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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.3 São João del-Rei jul./set. 2020
Os caminhos das mulheres: das Minas coloniais a Vitoriano Veloso
The paths of women: from colonial Minas to Vitoriano Veloso
Los caminos de las mujeres: de las Minas coloniales a Vitoriano Veloso
Vera Lucia Ermida Barbosa
Membro Integrado Doutorado e Colaboradora Pós-doc do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) - Universidade de Évora/Portugal. Doutora em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra/Portugal. Mestra em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/Brasil (UFRJ/Brasil)
RESUMO
Este artigo apresenta as reflexões resultantes do estudo etnográfico acerca das expressões do colonialismo e das resistências presentes na história, na historiografia e nas narrativas das mulheres do povoado de Vitoriano Veloso, Minas Gerais, realizada entre 2010 e 2017, e se constitui parte da tese de doutorado. No âmbito da psicossociologia, adota o diálogo epistemológico para desenvolver a análise das temporalidades na longa duração, as teorizações dos paradigmas Pós-Coloniais, Feministas, Subalternos e Decoloniais para refletir criticamente acerca desses movimentos de projeção de tempo longínquo e seus impulsos breves, bem como a metodologia de recorte antropológico que privilegia o testemunho e as experiências de subalternidade.
Palavras-chave: Colonialismo. Resistência. Mulheres.
ABSTRACT
This article presents the reflections resulting from the ethnographic study about the expressions of colonialism and the resistances present in the history, historiography and narratives of the women of the village of Vitoriano Veloso, Minas Gerais, between 2010 and 2017, and constitute part of the thesis doctoral degree. In the context of psychosociology, it adopts the epistemological dialogue to develop the analysis of the temporalities in the long duration, the theories of the Postcolonial, Feminist, Subaltern and Decolonial paradigms to reflect critically on these movements of projection of distant time and its brief impulses, as well as the methodology of anthropological cut that privileges the testimony and the experiences of subalternity.
Keywords: Colonialism. Resistance. Women.
RESUMEN
Este artículo presenta las reflexiones resultantes del estudio etnográfico acerca de las expresiones del colonialismo y de las resistencias presentes en la historia, en la historiografía y en las narrativas de las mujeres del pueblo de Vitoriano Veloso, Minas Gerais, realizada entre 2010 y 2017, y se constituye parte de la tesis de doctorado. En el ámbito de la psicosociología, adopta el diálogo epistemológico para desarrollar el análisis de las temporalidades en la larga duración, las teorías de los paradigmas Poscolonial, Feminista, Subalterno y Decolonial para reflexionar críticamente sobre estos movimientos de proyección del tiempo distante y sus breves impulsos, así como la metodología de corte antropológico que privilegia el testimonio y las experiencias de subalternidad.
Palabras clave: Colonialismo. Resistencia. Mujeres.
Introdução
Os caminhos da história das mulheres não se contam de modo claro e definido. São percursos sinuosos, intrincados, ao longo dos quais o historiador precisa dispensar cargas de muito preconceito presente nas fontes, desconfiar de suas lacunas, duvidar de suas verdades. (Figueiredo, 2006, p. 142)
Compreender as mulheres visíveis neste artigo implica enfrentar o passado colonial que desenhou sua trajetória. A contemporaneidade do povoado de Vitoriano Veloso permite refletir sobre o colonialismo e convida a estabelecer um diálogo entre os processos de dominação heteropatriarcais e as estratégias de resistência e protagonismo das mulheres subalternizadas.1
Santos (2010, p.182) afirma que "o que há de específico na dimensão conceptual da descoberta imperial é a ideia da inferioridade do outro, que se transforma em alvo de violência física e epistémica". As palavras do sociólogo português dão contornos ao que representou o longo século XVI e seus desdobramentos. A consolidação da conquista da América, que afirmou o apogeu dos impérios espanhol e português, significou a emergência do primeiro grande discurso do mundo moderno apoiado no eurocentrismo,2 que inventou e ao mesmo tempo subalternizou populações indígenas, povos africanos, muçulmanos e judeus (Grosfoguel, 2008).
Na experiência histórica e nos efeitos das colonizações em termos de desumanização, produzidas em ambos os extremos da relação colonial, foram as mulheres o principal alvo da crueldade (Segato, 2018). Assim, a grande ausência das mulheres é uma marca não apenas da historiografia de Minas Gerais. A historiografia colonial registra, ainda que de forma desigual, a presença dos colonizadores e dos colonizados, dos senhores e dos escravizados, mas mantém na penumbra a colonizadora, a colonizada, a senhora e a escravizada. Muitas vezes, o lugar reservado para as mulheres "encontradas" no Novo Mundo, ou trazidas da África, foi secundário e/ou invisível.
Essa invisibilidade foi, eventualmente, suprimida nos casos em que a mulher ocupou o lugar de representante da virtude moral e religiosa, da família e da obediência, do corpo e da sexualidade domesticadas. Ou, então, o lugar da sedução, do erotismo, do pecado e da pobreza (Priore, 2005; Boxer, 1977). Uma visibilidade que, afinal, é uma invisibilidade das mulheres reais sob o estereótipo de construção patriarcal e que se configura como modos de subalternização e de apagamento da voz. A essencialização do feminino que se evidencia na historiografia se constitui um desafio para historiadores/as.
A escassez de vestígios acerca do passado das mulheres, produzidos por elas próprias, constitui-se num dos grandes problemas enfrentados pelos historiadores. Em contrapartida, encontram-se mais facilmente representações sobre a mulher que tenham por base discursos masculinos determinando quem são as mulheres e o que devem fazer. Daí a maior ênfase na realização de análise visando a captar o imaginário sobre as mulheres, as normas que lhes são prescritas e até a apreensão de cenas do seu cotidiano, embora à luz da visão masculina. [...] As dificuldades de penetrar no passado feminino têm levado historiadores a lançarem mão da criatividade, na busca de pistas que lhes permitam transpor o silêncio e a invisibilidade que perdurou por tão longo tempo neste terreno. (Soithe, 1997, pp. 248-249)
As ausências são muitas e há um longo caminho de pesquisas a percorrer. Nesse sentido, a partir do enfoque histórico sobre a trajetória das mulheres em Minas Gerais e sua presença na constituição da sociedade, da família e do Estado mineiro colonial, este artigo tem a intenção de analisar, por meio das narrativas,3 o cotidiano das mulheres no povoado de Vitoriano Veloso no que tange às dimensões de poder, gênero e papéis sociais atuais em relação às estratégias de resistência e subversão.
Do Minho a Minas: as minhotas e as mineiras
As migrações portuguesas representam uma dinâmica decisiva no processo colonizador do chamado Império Atlântico. Dos grandes contingentes que vieram para o Brasil, predominaram os migrantes naturais do Porto e da sua região ou, de um modo mais genérico, oriundos do norte metropolitano, nos quais se destaca e inclui a grande área minhota (Mauro, 1997).
O século do ouro em Minas Gerais deu início a um elo peculiar entre o norte português e a região mineradora. O trânsito regular de portugueses para o Brasil e o retorno à metrópole originou uma conexão de valores e instituições sociais que foi além das heranças culturais. "A emigração para Minas Gerais, iniciada no período colonial, especialmente a oriunda da região norte de Portugal, reproduziu na América portuguesa padrões familiares semelhantes aos da origem." (Ramos, 2008, pp. 133-141).
A configuração de características únicas da região norte de Portugal, de acordo com o autor, era moldada pela ausência de homens e marcada por casamentos tardios, no que se refere às mulheres, baixas taxas de casamentos entre a população em geral, número reduzido de famílias nucleares e altas taxas de ilegitimidade e abandono de crianças. Paralelamente, e guardadas as especificidades entre as regiões, as mesmas características foram identificadas no Brasil colonial, principalmente na região produtora de ouro (Rowland, 1984).
No caso da sociedade setecentista da metrópole, Brettell (1990, pp. 272-282) afirma que houve uma ascendência da mulher minhota, na medida em que desempenhou um papel de maior protagonismo diante da escassez de homens. Tal fato favoreceu às mulheres da região certa independência e um padrão cultural que produziu uma forma de matrifocalidade e resultou em sistemas mais flexíveis de heranças, tornando as mulheres gestoras da família e estabelecendo uma equivalência na proporção da herança entre irmãos e irmãs.
Do outro lado do Atlântico, o padrão de deslocamentos determinado pelas altas taxas de mobilidade urbana em busca de novas jazidas foi relevante para a constituição da família e para a configuração social do casamento. A ininterrupta migração de Portugal, principalmente do norte, "teve o efeito de impor, e ao mesmo tempo, reforçar um conjunto de valores específicos sobre o ethos social de Minas Gerais" (Ramos, 2008, p. 114).
Se o século XVIII marcou Minas Gerais pela escassez de mulheres, a viragem para o século XIX viria transformar essa realidade. Ainda que os sistemas econômicos fossem distintos, os processos migratórios no norte de Portugal e em Minas Gerais eram parecidos. Similarmente aos homens do norte português, sempre prontos para migrar em busca de fortuna, os homens de Minas estavam sempre em busca do próximo local onde havia ouro ou onde uma área de agricultura se expandia. Segundo Ramos (2008, p. 145), "essa inversão pode ser explicada pela emigração de homens e a permanência de mulheres nos antigos núcleos mineradores".
Assim, é possível afirmar que historicamente se estabeleceram várias semelhanças entre as duas regiões, no que se refere às relações familiares e sua consequente influência na formação da estrutura da sociedade colonial de Minas Gerais. Desse modo, além da hierarquia familiar com os papéis sexuais, raciais e sociais determinados pelo modelo colonial, o que transparece a partir do cotidiano da colônia é a poderosa instituição que, segundo Brügger (2006), comandou verdadeiramente a colonização do Brasil: a família de base patriarcal.
O debate historiográfico acerca do conceito de patriarcalismo no Brasil começou na década 1970. Pondo em evidência a complexidade do tema, considerando a sociedade mineira colonial, adoto a acepção de Brügger (2006) de que, nos diversos arranjos familiares, independentemente das suas configurações domiciliares, os valores do poder patriarcal foram predominantes. Assim, o patriarcalismo é entendido não como uma configuração domiciliar específica, mas como um conjunto de valores e práticas que coloca no centro da ação social a família, entendida como unidade socioeconômica, política e afetiva.
A autora aponta que, contrariamente à afirmação de que a sociedade colonial seguiu um modelo patriarcal e que a sociedade mineira seria uma exceção, deve-se questionar a existência de um único modelo patriarcal da família brasileira e em Minas Gerais. "Também nas Gerais, foi a família o agente por excelência da colonização, sendo, portanto, pertinente a atribuição do caráter patriarcal àquela sociedade." (Brügger, 2006, p. 52).
Desse modo, é fundamental enquadrar todas as heterogêneas configurações familiares, considerando o universo de valores patriarcais que norteavam as relações sociais na metrópole e na colônia, assim como na sociedade mineira, tanto no século XVIII quanto no século XIX.
As mulheres de Minas e o projeto colonial: um cotidiano de resistência e subversão
No projeto colonial traçado pelo Estado português e pelos representantes da Igreja Católica, o povoamento da colônia era uma das prioridades. Aqui, os caminhos e descaminhos reservados às mulheres merecem ser destacados.
Devido a sua "escassez", principalmente às brancas e "honradas" europeias, era necessário priorizar o casamento e a maternidade, dificultando ou mesmo proibindo seu acesso à vida religiosa. A elas foi reservada a função de receptáculo das tradições culturais e das virtudes morais que se desejava transmitir aos colonos para que desempenhassem os esperados papéis de súditos fiéis e de bons cristãos (Priore, 1990, pp. 16-20). Se, a princípio, o destino da "mulher honrada" estava traçado pelo sistema patriarcal, o das escravizadas ou alforriadas, negras, mulatas e índias, também. "[...] Desde o início confundir-se-iam no Brasil a exploração de ameríndios/as e africanos/as e o abuso sexual, consentido ou forçado, de índias, negras ou mulatas, a despeito do que fizessem os missionários para obstar semelhantes práticas," (Vainfas, 1989, p. 51).
Ainda que submetidas à política do Estado e às determinações da Igreja ou, no âmbito privado, aos pais, maridos ou qualquer homem que se arrogasse o direito de dominação sobre elas, a imagem de submissas e reclusas não correspondeu à realidade para a totalidade das mulheres. Um olhar mais atento, ou menos afetado pela historiografia patriarcal, revela que muitas esposas, filhas e amantes não se sujeitaram à dominação "masculina", do Estado ou da Igreja. Nesse cenário, o cotidiano das mulheres mineiras do século XVIII, sobretudo das que estavam sob a sombra da miséria, do preconceito e das dificuldades de toda ordem, foi marcado pelo silêncio, quase sempre anônimo, mas também pela resistência (Furtado, 2001).
Sob a égide da colonização, que seguia os modelos da sociedade ibérica impondo a subjugação das mulheres, "tais segmentos contrapunham a força de sua resistência e persistente capacidade de definir novos papéis para as mulheres, em atitude de resistência cotidiana, na luta pela ampliação dos espaços de sobrevivência, na promoção da sociabilidade dos grupos" (Figueiredo, 2006, p. 144).
Em nenhuma outra região da colônia o nível de tensões alcançou as proporções que apresentou em Minas Gerais. A disputa pelo ouro entre colonos e colonizadores fomentou os motins contra os impostos, revoltas armadas, guerras e insurreições. Para Figueiredo (2006, p. 185), "lidar com tais ambiguidades parece ter sido o desafio. Sob esse quadro de tensões extremas, o cotidiano feminino saiu fortalecido. Se pesadas e rigorosas foram as medidas para controlá-lo, hábeis e engenhosas foram as alternativas de sobrevivência encontradas para transgredi-las".
Mesmo diante de tantas restrições, é impossível afirmar que as mulheres mineiras estiveram à margem ou apenas à sombra dos homens (maridos, irmãos, pais, amantes, compadres, concubinos) e que não influenciaram suas decisões. Elas estavam em todos os lugares: em casa, no comércio, nas ruas, nas tabernas, nos garimpos, nos conventos e indiretamente na política. Muitas lutaram, perseguiram e negociaram seu lugar em meio à misoginia de uma sociedade na qual os papéis eram rígidos, definidos e cruelmente impostos (Segato, 2018).
Na região das Minas, o pequeno comércio foi assumido principalmente pelas mulheres racializadas e, também por esse motivo, identificado pelas autoridades como um perigo. A multidão de negras e mulatas, escravizadas ou alforriadas, que circulavam pelas povoações vendendo quitutes, muitas vezes, facilitou o contrabando de ouro e pedras preciosas. A mobilidade exigida pela atividade comercial também favorecia outras ações, como articulações com os quilombos e apoio às rebeliões (Figueiredo, 2006, p. 149).
A historiografia brasileira, que ao longo de muitos anos manteve as mulheres ocultas na história, atribuindo-lhes o anonimato ou papéis de vítimas indefesas, apenas nos últimos 30 anos vem reescrevendo o colonialismo e reconhecendo seu protagonismo e contribuição na formação da sociedade colonial (Paiva, 2006, p. 86). Essas análises contribuem para uma visão que refuta a passividade das vítimas do sistema escravocrata patriarcal colonial e coloca-as como agentes ativos naquela sociedade, ainda que a dimensão de opressão permaneça presente (Paiva, 2012).
No campo social mais abastado, também as mulheres, ainda que esquecidas pelas historiografia, empreenderam suas lutas. É o caso da inconfidente "Dona Hipólita, a heroína esquecida da Inconfidência Mineira" (Vale, 2000, p. 29 ).
Hipólita Jacinta Teixeira de Mello nasceu em Prados, Minas Gerais e foi batizada em 15 de setembro de 1748. Neta de portugueses, viveu com seus pais na luxuosa fazenda da Ponta do Morro, localizada entre o arraial do Bichinho, hoje Vitoriano Veloso. Casada com o Coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, ambos participaram ativamente da Inconfidência Mineira, sendo ela a autora da carta denunciando Joaquim Silvério dos Reis como traidor dos companheiros de revolução (Vale, 2000, pp. 29-35).
Compreender a importância da participação das mulheres na organização da sociedade mineira e as estratégias utilizadas para viverem ou conseguirem a liberdade favorece pistas para uma análise do cotidiano atual. Essas personagens atuaram ativamente como aliadas, ou nem tanto, do sistema colonial e das resistências a ele. Elas "enfrentaram as normas dominantes, preconceitos, perseguições, seja da Igreja, seja do Estado ou da administração colonial, para forjar um caminho de participação social e econômica possível" (Figueiredo, 2006, p. 185).
As mulheres do povoado de Vitoriano Veloso e os "tempos modernos"
Nos "tempos modernos", pouca coisa mudou no cotidiano das populações mais empobrecidas e, nestas, na condição das mulheres, no que se refere à melhoria de condições de vida e de direitos. O período que cobre alguns séculos de história e que separa o arraial do Bichinho do povoado de Vitoriano Veloso atual é muito longo e não caberia aqui percorrê-lo. Contudo, alguns pontos servirão de marcadores para contar uma reduzida, porém significativa, parte da história que compõe o cenário de onde emergem as narrativas identitárias das mulheres desse pedaço de Minas Gerais.
Nas últimas décadas do século XVIII e em todo o século XIX, foram profundas as transformações nas estruturas econômicas e sociais da Europa Ocidental, o que acabou por expandir o imperialismo e sua ideia eurocêntrica de uma Europa culta, branca, masculina, letrada, cristã e modelo da modernidade.
A sociedade moderna, que já vinha se constituindo desde os "descobrimentos", se desenhou à imagem da cultura europeia e dava licença ideológica para o imperialismo que reverberava no Brasil de então.
A aceleração do processo histórico vivido no Brasil oitocentista, inspirado na modernização europeia, ao modificar a estrutura da sociedade, encerrou o sistema escravista e levou consigo o sistema monárquico. Assim, a última fase colonial marcou a sociedade brasileira com diversas transformações, entre elas a reorganização das vivências familiares e domésticas, designando um novo papel para as mulheres: uma unidade feminina essencializada, frágil, romântica, dependente e incapaz (D'incao, 2006).
Porém, o aumento da população composta por mulheres representava uma inversão da situação anterior, e a organização familiar das camadas populares assumia cada vez mais uma multiplicidade de formas (Samara, 2002). Os índices referentes a Minas Gerais evidenciam a elevada presença de mulheres como chefes de domicílio, responsáveis pelas economias domésticas e por várias atividades na manufatura (Ramos, 1990).
Longe dos centros urbanos e do universo fabril, o povoado de Vitoriano Veloso tem escassos dados e estudos específicos acerca de sua população. Contudo, considerando a proximidade geográfica com a região ao seu entorno, é possível supor que seus/suas habitantes viveram processos semelhantes quanto às questões econômicas, políticas e sociais.
Segundo relatos dos/as habitantes do povoado, na segunda metade do século XX, a população se viu drasticamente reduzida pela migração dos homens em direção aos centros urbanos em busca de trabalho. Diante das novas configurações, de acordo com o estudo acerca da divisão sexual do trabalho no âmbito da subsistência da família nos povoados, Cardoso (1992a, pp. 81-82) afirma que,
O trabalho "feminino" não é visto como tal, é ajuda. A organização do trabalho é reveladora do lugar ocupado por homens e mulheres neste universo e indica diferenciações no interior do grupo. Enquanto os primeiros cuidam da lavoura, as mulheres se dedicam à produção da casa, dos alimentos e dos filhos. No entanto, tais atividades não se resumem ao espaço da casa. Como parte das necessidades de reprodução do grupo doméstico, as mulheres recolhem lenha, plantam miudezas, criam porcos e galinhas, fazem "breganha" (permuta de produtos) e, em períodos mais intensos de trabalho, auxiliam na lavoura realizando tarefas como semear, adubar e estercar as covas. Em situações particulares, quando por algum motivo há alterações na organização familiar, as mulheres se tornam responsáveis por tocar a roça. Este é o caso das viúvas, solteiras sozinhas, famílias muito pobres, ou ainda, daquelas que associam a agricultura ao trabalho da cidade. Em tais situações as mulheres assumem, inclusive, uma das tarefas definidas como exclusivamente masculinas, o preparo da terra para o plantio.
Para a autora, houve períodos em que na região apenas as mulheres, as crianças e os idosos permaneceram, vivendo da agricultura familiar e do pequeno comércio de artesanato e gêneros alimentícios. Os homens partiam para os estados de São Paulo e Rio de Janeiro em busca de recursos para tocar a roça, construir a casa e arcar com as despesas necessárias para a manutenção familiar. Assim, "nesse movimento cíclico de idas e vindas, marcado pelo calendário agrícola e pelas festas religiosas, todos estão incorporados, mesmo os sem-terra, que representam a maioria dos camponeses locais. […] Na cidade, eles são operários, mas nos povoados, camponeses" (Cardoso, 1992b, p. 9).
Assim sendo, surgem algumas questões, entre elas: Como as mulheres que permaneceram no povoado viveram esse período e o que pensaram e fizeram? Como constituíram suas famílias e trabalharam? Como construíram estratégias cotidianas de enfrentamento à pobreza, à desigualdade e à opressão? Como se alegraram, festejaram, amaram? Essa parte da história das mulheres do povoado de Vitoriano Veloso ainda está por ser contada. Ela compõe a profunda e secular "tradição" na qual a invisibilidade do subalterno/a permeia a historiografia. Avançar na direção de tornar visíveis as histórias de subalternidade, nas quais a mulher é duplamente afetada, é não apenas um desafio, mas um compromisso ético político.
O contexto da construção das identidades do povoado de Vitoriano Veloso tem na história recente elementos de grande impacto que se assentam na permanência das mulheres no local e nas suas habilidades artesanais. De domínio das mulheres, algumas atividades como a produção de bijuterias, que empregou inúmeras delas, ou o artesanato em crochê, se tornaram uma fonte de rendimento familiar.
A atividade artesanal acabou atraindo a atenção dos turistas que vinham para conhecer a histórica igreja local de Nossa Senhora da Penha de França ou estavam de passagem em direção a uma das cidades históricas que se avizinham ao povoado. "O primeiro artesanato do Bichinho foi o crochê das mulheres" (T., comunicação pessoal, 2015).
Esse cenário se mostrou receptivo para que, no início da década de 1990, tivesse início a implementação de um projeto de desenvolvimento local sustentável por meio do artesanato, posteriormente chamado de Oficina de Agosto. A região se constituiu um solo fértil à proposta que, em interação principalmente com as mulheres do povoado, foi palco de um movimento que alterou a dinâmica local.
Compreender o papel das mulheres reais e atuais em Vitoriano Veloso exige uma análise apoiada nas suas narrativas. Desse modo, será possível evidenciar as estratégias de sociabilidade às quais recorrem para criar e gerir a vida.
As narrativas das mulheres em Vitoriano Veloso: um campo etnográfico
"Quando os homens saíram para trabalhar fora, elas ficaram com os filhos e a lavoura. Eram pais e mães" (N., comunicação pessoal, 2017).
A frase poderia se referir ao papel desempenhado pelas mulheres do povoado de Vitoriano Veloso tanto no período colonial quanto no século XXI. Essa (a)temporalidade perpassa a história de longa duração e tem raízes no protagonismo das mulheres e nas táticas de resistência empreendidas por elas em uma sociedade marcada pelo capitalismo eurocentrado e global de gênero (Lugones, 2008).
No contexto colonial patriarcal, as mulheres são duplamente invisibilizadas, silenciadas e vítimas de violência (Spivak, 1999/2010). Sobre elas incide o sistema de gênero colonial/moderno como a expressão mais profunda da colonialidade.4
A história do povoado apresenta as marcas das opressões que combinaram processos de racialização, colonização, exploração capitalista e heterossexualismo. Contudo, traz especificidades que necessitam ser analisadas a partir da concretude da vida cotidiana e na perspectiva do patriarcalismo que se estabeleceu como imposição colonial em Minas Gerais. Apenas assim será possível uma aproximação da extensão e profundidade histórica de seu alcance e dos processos de rebeldia e resistência empreendidos pelas mulheres.
No sentido de buscar superar, ainda que parcialmente, essa "invisibilidade" resultante principalmente de estereótipos construídos pelo patriarcalismo, é preciso evidenciar os modos de subalternização e silenciamento que foram utilizados para produzi-la. Dar contornos e evidenciar as lutas atuais travadas no cotidiano, os pequenos/grandes atos de rebeldia em busca de liberdade, autonomia e sobrevivência, pode favorecer a visibilidade das mulheres reais.
As reflexões acerca das narrativas que fazem parte deste texto compõem diálogos e observações realizadas ao longo da pesquisa etnográfica (2015-2017) e privilegiam relatos de mulheres de diversas idades e atividades laborais, moradoras em Vitoriano Veloso e com escolaridade entre 0 e 3º grau. Elas são fruto da escuta qualificada e das conversas informais ocorridas durante acontecimentos sociais: lanches, almoços em família, velórios e festas de aniversário.
Nas narrativas, que identificam um "lugar da mulher", é fundamental não associar subalternidade com ausência de protagonismo, pois tal essencialização da subalternidade reproduz a vitimização e subtrai da narrativa do/a subalterno/a as evidências de sua capacidade de subversão e resistência (Spivak, 1999/2010).
Durante o processo etnográfico, quando o tema era a história de mulheres do povoado, imediatamente surgiam narrativas sobre a mulher que participou da Inconfidência Mineira. Ela não se encontra contemplada nos livros didáticos ou figura em restritos espaços da historiografia. "Já ouviu falar sobre uma mulher que viveu aqui no Bichinho que se chamava Hipólita Jacinta? Dizem que ela era uma mulher importante. Era muito rica. Mas ajudou os Inconfidentes. Ela vivia aqui numa fazenda chamada Ponta do Morro. Quase ninguém fala dela (M. L., comunicação pessoal, 2017).
A narrativa enuncia a presença dessa mulher, da "qual quase ninguém fala", como uma das lideranças da Inconfidência Mineira. Ainda que apresentando poucos elementos acerca da sua trajetória e figura histórica, as informações reveladas pela narrativa se aproximam dos escassos registros acerca de Hipólita Jacinta e chama atenção para a sua invisibilidade, se comparada aos outros inconfidentes. O trabalho de campo revelou que, no povoado, ela é considerada uma parte importante da história local.
Contudo, são as narrativas do cotidiano do século XX que abordam o protagonismo das mulheres locais quanto à resistência física e psicológica, perante duplas ou triplas jornadas de trabalho. Elas evidenciam a sua presença como sujeito na promoção da sobrevivência da família em frentes diversas: na lavoura, nos trabalhos da casa, como cuidadoras dos filhos, como comerciantes, como mulheres, como companheiras. Evidenciam, também, o seu papel como agente de opressão sobre outras mulheres, exercido na exigência da perfeição na execução de tarefas domésticas, reproduzindo, assim, a divisão sexual do trabalho.
Antigamente era uma rotina muito sofrida, na lavoura e na tropa. Aqui sempre foi lugar de trabalho na roça. Aí era a família toda junta trabalhando na roça, mas a casa era das mulheres cuidar. Minha mãe teve 13 filhos, três morreram criança, de sarampo. Eu e meus irmãos só estudamos aqui na escola do povoado, porque meu pai precisava de nós para o trabalho na roça. Minha mãe fornecia assados, bolos e doces para ser vendido na venda que eles tinha. Ela trabalhava muito. (L., comunicação pessoal, 2017)
Eu era a filha mais velha e tinha mais responsabilidade. Trabalhava com o pai nas roça. Tinha a roça da gente e a roça de terceiros. Ele era muito severo. Ele e a minha mãe eram doentes e eu tive que parar de estudar na quarta série para ajudar. Eu não recebia pelo trabalho. Para fazer meu enxoval de casamento eu vendia lenha que pegava depois do trabalho na lavoura. [...] Eu era responsável por lavar as roupas da família, que eram feita de tecido de saco de farinha, lá no riacho. Naquele tempo, a gente usava sabugo de milho para lavar as roupas porque não tinha escova. O sabão era uma mistura de cinza e sebo. Uma bola preta que passava na roupa, sujava depois limpava. Ali era bom, era onde as moças se encontravam, enquanto lavava as roupas, e conversava. A roupa era colocada de molho, ensaboada, esfregada e colocada pra coarar no gramado no sol, depois enxaguada e levada pra casa. Tinha que ficar limpa e branca, senão a mãe fazia voltar pro córrego pra lavar de novo. Quando a gente colocava um vestido de chita no corpo era uma alegria. Os pais não tinham pena das crianças, tinham filhos sem planejar e para criar colocava eles para cuidar dos menores e trabalhar. Plantávamos arroz no brejo, aquilo não era para mulher fazer. A gente ficava com os pés na lama, quando estava menstruada a gente ficava suja, fedendo. A gente usava pano naquela época e não podia trocar porque passava o dia na roça. Muitas vezes perdia a colheita toda com a chuva ou as capivaras comiam. (M., comunicação pessoal, 2015)
Os relatos favorecem a identificação das desigualdades e injustiças atreladas às estruturas coloniais de caráter cultural, econômico e social às quais o/a subalterno/a esteve sujeito/a. O recorte patriarcal impôs às mulheres a vivência da subalternidade sob formas diferenciadas, o que exigiu o exercício cotidiano de resistência na construção das múltiplas identidades de acordo com as necessidades, reivindicações e interesses frequentemente cruzados e antagônicos em constante processo de mudança e transformação (Hall, 2003).
Não foram poucas as vezes em que as mulheres de Vitoriano Veloso foram alvo de opressão das diversas instâncias. Assim como não foram raros os momentos em que insurgiram contra a opressão invisível no cotidiano, ou aproveitaram oportunidades para protagonizar alternativas criativas de sobrevivência.
Eu trabalhava de empregada numa casa aqui do Bichinho. Eles vinham no final de semana lá de Belo Horizonte. Quando chovia, eles enxugavam os cachorros com as toalhas de banho. Ficava tudo cheio de lama. Eu lavava na mão porque não tinha máquina de lavar. Depois que eu saí, eles compraram uma máquina. Trabalhei 18 anos. Criei meus filhos trabalhando lá. Eu fiquei assim, tanto tempo, porque eles só vinham no sábado e no domingo. Senão tinha saído antes. (M., comunicação pessoal, 2015)
A narrativa pertence a uma mulher viúva aos 31 anos, que criou seus seis filhos/as sozinha, dando a eles oportunidade de estudar até o terceiro grau, como três deles/as o fizeram, enquanto ela não chegou a frequentar a escola. Mesmo ao se submeter a relações trabalhistas desiguais, ela as compreende como fato e não como determinismo e, em uma condição subalterna, encontra alternativas e faz escolhas visando a um projeto de vida que envolve toda a família, no qual ela se configura protagonista.
As estratégias e táticas praticadas em um cotidiano marcado pela opressão muitas vezes se traduzem em atos silenciosos, empreendidos em longo prazo com objetivos claros e negociações conscientes (Certeau, 1994).
Em outra narrativa, a utilização de estratégias criativas de sobrevivência evidenciou questões ligadas à forma como elas exerceram papéis marcados pela autonomia.
Aqui nem tinha luz. O turismo era só para a Igreja, não era para comprar nada. Mas como nos finais de semana eu estava na rua fazendo o crochê [...], na rua que eu digo assim, na calçada da minha casa, entendeu? Então eles passavam curiosamente: que que é isso? Que que você tá fazendo? E aí a gente mostrava, explicava, eles perguntavam o preço, aí foi trazendo. Então, no que eles foram vindo e um comunicava com o outro, quando vi tava chegando carta, telegrama, então, eu vi que não ia dar conta e começou a juntar as mulheres e uma ajudar a outra. Mas era tudo pouco. Ninguém ganhava assim grande coisa. A gente não tinha noção de preço, não tinha nada. Mas aí foi crescendo e fomos trabalhando. A gente não tinha hora, era uma hora da manhã, duas [...]. Tinha dia que o que fazia a gente parar era o galo cantando. Falava: Opa! O galo tá cantando, o dia tá amanhecendo. Hoje eu vendo pro Brasil quase todo. Graças a Deus. Meus filhos e meu marido são funcionários de carteira assinada aqui comigo. (A., comunicação pessoal, 2015)
As mulheres do povoado de Vitoriano Veloso protagonizam a administração da maior parte do comércio e dos negócios locais voltados para o turismo e para os moradores e moradoras. Elas dominam serviços no ramo da alimentação, nos restaurantes, cafés, padarias, doçarias e bares; de hospedagem, nas pousadas, quartos e casas; de venda de produção artesanal própria ou de outras artesãs em lojas e ateliês. Atividades que reproduzem características que marcaram todo o Brasil colonial e de forma muito intensa a região, que as colocaram no "comando" da economia popular, informal e doméstica.
O que emerge como narrativa e se evidencia à observação etnográfica atualiza práticas que historicamente representaram graus de autonomia. Demonstram a possibilidade de elas se orgulharem de ter o marido, filho e filha como seus funcionários, e um sentimento que mistura capacidade de proteger e assegurar o futuro da família e o poder de a comandar a partir do lugar de provedora exclusiva.
Outro aspeto que merece atenção se relaciona como os impactos ocasionados pelas novas funções assumidas nas últimas três décadas. A maneira como interferem na organização da família e da comunidade se evidencia nos discursos.
Eu fico preocupada com o comportamento das mulheres que trabalham na Oficina (Oficina de Agosto). Depois que elas começaram a trabalhar lá, que saíram de casa, ficam menos tempo com os filhos. Valorizam mais o trabalho, porque gera renda e qualidade de vida. Podem comprar coisas para os filhos e acabam dedicando todo o tempo ao trabalho, deixando os filhos sem a sua presença. Quando eu falo desse assunto com elas, elas dizem que eu falo isso porque não tenho filhos. Mas é justamente porque não tenho filhos que eu percebo o que está acontecendo. Antes as mulheres ficavam no povoado com os filhos quando os maridos iam trabalhar nas cidades. Elas eram presentes na vida dos filhos. O poder aquisitivo trouxe o poder de consumo e os modismos tecnológicos. (L., comunicação pessoal, 2015)
Tudo aqui no povoado do Bichinho era muito pouco e muito pobre. Muitos homens se ausentaram na década de 70 e 80 para trabalhar na construção civil e o povoado ficou entregue às mulheres e às crianças. Aqui, como em muitos outros lugares, as mulheres se tornaram donas de negócios, acho que foi um movimento que foi geral. Elas decidiram sair de casa para trabalhar e ajudar nas despesas junto aos seus maridos. O que foi ruim por um lado, porque deixaram de cuidar dos filhos de perto. (A., comunicação pessoal, 2017)
As narrativas se referem a questões relevantes acerca das mudanças que o povoado tem vivenciado desde as duas últimas décadas do século XX, entre as quais me deterei a duas. A primeira está relacionada com a divisão sexual de papéis, diretamente associada aos valores patriarcais. O discurso apresenta uma discrepância quanto aos impactos da presença/ausência do pai e da mãe na vida familiar. Nele, a ausência dos homens, em alguns casos por meses ou até anos, em função da busca de trabalho em outras cidades, não parece relevante quanto aos "danos" causados, sendo aceita sem maiores inquietações. Por outro lado, a ausência diurna das mulheres é enunciada com grande preocupação, sendo responsável por "não estarem presentes na vida dos filhos" e, consequentemente, "deixando de cuidar deles" em função da dedicação ao trabalho, em troca de qualidade de vida e outros "consumismos", o que reafirma o profundo enraizamento do sistema de poder patriarcal.
Sob outra perspectiva, a segunda questão sugere algo que identifica uma característica do povoado: as redes de parcerias. As narrativas denotam uma preocupação com as crianças em relação à "ausência" materna. Nesse aspecto, é relevante identificar que, ao longo de algumas décadas, quando as mulheres permaneceram praticamente sozinhas no povoado, responsáveis pela família e pela subsistência nas roças e em outras atividades, foram criados e/ou fortalecidos entre elas sistemas de parcerias e de ajuda mútua no cuidado das crianças. A ausência do Estado e o isolamento do povoado exigiram a busca de alternativas de sobrevivência que envolveu a criação de sistemas comunitários, de parentescos, reciprocidade e solidariedade que deram novos contornos à racionalidade histórica da modernidade construída em torno da relação entre os espaços público e privado.
O binarismo não é uma característica inocente da modernidade, mas um forte instrumento de dominação e de manutenção de hegemonia. Na compreensão do mundo baseada na hierarquização, coube aos homens o espaço público e às mulheres o espaço privado, aos homens a visibilidade e às mulheres a invisibilidade.
Os elementos resultantes da observação participante se somam às narrativas de forma mais intensa no intuito de explicitar a complexidade do cotidiano no povoado. As dinâmicas estabelecidas entre as mulheres apontam para construções e vivências diferenciadas do que a modernidade estabelece como público e privado.
Eu comecei a trabalhar com 12 anos para ajudar a minha mãe. Éramos sete irmãos e um era deficiente. A minha mãe não podia trabalhar, tinha que cuidar dele e o nosso pai abandonou a gente. Então era muita dificuldade. Eu estudava, mas fiquei grávida da minha filha com 14 anos, então parei de estudar. Quando ela nasceu, eu deixei ela com a minha mãe e fui trabalhar de faxineira em Tiradentes. Fiquei lá um ano, depois comecei a trabalhar na Oficina (Oficina de Agosto). Eu criei minha filha sozinha, o pai dela nunca ajudou. Eu tive muita ajuda de todo mundo daqui. Quando ela ficou doente, todo mundo ajudou. Eu sempre trabalhei para dar as coisas a ela e ao meu sobrinho. Filho da minha irmã que eu crio desde que ele tem dois meses. Então criei ele e ela, são quase da mesma idade. Então tenho um casal. Agora já estão trabalhando, ela com 20 e ele com 22. (S., comunicação pessoal, 2017)
Minha mãe é doente, não pode ficar com meu filho pra eu trabalhar. Aí, eu deixo na minha sogra. Ela fica com os netos, com o meu e os outros e a bisneta, e a gente vai trabalhar. Eu trabalho aqui na loja da Oficina (Oficina de Agosto), a S., lá na pousada, a M., nos Bombeiros, T., tá estudando Pedagogia em São João. Não tem creche aqui, só vão pra escola com 5 anos, aí fazemos assim. Todo mundo aqui faz. (R., comunicação pessoal, 2017)
A precariedade econômica, em consequência do isolamento e do abandono vividos pelo povoado, transformada em pobreza e privações, estabeleceu rotinas em que coube às mulheres criarem alternativas que viabilizassem a sobrevivência. A longa ausência dos homens favoreceu a construção de vivências coletivas que, ao criarem meios de gerir o cotidiano e a vida, estabeleceram relações de parcerias que geraram autonomia e aproximaram os espaços público e privado.
A observação etnográfica identificou que não é incomum a existência de famílias estendidas, ou seja, a convivência de adultos e crianças, com grau de parentesco próximo ou distante, ou ainda sem parentesco, determinada pela necessidade de apoio e cuidado. A união de propriedades, com moradias próximas e sem delimitação física, é comum e favorece a circulação e permanência de jovens, crianças e idosos/as em diferentes casas, de acordo com a necessidade.
Sob outro aspecto, a experiência da vida cotidiana exemplifica uma experiência social ligada a contextos complexos e diversificados das sociedades atuais. Expõe práticas sociais utilizadas em setores mais vulneráveis como forma de organizar a sobrevivência e resistência para enfrentar a crise e a lógica capitalista.
Aqui no Bichinho é tudo como se fosse uma família só. É todo mundo junto. Um cuida do outro. Quando tem uma pessoa doente, como foi ali a dona M., que morreu coitada, todo mundo sente. Quando tem alguém casando, então a gente junta todo mundo pra poder ajudar a semana inteira, fazendo "quitanda" (doces e comidas) para o casamento, a gente inteira o serviço assim. (C., comunicação pessoal, 2015)
Na época, aqui não tinha luz, ônibus… nada. Era tudo a cavalo ou de bicicleta. Tinha aqui o seu J., ele tinha um cavalo que ele trabalhava entregando verdura lá em Tiradentes e Prados. Ele que levava as crianças no balaio do cavalo para a escola. Ele passava juntando as crianças, colocava elas no cesto de palha e levava. Assim, as mães ficavam na lida da lavoura. Tinha só um telefone, que ficava lá em cima. Quando tinha uma ligação pra alguém, a gente ia avisando de uma casa pra outra até chegar na pessoa. (T., comunicação pessoal, 2017)
Em Vitoriano Veloso, as redes de parcerias, ainda que não sejam um movimento organizado, se expressam no cotidiano das relações de reciprocidade e solidariedade. Elas estão presentes nas relações sociais locais e principalmente sob o protagonismo das mulheres na organização da vida familiar e comunitária, nas quais a linha de fronteira entre os espaços público e privado é tênue, móvel e porosa. Funcionam para viabilizar a sobrevivência individual e coletiva e, segundo as narrativas, datam de um tempo histórico que percorre algumas gerações. Esse domínio, "dotado de uma densidade simbólica aglutinante", fomenta economias solidárias e reforça o tecido social comunitário atacado pela intervenção colonial e pela modernidade (Segato, 2016).
Assim, é possível afirmar que no povoado se desenvolvem relações sociais nas quais as redes de parcerias deslocam as fronteiras binárias e dicotômicas da modernidade e avançam para o espaço público, levando consigo práticas sociais marcadas pela reciprocidade. Para Segato (2018b), uma "otra forma de estar en el mundo y de reflotar formas de decisión, formas de protección de la vida más festivas y eficientes".
Um deslocamento que se opera em meio a contradições e conflitos em interação com o modelo hegemônico, mas que aponta caminhos de sua superação e construção de outra racionalidade.
Considerações finais
Os estudos historiográficos, aliados à observação, à descrição densa e às narrativas, foram responsáveis por dar contornos às reflexões acerca da agência das mulheres em Vitoriano Veloso. Um protagonismo tem raízes coloniais tão profundas quanto o patriarcalismo, o extrativismo e tantas outras heranças coloniais.
São muitos os elementos que dão forma às identidades atuais do povoado, contudo, há um elemento que estabelece ligação entre todos: as mulheres locais.
Se, por um lado, as narrativas evidenciam a herança colonial do heteropatriarcado que oprimiu e subalternizou até onde as memórias atuais alcançam, configurado no controle da sexualidade e da liberdade (exercida inclusive por elas), é também no interior dessa herança que surgem suas ações de resistência e subversão. É possível afirmar que a herança colonial, assim como a modernidade, tem duas faces: a subalternidade e o protagonismo subalterno.
O "entre lugar" (Bhabha, 2012), resultante da ação das mulheres em Vitoriano Veloso, é consequência do deslocamento das fronteiras das identidades hegemônicas históricas ligadas à matriz colonial e de sua consequente reconfiguração que elas promoveram. Ao fazê-lo, subverteram a lógica da colonialidade e emergiram confrontando-a, a partir de seu interior, criando, ou tornando visível, o que o autor chama de "terceiro espaço" (Bhabha, 1996).
Cotidianamente, elas se apropriaram do espaço efetivamente criado pela ausência dos homens e o ocuparam atuando da forma como sua identidade "original" colonial subalterna "determinava" (no espaço das artesanias). Porém, foram essas habilidades, sob o estereótipo do "feminino", do trabalho na roça, na administração doméstica, da família e da própria comunidade (como as redes de parcerias e a candidatura a vereadora), que criaram condições para que tivesse êxito o projeto de desenvolvimento local.
Afinal, em Vitoriano Veloso, as mudanças dos últimos 30 anos têm seus determinantes na própria história local de longa e de curta duração. Em ambas as temporalidades, as mulheres surgem tanto como protagonistas da subalternidade como, também, das ações de resistência e subversão. Elas empreenderam lutas pela sobrevivência e contra inúmeros tipos de dominação em espaços diversos. Foram comerciantes, chefes de família, algumas exerceram a prostituição, foram presença "invisível" na vida política, trabalharam na lavoura, apoiaram rebeliões e contrabandearam. A construção de redes de parcerias, seja no passado, seja no século XXI, foi estratégica para exercerem protagonismos a partir das fissuras entre diálogos de poder e resistência. As mulheres são as principais responsáveis pela criação e manutenção de espaços e possibilidades para que o cotidiano comportasse outros processos de sobrevivência. Eles foram possíveis, principalmente, devido às identidades múltiplas que elas construíram, reivindicando modos específicos de subjetividades e sociabilidade no confronto com a diferença desigual, na busca pela igualdade desigual (Santos, 2010).
As narrativas expõem os caminhos construídos artesanalmente nesse povoado nas Minas Gerais do Brasil, e neles estão as marcas de uma colonialidade que atualiza subalternidades e invisibilidades. Contudo, elas também apresentam as estratégias de resistências e subversão empreendidas silenciosamente, permanentemente e invisivelmente no cotidiano, afirmando o espaço e o exercício de um protagonismo nada invisível e tampouco subalterno. Essas estratégias têm nome e rosto de mulher.
Agradecimentos
Este trabalho é financiado por fundos nacionais por meio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projeto CIDEHUS - UIDB/00057/2020.
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Recebido em: 25/4/2019
Aceito em: 19/6/2020
1 O conceito de subalterno se refere a pessoas de regiões e grupos que estão à margem na disputa por poder da estrutura hegemônica. Esse enfoque se recusa a pensar a subalternidade a partir de uma perspectiva essencializadora, relacionado apenas com o colonial ou o pré-moderno. Ao contrário, compreende a subalternidade como "um conceito para designar o novo sujeito que emergia nos interditos da globalização" (Beverley, 2003, p. 337).
2 Segundo Aníbal Quijano (2005, p. 235): "Eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de meados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa".
3 O desenvolvimento da pesquisa de caráter etnográfico realizada ao longo do doutorado acolheu os relatos e testemunhos que compõem este artigo. A utilização assenta nos termos de autorização e consentimento dos/as participantes, reconhecidos/as como atores e coautores/as da tese produzida a partir dessa parceria.
4 O conceito de colonialidade foi cunhado por Aníbal Quijano (2014). Ele "permite-nos compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial" (Grosfoguel, 2008, p. 126).