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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2019
O silenciamento e a busca da verdade
The silencing and the quest for truth
El silenciamiento y la búsqueda de la verdad
Marília Novais da Mata Machado
Doutora pela Universidade de Paris Norte (Paris XIII). Aposentada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) como professora titular. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (Lapip/UFSJ) e do Laboratório de Grupos, Instituições e Redes Sociais (L@GIR/UFMG)
Resenha do livro:
Le Ven, M., & Augusto, R. C. (2017). Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.
Nas manifestações de direita que precederam o golpe de 2016, os cartazes pedindo a volta dos militares ao poder foram especialmente chocantes para aqueles contrários ao impedimento de Dilma Rousseff. Em particular, os cartazes foram incompreensíveis para os que viveram mais de perto os horrores perpetrados pela ditadura de 1964-1985. Para as vítimas daquele período, anistiadas ou não, o regime militar foi época de arbítrio, abusos, assassinatos pelo Estado, terror, perseguição política, muita dor e sofrimento. Era, portanto, impensável imaginar que dizeres como aqueles pudessem ser erguidos por quem quer que fosse, em praça pública.
Por isso, o livro de Le Ven e Augusto é importante hoje, agora. Ajuda a entender por que o absurdo tornou-se possível. Tudo no livro gira em torno de episódio ocorrido em dezembro de 1968, na véspera do AI-5, ato institucional que suspendeu por anos as liberdades democráticas no País. Trata-se da prisão dos padres do Horto, bairro de operários em Belo Horizonte e da repercussão desse acontecimento até os dias atuais.
Padre Elias relata a origem do livro. Ele assumiu a paróquia Senhor Bom Jesus do Horto, em Belo Horizonte, em 2006. Nas conversas iniciais que manteve com os paroquianos, especialmente com os mais velhos, surpreendeu-se com o fato de todos contarem casos posteriores a 1972. Ora, a paróquia havia sido criada em dezembro de 1942. Padre Elias buscou os livros de tombo e não encontrou registros da época silenciada. Por intermédio de Frei Tiago, historiador capuchinho, ficou sabendo que padres da Congregação dos Agostinianos da Assunção (chamados assuncionistas) haviam sido responsáveis pela paróquia e que haviam sido presos. Pe. Elias escreve, no Prefácio do livro:
Em dezembro de 1968 esses religiosos foram levados como subversivos pelo regime militar. Eram os Pe. Francisco Xavier Berthou, Pe. Michel Marie Le Ven, Pe. Hervé Croguennec e o então diácono José Geraldo da Cruz, que se tornou bispo.
Foi a primeira vez que ouvi o nome de Michel Le Ven. [...] assim que pude, fui até ele e tive a mais sensacional aula de História de minha vida. [...]. O resultado de nosso encontro foi uma proposta ousada: criar um grupo que rompesse o silêncio [...] para [...] tornar público tudo aquilo que esteve silenciado em tantas mentes e corações. (Souza, pp. 13-14)
Com efeito, o livro foi feito. Passados 40 anos, o acontecimento de 1968 foi narrado por Berthou, Le Ven e Cruz. Atenção: apenas após quatro décadas houve condições psicológicas e materiais para que eles falassem e escrevessem sobre a prisão. Croguennec morreu em 1979, sem ter tido a mesma chance. O livro é dedicado a ele. Por outro lado, 19 pessoas, moradores do bairro, vizinhos e amigos da Igreja do Horto, militantes da ação católica, muitos deles membros da Juventude Operária Católica (JOC), atuantes na paróquia em 1968, dão os seus testemunhos. Suas falas ajudam a entender como e por que o evento traumático de 1968 foi silenciado.
O livro foi publicado em 2017. Pode-se assim dizer que foram necessários quase 50 anos para que a barreira do silêncio sobre a prisão fosse finalmente vencida. Sem que fosse esse o objetivo, o livro demonstra claramente como o silêncio ocorreu e durou. Tomara que demonstre também o perigo histórico, político e psíquico desse silêncio, imposto de fora, mas também autoimposto.
Vejam-se algumas das falas sobre o silenciamento que mostram por que, quando e como ele ocorreu.
Muitos colegas sumiram. Deu medo neles, porque dá medo mesmo. Muitos não falavam mais nada. Quando nos encontrávamos na PUC, ninguém falava nada sobre os fatos acontecidos. Mas alguns continuaram ligados: Juarez, Newton (já falecido), Dominique, que veio para Belo Horizonte depois. (Antonucci, p. 119)
A Igreja do Senhor Bom Jesus do Horto, construída pelos ferroviários, nasceu em 1942. Nas décadas de 1960 e 1970, os jovens, crianças e adultos, junto com os padres assuncionistas, e inspirados pelos ventos de renovação da Igreja do espírito do Concílio Vaticano II e da Carta de Medellín, fizeram dela uma comunidade religiosa engajada e viva.
Em 1968, sua igreja e sua gente foram ultrajadas pela "prisão dos padres agostinianos da Assunção", acusados de "subversivos" pelas forças da repressão. Fecharam a igreja e silenciaram por mais de 40 anos seus moradores, paroquianos, trabalhadores e militantes jovens. A Congregação que ali se instalara em 1966 nunca mais foi a mesma. Seu povo, ferroviários e outros trabalhadores, teve sua história cortada, sua identidade fraturada e silenciada! (Le Ven & Augusto, p. 126)
Como a gente ia dar um sinal de que, na Igreja do Horto, havia gente que estava protestando? Não podia falar, não podia escrever, não podia fazer comício, então a maneira mais certa era esta: fechar a Igreja! [...] Fechamos a igreja e celebramos na porta.
Esse grupo (pequeno) de jovens e adultos, catequistas, tentou reagir, pelo menos livrá-los de tantas calúnias, principalmente da imprensa. A maioria do povo do Horto ficou sem saber o que acontecia. Não se podia falar do assunto. Todos tinham medo. "Contra a força não há resistência", alguns diziam. (Gonzaga, p. 149)
Trazer à tona a memória de 1968, no Horto, é tirar do silêncio uma história que envolveu a vida de muitos. Uma história de sonhos, ideais humanitários e, por que não dizer, socialista-libertadores, que, ao contrário do que muitos creem, é o pensamento mais cristão que eu conheço, depois dos Evangelhos. (Magalhães, p. 163)
O que nossos amigos passaram, naqueles dias, foi terrível! Sei que foi uma experiência por demais devastadora para eles, mas, apesar da indiferença por parte das autoridades (porque, para mim, o caso foi tratado com indiferença, talvez por medo de se envolverem), preferiram calar sobre o assunto. Então meu desejo é que as coisas sejam colocadas de maneira clara. (Alves, p. 189)
Nós, da JOC, também tínhamos dificuldade de falar dos anos 68 em diante... Tanta violência e repressão acabaram por causar um trauma que persistiu, apesar dos tempos serem outros (Isabel de Souza, citada por Le Ven & Augusto, p. 197)
O silêncio imposto pela violência, em todos os setores da sociedade, impedia que a maior parte da população tomasse conhecimento das atividades praticadas pelo exército e a polícia nos porões da ditadura
[...] O silêncio imposto pela ditadura, pela sociedade, pela família e até por nós mesmos foi mais forte. Afinal, viver era preciso... (Oliveira, pp.198-199)
Recordo-me da sensação que eu tinha de que havia dois Brasis. Um que todo mundo vivia e não sabia de nada e o dos que sabiam de tudo o que acontecia: dos desaparecidos, dos torturados, das guerrilhas... Era muito estranho vivenciar isso aos 17 anos e ter que seguir no silêncio. Acho que quem viveu aquela época ficou meio "fechado". (Cândido, p. 211)
Pelo tempo que as vivências e lembranças habitam em nossa alma, não é fácil trazê-las para fora não. Das lembranças às emoções, das emoções às pontadas no coração... (Silva, p. 215)
Tivemos que aprender a medir nossas palavras e mesmo a evitar algumas, pois eles tomaram de nossa boca, de nossas vidas, com aquelas mãos imundas, somente o que queriam para dar vida à mentira para que ela, a mentira, viesse a ser verdade. (Silva, p. 219)
Ah, depois a ditadura calou todo mundo. [...] Então, depois da ditadura todo mundo calou, ninguém podia falar em JOC não. (Ricardo, p. 239)
Calado, sofri ameaças constantes, por telefone ou presencial, da repressão que andava em carros comuns. Falavam que iam me empurrar na frente do ônibus, que iam sumir comigo; um horror que passei isoladamente, para não generalizar o terror entre aqueles com quem eu convivia, principalmente na escola e na turma da JOC. Claro que esse isolamento me fez muito mal, mas eu achava que, se falasse, seria fazer o que eles queriam, ou seja, multiplicar o medo e a ameaça sobre nós. Foi tudo muito desgastante! (Cândido, p. 256)
No caso da prisão dos padres do Horto e da dispersão dos militantes jocistas ligados à paróquia, apenas o tempo permitiu que a verdade viesse à tona, perto de meio século depois e ainda de forma circunscrita e local. O principal motor citado do silenciamento sobre a prisão e suas consequências foi o medo da violência física e das calúnias da imprensa. O medo foi pessoal e coletivo. Chegou a ser mencionado como trauma.
Como a história da ditadura de 1964-1985 ainda não foi contada - ela deveria estar nos livros de História do ensino fundamental ao superior -, como ainda se tenta processar seu apagamento, sem mais análises, como ainda há os que defendem e mantêm a anistia aos torturadores, corre-se o risco de ver o arbítrio antidemocrático de volta, com seus horrores e riscos.
Ainda bem que o caso dos padres do Horto veio à luz. Mas é bom lembrar que muitos e muitos outros ocorreram e ainda se silencia sobre eles. Houve as honrosas exceções da Arquidiocese de São Paulo e das Comissões da Verdade, que pesquisaram a fase ditatorial. Mas ainda não são suficientes. Há um longo caminho ainda a ser percorrido.
Referências
Alves, M. I. (2017). Memórias de um tempo de esperanças! (pp. 188-189). In Le Ven, M. & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Antonucci, J. L. (2017). 1968 mudou todo o nosso rumo e marcou o destino da nação (pp. 117-128). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Cândido, I. M. (2017). JOC: um poder jovem que vinha da periferia (pp. 208-214). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Cândido, W. G. (2017). JOC depois do AI-5 (pp. 256-262). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Gonzaga, A. (2017). Nascia uma comunidade entre ferrovias e matas: o Horto (pp. 143-159). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Le Ven, M., & Augusto, R. C. (2017). Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Magalhães. M. L. L. (2017). Memórias do Horto (pp. 163-175). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Oliveira, E. S. (2017). Chegou o 28 de novembro de 1968 (pp. 198-200). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Ricardo, M. I. (2017). A JOC ainda é o meu espelho de consciência (pp. 236-245). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Silva, M. C. (2017). "É Natal no Horto das Oliveiras": fragmentos da memória (pp. 215-229). In Le Ven, M., & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Souza, G. E. (2017). Prefácio: História para a vida (pp. 13-14). In Le Ven, M. & Augusto, R. C. Memórias vivas de 1968: a prisão dos padres franceses e do diácono brasileiro em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Recebido em: 25/5/2018
Aprovado em: 14/4/2019