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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2017

 

A música como mediadora de encontros em um CRAS

 

Music as a mediator of meetings in a CRAS

 

La música como mediador en las reuniones de un CRAS

 

 

Andressa Dias ArndtI; Kátia MaheirieII

IUniversidade Federal de Santa Catarina. Musicoterapeuta graduada na Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR, Campus de Curitiba II. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. andressa_1708@yahoo.com.br
IIUniversidade Federal de Santa Catarina. Doutorado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil (2001). Professora Associada da Universidade Federal de Santa Catarina

 

 


RESUMO

Apresentamos neste trabalho reflexões e análises advindas de uma pesquisa-intervenção do tipo qualitativa e de caráter comunitário em que se aliam psicologia social de base sócio-histórica e musicoterapia social comunitária. O artigo trata da música como mediadora de encontros em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) situado na região metropolitana de Curitiba. A música como mediadora de encontros pôde constituir um tipo de experiência coletiva, criativa, afetiva, polissêmica e polifônica. A música é compreendida como processo e produto humano, possibilitando abertura de espaços para criação e fortalecimento de laços sociais. Os resultados apontam, nesta experiência, um aumento da potência de existir dos participantes e a criação de um processo coletivo na construção de um NÓS, inaugurando modos de agir, pensar e sentir.

Palavras-chave: Música. Coletivo. Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).


ABSTRACT

In the present paper we introduce analysis and considerations resulting from a qualitative intervention-research with community character, where social psychology based on social historical psychology is linked to social community music therapy. In it, music is treated as a mediator agent in meetings at a Social Services Center in the metropolitan area of Curitiba. As a mediator agent, music was able to configure a type of creative, affective, polysemic and polyphonic collective experience. Music is seen as a process and human product allowing the opening of spaces for the creation and strengthening of social ties. The results point out in this experience an increase in the participants' existing power and the creation of a collective process in the construction of a WE, inaugurating ways of acting, thinking and feeling.

Keywords: Music. Collective. Social Services Center (CRAS).


RESUMEN

En el presente trabajo presentamos análisis y consideraciones resultantes de una investigación-intervención cualitativa con carácter comunitario, donde la psicología social basada en la psicología socio-histórica está vinculada a la musicoterapia comunitaria. En el trabajo, la música es tratada como mediadora en las reuniones de un Centro de Servicios Sociales en la área metropolitana de Curitiba. Como mediadora, la música fue capaz de configurar un tipo de experiencia colectiva creativa, afectiva, polisémica y polifónica. La música es vista como un proceso y producto humano que permite la apertura de espacios para la creación y fortalecimiento de los lazos sociales. Los resultados apuntan en esta experiencia un incremento en el poder existente de los participantes y la creación de un proceso colectivo en la construcción de un NOSOTROS, inaugurando modos de actuar, pensar y sentir.

Palabras clave: Música. Colectivo. Centro de Servicios Sociales (CRAS).


 

 

Introdução

Este artigo apresenta apontamentos em torno do que pode a música como mediadora de encontros coletivos em um contexto de Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), a partir do fazer da musicoterapia de base social e comunitária e das concepções de sujeito e coletivo da psicologia sócio-histórica.

A musicoterapia é um campo de saber que teve sua prática sistematizada após a Segunda Guerra Mundial, quando experiências musicais utilizadas por músicos profissionais foram usadas para aliviar sofrimentos físicos e emocionais de soldados egressos (Leinig, 1977). A partir da observação de resultados positivos no sentido de melhorar o estado emocional e físico dos soldados, alguns profissionais médicos, enfermeiros, músicos e educadores musicais iniciaram pesquisas e práticas e passaram a sentir a necessidade de agregar a formação de terapeuta à de músico. A partir dos anos 1950, algumas universidades estadunidenses organizaram formações em musicoterapia nos departamentos de música aliados às escolas médicas e hospitais.

Em 1970 a musicoterapia chegou ao campo universitário no Brasil, no Conservatório de Música do Rio de Janeiro, primeiramente como especialização e, em 1978, como graduação reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC). Desde essa década, discussões em torno de um tipo de prática no campo social vêm sendo problematizadas. No entanto, no Brasil, conforme aponta um estudo realizado em 2013 (Oselame, 2013), a perspectiva social e comunitária ocupava apenas 4% das publicações do campo da musicoterapia.

Como o Conselho Nacional da Assistência Social (Cnas) resolveu que, a partir de 2011, a musicoterapia seria reconhecida como uma categoria que contribui para o atendimento das especificidades dos serviços ofertados em contexto socioassistencial1, esse campo de saber passou a investir cada vez mais em ações e construções teóricas em torno do campo social e comunitário. Desse modo, pesquisas que problematizam o fazer musicoterápico são de extrema relevância para o fortalecimento e consolidação de uma construção teórica e de uma atuação comunitária e social.

Este artigo apresenta uma contribuição no que diz respeito à prática social e comunitária da musicoterapia quando inserida no contexto de atuação de serviços vinculados ao Sistema Único da Assistência Social (Suas), especificamente no Centro de Referência da Assistência Social (Cras).

O Suas, enquanto coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), investiu em programas com gestão participativa e descentralizada e suas ações foram organizadas em Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, essa última sendo dividida em Proteção Social Especial de Média Complexidade e de Alta Complexidade.

A Proteção Social Básica atua de modo a prevenir as situações de risco, no que diz respeito ao rompimento dos vínculos sociais e familiares, pretendendo assegurar o acesso da população aos serviços públicos e à apropriação de seus direitos. As ações se consolidam de forma mais direta dentro do Cras, que é um equipamento geralmente situado em um lugar geograficamente marcado pela presença da pobreza e de situação de vulnerabilidade pessoal e social. Intentando trabalhar aliado a outros serviços concernentes a outras políticas públicas, tais como Unidades Básicas de Saúde, o Cras pretende potencializar sua ação por meio de uma construção de trabalho em rede. Um dos serviços preconizados por ele é o Programa de Atenção Integral à Família (Paif), cujo objetivo é o de fortalecer e potencializar os vínculos familiares, almejando evitar casos de violação de direitos e situações de risco social.

Os objetivos do Paif incluem oferecer à comunidade serviços de convivência, de fortalecimento de vínculos e de enfrentamento da desigualdade, da fome e da pobreza, de forma não fragmentada, por meio de ações preventivas, protetivas e proativas (Brasil, 2012). O Paif é o principal serviço de ações na Proteção Social Básica, ofertadas pelos Cras, e é também um espaço para escuta e acolhimento (Meyer, Klein & Fernandes, 2012).

A história de um tipo de Assistência Social clientelista deixou vestígios em algumas práticas profissionais que são pouco regidas por processos emancipatórios e que, por vezes, ainda adotam um modo individualizante e particularista (Oliveira, Dantas, Solon & Amorin, 2011). Sendo assim, vale observar que o trabalho no âmbito da proteção social por meio de ações que assumem o sujeito como portador de direito e de voz, ampliando suas possibilidades de pensar, ser e agir perante o cenário social, abrindo caminhos para ocupação do espaço urbano e político, visa romper com o estigma de que a população usuária dos serviços socioassistenciais é despolitizada (Couto, Yazbeck & Raichelis, 2011; Cruz & Guareschi, 2009). Do mesmo modo, a inserção de ações musicoterápicas, semelhante à inserção de práticas psicológicas no âmbito da proteção social, merece ultrapassar o objetivo simples de ser uma oferta menos elitista do trabalho, atingindo populações com diferentes condições sociais. Neste artigo, objetivamos marcar as possibilidades de reverberação de uma prática em contexto comunitário, quando mediada pelo fazer musical.

Dada a perspectiva social e comunitária deste artigo, a música é compreendida como processo e produto coletivo. A presente análise narra o fazer musical a partir de encontros semanais nomeados "Roda de Música", uma proposta aberta à comunidade, tendo como público homens e mulheres entre 58 e 77 anos. Por meio de uma proposta de pesquisa-intervenção com perspectiva comunitária, utilizaram-se aportes teóricos advindos da Psicologia Sócio-Histórica (Sawaia & Maheirie, 2014), da teoria Histórico Cultural vigotskiana (Vigotski, 1934/1992; Vigotski, 1930/ 2014), bem como da teoria da musicoterapia, sobretudo em suas vertentes social e comunitária.

O objetivo deste artigo é apontar a potência da música, que, quando criada coletivamente, aumenta as possibilidades de ser, estar, pensar e sentir dos participantes.

 

Método

A pesquisa adotou uma metodologia participativa de caráter comunitário, compreendendo que o trabalho pretende tensionar formas hierárquicas de saber e demarcações de lugares nos quais alguns são considerados subalternos e outros superiores. Uma metodologia comunitária pretende, portanto, horizontalizar o saber, tirando o pesquisador de um suposto lugar privilegiado de conhecimento e desenhando uma parceria em que pesquisador e participantes criam espaços dialógicos de atuação na concretização do trabalho (Pereira, 2008). Optou-se por uma pesquisa-intervenção do tipo qualitativa, assumindo que o pesquisador, ao entrar em campo, já o altera, tornando-se parte de um novo acontecimento em que pesquisador e participantes são transformados (Freitas, 2003). Essa proposta não pretende ser para a comunidade e sim com a comunidade, caracterizando um tipo de trabalho compartilhado.

A pesquisa-intervenção tem por característica ser uma pesquisa participativa. Portanto, não objetivamos uma mudança imediata, uma vez que o curso da pesquisa é construído coletivamente. Adotamos esse caminho de pesquisa por envolver um olhar e uma escuta para a realidade social operante e por estar engajada em processos comunitários e em ações coletivas.

Durante aproximadamente três meses, oferecemos em um Cras situado na região metropolitana de Curitiba um encontro semanal, com duração de uma a uma hora e meia, nomeado "Roda de Música". Foi uma atividade aberta ao público maior de 18 anos, em que a música ocupava o lugar de mediadora dos encontros. Sendo assim, não fizemos uso de recursos nem técnicas didáticas, pois o objetivo não era pedagógico. Assim, a música não era um fim em si mesmo, mas ela era processo e produto. Optamos por não oferecer aulas de música, instrumento ou canto, mas encontros para fazer música coletivamente, independentemente do grau de domínio técnico musical prévio dos participantes.

Com dois meses de antecedência, divulgamos, por meio de cartazes e convites impressos, o início da Roda de Música. Uma das pesquisadoras que esteve diretamente envolvida com o campo, participando de um encontro oferecido pelo Cras para a terceira idade, fez convites pessoais. A equipe do Cras telefonou para usuários do serviço que tinham horários disponíveis e interesse em participar das atividades artísticas musicais. Tivemos um total de 15 encontros, com número médio de seis participantes por dia.

Nos encontros, foram utilizadas duas técnicas propostas pela musicoterapia: a recriação e a composição. Segundo Bruscia (2000) essas técnicas são consideradas experiências, pois há um olhar para o exercício musical e para o processo, sem intenções pedagógicas nem preocupações exclusivas com o produto final.

A recriação consiste na execução de músicas ou canções conhecidas dos participantes, sem a pretensão de ser uma reprodução exata da forma original do material musical. A recriação é um processo criativo que permite execução flexível, em que andamento, intensidade, ritmo e trechos da melodia e letra originais são alterados por quem a recria.

A composição é a criação de um material musical inédito, estruturado de forma a permitir sua reprodução posterior. Em nossa pesquisa, não trabalhávamos com músicos. Alguns participantes tinham vivências musicais informais, outros tocavam seus violões esporadicamente, em casa. Por conseguinte, a musicoterapeuta pesquisadora ficou encarregada de proporcionar caminhos para a harmonia e para a melodia da composição realizada com os participantes. Valendo-se do violão, o grupo escolheu gênero, estilo, andamento e criou o caminho melódico, a partir de uma proposta harmônica analisada pela musicoterapeuta e considerada por ela como confortável para execução cantada dos participantes.

Como recurso metodológico, usamos o diário de campo, que ficou a cargo de uma das pesquisadoras, que o escreveu livre de formalidades, descrevendo os caminhos vivenciados na experiência, as incertezas e questionamentos (Costa & Coimbra, 2008). Ao término dos encontros, realizávamos a roda de conversa, com o intuito de possibilitar um espaço livre para a construção de diálogos coletivos em torno da experiência que havíamos tido (Moura & Lima, 2014). Ainda que os diálogos pretendessem ser pouco formais, utilizamos como eixo norteador a temática da pesquisa. Com uma das participantes da Roda de Música, realizamos também uma entrevista aberta. Durante os encontros, gravamos em áudio momentos pontuais do processo de composição. Preferimos não utilizar outros recursos audiovisuais, pois a tentativa de gravação em vídeo alterou a dinâmica do encontro, deixando os participantes menos espontâneos. Fizemos apenas uso da fotografia em momentos pontuais que, diferentemente do vídeo, não implicou em alteração expressiva.

Esta pesquisa recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa2 e os participantes, informados dos objetivos dela, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, permitindo-nos o uso de suas imagens, falas e criações musicais. Os nomes dos participantes foram substituídos por nomes fictícios, bem como o nome do município em que a pesquisa ocorreu, preservando assim os participantes.

Inspiramo-nos na análise do discurso dialógica proposta por Bakhtin e seu Círculo (Faraco, 2009); compreendemos as informações construídas em campo como situadas cultural e historicamente e incluímos na análise elementos não verbais. Ao mesmo tempo, buscamos o discurso multifacetado e complexo (Brait, 2006) e consideramos as vozes sempre como sociais (Freitas, 2003). Os registros em diários de campo, a transcrição da roda de conversa e a entrevista permitiram destacar alguns temas, posteriormente agrupados em categorias.

Os participantes da pesquisa mencionaram a alegria, o ânimo, a energia e o alívio de tensão com o fazer musical. Comentaram o desejo de fazer Roda de Música em suas casas e continuar com ela após o término da pesquisa. Falaram do desejo de ampliação do grupo, do convívio, da partilha, dos relacionamentos e do coletivo. A especificidade do fazer musical na Roda, a composição e criação musical também foram destacados. Por fim, falaram sobre a solidão e a vida em geral.

Os eixos temáticos expostos acima foram categorizados e seus múltiplos sentidos foram analisados: atividade que media o aumento da potência de ação dos participantes; fazer musical coletivo; relação com as tensões geradas no modo como os participantes são socialmente vistos e escutados; processo criativo do fazer musical. As categorias criadas para o desenvolvimento e análise dos temas foram: a experiência, a criação e o fazer coletivo. Este artigo apresenta um recorte da pesquisa e se concentra no último tema, a saber, o fazer musical coletivo.

As falas dos participantes e as criações musicais foram analisadas como sendo construídas socialmente e atentou-se às múltiplas vozes sociais presentes no discurso dos interlocutores. Ou seja, os atravessamentos das vozes históricas, das vozes familiares, das vozes da comunidade, essas outras vozes que vão caracterizando e construindo a cultura e o contexto.

 

Tensões entre a prática e a teoria

Valer-se da música como mediadora de encontros é desprendê-la de um lugar naturalizado ou de adereço, pois, como mediadora, é processo e produto, não é mero recurso que pretende atingir um fim. A experiência estética não se configura apenas na relação do(s) sujeito(s) com um produto acabado, mas há também uma apropriação de elementos musicais como o timbre, o silêncio, o andamento, a intensidade, a melodia, o ritmo, a harmonia, para uma combinação sequencial, que origina um tecido sonoro. Esse apropriar-se dos elementos, bem como todas as verificações possíveis de combinações, aliado ao produto final, configura o processo criativo musical. Esse processo se torna rico quando a construção se dá coletivamente, quando o engajar-se dos participantes se dá pela apropriação e construção de um projeto comum, "sentido e experienciado como comum por uma multiplicidade de singularidades" (Maheirie et al., 2012, p. 151). A construção de um NÓS é, portanto, processo dialógico, marcado pela construção de um espaço que permite que um, afetado pelo que é do outro, possa (re)agir e assim, construir um em comum, (re)criando sensibilidades e (re)inventando sentidos.

Lapassade (1983) e Maheirie (2010), a partir das obras de Sartre, propõem uma compreensão de coletivo que supere a serialização. Em um coletivo, cada um é singularidade e pluralidade. Não há lugares privilegiados ou posições numéricas que marquem os sujeitos. Para que o coletivo exista, é necessário que os sujeitos lá estejam, em uma igualdade, não por ocuparem o primeiro, segundo ou terceiro lugar de importância, mas porque o coletivo se mantém pela existência do encontro de todos os sujeitos que o compõem, "cada um é o grupo" (Lapassade, 1983, p. 232).

Interessante também notar a forma pela qual a experiência musical coletiva aqui analisada foi modelada: a Roda de Música. O fazer música em roda foi adotado por nós como uma potência para o trabalho coletivo, uma vez que permite que qualquer um faça parte dela, dispensando hierarquias: "De modo simplificado, nada do que o sujeito é ou tem ou faz fora da Roda importa para aqueles que estão dentro dela" (Lara Filho, Silva & Freire, 2011, p. 151). Outra característica da música na Roda é a ausência de ensaio prévio e uma configuração de plateia flexível, acolhendo pessoas que muitas vezes são afetadas pelo ambiente sonoro quando apenas passam próximas. Assim, o fazer música em roda abre a possibilidade de participações periféricas, por vezes criando outras rodas em seu entorno para ouvir ou mesmo dispensando um público, dependendo do espaço físico no qual ocorre. Não raramente tivemos participações periféricas dos membros da equipe do Cras, de outros usuários ou mesmo de transeuntes.

Quando estávamos cantando, uma moradora da comunidade parou e nos assistiu pela janela. Ela está no ponto de ônibus e, enquanto espera, se volta para nossa música, sorri e nos acompanha durante duas canções inteiras. Eu vou até a janela e convido-a para fazer parte da Roda caso queira, afinal, toda sexta-feira estamos lá. Leonir vai até a janela e reitera o convite avisando do horário. (Diário de campo)

Na Roda de Música as participações periféricas foram acolhidas de modo a deixar a vivência mais aberta e espontânea.

Se nos remontarmos à história do fazer samba em roda, por exemplo, descobrimos que a Roda nasce com o intuito de um tipo de configuração de produção musical caseira, que acontecia nos quintais das casas, envolvendo qualquer membro da comunidade que apresentasse interesse em fazer parte. Adotavam-se instrumentos musicais alternativos como panelas, caixas de fósforo, ou qualquer outro recurso que deixasse o fazer musical possível e caracterizando-o como íntimo e familiar (Lara Filho, Silva & Freire, 2011).

No início da experiência da Roda de Música, dispúnhamos de alguns instrumentos percussivos e harmônicos ao centro da roda, convidávamos os participantes para os escolherem livremente, fazíamos uma breve exploração improvisada e, posteriormente, de modo espontâneo, os membros da Roda iam pedindo canções de seu repertório. Aos poucos, a Roda tornou-se um espaço para compartilhamento de temas em comum: alguém se lembrava do cantor, outro narrava a época em que a canção havia sido lançada, algumas histórias eram contadas como se as músicas despertassem certa trilha sonora de vida. Enquanto um lembrava um trecho, outro completava com as palavras que faltavam e, assim, todos engajavam-se na construção de um único tema musical.

- Tudo depende de você estar junto com as pessoas, né? Sozinho não sai nada, ali [na Roda] foi bom por isso. (Maria)

- Eu achei interessante e bem legal [...] cada um falou e fez uma coisinha e saiu uma música, foi muito bom... (Lia)

Nessas falas, percebemos a potência do fazer musical coletivo. As canções (re)contaram experiências e tornaram-se também um modo de contar e criar cultura e história. Partindo da compreensão de que o fazer musical em Roda é uma experiência coletiva, analisamos que cada um é a possibilidade de sermos Roda. Cada um é partícipe e totalidade, "é, ao mesmo tempo, 'mediador' e 'mediado' - ele próprio e o outro" (Lapassade, 1983, p. 232). O fazer musical coletivo em roda, de fato, não remete a um tipo de construção totalizante, estável e unânime, antes, é dinâmico, é elástico, criativo e passível de transformações (Maheirie et al., 2012). Para Furtado (2012, p. 219),

O grupo, portanto, nunca está acabado e nunca chega a uma maturidade que pressuponha seu fechamento, sua estabilidade, sua cristalização ou a formação de uma entidade que se sobrepõe às relações que ali acontecem. O grupo é síntese de todas as relações humanas, efetivas e concretas, que o compõem e que o constituem; portanto, o grupo é qualidade e processo. Nele, cada integrante é parte fundamental, cada um assume a sua posição e a de todos, construindo uma atividade social, histórica, livre, criativa, autocriativa, por meio da qual o ser humano cria e transforma o seu mundo e a si mesmo. No grupo inscrevem-se as singularidades de seus membros, fazendo com que as relações sejam contínuas negociações com as diferenças e os desejos individuais na consecução de um projeto em comum.

A construção musical coletiva, quando não diretamente destinada ao ensino-aprendizagem, pode reconfigurar os lugares que tradicionalmente são destinados ao saber e à ignorância: o saber, quando se encontra em sujeitos selecionados, portadores de grandes habilidades e genialidades musicais; a ignorância quando uma parcela da população é considerada incapaz de um determinado fazer, quando se assegura que a possibilidade de produção musical não pode ser realizada por aqueles que não possuem, a priori, formação técnica musical. Ao deslocar tais lugares, reconhecemos que há saber e incertezas em ambos os lugares, "o saber do ignorante e a ignorância do mestre, agindo, fazem a demonstração dos poderes da igualdade intelectual" (Rancière, 2002, p. 43).

Vera pergunta a Maria se ela conhece a música "Velha porteira". Vera pega o meu violão, começa a cantar e Maria faz a segunda voz. Os demais acompanham com percussão. Eu auxilio Elias a manter o ritmo no pandeiro meia lua, fazendo espelho do ritmo com outro pandeiro; ele parece ficar muito satisfeito, pois o ritmo fica bem estruturado. Neste momento, alguns funcionários entram na sala para ver a Roda, pois o som preenche todo o ambiente do Cras. À porta aglutinam-se três funcionárias que aplaudem, sorriem, vibram e uma delas diz: "Nossa! Achei que era a musicoterapeuta tocando, mas é a Vera! Tô me sentindo no The Voice". (Diário de campo)

Com o filósofo francês Jacques Rancière (2002), assumimos o pressuposto da igualdade, que é o próprio reconhecimento de que a diferença é constituinte de um coletivo e a desigualdade não pode ser naturalizada. A igualdade é a verificação de que somos todos humanos. É, de igual modo, a constatação de que há vozes destinadas a não serem escutadas, vozes que historicamente são consideradas ruidosas. Valer-se do princípio de igualdade é propor tensionar esses lugares, intentando que a voz de uma parcela do povo que sempre foi emudecida seja escutada (Rancière, 1996). Por isso, analisamos que o estranhamento das funcionárias do Cras diante da execução musical de Vera e Maria tensiona, ainda que minimamente, os lugares já postos, uma vez que era esperado que a musicoterapeuta estivesse em evidência musicalmente e não as usuárias do serviço.

Por meio do fazer musical em contexto socioassistencial, pessoas que não eram destinadas a dedicar uma parcela do tempo para o fazer artístico tiveram essa experiência. Pessoas que sempre foram escutadas de um determinado lugar ocuparam outros lugares e impostaram a voz de outro modo.

Um dos projetos criados pelos participantes a partir dos encontros da Roda no Cras foi a ocupação do espaço urbano com a inscrição do tipo de arte que fizeram. O grupo cantou na praça pública da comunidade, alterando o tipo de visibilidade do espaço e de si. O fazer musical da Roda de Música consistiu-se em um projeto cúmplice, em que cada um pôde lançar-se a experiências outras, inaugurando novas possibilidades de ser, estar, agir, relacionar e pensar.

- Eu gostaria de mais, mais vezes, pra gente sair [...], fazer umas cantorias aqui na praça é ótimo! [...]. Nós tivemos a coragem de sair na rua, não é todo mundo que tem essa coragem, dá vergonha, outras pessoas tiram sarro, eu já não tenho medo dessas coisas [...]. Na hora tava muito bom [...] foi um sonho realizado também. (Maria)

A experiência de cantar na praça da comunidade permitiu aos participantes a inauguração de um modo outro de se relacionar com o território, com a comunidade, com o grupo e consigo mesmo. Uma vez que a intervenção da Roda de Música na comunidade pretendeu ser uma ação que contribuísse para o atendimento das especificidades do serviço socioassistencial, a compreensão do lugar dado à música merece uma leitura social e comunitária, reconhecendo a música como produto humano, como processo e ação social, situada histórica e culturalmente (Blacking, 2007; Maheirie, 2001).

A música torna-se, portanto, uma construção possível a todos, uma vez que não habita somente o campo da expertise. A música passa a ser compartilhada socialmente (Cunha, 2007) e, por isso, a experiência musical torna-se polissêmica e polifônica. Polissêmica pela multiplicidade de sentidos possíveis, uma vez que o sentido é uma construção singular que se transforma e se cria em diferentes contextos coletivos (Vigotski, 1934/1992; Wazlawick, Camargo & Maheirie, 2007). Polifônica porque vem atravessada por diferentes vozes sociais e por histórias que povoam a constituição do material sonoro que ali se apresenta e, também, porque, ao cantar coletivamente, a presença do encontro de vozes é objetivada, de vozes individuais, com vontades singulares, que se encontram e se transformam ao se encontrar e se unificar (Bakhtin, 2010).

Sendo assim, o projeto da Roda de Música marca um tipo de prática que ocorre no campo vivencial, que adentra a rotina e se insere na comunidade, sendo, portanto, uma proposta construída em parceria com os participantes, tomando como base a perspectiva sócio-histórica de sujeito.

A experiência musical é mediada pelos elementos musicais e cria espaços geradores de encontros afetivos e criativos. Afetivos porque nos afetam corporalmente e podem aumentar ou diminuir nossa potência de ação (Espinosa, 1663/2013). Segundo Espinosa, é no encontro que habita a possibilidade de termos nossa potência de existir e agir aumentada ou diminuída. Criativos porque, ao imaginar, o grupo pode inaugurar novos temas musicais, novas formas de relação, criando novos modos de relações, novas percepções sobre si, novas formas de pensar, desdobrando o processo para outros campos do vivido. Com isso,

Este poderá imaginar aquilo que nunca viu, poderá, a partir da descrição do outro, representar para si também a descrição daquilo que na própria experiência pessoal não existiu, o que não está limitado pelo círculo e fronteiras estritas da sua própria experiência, mas pode também ir além de suas fronteiras, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica e social dos outros. (Vigotski, 1930/2014, p. 15)

Ao atuar no campo comunitário, a musicoterapia pretende verificar que todos são geradores e possibilitadores de um coletivo. Há uma dispensa de lugares de suposto saber; a apropriação do espaço é fruto de uma criação que é essencialmente coletiva. Os caminhos a serem percorridos não são (de)limitados antecipadamente; o musicoterapeuta, com sua formação e possibilidade técnica, apenas amplia ou investe na criação de espaços para as ações do coletivo. A musicoterapia social e comunitária, assim como a Psicologia sócio-histórica, se inserem para atuar com o cotidiano e no cotidiano que permeia a parcela da população com a qual se trabalha. Os espaços sonoros criados são formas de escutar as vozes de sujeitos até então considerados subalternos por posições hierárquicas cristalizadas. Ao subverter a lógica dos que podem ou não ter sua voz escutada e validada, há a possibilidade de que o homem "comum" fale do que lhe é próprio, inscreva e escreva história, crie formas outras de se fazer ouvir, tensione o modo com que é visto, escutado e sentido e, de igual modo, altere sua própria sensibilidade.

 

Considerações finais

Ao reconhecerem artistas, os participantes puderam também conferir uma autoria estética à existência. Quando o homem "comum" faz arte, ele atesta que "existe de fato criatividade não só quando se criam grandiosas obras históricas, mas, também, sempre que o homem imagina, combina, altera e cria algo novo" (Vigotski, 1930/2014, p. 5). Sendo assim, mais do que inscrever histórias de vida na objetivação de seus repertórios, os participantes puderam criar outras histórias. Acompanhamos a continuidade da Roda de Música na casa de uma das participantes, após o término da pesquisa aqui narrada. As vizinhas de Maria, mulheres que nunca participaram da Roda de Música do Cras, passaram a frequentar a casa dela para fazerem projetos musicais e terem encontros mensais para musicar. Presenciamos o constante incentivo por parte de alguns participantes para a adesão de outros participantes da Roda às atividades musicais da comunidade, tais como aulas de instrumentos musicais ou canto coral. Muitos comentaram no último encontro da Roda que passaram a fazer música com seus familiares, em suas casas.

O desdobrar do fazer musical para outros aspectos da vida cotidiana é a marca de que um encontro, mediado pela música, pode ter a possibilidade de afetar outros setores da existência, convidando a arte para ocupar e alterar a rotina, o espaço urbano, as relações sociais e familiares.

Compreendemos a musicoterapia Social e Comunitária como sendo uma categoria que, ao atuar em contexto sociocultural, pretende intervir em espaços culturais, comunitários, sociais, apoiando e recriando comunidades e laços coletivos.

Observamos que, a despeito de não lançarmos uma proposta pedagógica, alguns participantes sentiram-se compelidos a procurarem oportunidades possíveis na comunidade para desenvolverem conhecimento técnico musical, por meio de aulas de violão e canto coral.

Analisamos que os encontros da Roda de Música foram disparadores de outros interesses. A despeito do término do projeto de pesquisa, os integrantes da Roda continuaram a se encontrar para socializar saberes, fortalecer laços, promovendo encontros musicais. Marcamos que a música, ao ser praticada no contexto do Cras, foi compreendida como processo e produto, possível também a qualquer um, sendo narradora e criadora de cultura e história.

O fazer musical coletivo da Roda de Música pretendeu romper com formas hierárquicas de saber. Por meio de construções criativas, coletivas e compartilhadas, os participantes assumiram lugar de autoria. O fazer musical criou espaços de partilha e assim aumentou a potência de ação e existência dos sujeitos a partir da inauguração de um NÓS, em um tipo de fazer que conta com um projeto em comum, em que a sensibilidade pode ser alterada, numa construção que se dá coletivamente, (re)criando e fortalecendo relações.

Ao fazer música coletivamente, o homem pode criar formas de ser escutado e olhado e também de escutar e olhar. Cria formas de se relacionar, dispensando hierarquias historicamente cristalizadas. Ao assumir seu potencial artístico, os participantes assumem também a capacidade criativa de ser e estar no mundo.

 

Referências

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Recebido em 26/08/2015
Aprovado em 07/04/2017

 

 

1 Resolução nº 17, de 05 de junho de 2011. Disponível em http://www.coffito.org.br/site/files/noticias/2014/PDFsNoticias/CNAS_2011_-_017_-_20_06_2011.pdf Acesso em 28.04.2015.
2 Certificado de apresentação para Apreciação Ética número 38886614.4.0000.5368.

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