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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.1 São João del-Rei abr. 2018
RESENHA
Narrativa sobre narrativas: caminhos possíveis para a pesquisa social
Narrative about narratives: possible paths toward social research
Narrativa sobre narrativas: caminos posibles para la investigación social
Domitila Kawakami Gonzaga
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), com ênfase em saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e atenção básica de saúde. Psicóloga formada pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar (2012). Mestre em Educação Especial pela UFSCar (2014), com ênfase em prevenção de maus-tratos infantis e na promoção de práticas parentais adequadas. Especialista em Terapia e Intervenção Familiar e de Casal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Cordeiro, R., & Kind, L. (2016). Narrativas, gênero e política. Curitiba: Editora CRV.
Trago no sonho e no sangue
Motivos pra lutar [...]
O que eu sou,
Eu sou em par.
Não cheguei sozinho
Canções da minha dor,
Canções do meu pesar,
Canções do meu amor,
Canções do meu amar.
(Lenine)
A proposta deste texto é resenhar o livro Narrativas, gênero e política, o qual é uma coletânea de trabalhos apresentados no I Simpósio da Rede de Pesquisas em Narrativas, Gênero e Política, evento que aconteceu em Belo Horizonte (MG) no ano de 2016. A partir desse evento, Rosineide Cordeiro e Luciana Kind organizaram algumas apresentações em capítulos de livros. O estilo da escrita desta resenha é resposta motivada pelo livro, sendo que, dentre várias questões, apresenta de maneira crítica e expositiva as múltiplas possibilidades de escrita acadêmica, incitando à fuga das formalidades de um estilismo acadêmico familiar.
O livro é dividido em duas partes, sendo que a primeira delas conta com dez capítulos de diferentes autores provenientes de distintas regiões do país e cada um com uma história a respeito do fazer pesquisa. As autoras e autores problematizam os espaços comuns sobre o que é método de pesquisa, criticam o entendimento da escrita científica tradicional e impessoal como sendo a única forma legítima de produção acadêmica e, por meio de suas histórias, quase todas narradas em primeira pessoa, articulam trechos a respeito de reflexões no processo de fazer pesquisa com poesia, autorreflexão como pesquisadores, colaboração com colegas e, fundamentalmente, teóricos contemporâneos que amparam suas escritas para a possibilidade de desconstrução de discursos hegemônicos.
A segunda parte do livro, após a apresentação de possibilidades metodológicas, é composta por artigos escritos não apenas por acadêmicos, mas também por ativistas e militantes que narram suas histórias de luta política. São oito capítulos que discorrem, também, sobre como as ações acadêmicas podem ser desenvolvidas para além dos muros universitários. O caráter militante dessa seção do livro apresenta de forma clara o posicionamento dos autores em seus ativismos e foi produtor de profunda motivação e empolgação durante a leitura.
Ambas as partes apresentam narrativas sob influência de demarcado contexto sócio-histórico, amparado pelas lutas feministas dos anos 1960, especialmente se atendo às fases mais atuais deste e de outros movimentos. São apresentados territórios alcançados decorrentes das lutas em prol da diversidade, não apenas a de gênero, mas também de outros grupos marginalizados, potencializando novos discursos e ações, tanto em âmbito microrrelacional como macrorrelacional.
O livro apresenta capítulos com narrativas de pesquisas e militância com base na psicologia social, legitimando a importância e necessidade de endossar a vertente científica psicossocial brasileira. Seu conteúdo é motivador para as reflexões sobre as possibilidades de um processo de desenvolvimento de pesquisa como forma de posicionamento político, sobre a não neutralidade no seu ato e, principalmente, sobre seus potenciais transformadores em contextos diversos, especialmente em espaços onde a vulnerabilidade é a condição mais visível na vida de pessoas invisíveis.
Situado em panorama brasileiro e mundial de exceção, as autoras e autores corroboram com a necessidade de ações pautadas em momento de enfraquecimento da legitimidade dos já parcos direitos alcançados. O livro é lançado em meio a um momento marcado pela indignação de respostas governamentais de desconsideração de um montante populacional representativo da maior parte da população brasileira, fincado no pensamento de que os pobres, as mulheres, os negros, os indígenas, os quilombolas, os povos do campo e a comunidade LGBT são cidadãos inferiores, invisíveis, de vidas que não valem.
O livro como um todo representa a força que há no agir colaborativamente, assim como traz Lenine em sua música Castanho, apresentado na epígrafe deste texto: não estamos sós e temos marcado em nossas trajetórias a presença dos pares. Assim, cada um à sua maneira, autoras e autores dos capítulos do livro narram histórias diferentes, atendo-se às ações conjuntas como fortalecimento e endossamento dos discursos dos que estão à margem, na constituição de grupos e coletivos e alcance de direitos. Dessa forma, o livro inspira a leitora e o leitor, por meio de engajamento ativista, a se motivarem em prol das mudanças sociais que almejam vivenciar.
Uma possível crítica que não compete à sua qualidade, mas a um cenário complexo pode ser atribuída à relação entre pesquisador-pesquisado, especialmente quanto à problemática do gênero,por exemplo, autores homens narrando sobre mulheres. Esse juízo não se reduz à resolução de promovermos exclusivamente pesquisas de mulheres por mulheres, contudo. O destaque se dirige à desigualdade elucidada em todo o material, que denuncia características pós-coloniais: até quando necessitaremos de outras vozes para sermos ouvidas?
Enquanto essa ainda é uma questão retórica, podemos nos ater à potência da ciência pós-moderna que critica o cenário e, a partir deste, cria modos subversivos de ação, construindo sua roupagem visionária em busca de transformações futuras, buscando ir além da representação dos problemas sociais, alimentando-se destes para a proposição de ações de resolubilidade.
Por fim, parafraseando Valter Hugo Mãe e referenciando Deleuze, somos filhas de mil mulheres, pessoas que podem contar histórias que oscilam entre encontros alegres e tristes, na busca pelo devir-mulher. Em contato com esse material, é possível sentirmos reverberar e ressoar memórias e histórias, o que só é possível por conta de histórias de lutas de mulheres que conhecemos, e por isso somos parte delas e somos todas elas. Nossas lutas devem, portanto, ser para elas e pelas próximas que virão, em busca de contextos mais plurais e possíveis de ser.
Recebido em 21/11/2017
Aprovado em 01/02/2018