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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2020

 

Sustentabilidade afetiva em situações de vulnerabilidade socioambiental: um problema para as cidades

 

Affective sustainability in social environmental vulnerability: a problem for cities

 

Sostenibilidad afectiva en situaciones de vulnerabilidad social y ambiental: un problema para las ciudades

 

 

Gabriela Iamara Lupianhe PereiraI; Sonia Regina Vargas MansanoII

IPsicóloga formada pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: gabiamara@gmail.com
IIDoutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: mansano@uel.br

 

 


RESUMO

Catástrofes naturais produzem impactos na vida da população, em especial daquela parcela que se encontra em situação de vulnerabilidade. O presente estudo teve por objetivo problematizar as contribuições da Psicologia em relação à vulnerabilidade socioambiental gerada por desastres naturais. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com utilização de casos extraídos de publicações em mídias digitais. Primeiramente, foram investigados os tipos de catástrofes naturais, bem como a noção de vulnerabilidade socioambiental. Em seguida, foi analisado o caso que ficou conhecido como "Megadesastre da Região Serrana do Rio de Janeiro", ocorrido em 2011. As análises dos documentos de domínio público demonstraram que os processos de desterritorialização e criação de novos territórios acontecem mediante sofrimento e angústia, mas também geram processos de cooperação e conexão. Como conclusão, constata-se que o profissional da Psicologia é chamado frequentemente a intervir nesse tipo de situação, cabendo-lhe realizar um exercício de acolhimento analítico e político das populações atingidas.

Palavras-chave: Vulnerabilidade socioambiental. Desastres naturais. Sustentabilidade afetiva.


ABSTRACT

Natural disasters produce impacts on the lives of the population, in particular that portion which lies in situation of vulnerability. The present study aimed to discuss the contributions of psychology in relation to social and environmental vulnerability generated by natural disasters. This is a qualitative research using cases drawn from publications in digital media. First were investigated the types of natural disasters as well as the notion of social and environmental vulnerability. Then, was analyzed the case that became known as "Mega disaster of the mountainous region of Rio de Janeiro", held in 2011. The analysis of public domain documents demonstrated that the processes of deterritorialization and creation of new territories happen through suffering and anguish, but also generate cooperation and connection processes. As a conclusion, noted that the professional of psychology is often called to intervene in this kind of situation, and carry out an exercise of analytical and political acceptance of the stricken populations.

Keywords: Social and environmental vulnerability. Natural disasters. Affective sustainability.


RESUMEN

Desastres naturales producen impactos en la vida de la población, en particular la parte que se encuentra en situación de vulnerabilidad. El presente estudio pretende analizar las aportaciones de la psicología en relación con la vulnerabilidad social y ambiental generada por los desastres naturales. Es una investigación cualitativa con casos extraídos de publicaciones en medios digitales. En primer lugar, se investigaron los tipos de desastres naturales, así como la noción de vulnerabilidad social y ambiental. Luego, se analizó el caso de que se conocía como "Mega desastres de la región montañosa de Río de Janeiro", que ocurrió en 2011. El análisis de documentos de dominio público demostró que los procesos de desterritorialización y creación de nuevos territorios pasan por sufrimiento y angustia, pero también generan procesos de cooperación y conexión. Como conclusión, se observa que el profesional de la psicología a menudo está llamado a intervenir en este tipo de situación y llevar a cabo un ejercicio de aceptación de análisis y política de las poblaciones afectadas.

Palabras clave: Vulnerabilidad socio ambiental. Desastres naturales. Sostenibilidad afectiva.


 

 

Introdução

Desde o fim do século XVIII, com base nos ideais difundidos pela Revolução Industrial, o capitalismo ganhou força de expansão e seu ideário de desenvolvimento e lucro reconfigurou os diversos âmbitos sociais. A relação do homem com a natureza não fugiu dessa realidade, sendo essa última considerada uma fonte inesgotável de matéria-prima para exploração humana e expansão das indústrias. Seus recursos e riquezas fizeram-se cruciais para a produção de mercadorias, fortalecendo esse sistema econômico. Assim, a relação homem-natureza passou a ter um viés mercantil e a intensa exploração dos recursos naturais, sem planejamento ou controle de riscos, intensificou os episódios de catástrofes ambientais que se estendem até a atualidade (Harvey, 2013; Stengers, 2015).

Ocorrências como terremotos, erupções vulcânicas, deslizamentos de terras, tornados, secas e enchentes são considerados fenômenos naturais quando ocorrem independentemente da ação do homem. Cada um deles é tido como natural ao ecossistema terrestre, sendo responsável por diversos benefícios ecológicos: as enchentes naturais, por exemplo, garantem a fertilização das margens dos rios; os incêndios naturais promovem a limpeza do solo e a renovação da vegetação, sazonalmente (Beck, 2011; Esteves, 2011). No entanto, quando esses fenômenos são provocados de maneira desordenada pela ação humana, afetando a organização social e colocando a vida de populações inteiras em perigo, acabam sendo encarados de outra forma: como desastres (Mattedi & Butzke, 2001). Os efeitos sociais e econômicos de tais ocorrências são amplamente conhecidos e difundidos pela mídia. Pouca atenção é dada, entretanto, aos seus desdobramentos afetivos, uma vez que a população atingida ganha visibilidade apenas durante o tempo em que a notícia sobre sua condição está sendo veiculada pela mídia (Arroyave-Cabrera & Miller, 2017).

Tomando em consideração o problema da vulnerabilidade socioambiental que ganha contornos cada vez mais frequentes no cotidiano das cidades (Arroyave-Cabrera & Miller, 2017) buscou-se, no presente estudo, problematizar as contribuições da Psicologia em relação à vulnerabilidade socioambiental gerada por desastres naturais. No decorrer do estudo, demonstraremos como a noção de sustentabilidade afetiva pode servir como uma ferramenta conceitual que coopera tanto para compreender as adversidades que emergem da relação complexa entre homem e natureza quanto para elaborar afetivamente os impactos e as rupturas que elas colocam em curso nos centros urbanos.

 

Questões metodológicas: delimitando um campo de investigação

A investigação aqui apresentada foi desenvolvida por meio do método qualitativo, que buscou abordar os fenômenos a partir de uma perspectiva crítica (Minayo, 2001), focalizando especificamente a experiência de pessoas que foram diretamente afetadas pelos chamados desastres naturais.

O estudo adotou o seguinte trajeto: primeiramente, buscou-se investigar como ocorrem os fenômenos naturais classificados como catastróficos e de quais maneiras eles afetam a vida cotidiana das comunidades tidas como vulneráveis e que habitam os centros urbanos. Buscou-se também um maior aprofundamento a respeito dos conceitos de vulnerabilidade e risco, recorrendo à perspectiva da Geografia Humanista. Por fim, essa parte teórica da pesquisa dedicou-se a compreender como o psicólogo é chamado a intervir nesse tipo de situação urgente e emergente, analisando as maneiras como os indivíduos que experimentaram transformações drásticas em seus modos de vida reagem subjetiva e afetivamente.

No segundo momento, foram consultados documentos de domínio público, mais especificamente jornais com publicação na internet, que veicularam notícias sobre pessoas que sofreram com as catástrofes naturais. Nessa consulta, foram extraídos depoimentos de sobreviventes de um desastre específico que foi denominado à época como "Megadesastre da Região Serrana do Rio de Janeiro", ocorrido em 2011. Deu-se prioridade a esse acontecimento por ele ter sido considerado a maior catástrofe natural da História do Brasil, o que provocou grande apelo emocional no nosso país, além de ampla divulgação a respeito das histórias de vida das vítimas e dos danos por elas sofridos.

Os dados selecionados dos sites foram analisados a partir de três eixos: a vivência da catástrofe, a desterritorialização e a criação de novos territórios. Para isso, recorremos à Psicologia Social (Rolnik, 1995; Mansano 2016) como referência conceitual de análise, especificamente em sua interface com a Filosofia da Diferença (Deleuze, 1996, 2009; Guattari & Rolnik, 1986). Essas referências ofereceram subsídios teóricos e conceituais para acompanhar os desdobramentos afetivos da experiência aqui problematizada. Consideramos que o diálogo entre Psicologia, Sociologia e Filosofia abriu um leque de possibilidades para compreender o papel político do profissional psicólogo nesse tipo de situação limítrofe, que se torna mais frequente nos centros urbanos.

 

Do espaço vivido às catástrofes naturais

A luta pela própria sobrevivência, empreendida por homens e mulheres, é algo que perpassa a história da humanidade e conta com recursos diferenciados, a depender da experiência enfrentada, da tecnologia, dos saberes em circulação e da organização de cada grupo social (Beck, 2001). Essa sobrevivência, por vezes, é ameaçada por ocorrências caracterizadas como catastróficas e que culmina na interrupção da vida (Stengers, 2015). Para Kuhnen (2009), uma situação caracterizada como catástrofe é definida a partir dos efeitos provocados pelo ambiente físico sobre as pessoas, os quais podem ganhar dimensões destrutivas e irreparáveis. Assim,

Todos estes fenômenos são eventos, não raro, extremos, que rompem um ciclo ou um ritmo de ocorrência dos fenômenos naturais, sejam estes geológicos, atmosféricos ou na interface destes. Contudo, não serão todos os terremotos ou furacões que serão considerados hazards, mas [...] apenas aqueles que estão em relação ou ocorrendo em áreas ocupadas pelo homem, gerando danos, perdas e colocando em perigo estas populações. É por isso que um hazard não é natural em si, mas trata-se de um evento que ocorre na interface sociedade-natureza. (Marandola Jr. & Hogan, 2004, citados por Esteves, 2011)

Quando uma população e/ou grupo social se veem impotentes diante das forças da natureza, pode-se dizer que estes se encontram em situação de vulnerabilidade socioambiental (Freitas & Ximenes, 2012). De acordo com os autores, esse conceito aborda duas séries de fatores: 1. Processos sociais relacionados à precariedade das condições de vida e proteção social que expõem certos grupos mais vulneráveis a desastres; e 2. Mudanças ambientais consequentes de constante degradação do meio ambiente, o que acaba por tornar certas áreas mais vulneráveis que outras. Com isso, a vulnerabilidade socioambiental pressupõe a exposição da população a algum tipo de perigo ou dano (Kuhnen, 2009). Ela abrange um determinado conjunto de situações que diminui ou aumenta os riscos aos quais a população encontra-se exposta nos diversos âmbitos de sua vida (Freitas & Ximenes, 2012). Daí a necessidade de fazer uma diferenciação entre vulnerabilidade e risco:

A vulnerabilidade é diferente do risco. A base etimológica da palavra advém do verbo latino "ferir". Enquanto que o risco implica a exposição a perigos externos em relação aos quais as pessoas têm um controle limitado, a vulnerabilidade mede a capacidade de combate a tais perigos sem que se sofra, a longo prazo, uma potencial perda de bem-estar. (PNUD, 2007, p. 78)

As catástrofes naturais são, portanto, situações com as quais todas as sociedades convivem em maior ou menor grau (Beck, 2011). Elas representam um desafio para a organização social em sua interface com a natureza (Mattedi & Butzke, 2001). É notável que as populações mais vulneráveis às catástrofes são as mais desfavorecidas, principalmente as que habitam em subúrbios e são mais carentes de infraestrutura urbana. Assim explicita o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2007 e 2008 (PNUD, 2007) ao descrever que tanto os habitantes da baixa Manhattan como as pessoas que vivem no Delta do Ganges correm os riscos de serem afetados por inundações. Entretanto, elas não partilham das mesmas vulnerabilidades, já que no Delta do Ganges as populações sofrem com um índice de pobreza extremamente elevado e contam com uma infraestrutura deficitária.

Segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (UNCSD, 2012), nos últimos 40 anos, nos países mais pobres, foram contabilizados cerca de 3,3 milhões de óbitos por calamidades naturais e, a cada ano, aproximadamente 226 milhões de pessoas são afetadas por elas. Cerca de 558 mil pessoas morrem por conta de secas e estiagens. Ainda segundo os dados da Conferência anteriormente citada, a cada ano, uma média de 366 mil pessoas são afetadas por deslizamentos de terra no mundo, 37 milhões por ciclones, furacões e tufões. Vítimas das chuvas totalizam 102 milhões e, segundo dados publicados em 2009 pelo International Strategy for Disaster Reduction (ISDR), a maior parte das pessoas expostas (95%) e dos óbitos (95%) ocasionados por enchentes, se encontra nos países com menor renda per capita (UNCSD, 2012).

Como afirma Kuhnen (2009), não apenas a pobreza, mas diversos outros fatores contribuem para o aumento do risco provocado por fenômenos naturais. Entre eles estão o uso desenfreado dos recursos naturais e seu desperdício, a intensa degradação ambiental, a contaminação e a poluição. Além disso, o autor mostra que existe o descaso público com o bem-estar da população, as insuficientes políticas públicas de combate à pobreza, a baixa escolaridade, a infraestrutura urbana deficiente e a carência de uma cultura de prevenção.

Também nos estudos de Beck (2011) sobre a denominada "Sociedade de Risco", fica evidente que os desastres afetam diversas regiões e populações. Entretanto, os perigos por eles gerados não apresentam qualidade homogênea, já que cada sociedade dispõe de diferentes mecanismos para enfrentá-los. Dessa maneira, a capacidade governamental de oferecer respostas rápidas e eficientes aos desastres atesta a maior ou menor vulnerabilidade populacional. Para esse mesmo autor, a ideia de uma Sociedade de Risco acaba por transformar parte dos valores da sociedade moderna que pretendia garantir uma existência regulada pela normalidade, valendo-se da confiança nas providências das instituições e na capacidade humana de lidar com as situações de risco. Essa mudança ocorre quando percebemos que viver é estar em risco permanente, sendo que este toma contornos naturalizados nas sociedades contemporâneas. Para Beck (1992), a multiplicação das incertezas é própria da modernidade tardia, na qual, muitas vezes, não se pode calcular ou estimar a probabilidade de ocorrência de eventos que põem em risco a existência, tendo em vista sua ampliação sistemática. Corroborando com essa perspectiva, Marandola e Hogan (2006, p. 35) afirmam que muitos dos elementos que configuram a vulnerabilidade derivam dessa nova "vida normal", composta por "atitudes, condutas e valores, região ou outras esferas coletivas nas quais a pessoa está inserida", além de sua própria percepção do risco.

A vulnerabilidade socioambiental decorre de uma conjunção complexa entre as forças imprevisíveis da natureza e as diversas intervenções humanas sobre o meio natural. Acselrad (2006) mostra que a condição de vulnerabilidade implica, entre outros fatores, uma construção social, já que existem diferentes concepções do que é tolerável ou não como condição de existência. Além disso, os grupos que vivem em situação de vulnerabilidade podem apresentar uma maior propensão a aceitar as condições de existência que, em situações, momentos e lugares diferentes, seriam avaliadas como intoleráveis. Daí a diversidade nas maneiras de reagir e intervir diante de situações ambientais adversas.

É nesse sentido que destacamos o quanto é relevante analisar o papel político da Psicologia quando convocada a intervir e amparar pessoas que enfrentam essas situações, fato que é cada vez mais comum nos centros urbanos de nosso país. Um dos principais impasses a ser analisado pela Psicologia nesse cenário é que a situação de vulnerabilidade transforma as relações do sujeito com os espaços que ele ocupa (Rolnik & Guattari, 1986). Entre essas transformações estão as relações do homem com a casa em que vive, o bairro onde mora, a rua que atravessa todas as manhãs e que, pela repetição e hábito, tornam-se afetivamente conhecidos e familiares (Guattari, 1992). Cada uma dessas práticas cotidianas faz parte da composição de territórios e pode ser entendida como crucial para a produção de subjetividade, ganhando respaldo nas noções de região e espaço vivido (Rolnik & Guattari, 1986). Esse último ganha relevância subjetiva pelo fato de haver ali representações e investimentos afetivos que são socialmente construídos, baseados nas percepções dos habitantes daquele lugar (Guattari, 1992). O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente "em casa", como afirmam Guattari e Rolnik (1996). Com base nesses autores, consideramos que o território é sinônimo de apropriação afetiva e implica o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar toda uma série de práticas, ações e investimentos desejantes.

Frémont (1980, p. 25) descreve a formação do espaço vivido como um processo que ocorre por etapas, como uma experiência contínua, integrando a dimensão do tempo: "O espaço vivido é um espaço-movimento e um espaço-tempo vivido." Portanto, para o autor, com o passar dos anos, a maneira como o indivíduo se vê afetado pelos espaços que compõem o seu cotidiano, bem como os sentidos que lhes atribui, acabam por torná-los partes significantes da produção desejante.

Ao constatar a importância atribuída aos territórios (como a casa, o bairro e o local de trabalho), cabe compreender quais os efeitos subjetivos de sua possível perda entre aqueles que passam por situações de desastres naturais. Diante da grande quantidade de famílias em condição de vulnerabilidade em nosso país, cresce a demanda colocada para governantes e profissionais por medidas de intervenção que evitem ou atenuem suas consequências negativas (Stengers, 2015). Na área da Psicologia, como forma de orientar os profissionais, em 2010 a Secretaria de Defesa Civil, em parceria com o Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres, criou um curso de formação a distância chamado "Gestão de riscos e de desastres: contribuições da Psicologia". Nessa cartilha, são fornecidas instruções de prevenção e preparação para lidar com as pessoas afetadas pelos desastres dirigidas às equipes de resgate. Entre elas aconselha-se o trabalho de uma escuta acolhedora e uma atenção especial no primeiro encontro com o afetado (Brasil, 2010).

Os organizadores da cartilha relatam que o objetivo do primeiro atendimento psicológico consiste em auxiliar de modo imediato as pessoas afetadas, de forma que se possa minimizar o impacto emocional causado pelo desastre. Entre as medidas específicas estão: contribuir para a garantia da satisfação das necessidades básicas de sobrevivência; contribuir para a redução da tensão; ajudar as pessoas afetadas a tomar decisões práticas para resolver os problemas urgentes causados pelo desastre; favorecer o desenvolvimento de atividades solidárias e de ajuda mútua; preservar uma área de segurança para os afetados; promover o contato social com seus familiares e amigos; e auxiliá-los a localizar e verificar o estado em que se encontram seus entes queridos (Brasil, 2010). Para tanto, os autores traçam um conjunto de condutas dirigidas às equipes da Defesa Civil, a partir das quais seus agentes possam estabelecer vínculos com as pessoas afetadas, ganhar sua confiança e mostrar disposição para ajudar. Algumas dessas condutas são:

- Atitude serena, respeitosa, cordial e afetiva, mas firme; a pessoa assistida não espera que quem oferece ajuda se some a sua crise, mas sim que a ajude a superá-la.

- Evitar ser crítico.

- Adotar uma atitude de escuta responsável, que permita a pessoa afetada se expressar é o melhor recurso na assistência psicológica de urgência.

- Adotar uma atitude que facilite a empatia significa que o afetado percebe que quem o ajuda o compreende e o entende; isto é essencial para que aceite a ajuda.

- Não tentar resolver, responder, ou mesmo esclarecer todas as perguntas que os afetados o fazem sobre os aspectos referentes às causas do desastre.

- Não tentar acalmá-los, convencendo-lhes de que as suas impressões sobre o evento estão equivocadas.

- Manter o autocontrole: quem oferece a primeira ajuda deve controlar seu próprio comportamento.

- Disposição para trabalhar em equipe. (Brasil, 2010)

Ao demonstrar que a Psicologia tem condições teóricas e metodológicas para acolher e analisar os efeitos trazidos por desastres ambientais às populações em situação de vulnerabilidade, o documento abre um campo de atuação complexo e multifacetado. Acreditamos que a noção de sustentabilidade afetiva, definida como a potência para "sustentar e favorecer a tensão permanentemente colocada pela multiplicidade afetiva urbana" (Mansano, 2016, p. 55), possa servir como uma ferramenta conceitual a partir da qual as experiências adversas e seus desdobramentos afetivos possam ser compreendidos e analisados. Perante elas, conforme questionam Mansano e Carvalho (2016, p. 707),

o que teríamos a sustentar no campo dos afetos? Ao assumirmos uma perspectiva espinosana, em diálogo tanto com a Filosofia quanto com a Psicologia, trata-se de sustentar o corpo em sua potência de variação afetiva ao invés de absorver as demandas por regularidade, prescrição dos afetos e degradação acelerada da natureza, advindas, em grande parte, da ordem socioeconômica atual.

Diante das adversidades, cabe levar em consideração a potência das populações, grupos ou mesmo indivíduos de enfrentar as dificuldades emergentes. Nesse sentido, a sustentabilidade afetiva envolve "o corpo e suas variações afetivas, que se desdobram em aberturas e fechamentos para encontros de diferentes tipos, incluindo o encontro com a natureza" (Mansano & Carvalho, 2016, p. 710). E os autores concluem:

Talvez, um dos passos a ser dado em direção a uma sustentabilidade afetiva seja precisamente sensibilizar o corpo e sua força vital para experimentação dos encontros e das variações afetivas que eles colocam em curso. E, por meio dessa ativação, atentar para sua potência de ação diante daquilo que lhe advém. (Mansano & Carvalho, p. 710)

Aproximando as questões teóricas de uma experiência concreta, o denominado megadesastre socioambiental ocorrido na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011, poderemos perceber, na próxima seção, que a potência para acolher, sustentar e elaborar o emergente no cotidiano urbano é variável. Isso demonstra a importância de conhecer as experiências concretas de sujeitos que se defrontaram com desastres naturais e as maneiras díspares como enfrentaram seus efeitos no cotidiano.

 

A experiência de catástrofe e seus desdobramentos afetivos

No ano de 2011, as catástrofes climáticas tiveram significativo impacto na sociedade brasileira. No total, 795 eventos tiveram sua ocorrência oficialmente registrada e relatada, os quais causaram 1.094 óbitos e afetaram 12.535.401 pessoas. A situação se estendeu a 2.370 municípios, sendo que 65,44% foram atingidos por fenômenos hidrológicos (Brasil, 2011).

Na madrugada do dia 11 e na manhã de 12 de janeiro de 2011, fortes chuvas ocasionaram o que foi considerado o pior desastre climático brasileiro dos últimos tempos: as inundações, deslizamentos e desabamentos da Região Serrana do Rio de Janeiro. O evento causou 912 mortes e desalojou cerca de 45.000 pessoas. Sete municípios fluminenses foram vítimas das chuvas que os estudiosos do Núcleo de Análise e Diagnóstico do Serviço Geológico do Rio de Janeiro chamaram de "O Megadesastre 11 da Região Serrana do Rio de Janeiro" (Brasil, 2011). Grupos televisivos e sites diversos mantiveram uma cobertura online de tais acontecimentos, informando a população sobre seus desdobramentos. Em 19 de janeiro de 2011, o site G1 (2011) publicou um infográfico que reunia depoimentos de vítimas do desastre nas cidades de Nova Friburgo, Petrópolis, Teresópolis, São José do Vale do Rio Preto e Sumidouro, cujo material passamos a analisar. Recorrendo a fragmentos selecionados nos documentos de domínio público advindos dos sites, dividimos a apresentação dos resultados em três categorias: 1. Vivenciando a catástrofe (relato dos primeiros impactos afetivos diante do susto vivenciado); 2. A desterritorialização (descreve as avaliações feitas pelas vítimas); 3. A busca por novos territórios (momento posterior, em que a vida começa a ser refeita).

 

Eixo 1: vivenciando a catástrofe

No município de Nova Friburgo, um dos mais afetados pelo megadesastre, o volume de chuvas chegou a 220 milímetros, ou seja, para cada metro quadrado da cidade, havia 220 litros de água. Tal fato ocasionou o deslizamento de três mil encostas e o transbordamento de riachos que, com aumento significativo de sua vazão, se transformaram em fortes corredeiras que arrastavam tudo que havia pelo caminho. Segundo o jornalista Dieguez (2011), dezenas de milhares de pessoas foram afetadas, sendo que 12 mil perderam suas casas e 440 morreram.

De acordo com os relatos apresentados no site consultado, a dentista Gladys Garcia, de 50 anos, na noite de 11 de janeiro, fazia plantão na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro de Conselheiro Paulino, em Nova Friburgo. No momento do temporal, estavam presentes na UPA cerca de 20 profissionais da saúde, entre eles enfermeiros, médicos, farmacêuticos, funcionários de apoio e motoristas. Por volta da meia-noite, a água cercou o prédio e começou a entrar no edifício. O grupo, então, reuniu-se em uma mesma sala e passou a elaborar planos de fuga. De início, pensaram em sair pelo telhado, mas assim que a integrante mais leve do grupo conseguiu subir na cobertura, um pedaço da telha afundou. Como segunda alternativa, decidiram montar uma corrente de lençóis para tentar alcançar o prédio ao lado, que ficava cerca de 50 metros de distância. Por conta da escuridão, não conseguiam calcular a profundidade da água que corria do lado de fora e, visto que muitos membros do grupo não sabiam nadar, desistiram. Decidiram, por fim, permanecer dentro da UPA e esperar pelo pior. Com a água na altura da cintura, a equipe resistiu por várias horas. Em certo momento, se deram as mãos e começaram a rezar. O relato foi: "Nós tínhamos a certeza de que íamos morrer ali, sozinhos. Foi uma união linda e foi isso que nos manteve vivos" (G1, 2011), relembra Gladys. No entanto, por volta das seis horas, a chuva diminuiu consideravelmente. Após o meio-dia, o grupo conseguiu sair do prédio em segurança. A dentista relata não ter medo de voltar a trabalhar, já que durante a enchente nenhum lugar da cidade era considerado seguro.

Pode-se perceber, pelo relato, que Gladys e seus colegas acreditavam estar em segurança, já que, apesar de estar próximo à beira de um rio, o prédio contava com fortes estruturas de aço distante há cerca de dois metros do chão. Como local de trabalho, a UPA era considerada um território conhecido e seguro. Guattari e Rolnik (1986, p. 12), ao analisar situações de crises que vivemos de modo, por vezes, inesperado, afirmam que, apesar da sensação de segurança presente nos espaços conhecidos, "temos de ser craques em matéria de montagem de territórios". O grupo de profissionais foi surpreendido pela força da água e obrigado a vivenciar uma situação inesperada para a qual seus corpos não estavam preparados ou avisados; com isso, acabaram expostos a uma situação limítrofe de perigo que requereu uma rede afetiva de proteção e ação (Mansano, 2016).

Ao optar por planejar um plano de fuga, é como se o grupo testasse sua potência vital, evidenciando seu desejo de sobreviver à força da água e ao desespero gerado pela situação. Inicialmente impotente perante a situação, o grupo se viu subjugado à força da natureza. Após as diferentes tentativas de fuga, é perceptível que a impotência diante do vivido foi preponderante, abrindo espaço para o desespero. Para Espinosa (1677/1983), não há nada na natureza que seja absoluto e fixado. As forças lutam entre si, ora compondo e ora decompondo suas partes. Sem que haja possibilidade de ação, em certas ocasiões ficamos subjugados à potência das forças exteriores, sendo que a fragilidade e o temor ganham a cena, abrindo espaço para expressão do que Espinosa chama de tristeza. Deleuze (2009, p. 163) explica que, na tristeza, "sou subtraído de uma parte de minha potência, ela não está mais em minha posse". Gladys e seus colegas, ao se perceberem fracos diante da força da natureza, colocam-se em posição passiva, esperando pelo fim. No entanto, quando analisamos o campo móvel e transitório das forças, fica notável que no limite da situação vivida a coesão do grupo fez-se potencializadora, fazendo emergir novas ações.

Outro ponto a ser ressaltado no que diz respeito ao primeiro impacto que a situação de desastre natural gerou foi a busca pelo apoio dos pares e a disponibilidade para amparar os que estão ao redor (G1, 2011). Diante da dificuldade de escape, os trabalhadores da referida UPA formaram outro tipo de grupo social: não o grupo territorializado pelo trabalho, mas uma rede emergente de apoio afetivo que funcionou no limite da busca pela sobrevivência (Mansano, 2016). A identificação e a solidariedade passam a pautar os encontros daqueles que viveram a catástrofe. Mariasch (2005, p. 163) propõe o conceito "solidariedade por convivência" como sendo uma propulsora da produção de subjetividade coletiva. Segundo a mesma autora, referida à obra de Espinosa, a dinâmica dos bons encontros estimula a potência de sobreviver ao adverso, libera o desejo como ação e, assim, produz acontecimentos. Por meio da solidariedade por convivência, é possível criar modos de referência, novas cartografias, inventar práxis emergenciais de modo a cravar brechas de vida diante da ameaça iminente de morte. Perante a situação limítrofe experimentada pelo grupo, pode-se perceber que a solidariedade assinalada por Mariasch (2005) tornou-se algo concreto.

 

Eixo 2: a desterritorialização

O momento seguinte ao sobressalto gerado pela catástrofe é o que caracterizaremos aqui como desterritorialização (Guattari & Rolnik, 1986). Outra cidade gravemente atingida pelos efeitos das fortes chuvas de janeiro de 2011, Teresópolis, contabilizou 392 óbitos, além de 180 desaparecidos, nas 80 localidades atingidas (Uol, 2012). Na madrugada do dia 11, Elizabete Carvalho, moradora do local há 20 anos, precisou deixar sua casa quando percebeu que a chuva provocaria uma tragédia. "Acho que eu perdi tudo. E se não perdi, não tem jeito, porque não posso voltar lá e pegar minhas coisas. Tem lama até o pescoço" (Uol, 2012), relatou. Também habitante de Teresópolis, Andrea Costa foi advertida pela prefeitura que ela, os três filhos e o marido deveriam deixar a casa onde moravam. "Minha casa ficou toda rachada, aí eles pediram que eu saísse. Mas eu não consigo acreditar, moro aqui há dez anos e nunca vi nada parecido" (Uol, 2012), disse. Morador de Nova Friburgo, o aposentado Antonio Fernandes, de 86 anos, residia em uma casa às margens do Rio Grande. Conta à equipe de reportagem que dormia na sala, quando acordou com os gritos dos vizinhos e a água já sobre ele. Antonio lamenta: "Saí e fiquei na casa de um amigo, quando voltei já estava tudo destruído. Perdi meus documentos, histórias de toda uma vida" (Uol, 2012).

Os três depoimentos dos sobreviventes, apresentados anteriormente são exemplos de um discurso bastante recorrente entre as vítimas no momento seguinte ao desastre. Na experiência de desterritorialização, forçada e aguda, constatam que perderam seus pertences, suas casas, seus amigos e parentes. Com isso, tanto o território geográfico como os territórios subjetivos lhes foram retirados abruptamente e sem aviso (Rolnik, 1995). Tais indivíduos se viram obrigados a construir novas referências, territórios e laços afetivos. Identificam-se, nesses relatos, os processos de desterritorialização referentes aos modos de vida que costumavam ter até então. Deleuze e Guattari (1996) consideram que dos processos de desterritorialização pode advir a criação de novos territórios, o que implica em uma tarefa trabalhosa e, por vezes, incômoda. Ainda mais quando a situação foi marcada por uma catástrofe com perdas irreparáveis (Acselrad, 2006).

Ao falar sobre a noção de território, em uma entrevista denominada "Abecedário", Deleuze (1996) considera que ele só é válido "em relação a um movimento através do qual se sai dele", isto é, um território só é reconhecido como tal a partir de sua desterritorialização. Deleuze também assinala que "não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte" (Deleuze, 1996). Sobreviventes de catástrofes naturais passam por processos de desterritorialização, por vezes traumáticos, e se veem diante do desafio de abandonar o território até então intensivamente vivido e desejantemente investido, precisando ser conduzidos a novos territórios que implicam nova condição afetiva e econômica, por vezes precária e difícil. Sobre isso, assinala Rolnik (1995, p. 53): "a co-existência dos corpos não é neutra, [...] ela traz perturbações à ordem destes corpos, imprimindo-lhes transformações irreversíveis."

Cabe ressaltar ainda que após essa situação de catástrofe socioambiental diversas reportagens publicadas em mídias digitais (Uol, 2012; Uol 2013; Veja, 2013) acusaram o desvio de verbas destinadas à reconstrução de casas, escolas e hospitais da Região Serrana. Seis meses depois das chuvas, o Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas da União apuravam denúncias de corrupção e, segundo as investigações, autoridades de algumas cidades atingidas teriam desviado parte dos R$ 30 milhões destinados pelo governo federal à reconstrução dos municípios. Na época das matérias, pouco havia mudado desde a madrugada do desastre e as vítimas preferiram não esperar pela ajuda do poder público: "Começamos a fazer a limpeza nós mesmos. A gente mesmo, porque estamos cansados de esperar", disse Maximiliano Cardoso, da Associação de Vítimas de Teresópolis (G1, 2011). Em 2013, o ex-prefeito de Nova Friburgo, que atuava na prefeitura na época da catástrofe, foi condenado pela justiça federal por envolvimento com o rombo de cerca de R$ 318 mil dos recursos públicos enviados ao município (Uol, 2013). Ele era suspeito de superfaturamento, pagamento por serviços não executados e fraude na contratação de empresa para limpeza de hospitais e escolas públicas, após a catástrofe (Veja, 2013). Em alguma medida, a reação da população pode ser considerada desproporcional à violência pública de descaso, manifesta em pichações e desabafos (Beck, 2011).

Moradores dos sete municípios passaram a receber o chamado "Aluguel Social". Segundo o site institucional do governo do estado do Rio de Janeiro, trata-se de um benefício assistencial temporário destinado a atender necessidades básicas ligadas à remoção de famílias domiciliadas em áreas de risco ou desabrigadas em razão de vulnerabilidade temporária e calamidade pública. essa medida foi adotada como forma de garantir meios para que os atingidos pelo desastre pagassem aluguel em outras residências enquanto suas casas eram reconstruídas ou aguardavam a verba da indenização. No entanto, nem todos os cidadãos foram contemplados por esse benefício e, os que o conseguiram, alegaram que o valor não cobria a integralidade dos aluguéis.

Moradora de Itaipava, distrito de Petrópolis, Sandra Helena da Ponte Maia, 44, relata que perdeu 13 pessoas da família, bem como sua revolta: "Fora amigos, clientes, vizinhos... A gente sabe que o dinheiro para reconstruir veio, e não só do governo federal. Ficam a dor e a revolta de saber disso e saber de gente que vive ou de aluguel social [benefício de R$ 500 mensais] ou de favor", diz. "Fiquei doente por causa disso aqui. É um estado de abandono total" (Uol, 2012). Diante das mudanças repentinas nas condições econômicas, nos territórios e nos modos de vida, os sobreviventes, antes vulneráveis aos encontros com a força da natureza, tornam-se agora vulneráveis a outros encontros, incluindo aí o encontro com o poder público, marcado pelo descaso e pela corrupção de alguns governantes. A desterritorialização faz-se ainda mais custosa no âmbito afetivo, quando as vítimas não têm condições mínimas de acolhimento (Beck, 2011).

Esse momento de desterritorialização, por vezes, é banalizado pela mídia, que faz de alguns dos sobreviventes verdadeiros "heróis" - figuras inspiradoras a serem admiradas devido a seus "esforços sobre-humanos" para se reerguerem "sozinhas" após os desastres. Tais relatos, que tendem a ganhar contornos épicos, valorizam a ação individual, sendo o foco de reportagens que glamorizam as vidas das vítimas, muitas vezes atribuindo-lhes mérito pela força de vontade individual. Essa tendência desconsidera as responsabilidades políticas dos governantes no processo de reconstrução das cidades, aumentando o descaso e as afetações de tristeza pela revolta em não receber assistência governamental, reafirmando uma vulnerabilidade socioambiental acentuada (Beck, 2011).

 

Eixo 3: a criação de novos territórios

No maior abrigo montado em Nova Friburgo, e que chegou a acolher quase uma centena de pessoas, morou Lucia Maria de Carvalho com a família. Ela relata sua experiência: "Aqui são todos amigos. Eu faço de tudo: vou para a cozinha, descarrego caminhão, deixo as panelas brilhando..." (G1, 2011). Adotando uma postura de acolhimento da experiência, ela conta como perdeu a casa: "Foi a conta de sair e tudo caiu na nossa frente. Mas a gente está aqui, com vida, está feliz. Tem que ser assim. Se eu fizer cara de tristeza, vou deixar os outros tristes" (G1, 2011).

O referido site publicou também a história de uma família vitimada pelas chuvas da Região Serrana que, no ano de 2001, já sobrevivera ao deslizamento do Morro do Perpétuo. No primeiro desastre, eles sofreram a perda de dois familiares. Delma Cristina Motta e a filha Roberta Motta de Lima foram soterradas quando ajudavam crianças que tinham se refugiado na casa da família, que até aquele momento era considerada um ponto seguro pela Defesa Civil. Maria Helena da Rocha Silva, 63 anos, mãe de Delma, relata: "Foi com muita luta que conseguimos reconstruir nossas casas e a família [após o ocorrido em 2001]. Estamos conseguindo recuperar alguma coisa agora, mas foi muito difícil. Eu e as crianças passamos por tratamento com o psicólogo. Sempre lembro dela [filha] na hora que ela chegava do trabalho" (G1, 2011). Em seu mais recente relato, Maria Helena teme que a tragédia de 2001 volte a atingir a família quando afirma: "A gente só fica com aquele receio e pensa, poxa, de novo? Mas é a natureza e por isso temos de colocar a cabeça no lugar e a vida tem de continuar. Tem gente em situação pior" (G1, 2011).

Espinosa (1677/1983) novamente colabora na compreensão dessa experiência quando diz que o desejo, fruto de paixões alegres, é mais forte que o desejo que surge da tristeza. O filósofo acredita que a força de permanecer vivo, presente no homem e chamada de conatus, está pautada no poder de insistir na existência, pois "toda coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser" (Espinosa, 1677/1983, p. 276). Deleuze (2002, p. 34) desdobra essa análise e considera que uma das maiores contribuições de Espinosa consiste em afirmar "uma ética da alegria, onde somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação". Assim, a alegria possibilita o aumento da potência.

Nos depoimentos apresentados nesta seção, tanto Lucia Maria como Maria Helena se empenharam em criar territórios diante da experiência traumática que foram obrigadas a acolher, sem serem consultadas. Novos territórios de amizade foram construídos, assim como novos territórios de trabalho e convívio social, que as levaram a se apropriar novamente dos rumos de suas vidas, reinventando-as. Nota-se que uma das depoentes teve a preocupação de não "fazer cara de tristeza" (G1, 2011) para não entristecer os outros. A sobrevivente dos dois desastres, Maria Helena, reconhece a potência da natureza, mas persevera no existir. Ao "pôr a cabeça no lugar", porque "a vida tem que continuar" (G1, 2011), ela deu um tamanho e um espaço às paixões tristes que a situação lhe trouxe, mas avançou na criação desses novos territórios. Ambas persistiram na força do conatus, ou seja, no ímpeto de serem afetadas pelos encontros e pela produção de afetos ativos (Chauí, 2002). Entretanto, esse processo é impensável sem a dor referente àquilo que foi perdido, o que, por vezes, é negado pela mídia, que insiste em enaltecer o caráter épico e sensacionalista da situação (Rolnik, 1995).

Chauí (2002), ao tratar da ética de Espinosa, relata a importância dos afetos ativos, mostrando que eles são sempre alegres, já que envolvem um corpo esforçando-se para aumentar sua potência de agir. Ela assinala que, ao agir, há todo um esforço para persistir, tornar-se mais forte e aumentar sua capacidade de ser afetado de múltiplas maneiras. As ações são, portanto, a expressão máxima de nossa potência (Chauí, 2002). Lucia Maria e Maria Helena sobreviveram à mesma catástrofe e refizeram suas vidas na diferença de potência que as perpassava. Potência essa variável, que nasce dos encontros inesperados com o fora e que, para Chauí (2006, pp. 121-122), torna o corpo "tanto mais forte, mais potente, mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem" suas relações. Obviamente, essa não é uma tarefa fácil e simples, uma vez que envolve a potência para acolher e sustentar afetos que ora aumentam, ora diminuem a potência do corpo. Pode-se dizer que a experiência dos encontros acontece em meio ao movimento contínuo de forças que compõem e decompõem o sujeito. Assim,

Ao analisar a produção do sujeito nos encontros, deparamo-nos com o confronto, o combate entre forças componentes por meio das quais são ensaiadas conexões, rupturas e bloqueios. A ação das forças torna-se condição para passagem de uma composição a outra, uma vez que, em cada encontro suficientemente potente, as formas perceptíveis que compõem os estratos organizatórios do eu sofrem cortes e rupturas. (Mansano, 2011, p. 66)

As experiências relatadas, apesar de evidenciarem a decomposição advinda do desastre natural, apontam, em um momento posterior, para as possibilidades de novas composições sociais, econômicas e afetivas. Em parte, esses novos encontros foram desencadeados pela catástrofe das chuvas, evidenciando o caráter trágico da existência, que fez emergir novas mulheres, produzidas no encontro com a adversidade e com desafios que ela colocou em curso.

As vítimas da tragédia aqui analisada vivenciaram as intensidades e adversidades dos encontros com a natureza. As chuvas, bem como os desbarrancamentos de morros e encostas, foram responsáveis pela transformação da paisagem, do ecossistema, dos territórios, das políticas públicas e dos modos de existir dos moradores das áreas atingidas. Para além do momento da catástrofe, os sobreviventes se viram impelidos a se posicionar diante da força da natureza e da condição de vulnerabilidade das habitações.

 

Considerações finais

Com a inserção do psicólogo na área da Assistência Social, esse profissional tem sido chamado a participar da elaboração de conhecimentos e intervenções por meio de debates sobre políticas públicas, incluindo as que atendam à necessidade imprevisível das populações que passam por experiências de catástrofes socioambientais. A atuação das políticas públicas de atenção social com os indivíduos que sobrevivem a desastres naturais toma em análise a desterritorialização abrupta, geradora de angústia e sofrimento. O tempo de elaboração da experiência vivida por parte dos sobreviventes é relevante nesse processo, uma vez que existe um hiato entre o processo de desterritorialização e a construção de uma nova vida afetiva, com a criação de novos territórios. O espaço relacional e o espaço vivido demandam tempo para serem reconfigurados, o que significa que a criação de novos territórios não ocorre imediatamente à catástrofe.

Logo após o momento do desastre socioambiental, é imperativo tanto o acolhimento da nova condição de vulnerabilidade instalada quanto a elaboração de ações objetivas que garantam a subsistência das necessidades vitais como moradia, alimentação e segurança. O psicólogo, como profissional ligado à rede de atenção social, atua ao mesmo tempo com os ditames da burocracia e com as ações concretas que atendem às necessidades urgentes e emergentes dos usuários. Compreendemos, assim, o quanto é relevante sua atuação nas comunidades e nos serviços de Assistência Social antes mesmo da ocorrência da catástrofe.

Encontramos nas reportagens retiradas dos sites e analisadas a disponibilidade da população para avaliar o restrito conjunto de suas possibilidades e, principalmente, para agir diante da situação emergente, tendo como ponto de partida os novos encontros que a vida lhes trouxe. Nesse sentido, consideramos que o conceito de sustentabilidade afetiva consolida-se como uma ferramenta analítica que coopera para compreender tal experiência. Como? A sustentabilidade afetiva pode ser compreendida como a potência, variável em cada corpo e em cada acontecimento, para acolher, sustentar, reverter e/ou transformar o adverso que emerge de maneira inesperada e que pode convocar o sujeito à ação. Desse modo, dois indivíduos que vivenciem a mesma situação não apresentam a mesma potência para sustentar o vivido, assim como um mesmo indivíduo pode ter essa potência modificada, a depender do momento, dos encontros e das situações emergentes. Entendemos que tanto os corpos sobreviventes dos desastres como os corpos que sucumbiram à força da natureza estavam no máximo da sua potência de persistir e sustentar a experiência que adveio, de maneira abrupta e violenta, colocando em xeque os territórios já conhecidos e investidos desejantemente.

É perceptível que durante os momentos mais delicados, que envolvem os instantes imediatos à catástrofe a mídia se faz presente demonstrando interesse jornalístico e garantindo, por meio da informação, que a população acompanhe o desenrolar dos acontecimentos (Stengers, 2015). Quando o tempo útil da notícia se esgota e esta já não é mais considerada uma "mercadoria" a ser consumida pelo telespectador, seu trabalho cessa. Aqueles que antes eram "amparados" pela mídia e pela opinião pública se veem abandonados à própria sorte, sofrendo mais uma violência: cabe à vítima seguir a máxima do senso comum, também idealizada, que difunde a ideia de que "ser brasileiro é não desistir nunca".

No decorrer desta pesquisa, ficou evidente o quanto é tênue a linha que separa piedade e a vitimização da potência de agir. Evidentes também ficaram aquelas existências que, ao não sucumbir à catástrofe, conseguiram se lançar na experimentação de outras vidas. Diante de afetos díspares, qualquer tentativa de prescrever as melhores saídas, desconsideraria a potência de experimentação desse humano vivo, que afeta e é afetado pela natureza. Assim, para além do saber técnico, esse tipo de situação exige um posicionamento sensível e político do profissional da área diante do sofrimento emergente. Mas, também, um saber que tome em apreciação as possibilidades de criação de novos modos de vida, percepções, encontros e territórios. Certamente, há uma dimensão trágica atualizada nesse tipo de situação: aquela que evidencia, de maneira radical, o quanto vida e morte fazem parte de um mesmo devir criador.

 

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Recebido em: 1º/12/2016
Aprovado em: 9/7/2019

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