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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.1 São João del-Rei jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Atenção psicossocial a homens autores de violência conjugal contra a mulher: uma construção participativa

 

Psychosocial attention to men who have perpetrated conjugal violence against women: a participatory construction

 

Atención psicosocial a hombres que perpetraron violencia conyugal contra la mujer: una construcción participativa

 

 

Fabiane Aguiar SilvaI; Fernanda Priscilla Pereira da SilvaII; Enio de Souza TavaresIII; Herbert Santana Garcia OliveiraIV; André Luiz Machado NevesV; Iolete Ribeiro da SilvaVI; Kátia Neves Lenz de Oliveira (In memorian)

IUniversidade Federal do Amazonas, Laboratório de Desenvolvimento Humano e Educação da FAPSI. Endereço: fabianeaguiarpsi@hotmail.com
IIUniversidade Federal do Amazonas, Laboratório de Desenvolvimento Humano e Educação da FAPSI. Endereço: fepripes@hotmail.com
IIIUniversidade Federal do Amazonas, Laboratório de Desenvolvimento Humano e Educação da FAPSI. Endereço: eniodeassis@yahoo.com.br
IVUniversidade Federal do Amazonas, Laboratório de Desenvolvimento Humano e Educação da FAPSI. Endereço: hsgol@hotmail.com
VUniversidade do Estado do Amazonas, Laboratório de Desenvolvimento Humano e Educação da FAPSI/UFAM. Endereço: andre_machadostm@hotmail.com
VIUniversidade Federal do Amazonas, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Laboratório de Desenvolvimento Humano e Educação da FAPSI. Endereço: ioletesilva@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta a elaboração de uma metodologia de intervenção desenvolvida durante um projeto de educação e atenção psicossocial com homens autores de violência conjugal que foram autuados pela Lei Maria da Penha. Esta atividade consiste no suporte ao Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor (SARE), criado para o cumprimento das prerrogativas da Lei Maria da Penha. O projeto ancorou-se nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Libertadora. A partir dos princípios norteadores da proposta, foram desenvolvidos os encontros com os homens, nos quais se privilegiou um espaço de vinculação, dialogicidade e construção conjunta. Foram elaboradas, como resultados do projeto, estratégias metodológicas participativas de intervenção, para homens autores de agressão conjugal, que possibilitaram a reformulação dos sentidos de masculinidade, gênero e relação conjugal. Os dados construídos nesta experiência podem se constituir em aporte metodológico para intervenções posteriores e para reflexões sobre políticas públicas nessa temática.

Palavras-chaves: Educação psicossocial; Metodologia participativa; Homens autores de agressão conjugal.


ABSTRACT

This actual paper presents the development of an interventionist methodology developed during a project of education and psychosocial care along with male perpetrators of domestic violence who were prosecuted by the Maria da Penha Law. This activity consists in supporting the Service for Responsability and Education of the aggressor, created for compliance with the prerogatives from the Maria da Penha Law. The project was grounded on the presupposition of Historical-Cultural Psychology and Pedagogy of Liberation. Based on the guiding principles of the proposal, we developed the encounters with men that privileged space of bonding, dialog and joint construction. It was elaborated, as a result of the project, participative methodological strategies for intervention with the male perpetrators of conjugal aggression that enabled the reformulation of the meanings of masculinity, gender and conjugal relationship. The data raised in this experience can constitute at methodological assistance for posterior interventions and for reflections on public policy on this issue.

Keywords: Psychosocial education; Participatory methodology; Male perpetrators of conjugal aggression.


RESUMEN

El trabajo se presenta el desarrollo de una metodología de intervención desarrollada mientras un proyecto de educación y atención psicosocial a los hombres que han cometido violencia conyugal que fueron penalizados por la Ley "Maria da Penha". Esta actividad es un apoyo a los Servicios de Responsabilidad y Educación de los Agresores - SARE, creados para satisfacer las prerrogativas de la Ley "Maria da Penha". El proyecto está anclado en los supuestos de la Psicología Histórico-Cultural y de la Pedagogía de la Liberación. Desde los principios rectores de la propuesta, las reuniones con los hombres fueran desarrolladas, donde se privilegió un espacio de unión, de diálogo y de construcción conjunta. Se construyeron, como los resultados del proyecto, las estrategias metodológicas participativas de intervención con los autores de agresión conyugal que permitieron la transformación de los sentidos de masculinidad, de género y la relación conyugal, y el cuestionamiento de las normas establecidas de esta relación, que consiste en un enfoque metodológico para las futuras intervenciones y para reflexiones sobre las políticas públicas en este tema.

Palabras claves: Atención psicosocial; Metodología participativa; Hombres autores de agresión conyugal.


 

 

Introdução

Entende-se que a violência é constituída historicamente a partir da forma como os seres humanos se organizam nas relações sociais. Wieviorka (2006) afirma que a violência muda e seus sentidos também. A violência é uma palavra-valor e deve ser compreendida numa perspectiva ética, a partir de referências culturais e históricas (Charlot, 2006). É preciso compreendê-la dentro de um determinado contexto, em que um grupo, uma sociedade ou uma instituição indica aquilo que suporta e o que não suporta e vai, assim, denominá-la de violência.

Partindo, portanto, da compreensão acima, de que violência é um processo ou uma construção, este artigo propõe refletir sobre a maneira como as pessoas subjetivam a violência conjugal e, nesse aspecto, apresentar construções participativas de metodologias de intervenções. Dessa feita, foi possível pensar como as pessoas podem sentir-se violentas ou violentadas de acordo com a construção de sentido em que percebem o que é violência conjugal.

Até meados do século XX, a violência conjugal foi costumeiramente caracterizada por agressões físicas e psicológicas que eram consideradas de domínio privativo e íntimo do casal. A partir dos anos 80, no entanto, a violência entre cônjuges passou a ser assumida como uma questão social e de saúde, tornando-se objeto de intervenção do Estado por meio de formulação de políticas públicas (Lamoglia & Minayo, 2009). A violência conjugal, nesse contexto, se constitui muitas vezes a partir de relações de gênero, acentuadas por meio da relação de poder entre homens e mulheres, muitas vezes resultando em feminicídios.

Um estudo divulgado em 2014 evidencia que no Brasil, entre 2009 e 2011, ocorreram 16.994 mortes de mulheres por conflito de gênero, sendo o cônjuge o principal agressor, com uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres (Gracia, Freitas, Silva & Höfelmann, 2014). É preciso um olhar cuidadoso para a complexidade que envolve a problemática, que, além dos dados estatísticos alarmantes, evidencia peculiaridades subjetivas como a conscientização das pessoas envolvidas nos conflitos de gênero.

Gênero se refere às relações que constroem dialeticamente as performances masculinas e femininas. Praun (2001) contribui afirmando que gênero implica um conceito de relação, uma vez que o universo dos sujeitos femininos está inserido no universo dos sujeitos masculinos e vice-versa. A violência conjugal, nesse contexto, baseia-se em relações desiguais de gênero, mas também se perpetra por complexas articulações afetivas e de sentidos feitas entre as pessoas e em suas dificuldades de desenvolver a dimensão ético-relacional que favoreceria a convivência ou pelo menos a negociação (as discussões de relacionamento).

Uma pesquisa feita com homens autores de violência conjugal, vinculados a um Programa de Atenção à Violência Doméstica e Intrafamiliar, indica que eles não tomam consciência que a ação violenta contra a sua companheira os caracteriza como autores de violência (Rosa, Boing, Buchele, Oliveira & Coelho, 2008). Diante dessas problemáticas, torna-se importante o planejamento e a implantação de políticas públicas de atenção, responsabilização e educação para o autor de agressão que promovam iniciativas de transformação, para além da punição.

Segundo Lamoglia e Minayo (2009), os homens geralmente reconhecem apenas os excessos em sua agressividade e não avaliam sua agressão como um ato equivocado de tentar corrigir o comportamento do outro. É comum dizer que avisam a mulher sobre o desagrado de suas condutas e, não sendo obedecidos, batem, atribuindo à mulher a responsabilidade pelo seu "descontrole". Tais perfis caracterizam a mulher como vítima e o homem como agressor, visão que precisa ser problematizada criticamente.

É preciso compreender, portanto, que, apesar de haver um histórico de resignação e inferiorização feminina, característico de uma sociedade patriarcal, numa relação conjugal, há a inserção ativa das duas pessoas na construção da relação e, assim, buscar uma concepção crítica e não polarizar nenhuma das partes (Falcke, Oliveira, Rosa & Bentancur, 2009). Em uma relação, os parceiros podem sustentar contratos violentos de conjugalidade ao não refletirem a dimensão ético-relacional do cotidiano que os vincula, bem como por cristalizarem e imporem um ao outro papeis de gênero que não favoreçam a relação.

É possível hoje discutir sobre as masculinidades pensando-as, sob a contribuição de Connell (1995), como a construção social das performances masculinas nas relações de gênero. Heilborn e Carrara (1998) argumenta que o desenvolvimento da questão de gênero cunhou discussões como a criação do termo: "masculinidades", ou seja, distintos e coconviventes identidades masculinas. Tal conclusão revela que as masculinidades se constituem em aspectos históricos, culturais, sociais que realizam arranjos relacionais que distinguem as vivências masculinas e abrem possibilidades para a diversificação do que se considera masculino.

Tendo em vista as crescentes demandas sobre violência conjugal no Brasil, foram implantadas, no estado do Amazonas, redes de atendimento ao autor de agressão conjugal, compostas por instituições governamentais e Organizações não governamentais (ONGs), o que gerou o trabalho inicial de intervenção com homens agressores e suas parceiras.

Este artigo tem como objetivo apresentar a elaboração de uma metodologia de intervenção para desenvolver atenção psicossocial com finalidade educativa, com um grupo de homens autores de violência conjugal envolvidos em processos judiciários e participantes do Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor (SARE), realizado pela Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Amazonas (SEJUS), do Departamento Estadual de Direitos Humanos (DEDH) em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Esta metodologia participativa ancorou-se nos pressupostos críticos da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Libertadora. Esses pressupostos defendem a busca pelo fortalecimento das pessoas para torná-las partícipes das tomadas de decisões, serem reconhecedoras de sua importância nas atividades acerca do cuidado de si e com o outro, construindo a ética do cuidado. Foi dado ênfase na construção de Sentidos, que se compreende como uma unidade de processos simbólicos envolvidos por emoções em um mesmo sistema que a história de vida do sujeito e dos contextos sociais (González Rey, 2003).

A metodologia foi construída em conjunto com os homens agressores, objetivando possibilitar a eles a tomada de decisões sobre a sua vida e sobre os aspectos que têm acarretado profundos prejuízos no seu desenvolvimento psicossocial. De acordo com Freire (1996), o indivíduo constrói a sua autonomia durante a sua participação nos processos decisórios, ninguém nasce autônomo, é algo a ser conquistado por meio da práxis e sempre em comunhão, nunca individualmente. O sujeito que não participa, não provoca mudanças no seu contexto, fator fundamental para que ocorra o seu processo de transformação e, portanto, do seu desenvolvimento.

 

Método

O contexto

A proposta de intervenção para construção da metodologia foi desenvolvida no DEDH da SEJUS, onde é oferecido o SARE, que é voltado para autores de violência conjugal. A atividade correspondia a um projeto de extensão "Educação e Atenção Psicossocial a Homens Autores de Violência Conjugal", por meio de uma parceria entre a UFAM e SEJUS, que visava dar suporte ao SARE.

O SARE foi criado para o cumprimento das prerrogativas da Lei nº 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, que prevê a existência de programas de atendimentos a homens e/ou lésbicas autores de violência conjugal contra a mulher. O SARE dispõe de serviços individuais e em grupo realizados por equipe de profissionais da Psicologia e da Assistência Social.

Esse serviço, caracterizado pela adesão voluntária dos autores de agressão, visa fortalecer vínculos familiares por meio do acolhimento e atendimento profissional ao homem, ao casal e à família. A meta é atender toda a demanda gerada na Vara Especializada da cidade de Manaus, conhecida como "Vara Maria da Penha", que atualmente atende, em média, 120 casos por mês, dos quais a metade necessita de acompanhamento, em função de aplicação de medidas protetivas de urgência ou de penas impostas.

A equipe

A coordenação e execução do projeto ficaram sob responsabilidade da professora e pesquisadora1 do Laboratório de Intervenção Social e Desenvolvimento Comunitário (LABINS), com formação em Psicologia com área de atuação em gênero, relações conjugais e violência. A composição dos demais integrantes da equipe constituiu-se por meio de adesão voluntária de dois psicólogos,2 uma estagiária3 de Psicologia da UFAM e duas assistentes sociais4 da SEJUS.

A estratégia de convite dos homens para o serviço acontecia na Vara Especializada, durante o atendimento individual. Explicava-se que haveria uma atividade em grupo e era dado um folheto com as informações sobre o local e horário de realização do serviço. Nem todos compareciam para participar e os que participavam, assinavam uma frequência oferecida pela SEJUS, que era repassada para o juiz no final de todo o processo a que estavam submetidos.

O grupo com o qual se desenvolveu a metodologia foi composto por cinco homens com idades entre 29 e 68 anos. Dos participantes, quatro tinham concluído o ensino médio e um tinha concluído o ensino fundamental; três eram pedreiros, um industriário e um despachante; todos possuíam renda média de até dois salários mínimos. Apenas um dos participantes possuía antecedente criminal. Todos estavam afastados do domicílio onde conviviam com as mulheres e filhos que os denunciaram. Apesar das dúvidas e do receio inicial acerca do serviço, especialmente por acreditarem previamente que o SARE consistia numa atividade punitiva, eles aderiram ao grupo de modo participativo, criativo e reflexivo.

 

Construindo a metodologia de participação: caminhos da construção conjunta de sentidos e autonomia para uma educação na atenção psicossocial

Foram inicialmente realizadas reuniões multiprofissionais para planejamento dos atendimentos. Posteriormente, foram realizados 16 atendimentos com o grupo de cinco homens autores de violência contra a mulher. Os encontros eram realizados semanalmente e tinham duração de duas horas cada.

Buscou-se construir uma metodologia que promovesse responsabilização e educação do agressor na sua dimensão subjetiva, levando em consideração os aspectos histórico-culturais das relações de gênero. Estudos realizados pelo Laboratório de Pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento Humano e Educação, da Faculdade de Psicologia da UFAM, mostram que a interação dos homens, no contexto social, revela diversos modos de masculinidades. A percepção é de que a participação dos homens passa pela superação de imagens e perspectivas individualizantes e culpabilizantes, dando lugar a espaços de atenção, reconhecimento de demandas, abertura para identificar especificidades. Isso pressupõe ouvir os homens e convidá-los à participação. É importante, porém, que essa escuta e esse convite aconteçam também por poderem significar algo importante para esses sujeitos e não apenas porque tenham sido encaminhados ao serviço (Silva & Silva, 2014).

A partir desses fatores, foram delineadas estratégias de intervenção para construção de uma metodologia de modo participativo a partir dos discursos5 dos homens e dos processos subjetivos, marcada pelos princípios da construção conjunta, da autonomia e da conscientização. A metodologia proposta esteve em constante construção, partindo da ideia da elaboração conjunta das atividades a serem desenvolvidas, possibilitando, assim, o reconhecimento dos homens como protagonistas, a partir da construção de sentidos subjetivos, do potencial criativo deles e de sua autonomia para a decisão de quais encaminhamentos poderiam ser dados para o grupo, bem como para as suas vidas e como estratégia de enfrentamento à violência e resolução de conflitos.

Foram realizados, previamente ao trabalho em grupo, atendimentos individuais feitos pela dupla de técnicos da equipe do SARE e UFAM (Psicologia e Serviço Social) em local reservado. Utilizou-se um formulário com o objetivo de conhecer o homem e os sentidos sobre sua situação com sua companheira, possibilitar que ele contasse sobre o ato que o levou a ser autuado pela Lei Maria da Penha, apresentar ao homem a proposta do SARE, realizar acolhimento inicial, construir vínculos e prepará-lo para os encontros em grupo. As perguntas do formulário abordaram ainda questões relativas à sexualidade humana, família, trabalho, saúde, amizades, uso de álcool e outras drogas, entre outras, que demandam atenção psicossocial.

A partir dessa etapa, a intervenção como grupo (Gomes, 2005) foi organizada com base nesse primeiro encontro individual, que norteou a escolha dos temas geradores para serem trabalhados. As escolhas foram negociadas com o grupo (técnicos e homens) para definir a ordem em que seriam trabalhadas as temáticas, o que definiu o modo como a intervenção foi sendo construída. Os temas escolhidos foram: Gênero, Relacionamento e Amor, Violência, Espiritualidade, Saúde, Sexualidade, Fidelidade, Paternidade e "Construção do homem/Projetos de vida/Construção de histórias".

A técnica utilizada nos grupos foi grupo focal (Gomes, 2005). Os temas para discussão foram levantados e eleitos pelos próprios componentes e os facilitadores desenvolveram em cada encontro estratégias lúdicas para fomentar as discussões. Além disso, cada grupo possuía uma estrutura de quebra-gelo inicial, proposição do tema, desenvolvimento das discussões e finalizava-se o encontro com atividades de proposição de estratégias cotidianas para relacionar-se de forma mais satisfatória com as pessoas com quem conviviam, bem como, uma reflexão mais aprofundada sobre o que mais suscitou ideias e mobilizações no grupo durante as discussões.

Foi percebido, no decorrer da intervenção, que em cada encontro, devido à temática, um dos participantes se tornava protagonista ou foco das atenções por causa de suas identificações, demandas e reflexões ocasionadas. Processo que acontecia com a participação dos demais homens e acompanhado da intervenção dos técnicos, de modo dialógico no desenvolvimento da intervenção. A forma de trabalho foi dialógica e buscou-se desenvolver o fortalecimento dos participantes para que se sentissem à vontade para falar, ouvir e discutir sobre os conteúdos de si e dos outros participantes.

Durante os encontros em grupo, foram utilizados recursos como vídeos, textos, slides, imagens, filmes, músicas, dinâmicas de grupo, questionários, a cartilha "Violência no Casal: o que você tem a ver com isso?" (Oliveira, Santos, Moura, Garcia & Gomes, 2010) como apoio para as discussões e participação dos homens. Dentre as estratégias utilizadas nos grupos, foram elencadas algumas propostas sob a fundamentação histórico-cultural (Vigotski, 2007; Rossetti-Ferreira, Amorim & Silva, 2004). As atividades de intervenção realizadas nos grupos foram:

a) Vídeo A história de nósdois: o vídeo exibiu situações vivenciadas por um casal a partir de um relacionamento conturbado por conflitos, mas marcado pelo afeto nas diversas fases do relacionamento como: namoro, casamento, filhos, separação e reconciliação (Grupo Geração, 2010). O vídeo tratava da complexidade das relações e propunha a reflexão sobre a vinculação por um afeto construído cotidianamente. Segundo Guanaes (2004), os sentidos que informam nossa compreensão sobre o mundo (sobre pessoa, problema, saúde, doença etc.) são construções sociais resultantes de trocas conversacionais entre as pessoas situadas em um contexto social, histórico e cultural específico. A partir disso, enfatiza-se a importância de uma investigação centrada sobre o modo como as pessoas constroem, em suas práticas discursivas, determinadas realidades pessoais e sociais.

b) Discussões: durante o encontro, buscavam-se os sentidos produzidos pelos temas e propunha-se a construção de novos sentidos e/ou o questionamento dos atuais e/ou anteriores. As discussões trouxeram questionamentos como: o que é "se relacionar"? Ou "o que é um relacionamento"? O que é amor? Porque as pessoas se relacionam? O que há em um relacionamento? O que eu preciso para me relacionar? Uma relação precisa de quê (negociação)? Existe uma relação pronta ou padrão (é uma construção)? E você pode escolher "com quem se relacionar"?

A referida estratégia pautou-se na ideia enunciada por Vigotski (2007), em que defende que a linguagem é ressaltada como um instrumento mediador das experiências e interações entre os indivíduos no meio em que está inserido, mudando assim a forma social e o nível de desenvolvimento cultural. O autor enfatiza que os instrumentos como a linguagem são meios externos utilizados pelos seres humanos para interferir em seu meio ambiente, ou seja, mudando-o e, por consequência, provocando mudanças nos próprios seres humanos. A discussão pode ser um elemento de mediação para essas intervenções em grupo e construção de metodologias participativas.

Essa ideia parece tornar possível pensar nos indivíduos que reconstroem aspectos de si próprios, ao mesmo tempo em que possibilita repensar um conjunto de categorias sociais como o gênero, a sexualidade, a raça, a deficiência ou a doença.

c) Discutindo processos de subjetivação:durante as discussões, inseriam-se trechos de músicas, poemas ou versículos bíblicos6 que constituíam referências para processos de subjetivação na coletividade. Dessa feita, questionavam-se os sentidos, em busca de propor a desconstrução de padrões e elaboração de outros sentidos pelos discursos nas relações. Foram utilizadas músicas populares, versículos bíblicos, ditos populares, poemas, dentre outros, que foram cantados, "ouvidos, ditos ou visualizados em slides com imagens e sons. O questionamento dos processos de subjetivação acontecia da seguinte maneira: o trecho da música: "É o amor" de Zezé de Camargo e Luciano, que diz: "É o amor que mexe com a minha cabeça e me deixa assim... que faz eu lembrar de você e esquecer de mim... que faz eu esquecer que a vida é feita pra viver..., ou a frase "Amar é sofrer" são definições de padrões de amor?

Essa proposta vislumbrava o "compreender" segundo a discussão de Gadamer (1997), na qual compreender não significa resgatar um sentido original e objetivo, mas sim "compreender de um modo diferente". Além disso, os sentidos foram abordados nas relações de subjetivação na coletividade, nas quais os discursos são construídos de maneira interacional e não isoladamente, delimitadamente ou em ordem linear como ressalta González Rey (2003, p. 174): o sentido subjetivo "representa a constituição histórica no nível subjetivo, das diferentes atividades e relações significativas na constituição do sujeito". Nesse aspecto, Mori e González Rey (2011) consideram que o sentido subjetivo é uma construção singular da pessoa que está constituída pelo histórico (diferentes momentos da vida da pessoa no contexto da cultura) e o momento atual da história da pessoa.

d. Painel "Eu escolho me relacionar:" os participantes foram convidados a construir um painel com palavras, frases ou figuras sobre: "Eu escolho me relacionar" discutindo em grupo suas escolhas. A proposta foi fundamentada na ideia de Paniagua (2000), que aborda os grupos reflexivos como um espaço masculino de discussão, reflexão e de possíveis ações transformadoras das relações do cotidiano, visto que se constituem em um dispositivo interessante para a promoção de mudanças das relações sociais entre homens e mulheres. Espaços para que os homens possam falar e produzir reflexões constituem brechas na representação de masculinidade dominante e permitem caminhar na direção da desconstrução do modelo de uma masculinidade hegemônica.

Essas atividades em grupos foram, portanto, subsídios para construção de metodologias participativas de homens autores de violência conjugal, para promoção de uma educação psicossocial, baseada na construção conjunta de sentidos e autonomia como contribuição para as políticas públicas para os autores de violência.

 

Resultados e discussão: a construção de novas metodologias

O fazer dos profissionais se sustenta na fundamentação dos vínculos criados e nos novos sentidos possibilitados pela construção da implicação ética da Psicologia em função do social. Na oportunidade das relações, dos grupos, das supervisões e demais dimensões do fazer, os profissionais alcançaram a criação de novas metodologias. Dentre elas destacam-se as seguintes:

- Discutindo processos de subjetivação: a proposta de inserir nas discussões músicas populares, versículos bíblicos, ditos populares, poemas, dentre outros que foram cantados, ouvidos, ditos ou visualizados em slides com imagens e sons, possibilitou que os envolvidos se identificassem com os padrões expostos pelos trechos e questionassem a função de tal referencial em suas relações. Os homens puderam refletir que, por exemplo, a utilização da opinião (sentido) "amar é sofrer" tratava-se da reprodução de um sentido que era acordado nas relações com os parceiros, mas que acabava não oportunizando a construção de demais sentidos possíveis e escolhidos por eles, o que os incluía em ciclos de relações com constantes repetições de sofrimento e violência. O questionamento de tal sentido produzia outros e os envolvidos descobriam a possibilidade de refletirem cotidianamente os sentidos utilizados na construção de novas relações afetivas.

- Questionando os padrões: sugeria-se a discussão de clipes de músicas (Pagu -Lee, 2000) ou vídeos (A igualdade de Gênero e Gênero: Homem × Mulher) que cristalizavam os papéis de gênero na sociedade. Compreendeu-se no grupo, portanto, que as performances de gênero são construções sociais, de maneira que podem não se tratar somente de padrões rígidos e pré-estipulados, mas podem ser dinâmicos e ressignificados nas relações.

- Práxis: Na referida metodologia, usava-se o quadro branco para criar esquemas de análise de uma vivência e a reprodução de sentidos nesta.Os homens poderiam, além disso, ir delineando no quadro um esquema de como possivelmente estavam conseguindo delinear um novo sentido. A utilização do quadro era livre. Menciona-se o exemplo de um dos envolvidos: I. Citou uma cena de violência na qual foi agredido e cometeu também uma violência para conseguir se defender. O protagonista dessa cena construiu sentido de que a agressão por legítima defesa não se tratava de violência. Dessa forma, sentiu dificuldades em refletir sobre o seu ato como um elemento potencializador do ciclo de violência conjugal contra a sua parceira. Pela perspectiva educativa, orientou-se dialogicamente que a relação conjugal violenta pode ser construída por contratos de violência em que homem e mulher assumem papéis que estruturam7 a relação violenta, o que elicia prejuízos psicossociais. Há uma distinção ao definir agressão como uma ação que permite reação, ao passo que a violência não. Para a autora, os atos denunciados como violência conjugal em sua maioria são agressões que partem dos dois cônjuges. Trata-se de um fenômeno que está relacionado a gênero, porém que se refere a um campo mais abrangente. A autora evidencia que a comunicação problemática entre o casal é um fator essencial na relação de agressões, em vez de necessariamente relações de poder fixas que sustentam somente um dos cônjuges em estado de superioridade (Grossi, 2008).

- A violência construída: exibiu-se um episódio do seriado Chaves no qual um dos protagonistas, o Sr. Madruga, recebia e cometia inúmeras violências em seu cotidiano com as pessoas com quem se relacionava. Desse modo, questionou-se aos participantes sobre os sentidos de violência que acarretavam a comicidade do seriado. A violência como uma construção que envolve a história, a educação, as relações e demais dimensões, foi abordada e refletida.

- Refletindo o acordo: a proposta exibiu uma cena do filme "Antes só do que mal casado", no qual os protagonistas recém-casados se lançavam em viagem de lua de mel e ambos eram apresentados à convivência e seus principais desafios. Em um trecho do filme, o marido estava bastante incomodado de ouvir a voz da companheira cantando todas as músicas que tocavam no rádio do carro durante a viagem, porém, ele não conseguia comunicar isso a ela e esta não se importava muito com a satisfação ou não do marido em ouvir sua voz. Como alternativa, o marido desligou o rádio e afirmou que gostaria de ouvir o som do vento e a esposa sugeriu que a questão seria resolvida se ambos procurassem um local para terem uma relação sexual. O acordo de não discutirem as preferências de cada um foi firmado pelo comportamento do casal e o sexo foi utilizado como apaziguador das "diferenças". A cena foi trazida ao grupo e abordou os aspectos do acordo que um casal estabelece todos os dias durante a convivência.

- Construção do "Catálogo da Cidadania": ao final das atividades desenvolvidas em grupo, foi construído em conjunto um catálogo com contatos de serviços públicos e não governamentais que incluíam justiça, lazer, esporte, educação, segurança, política, saúde e cidadania em geral. O catálogo foi denominado Catálogo da Cidadania e teve a função de auxiliar os participantes no exercício de seus direitos sociais.

 

A reflexão de gênero e masculinidade a partir da educação na atenção psicossocial

O desenvolvimento do processo evidenciou discussões que, segundo os participantes, nunca haviam feito parte de suas vidas. M., por exemplo, afirmou em um dos encontros: "Se num fosse aqui, essas coisas que eu converso com vocês, eu nunca que conversaria lá fora não". Na oportunidade, o discurso do participante foi abordado pelos demais de forma a refletirem sobre a possibilidade de poderem discutir temas que fazem parte de suas vidas no âmbito cotidiano que não se resume ao SARE, como por exemplo: células (grupo religioso), times de futebol, trabalho, bar, família, dentre outros dos quais os homens do grupo também fazem parte.

Ressalta-se o processo da discussão sobre gênero. No início do encontro, os envolvidos expressavam sentidos de gênero ao "jeito de ser de uma pessoa" a partir de palavras fornecidas pela facilitadora do grupo e outros expressavam sentidos que não tinham muito a ver com o tema. Dentre os homens, um deles afirmou que quando ouvia a palavra "gênero", associava à palavra "gêmeos", mas não sabia informar os motivos que possuía para elaborar tal sentido. Os coordenadores instigaram a discussão do sentido de "gênero" como "gêmeos" de forma a encontrar a associação feita pelo participante com o referencial teórico e os sentidos do tema.

Dessa feita, discutiu-se que o gênero é uma construção social dos papéis masculinos e femininos que vêm se desenvolvendo e se transformando de maneira interacional ao longo da história e nas relações dentro da cultura. Sendo assim, homens e mulheres seriam gêmeos por serem os responsáveis pelas funções que constroem e devido ao caráter dialético da diferença na semelhança característica da existência gêmea, discutiu-se que a igualdade poderá apontar também as particularidades de cada um.

Um dos homens afirmou que no momento da realização do grupo estava "entendendo" o gênero como uma espécie de perfil. Tal sentido foi discutido a partir da contribuição teórica de que os papéis sociais podem não ser rígidos como padrões e também não necessariamente apenas reproduzidos, podem ser refletidos e transpostos, estagnados e/ou reforçados pelas relações. Com o avanço dos encontros, os participantes passaram a verbalizar sentidos como: "(em tom de riso) ai, hoje eu sinto que eu tenho dois gêneros em mim, agora eu tenho meu gênero masculino e o feminino também ó". Além disso, um dos participantes relatou que durante uma das tentativas de negociação com sua ex-parceira, ela perguntou se ele estava "virando gay", pois, anteriormente, não era característico da masculinidade dele querer conversar e chegar a um consenso satisfatório para ambos.

Portanto, tomam-se as versões dos homens acerca das personagens que estavam vivenciando: quatro dos homens argumentavam bastante: "Eu não sou bandido!" (dois deles afirmaram); "Eu é quem levou porrada dela!"; "Eu nem sei como é que isso aconteceu!" e um deles assumia que havia agredido, pois a mulher, que não era sua parceira e sim um "ficar", ela "procurou pegar porrada [...] ela infernizava minha vida". Dentre os homens, a maioria não se identificava como infratores e se indignavam com tal acusação, e um deles afirmava que usou a violência como um fim para conflitos que vivenciava com a mulher que o denunciara. Nesse momento de discussão sobre a identidade, os homens afirmavam-se inocentes acerca dos fatos, bem como rejeitavam a identidade na qual estavam sendo classificados pela justiça e por suas próprias interpretações.

Enquanto se defendiam das representações judiciais e subjetivas com as quais não se identificavam, os homens também ressaltavam identidades que os representavam contrárias ao que eram acusados. A expressão comum entre os participantes se tratava de: "eu num mereço tá aqui!", "quem devia tá aqui é ela!"; e "tem muito bandido solto por aí e eu que sou trabalhador e pai de família, tenho que tá aqui!" Para afirmar suas identidades, ou seja, os homens buscavam identidades de inocência fundamentando-as em suas demais identidades de paternidade, trabalho e atitudes de legítima defesa, o que os inseriam em uma busca de identidades que os constituíam como íntegros e que os distanciassem da identidade de "bandido".

Em meio a essas interações e identificações produzidas pelos homens, as diferenças e igualdades nos discursos começaram a favorecer o movimento de grupo fundamentado na lógica de compreender-se responsável pelo ato e enfrentamento à violência, com vistas ao processo de desenvolvimento da autonomia.

Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva (2004) expressam que a forma como o sujeito significa o mundo, os outros e a si mesmo, se realiza durante a interação. Assim, a diversidade de papéis é possível de serem transformados e aprendidos por cada pessoa, a partir das múltiplas e complexas experiências pessoais em diversos contextos. Nos diversos contextos psicossociais situados, nos quais os diversos significados estão disponíveis é que essas construções se dão. No que se refere aos significados, Vigotski, (2007) ressalta que no campo semântico corresponde às relações que a palavra pode encerrar; já no campo psicológico, é uma generalização, funciona como uma convenção social, é coletiva. O que internalizamos não é o gesto como materialidade do movimento, mas a sua significação, que tem o poder de transformar o cultural em natural. Dentro desse contexto, os significados permitem a comunicação e a troca de experiências.

A troca de experiências, as afirmações de identidades e as identificações entre as personagens receberam o auxílio da proposição de que os autuados poderiam escolher temas que gostariam de discutir, o que possibilitou a reflexão das identidades expressadas por eles a partir de dimensões que as sustentavam. A discussão dos temas fomentou nos homens a expressão das representações que significavam seus discursos e comportamentos e propôs um espaço de reflexão em que estes poderiam produzir novos sentidos para as identidades que os sustentavam, de modo a propor também a transformação destas, visto que elas não seriam estáticas ou cristalizadas.

Houve a recorrência de alguns discursos e esses foram refletidos sob uma nova perspectiva. Os homens reafirmavam a dimensão provedora (econômica, social e de prazer sexual) de suas masculinidades, caracterizando-a como legitimação de sua identidade de gênero que não era compreendida por sua parceira como suficiente para a relação. Eles afirmavam "ela não tem do que reclamar! Em casa num falta nada! Eu saía de manhã e só voltava de noite!", "num faltava nada pros menino", "eu banco ela", "eu trabalho muito no sol e quando chego em casa é só reclamação", "ela disse pra todo mundo que ela não gozou comigo, e então eu fui lá, fiz o 'serviço' e ela num quis mais me largar, minha vida virou um inferno!" Diante de tais manifestações, a intervenção se focou na reflexão da função dessas afirmações no processo de construção da violência conjugal e no sofrimento vivenciado por eles.

Os homens refletiram acerca das construções hegemônicas de masculinidade a partir das relações de gênero e desenvolveram ao longo do processo o diálogo (interpessoal e intrapessoal), o vínculo, a argumentação, a abstração, a negociação, o autocuidado, a alteridade, o humor, além de protagonismo, introspecção, características resilientes, autoestima, a autorreflexão, autonomia e autoescuta.

Segundo Vigotski (2007), em um mundo cada vez mais alienante e destrutivo, é necessário oferecer produções de conhecimento como um instrumento poderoso para que o humano se ressignifique e garanta a sua sobrevivência. Portanto, além de conseguirem repensar seus modos de lidar com os outros (parceira/cônjuge, filhos, familiares, amigos e vizinhos) e consigo, ainda iniciaram a construção do reconhecimento e cuidado dos direitos e desejos de cada pessoa, da responsabilidade e enfrentamento, a violência e autonomia.

As transformações sociais pelo/no discurso foram expressas a partir das vivências relatadas. As reflexões sobre as dificuldades do dia a dia como a falta de dinheiro, doenças, conflitos, perdas vivenciadas pelos homens e as pequenas conquistas no cotidiano como a separação amigável, o reatar de relacionamento conjugal, a negociação entre os ex-cônjuges sobre os cuidados para com o filho, o início de um novo namoro, o cuidado com a aparência e com a saúde, a volta aos estudos, a obtenção de um emprego, entre outras, inseriam os participantes em um novo processo de construção de masculinidades. A partir dessas reflexões, foi possível ajudá-los a construírem relações de gênero mais desprovidas de sofrimento e constituídas de novas perspectivas.

Avaliou-se que a discussão de gênero despertou os participantes para a possibilidade de se vivenciar masculinidades e feminilidades suscetíveis de escolhas e negociações em função das relações que estabelecem. Os "papéis" masculinos e femininos são construções sociais dialéticas e não isoladas. Dessa forma, não necessitam ser padrões rígidos ou imutáveis. Pensar sobre o gênero possibilita a discussão a favor da vivência de masculinidades e feminilidades libertárias e ao mesmo tempo implicadas em um tempo histórico e contexto social de modo coerente com a concepção de Vigostski (2007) sobre a cultura como um dos aspectos que constitui o desenvolvimento humano.

As histórias de vida, a vivência no grupo e as transformações nos discursos relatadas aqui foram construídas por meio de um processo educativo, desencadeado pela atenção psicossocial que culminou positivamente para a emancipação dos participantes envolvidos. As transformações sociais no discurso e no comportamento dos homens ocorreram também em suas relações, sendo estas perpassadas por representações na sociedade, na imagem de si, na imagem perante os filhos e demais parentes e na sua imagem perante a ex-cônjuge.

Montero (2003) concebe a ideia de fortalecimento, processo em que os membros de uma comunidade, atuam conjuntamente, a fim de desenvolverem capacidades e recursos para exercer o controle da sua situação de vida de maneira crítica e consciente, transformando a realidade do seu entorno segundo suas necessidades e ao mesmo tempo transformando a si mesmos. Esse processo versa sobre um caráter libertador em que a comunidade é capacitada para atuar de forma organizada e participativa, capaz de tomar decisões, discutir, refletir, detectar e hierarquizar necessidades e recursos.

O processo de atenção psicossocial possibilitou o foco nos sentidos e masculinidade que compõem as performances nas relações de gênero. A reflexão das relações e dos sentidos individuais e grupais que fundamentam a construção de performances de gêneros, como a identidade, pode favorecer a experiência de relacionamentos desprovidos de violência e baseados na negociação entre as particularidades que nos tornam gêmeos no tecido social. Dessa feita, faz-se imprescindível refletir sobre as questões de gênero, bem como sobre as infinitas possibilidades que fundamentam o ser social.

Visando difundir as supracitadas ideias, foram construídos recursos de socialização do conhecimento produzido durante a experiência do SARE. Recursos esses que comporão um manual de apoio a outras futuras equipes de profissionais que poderá ser utilizado em palestras e supervisões em instituições de ensino, secretarias de Estado e Município e demais instâncias da sociedade.

 

Conclusões

A abordagem dos fenômenos pela perspectiva da atenção psicossocial gera reflexões que podem favorecer imensuravelmente a produção teórica e prática de uma Psicologia efetivamente social, que transponha a carência de reflexões acerca da violência. Concebendo a violência conjugal como um fenômeno dos saberes sociais, busca-se a transformação social a partir da inclusão das questões de gênero na discussão das propostas políticas de intervenção sobre a violência conjugal, seja de cunho preventivo, interventivo ou propositivo.

A proposta do grupo foi promover um espaço grupal diferenciado de escuta e diálogo, para que os autores aprendessem a analisar os determinantes sociais, culturais e psicológicos de suas condutas e transformassem seus modos de lidar com os outros e consigo mesmos de forma a serem capazes de promover diálogos (interpessoais e intrapessoais) pautados no reconhecimento e cuidado dos direitos e desejos de cada pessoa. Anseia-se, com essa metodologia, a recorrente produção de conhecimento e a elaboração de demais possibilidades de intervenção social por meio de um processo libertador e emancipatório via atenção psicossocial, bem como o fomento à composição de metodologias para intervenção (principalmente grupal) diante dos homens autores de violência conjugal, com a perspectiva de potencializar a capacitação dos profissionais de diversas áreas para trabalharem com as questões supracitadas.

Vislumbra-se dessa forma, propor a relação entre homens e mulheres por intermédio da desconstrução das oposições de sexos e, consequentemente, a possibilidade da vivência satisfatória de relacionamentos afetivos desprovidos da violência e das relações de poder, pois, segundo Louro (1997), uma das consequências mais significativas da desconstrução dessa oposição binária reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. Ao aceitarmos que a construção de gênero é histórica e se faz incessantemente, estamos entendendo que as relações entre homens e mulheres, os discursos e as representações dessas relações estão em constante mudança.

Dentre os principais desafios do trabalho da Psicologia no fenômeno da violência conjugal contra a mulher, aponta-se a inclusão das questões de gênero nas discussões acerca da violência conjugal, da reflexão sobre os mecanismos vigentes de responsabilização do agressor e dos questionamentos acerca dos padrões socialmente construídos que apenas culpabilizam e/ou vitimizam, incapazes de propor relações e considerar o processo social. Defende-se que o igual e o diferente não são lados e sim conjuntos de relações que se perpassam e se transformam.

Este artigo visa contribuir com a ciência em seu aspecto teórico e com o social em sua dimensão ética, crítica e política. Assim, a tarefa de sistematização e análise aqui empreendida vislumbra caminhar na esperança de que é possível ajudar os agressores a produzir mudanças positivas, se houver da parte destes como sujeitos à vontade (escolha) de também buscar tais mudanças. Precisa-se pontuar que o caminho a trilhar é escorregadio, porque não se possuem garantias de que eles/elas irão mudar, pois não é possível obrigar alguém a ser ético, mas pode-se pautar na ideia de que o ser humano é potente para a transformação e está em constante construção.

O desafio será, também, produzir/ampliar uma cultura de intervenção psicossocial por meio da participação, pelo qual se possa ouvir e negociar com os próprios usuários dos serviços, segundo suas visões sobre os problemas que vivem. Será um desafio, por fim, fazer entender aos futuros avaliadores do serviço que qualquer profissional em saúde ou de ciências humanas não consegue e não deve assumir o lugar de manipulador da vida, sentimentos e escolhas alheias. Acredita-se que o enfrentamento da violência somente será eficaz se não for por uso da violência, se possibilitar apontar ou fazer ver as bases de uma relação não violenta.

Nas políticas públicas atuais, o estímulo à participação e à autonomia dos sujeitos tem sido mencionado. Essa menção, no entanto, não tem garantido a inclusão ativa dos usuários nesses espaços (escola, unidades básicas de saúde, prontos-socorros e hospitais, presídios). A participação oferecida é incipiente, o controle apresenta-se ainda de forma sutil e dominante. O que temos observado é a imposição do silêncio, os sujeitos não têm voz, instaurando-se, assim, uma situação de abuso de poder em que são obrigados a concordar e a cumprir com as propostas apresentadas. No campo da violência conjugal, tem-se percebido apenas um olhar de criminalização do homem autor de violência e escassas políticas de educação e responsabilização. Assim, buscou-se apreciar os aspectos representativos da transformação psicossocial de homens autores de violência conjugal contra a mulher, partindo da atenção psicossocial.

 

Referências

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Recebido em: 11/08/2014
Reformulado em: 01/02/2015
Aprovado em: 08/04/2015

 

 

1 Kátia Neves César Lenz de Oliveira (in memorian).
2 Enio de Souza Tavares e Herbert Santana Garcia Oliveira.
3 Fabiane Aguiar da Silva.
4 Marcilene Luzia de Souza e Francisca Souza.
5 Aqui compreendido como o fenômeno da linguagem. Vigotski (2007) destaca que a linguagem é ressaltada como um instrumento mediador das experiências e interações entre os indivíduos no meio em que está inserido, mudando assim a forma social e o nível de desenvolvimento cultural. O autor enfatiza que os instrumentos como a linguagem são meios externos utilizados pelos seres humanos para interferir em seu meio ambiente, ou seja, mudando-o e, por consequência, provocando mudanças nos próprios seres humanos.
6 Ressalta-se que foi uma demanda percebida no grupo, pois eles traziam sempre trechos da Bíblia nas falas e também faziam bastante referência a Deus e suas religiões.
7 Reflete-se que os contratos violentos são mobilizados por relações de poder, porém, concebem-se tais relações a partir das contribuições teóricas de Foucault (1979). Compreende-se que o poder são feixes de relações, trata-se de uma prática com multiplicidade de forças com pontos móveis e transitórios, não é linear e nem possui uma estática hierarquia com pleno dominador.

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