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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.3 São João del-Rei jul./set. 2020
Laura Cristina de Toledo QuadrosI; Marcia MoraesII; Dolores GalindoIII; Ana Claudia Lima MonteiroIV
IE-mail: lauractq@gmail.com
IIE-mail: mazamoraes@gmail.com
IIIE-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
IVE-mail: anaclmonteiro@gmail.com
Em 2016 tivemos a alegria de publicar nesta mesma revista um número temático (volume 11, número 1), "O PesquisarCOM e o feminino na ciência", fruto da proposição de um Grupo de Trabalho (GT) no VI Simpósio Nacional de Ciência Tecnologia e Sociedade (Esocite), realizado no Rio de Janeiro em outubro de 2015.
A proposta gerou discussões interessantes, culminando em artigos envolventes que trouxeram questões relevantes para ampliar reflexões acerca da pesquisa e a metodologia do PesquisarCOM articulada ao feminino na ciência, reconhecendo a importância de considerarmos os riscos da pesquisa, bem como a possibilidade das surpresas e convocações do campo.
De lá para cá, muitas mudanças ocorreram tanto no país quanto no mundo, produzindo impactos em diversas áreas do conhecimento, especialmente nas Ciências Sociais. Escrevemos este editorial em um dos piores cenários jamais imaginados por nós: a pandemia da covid-19, a onda negacionista responsável por milhares de mortes no país, a hostilidade à ciência, o trabalho remoto e a sobrecarga de tarefas que atinge sobretudo as mulheres. O impacto da quarentena incide de maneira diferente em diferentes corpos e, nestes tempos, a importância do cuidado escancara as diferenças de gênero. São, em sua maioria, as mulheres que estão nesses espaços de cuidado, seja em relação à saúde pública, seja no que diz respeito às relações de proximidade e intimidade.
Nesse sentido, ressaltamos o quanto é fundamental repensarmos, à luz do contemporâneo, o PesquisarCOM, entendendo que urge sustentarmos uma multidirecionalidade ética e afirmar que pesquisar envolve fazer laços com o outro - laços que são feitos conosco como outras COM quem pesquisamos -, envolve criar dispositivos de intervenção capazes de ativar todos que deles participam, envolve ainda considerar como expertos os outros e outras com quem pesquisamos. Porém, de que maneira levamos adiante essa ética multidirecional em tempos de isolamento e distanciamento social? Quais são os corpos mais vulneráveis ao distanciamento social ou até mesmo à impossibilidade de se isolar?
Neste momento de pandemia, que sentidos se descortinam para a pesquisa em ciências humanas e sociais, como prática local e situada? Quais sentidos, corpos e afetos permanecem invisíveis e invisibilizados? De um lado, o risco está colocado: que o isolamento e o distanciamento social sejam os motores a reanimar a máquina de fazer pesquisa, colocando os pesquisados e pesquisadas como alvos de nossas interrogações. E, nessa direção, vale lembrar que acadêmicos e acadêmicas fazem parte do pequeno contingente que logra o isolamento social em razão da impossibilidade de retorno às aulas, com segurança, no momento. De outro lado, as insurgências se afirmam cotidianamente por meio de práticas que tecem redes de cuidado, de amparo, ali, onde a vida se vê fragilizada, por força das muitas desigualdades que marcam o nosso tecido social. Seguir pela direção ética do PesquisarCOM nos leva a perguntar de novo e de novo o sentido da preposição COM nos dias de hoje, talvez, abrindo para cenários nos quais possamos indagar sobre como somos pesquisadas e pesquisados por aqueles e aquelas COM quem pesquisamos.
Quando os artigos que compõem este número temático foram submetidos para a avaliação por pares, ainda não estávamos vivendo a pandemia da covid-19. Há, portanto, uma lacuna de tempo que se faz presente neste número temático e que precisa ser explicitada. Nossa aposta é a de que as experiências acumuladas até aqui nos levam a afirmar que é pela via das insurgências que precisamos seguir adiante. É pela via da emancipação das condições de opressão que a pesquisa em ciências humanas e sociais precisa seguir para levar adiante a ética do PesquisarCOM. Assim sendo, apenas as Epistemes Ocidentalocêntricas não são suficientes, bem como se torna insustentável omitir o extrativismo que caracteriza a gênese das ciências modernas.
Há também que reafirmar a potência das mulheres na ciência, nessa oportunidade de produzirmos em 2020 outro número temático trazendo novas contribuições acerca da ciência no feminino. Vale destacar que se afirmar mulher não se atém ao reconhecimento de uma genitália heterocisnormativamente traçada. São muitos os modos de performar corpos femininos e mulheridades, todos perpassados por desigualdades nas tramas das relações de poder nas universidades e também em nossas vidas cotidianas, marcadas pelas diferenças de gênero.
Iniciamos com o texto vigoroso de Vera Lucia Ermida Barbosa (Universidade de Coimbra, Portugal), "Os caminhos das mulheres: das Minas coloniais a Vitoriano Veloso", que apresenta as reflexões resultantes do estudo etnográfico acerca das expressões do colonialismo e das resistências presentes na história, na historiografia e nas narrativas das mulheres do povoado de Vitoriano Veloso, Minas Gerais.
Em seguida, trazemos o texto "Ciência no feminino e narrativas de pesquisa: PesquisarCOM e a artesania na pesquisa", de Marcia Oliveira Moraes (Universidade Federal Fluminense) e Laura Cristina de Toledo Quadros (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que compartilha narrativas de pesquisa baseadas na prática como pesquisadoras, compreendendo que narrar, pesquisar e tecer são processos entrelaçados que nos lançam em ações peculiares e imprevisíveis no encontro com o campo de pesquisa.
Em "Bons encontros promissores: parcerias e travessias no PesquisarCOM", Debora Emanuelle Nascimento Lomba e Thiago de Sousa Freitas Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) trazem o conceito por eles desenvolvido - Bom encontro promissor - inspirado em Vinciane Despret, Marcia Moraes e Spinoza, considerando os desafios de sustentar nossas pesquisas e trabalhos na atualidade.
Problematizando a relação entre deficiência e educação, Gabriela Vieira de Abreu, Janaína Mariano César e Marcia Roxana Cruces Cuevas (Universidade Federal do Espírito Santo) discutem no texto "Contribuições do modelo feminista nos estudos da deficiência para uma perspectiva de prática inclusiva educacional baseada na interdependência" táticas de trabalho cotidianas apontando para o exercício ético-político que envolve o cultivo da interdependência como modos de acesso e afirmação de práticas inclusivas.
Ainda nesse tema, o artigo "Psicologia e deficiência: afinando os sentidos para encontros com autismos", de Ana Cláudia Lima Monteiro (Universidade Federal Fluminense) e Angélica Glória Mendonça (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), aborda as discussões atuais sobre o autismo em diálogo com as contribuições dos Estudos Feministas, buscando rever o lugar da Psicologia e da(o)s psicóloga(o)s diante desse diagnóstico, a partir de uma experiência de cuidado.
Trazendo uma torção na temática que acompanha o universo feminino, Erika Cecília Soares Oliveira (Universidade Federal de Alagoas) aborda, no texto "A docência como uma performance feminista", a ideia de uma docência como uma performance capaz de criar outras ficções em cenários e escritas acadêmicas, contrapondo-se às perspectivas enrijecidas da ciência moderna.
Já Livia Creton Pereira e Alexandra Cleopatre Tsallis (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) trazem uma discussão pertinente e atual acerca da hastag #menasmain no artigo "Maternidade versus sacrifício: uma análise do efeito moral dos discursos e práticas sobre a maternidade comumente engendrados nos corpos das mulheres", problematizando a questão da disseminação dos discursos SOBRE a maternidade e não COM as mulheres-mães.
De modo bastante relevante, Tayane Rogeria Lino (Universidade Federal de Minas Gerais), Andréa Moreira Lima e Thais Francielle Alves (Centro Universitário UNA) nos contam em "Sobre a enunciação de mulheres não brancas na ciência: uma análise da produção intelectual de Gloria Anzaldúa e bell hooks" da fala/silêncio de mulheres de cor na produção científica, estabelecendo uma discussão em torno do lócus enunciativo do sujeito subalterno na vida social contemporânea no campo científico.
O belo trabalho de Sofia Ricardo Favero (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), "Pesquisando a dor do outro: os efeitos políticos de uma escrita situada", nos traz uma delicada reflexão acerca de como as políticas identitárias têm agido nos modos de pesquisar a dor alheia, considerando tanto o lugar de fala quanto os efeitos que "ser o que se é" produz no campo da pesquisa.
Em "Habitar-compor um método: políticas de pesquisa e de escrita em Psicologia", Tainá dos Santos Oliveira e Lucila Lima da Silva (Universidade Federal Fluminense) trazem uma importante provocação acerca das políticas de pesquisa e políticas de escrita que possam contribuir para trazer outras histórias não hegemônicas que compõem o cotidiano , incluindo marcas do campo e das pesquisadoras.
Discutindo também políticas de escrita, Ellen Guimarães Folly (Universidade Federal Fluminense) nos brinda com o texto "A escrita como performance e as cartas como método: carta às leitoras e leitores deste artigo", no qual busca transmitir à leitora e ao leitor a visão possível da escrita performativa, utilizando como pilar o encontro com as escritoras Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, suas relações pessoais e políticas com o feminino e com o labor da escrita atrelado ao viver.
No primoroso texto "Compostagens do sensível: entre o chapéu e os pés, invenção de mundos", Angela Carneiro (Universidade Federal Fluminense) discorre acerca de experimentações denominadas "compostagem do sensível", uma ferramenta para pensar a produção de conhecimento instigada pelo feminino, a partir de uma oficina com mulheres estudantes de Psicologia.
Partindo de uma pergunta profunda e experiencial, Elis Teles e Maíra França apresentam a escrita "E agora, quem somos nós a cada encontro? Dançando e dissentindo o cuidado desde dentro", na qual descrevem seu trabalho com dança do ventre e massagens, criando modos de conhecer e intervir, corroborando com a ideia de que viver e morrer bem implica em dar prolongamento e sustentação à ação de dissentir-por-dentro.
Fechando o número temático, as autoras Deborah da Silva de Souza, Raissa da Costa Silva, Nicole Velloso de Oliveira, Angélica dos Santos Siqueira, Eleonôra Torres Prestrelo, Beatriz Zanini de Britto Silva, Beatriz Schmidbauer Penna e Monique Lima dos Santos Bezerra (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) descrevem, no artigo "O Polo de Estudos Gestálticos como espaço de tecitura entre ensino, pesquisa e extensão: uma Psicologia que se faz no feminino", de forma viva e encarnada, a experiência de tecer diálogos na universidade entre ensino, pesquisa e extensão, propondo construir um modo coletivo de resistir aos padrões rígidos da academia, por meio de um fazer cuidadoso, situado, implicado e sensível.
Acompanhar os desdobramentos do PesquisarCOM e o feminino na ciência, por intermédio das produções aqui reunidas, nos enche de esperança de que, a partir de outros olhares, dizeres e fazeres, especialmente na área da Psicologia, possamos fortalecer práticas múltiplas, diversas e inclusivas, fundada nas marcas locais e potentes de uma ciência inundada pelo cotidiano. E esse fazer que transborda ainda estará presente na próxima edição da revista, visto que por razões logísticas não pudemos colocar nesta edição todos os artigos aprovados.
O bom é que o leitor(a) poderá continuar acompanhando e desfrutando do muito que está sendo realizado em uma proposição de ciência no feminino, uma ciência viva e que não descarta as marcas de sua trajetória.