais. No entanto, nenhum outro "participante legítimo", autorizado a participar da pesquisa mediante a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, produzira relatos tão esclarecedores acerca da história, das dinâmicas e das normas não ditas do sistema prisional. Portanto, compartilhar o testemunho de Vera, como nativa em um campo do qual ainda sabemos tão pouco, mostrou-se fundamental para o delineamento de um retrato fiel e sensível das realidades que estávamos investigando.

Ao submetermos a referida pesquisa ao CEP, um dos pareceristas questionou a adequação ética da condução de entrevistas na rua, do lado de fora da instituição, ironicamente perguntando se as pesquisadoras disporiam de uma Kombi para receber os participantes durante as entrevistas. Nossa resposta, naquele momento, focou-se na importância da condução de pesquisas naturalísticas como método privilegiado de acesso ao cotidiano daquelas famílias. No entanto, ainda que apostássemos na necessidade de realizar o trabalho de campo dessa forma, com o mínimo de interferência institucional e o máximo de abertura possíveis, não poderíamos supor a riqueza dos discursos produzidos na rua. Vera foi um grato imprevisto de pesquisa, um elemento surpresa com o qual projetos de pesquisa teórica, ética e metodologicamente bem fundamentados possivelmente não poderiam contar.

Depois do primeiro encontro com Vera, aguardamos ansiosas pelo final de semana seguinte, na expectativa de que ela continuasse a permitir a nossa entrada em um universo sobre o qual ela versava com desenvoltura. A partir daquelas trocas, nossa perspectiva sobre o sistema prisional e sobre os dramas dos familiares resultantes das relações ali forjadas ganharam um sentido renovado. Passamos a entender que se uma sólida vinculação institucional nos permite a realização de pesquisas, ao mesmo tempo ela cerceia nosso olhar e nossa escuta para vozes não legitimadas pelos protocolos que orientam e pelos comitês que julgam a adequação de nossas empreitadas.

 

Referências

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Recebido em: 31/01/2014
Reformulado em: 07/11/2014
Aprovado em: 12/11/2014

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