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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.3 São João del-Rei jul./set. 2020

 

Sobre a enunciação de mulheres não brancas na ciência: uma análise da produção intelectual de Gloria Anzaldúa e bell hooks1

 

On the Enunciation of Nonwhite Women in Science: An Analysis of the Intellectual Production of Gloria Anzaldúa and bell hooks

 

Sobre la enunciación de las mujeres no blancas en la ciencia: un análisis de la producción intelectual de Gloria Anzaldúa y bell hooks

 

 

Tayane Rogeria LinoI; Andréa Moreira LimaII; Thais Francielle AlvesIII

IDoutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Psicologia pela UFMG. Graduada em Psicologia pela UFMG. Professora no Centro Universitário UMA. Pesquisadora associada ao Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão Conexões de Saberes/FAFICH/UFMG. Compõe o colegiado gestor da regional Minas Gerais da Associação Brasileira de Psicologia Social (2018). E-mail: tayanelino@gmail.com
IIMestra e Doutora e mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estágio de doutoramento no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra/Portugal. Psicóloga. Professora do Centro Universitário UNA. E-mail: andrea.m.lima10@gmail.com
IIIPsicóloga. Especialista em Saúde Mental pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professora no Centro Universitário UNA de Bom Despacho e da Faculdade UNA de Nova Serrana. Atualmente desenvolve o mestrado na Universidade Federal de São João del-Rei. É representante do CRP - MG no Conselho Municipal de Direitos da Mulher de Divinópolis. E-mail: thaisalvespsi@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho busca investigar a fala/silêncio de mulheres de cor na produção científica e estabelecer uma discussão em torno do lócus enunciativo do sujeito subalterno na vida social contemporânea no campo científico. Foram analisados os textos "Intelectuais Negras", de bell hooks, e "Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo", de Gloria Anzaldúa. Também foram tomadas as contribuições de Gayatri Spivak (2010) no texto "Pode o subalterno falar". As análises apontaram que as teóricas estudadas buscam novas estratégias epistemológicas e estabelecem um diálogo crítico com distintas correntes do pensamento. As mulheres, até agora produzidas como objetos do saber, reclamam a produção de um saber local, sobre si mesmas; assim, transitam entre o silêncio e a fala, entre a ausência de uma produção audível e a denúncia de uma história invisível em uma ciência imperialista.

Palavras-chave: Mulheres. Ciência. Subalternidade. Feminismo. Experiência.


ABSTRACT

The present work seeks to investigate the speech/silence of colored women on the scientific production, having as its objective to establish a discussion around the enunciative locus of the subaltern subject on the contemporary social life, in the scientific field. We analyzed the texts "Black Intellectuals" written by bell hooks and "Speaking in tongues: a letter to the women writers from the third world" written by Gloria Anzaldúa were analyzed. The contributions of the text "Can the subaltern speak", by Gayatri Spivak (2010), was also used. The analysis points out that the studied writers are seeking new epistemological strategies, establishing a critical dialogue with distinct fields of thought. Women, so far produced as "knowledge objects" claim the production of local knowledge about themselves. So, they transit between the silence and the speech, between the absence of an audible production and the uncovering of an invisible history in an imperialist science.

Keywords: Women. Science. Subalternity. Feminism. Experience Analysis


RESUMEN

El presente trabajo busca investigar el habla/silencio de mujeres de color en la producción científica, se tiene como objetivo como reto establecer una discusión sobre el lócus enunciativo del sujeto subalterno en la vida social contemporánea, en el campo científico. Desarrolló el análisis de los textos "Intelectuales Negras" de bell hooks y "Hablar en lenguas: carta a las escritoras del Tercer Mundo" de Gloria Anzaldúa. Las aportaciones de Gayatri Spivak (2010) en el texto "¿Puede hablar el sujeto subalterno?". El análisis apunta que las teóricas estudiadas buscan nuevas estrategias epistemológicas, establecen dialogo crítico con distintas corrientes del pensamiento. Las mujeres, que hasta el momento eran objetos del saber, reivindican la producción del saber local, un saber acerca de sí mismas. Así, ellas transitan entre el silencio y el habla, entre la ausencia de una producción oíble y la denuncia de una historia invisible en la ciencia imperialista.

Palabras clave: Mujeres. Ciencia. Subalternidad. Feminismo. Análisis de Experiencia.


 

 

Introdução

Neste ensaio, optamos por falar de algumas mulheres. Mulheres negras, mestiças, lésbicas, trans, latino-americanas, de origem popular, migrantes, que só existem se vistas a partir de um olhar fronteiriço (Anzaldúa, 1987). Estas que, na modernidade, são rápida e repetidamente nomeadas como subalternas, assujeitadas, oprimidas etc. Mas, e se nas características supracitadas incluirmos mais algumas - acadêmicas, professoras universitárias, pesquisadoras -, continuaremos enxergando-as como subalternas? O que as tornam ou não subalternas? Quem é subalterno? Quem nomeia quem de fato é subalterno? Nesses termos, o objetivo é estabelecer uma discussão em torno do complexo debate acerca do lócus enunciativo do sujeito subalterno na vida social contemporânea - principalmente no campo científico.

No caminho para algumas respostas e no desenvolvimento de novas perguntas, foram analisados os textos "Intelectuais Negras",2 de bell hooks,3 e "Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo", de Gloria Anzaldúa,4 ambos traduzidos para o português e publicados na Revista Estudos Feministas, em 1995 e 2000, respectivamente. Faremos isso a partir do debate sobre o termo "subalterno", bem como a partir de reflexões sobre subalternidade e sobre a ciência, ancorando-nos, mais especificamente, nas contribuições teórico-explicativas de Gayatri Spivak em "Can the subaltern speak?". Como o título sugere, a diaspórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak trata da possibilidade de fala do subalterno; em outras palavras, o que de fato a interessa é a discussão quanto ao lócus enunciativo do subalterno no campo científico.5 Esse campo teórico apresentou-se como uma importante contribuição, tanto para o campo científico quanto para este trabalho, pois traz o "outro" para a cena, o não falante, o silenciado, o que sempre ocupou o lugar de sujeito na ciência e, poucas vezes, o de sujeito da ciência.

Para além da questão clássica - Quem é subalterno? -, indagamos, também, sobre a concepção de subalternidade para a autora. Inspirada nas teorizações de Gramsci, o termo subalterno, nas palavras da autora, se refere aos "sujeitos pertencentes às camadas menos abastadas da sociedade, estas têm extirpada a possibilidade de representatividade política e social e a possibilidade de se tornarem integrantes plenos do estrato social dominante" (Almeida, 2010, p. 12). Os subalternos são, assim, grupos marginalizados que não têm voz e nem mesmo representatividade (Figueiredo, 2010). Ou seja, tais atributos determinam a subordinação de alguns no meio social.

Em analogia ao título de uma obra de um pesquisador português, Dewulf (2005), inserimo-nos no campo de interpretações de um mundo ocidental que também pode ser pintado de palavras subalternas.

Para Spivak, o uso do termo subalterno/subalterna não é apenas um sinônimo para oprimidos, para os outros. Em sua proposição teórica, o subalterno é aquele que tem limitado ou nenhum acesso às instâncias de fala, resultado de um imperialismo cultural. Nesse sentido, Spivak (2010) apresenta as mulheres, principalmente as negras e pobres, como expressões típicas da subalternidade.

Gayatri Spivak sugere que, ao subalterno/subalterna, é negado o acesso a ambas as formas miméticas e política de representação. A autora afirma que o "subalterno" descreve "as camadas inferiores da sociedade constituída por modos específicos de exclusão de mercados, político-legal de representação, e a possibilidade de adesão plena em estratos sociais dominantes" (Spivak, 2000, p. 20, tradução nossa).

Os subalternos são, nas proposições de Spivak, todos aqueles que não participam, ou que participam de modo muito limitado. São sujeitos mudos pelo imperialismo cultural e a violência epistemológica, sendo a mulher subalterna, nesse sentido, duplamente colocada na sombra. Desse modo, ao dizer que esse subalterno não pode falar, Spivak (2010) não afirma necessariamente que não haja "clamor" ou protesto, mas que não chega a se estabelecer uma relação dialógica, ou melhor, não há um trânsito da voz entre falante e ouvinte, não há enunciação.

 

Pode a subalterna falar?

As inquietantes reflexões de Gayatri Spivak sobre a (im)possibilidade de fala dos/das subalternos/as formam uma trama de sentidos que, em muito, tem a ver com o objeto de reflexão deste ensaio: mulheres que produzem na ciência. Por esse motivo, nos propomos, aqui, a apresentar as principais ideias apresentadas por ela no texto "Can the subaltern speak?", publicado em 1988 e recentemente traduzido para o português por Sandra Almeida, Marcos Feitosa e André Feitosa (2010).

Com um título sugestivo e provocador, a intelectual indiana Gayatri Chakravorty Spivak (2010) trata, a partir da "paisagem" da colonização da Índia pela Inglaterra e da história de uma viúva indiana, da possibilidade de atuação de uma intelectualidade periférica e/ou da possibilidade de fala do subalterno.

Gayatri constrói toda uma reflexão sobre subalternidade, o que torna imprescindível a localização de quem ela entende como subalterno em sua teoria. Como dito em um momento anterior, muitas elucubrações versam em torno do conceito de subalterno. Aproximações e distanciamentos conceituais marcam a constituição de sua teoria sobre o subalterno e, por esse motivo, cabe aqui abordar como o termo "subalterno" se apresenta para Spivak. Para a autora, o subalterno não é visto como um sinônimo direto de oprimido, "mas como representação dos que não conseguem lugar em um contexto globalizante, capitalista, totalitário e excludente" (Figueiredo, 2010, p. 85). Assim, o subalterno é aquele que tem a fala impedida de reconhecimento.

Spivak (2010) traz para o centro da discussão a produção intelectual não hegemônica oriunda do interior da academia. Reconhece "a quase" inexistência da possibilidade de um potencial contra-hegemônico e mostra-se disposta, ainda que sem uma saída explícita, a aventurar-se na busca de uma "outra ciência", uma ciência contra-hegemônica (Verçoza, 2012).

Em um texto complexo e denso, Gayatri reflete sobre a supremacia masculina na produção científica colonial. Discorre sobre o silêncio das mulheres, enfatizando que a "mudez" feminina - termo usado pela autora - configura-se na necessidade do reposicionamento das mulheres no espaço social, dizendo da importância do exercício de fala. Spivak (2010) conclui que o subalterno não pode falar e que a posição da mulher subalterna é ainda mais grave.

Uma vez posta à margem da sociedade no contexto da produção colonial em que o homem é o dominante, a mulher subalterna não tem história e não pode falar, sendo colocada às sombras. A pesquisadora afirma que tal reflexão sobre a mulher não pode ser reduzida a uma mera questão idealista, uma vez que ignorar o debate acerca da mulher subalterna seria um gesto apolítico que, ao longo da história, tem perpetuado o radicalismo masculino (Figueiredo, 2010, p. 87).

O que está em jogo nas proposições de Spivak é o que é tido como verdade, e quem teve que perder a voz para que as verdades se tornassem a verdade. A autora propõe uma releitura sobre o que é tido como verdade ao transportar esse debate para outro lugar: a capacidade do subalterno de representar-se (Figueiredo, 2009).

Spivak (2010) se lança em busca da pergunta tema de seu texto, por diversas vezes, em um movimento de crítica a teorias e teóricos que vão falar pelo subalterno e com o subalterno, mas nunca irão constituir algum espaço para que o subalterno fale. Afirma que produções desse tipo estão pactuando um modelo hegemônico de ciência e com um projeto imperialista de sociedade.

Ancorada em uma forte influência de Derrida, "Spivak aponta a "violência epistêmica" a que a ciência, aquela mesma que Foucault critica, submeteu os saberes gestados fora de seus cânones e, assim, os sujeitos produtores desses saberes" (Pelúcio, 2012, p. 402). Violência cuja tática de neutralização do outro, seja ele/ela subalterno/subalterna ou colonizado/colonizada, consiste em invisibilizá-lo/a, expropriando-o/a de qualquer possibilidade de representação, silenciando-a/o. Foucault incorreu em erro similar em suas teorizações sobre os saberes sujeitados, reproduzindo a mesma lógica imperialista e eurocentrada, tão questionada e contestada pelos estudiosos pós-coloniais.

Pelúcio (2012, p. 402) aponta que Spivak dá uma resposta pouco promissora à pergunta título de sua obra: "Pode o subalterno falar?"

A autora mostra que é ilusória a referência a um sujeito subalterno que pudesse falar. O que ela constata, valendo-se do exemplo da Índia, é uma heterogeneidade de subalternos, os quais não são possuidores de uma consciência autêntica pré- ou pós-colonial, trata-se de "subjetividades precárias" construídas no marco da "violência epistêmica" colonial.

Com essa afirmação, para Pelúcio (2012), o que Spivak nomeia é que alguns sujeitos que têm sua faculdade de enunciação, sobre si e sobre o mundo, roubada são sujeitos desqualificados a priori do lugar de fala.

Ao refletir sobre as mulheres como um sujeito subalterno, Spivak (2010) explicita a marginalidade destas, como na cena científica colonial que, segundo ela e em consonância com muitas teóricas feministas, é dominada pelo masculino. A autora não aponta caminhos para que as mulheres se libertem do estigma da subordinação, sendo intensamente crítica, sob justificativa da impossibilidade de mudança social e a incoerência entre seu lugar social e sua produção intelectual.

Spivak (2010, p. 126) conclui seu texto afirmando: "O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher como um item respeitoso nas listas de prioridade global. A representação não definhou. A mulher intelectual como intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio."

Sandra Almeida (2010), ao discorrer sobre a conclusão a que Spivak (2010) chega em sua obra, considera que a autora vai além de uma resposta rápida e objetiva. Para ela, sua conclusão "refere-se ao fato de a fala do subalterno e do colonizado ser sempre intermediada pela voz de outrem, que se coloca em posição de reivindicar algo em nome de um(a) outro(a)" (Almeida, 2010, p. 26).

Poderíamos dizer que, a despeito das proposições de Spivak, alguns subalternos têm falado em uma relação, ainda que complexa, de fala e escuta, na qual as mulheres estão cada vez mais presentes no cenário científico e têm problematizado a ausência de outras mulheres ou a inclusão secundarizada das já presentes. Mas Gayatri Spivak certamente argumentaria que estas deixaram o lugar subalterno quando angariaram lugar na produção teórica e nos espaços institucionais de poder intelectual. Parafraseando a autora, o "subalterno é sempre aquele que não pode falar, pois, se o fizer, já não o é" (Spivak, 2010, p. 12). Então, propomo-nos a deixar essa pergunta "em aberto", ou melhor, a transformar essa pergunta em um dos porquês da análise aqui proposta. As teóricas por nós investigadas falam? Elas se consideram subalternas? Elas falam a partir do lugar de subalternidade? São ouvidas? Como fazem isso a partir da produção acadêmica/científica?

O subalterno carece, fundamentalmente, de alguém que o represente por sua condição de silenciado (Figueiredo, 2010). Para Spivak, há uma relação direta entre falar por e representar, sendo que ambos podem cair no vazio da invisibilidade do subalterno. Ambos exigem um falante e um ouvinte, o que caracterizaria um diálogo. Para a autora, esse espaço dialógico não existe para o subalterno, que termina invariavelmente no silêncio, ou melhor, na surdez do outro. Ao mesmo tempo, enfatiza a necessidade de criar, por parte dos intelectuais, formas de deixar os subalternos se fazerem ouvir.

Para usar uma conhecida metáfora de Gayatri Spivak, o que começou como um portrait - representação, no sentido de "falar" - tornou-se proxy - representação, no sentido de falar por - e que apareceu como que algo interrompia ou ultrapassava a lógica capital do estado moderno - a proliferação de heterogeneidade cultural para além dos limites da "cidade letrada" e pedagógico hegemônico de cultura tornou-se novamente um problema da razão de Estado e com a colaboração da instituição acadêmica com a razão. (Beverveley, 2003, p. 337, tradução nossa)6

Ao discutir as implicações da representação do sujeito, Spivak (2010) dialoga com Deleuze e Foucault, tecendo duras críticas à noção de intelectualidade apresentada por eles. Assume uma postura em que chama para si, e para os demais produtores do conhecimento, o dever de combater a subalternidade. Para ela, isso se torna efetivo quando se deixa de falar pelo e se cria mecanismos para que o subalterno se articule e seja ouvido (Verçoza, 2012).

Toda essa discussão fez com que o "representar a voz do outro" se tornasse uma questão. Não há aqui uma afirmativa de que as teóricas mulheres investigadas não se autorrepresentam, o que há é uma inquietação: trazê-las como sujeito de análise nos coloca no lugar de representantes? Ousamos dizer que lançamos luz para suas produções? Mas, nós também não seriamos uma das silenciadas nas proposições de Spivak? Ela mesma não seria uma silenciada? Hooks e Anzaldúa não seriam silenciadas? Nós, ela e as teóricas com as quais nos propusemos estudar deixam de ser subalternas? Suas experiências de subalternidade influenciam na produção destas? Podemos falar pelas subalternas? Apreender suas falas? Ou ainda, elas são subalternas? Elas falam pelos/as subalternos/as? As proposições de Spivak, em "Pode o subalterno falar?", vão dizer que não, elas não são subalternas.

As reflexões realizadas aqui explicitam o começo de um diálogo com a teórica Spivak, principalmente, a partir do texto "Pode o Subalterno Falar?". O pensamento de Spivak tem trazido perguntas instigantes quanto à representatividade das subalternas e à possibilidade de fala destas. Longe de encontrar respostas fáceis, Gayatri traz apontamentos, tidos por uns como pessimistas, intrigantes, sobre o lugar "dos outros" nas esferas sociais.

Se a condição de subalternidade é o silêncio, silêncio esse que exclui a possibilidade de autorrepresentação dos sujeitos e exige que estes sejam representados por outrem, a afirmativa nos conduz novamente para a instigante pergunta da autora: Pode o subalterno angariar o lugar de fala? (Figueiredo, 2010). Alguns diriam que temos uma leitura muito otimista da resposta dada por Spivak, mas, se associada ao grupo teórico em que ela compõe a fala, a nossa leitura é menos romantizada: a fala só é possível a partir do momento em que propormos, tal como ela faz, a produção - cientifica, política, social e econômica - de uma história em que a narrativa da "verdade dos subalternos" esteja em foco.

O certo é que a possível maneira de colocar o subalterno para falar não é "doando-lhe voz", ou falando por ele, mas permitir espaço para que ele se expresse de forma espontânea.

 

E quando elas falam?: enunciações de um campo científico injusto

Como bem enuncia Spivak (2010), o sujeito, em todas as esferas públicas, sempre foi o falante, o que não está emudecido. Tantas outras autoras vão dizer que o falante foi, historicamente, o homem. Na ciência, isso não é diferente. Silenciadas, muitas mulheres precisaram construir outras racionalidades para ousarem ocupar esses espaços designados aos falantes ou falar a língua do outro. Destas, como dito anteriormente, as mulheres negras e pobres preenchem, segundo Spivak (2010), todos os requisitos para serem consideradas em uma condição subalterna. Outras características, certamente, poderiam ser acrescidas à negritude e à pobreza a fim de complexificarem o olhar sobre os produtores da e na ciência: lésbicas, latino-americanas, orientais etc.

Alguns/mas vão dizer que parece antiquado falar em subalternidade feminina na ciência, haja vista o número de mulheres que tem ocupado espaços em universidades e nas prateleiras de grandes livrarias. Mas o que estamos tratando é da constatação das hierarquias científicas que têm originado a inferiorização de uns em detrimento da valorização de outros. Essa constatação guiou o pensamento feminista a duras críticas ao modelo científico hegemônico. As feministas questionam uma racionalidade machista, a qual estava submetida à ciência e denunciam o ethos masculinista na ciência. Assim, as críticas feministas versam em torno da naturalização da ciência como um lugar de homens, da suposta neutralidade científica, da presença da objetividade e universalidade atribuída ao saber científico.

É nesse complexo universo que propomos pensar algumas produções de bell hooks e Gloria Anzaldúa. Bell hooks (Gloria Watkins) é uma mulher negra nascida em 1952, professora de inglês no City College, em Nova Iorque. Graduada pela Universidade de Stanford, em 1973, mestrado em 1976 na Universidade de Wisconsin e Ph.D., em 1983, pela Universidade da Califórnia, hooks é uma pensadora feminista que dedica seus escritos a uma ampla gama de temas, sendo eles: gênero, raça, ensino e a importância da mídia para a cultura contemporânea. Para tanto, sempre trabalhou essas temáticas de forma articulada. Ela acredita firmemente que esses temas não podem ser tratados separadamente, mas devem ser entendidos a partir de sua interligação. Gloria Evangelina Anzaldúa, por sua vez, foi escritora e teórica cultural, falecida no ano de 2003. Versátil, publicou poesia, ensaios teóricos, contos, narrativas autobiográficas, entrevistas, livros infantis e antologias de vários gêneros. Foi uma das primeiras autoras americanas - de origem mexicana - assumidamente lésbica. Teve considerável relevância na redefinição de identidades chicanas, lésbicas e queer. Como editora e coeditora de três antologias multiculturais, ela desempenhou um papel vital no desenvolvimento de um movimento feminista de inclusão.

As duas teóricas, bell hooks e Gloria Anzaldúa, apresentam perfis e lugares institucionais distintos, ocupam ou ocuparam lugares hierárquicos importantes nas universidades e em outros espaços científicos. Por isso, trabalhamos com a ideia de que são intelectuais. Afinal, conforme afirma hooks (1995, p. 468), em referência a Terry Eagleton, intelectuais são pensadoras criativas: "não é apenas quem lida com ideias". Nesses termos, o/a "intelectual é alguém que lida com ideias transgredindo fronteiras discursivas, porque ele ou ela veem a necessidade de fazê-lo. Além disso, intelectual é alguém que lida com ideias em sua vital relação com uma cultura política mais ampla" (hooks, 1995, p. 468).

Vale ressaltar que, de maneira nenhuma, o presente ensaio tenta representar o subalterno, pois, se o fizesse, estaria cometendo o mesmo erro que muitos estudiosos das desigualdades fizeram. Ao anunciar, logo no título, que as mulheres pesquisadoras que propusemos analisar são falantes, bastava, então, pensar se suas falas ecoavam, se estas se tornavam inteligíveis e ouvidas. Sendo assim, este texto não deseja dar voz às subalternas falando por elas, mas permitir espaço para que tais pessoas se expressem de forma espontânea.

Alzandúa (2000) apresenta duas dimensões dos sujeitos, entre muitas: orientação sexual e raça/cor. Estas são apresentadas como categorias que determinam a possibilidade ou não de inteligibilidade das suas proposições e afirma que "nosso discurso também não é ouvido. Nós falamos em línguas, como os proscritos e os loucos" (Anzaldúa, 2000, p. 225). Destarte, nós, mulheres, falamos em línguas, línguas essas que foram tornadas como ininteligíveis. Isso ocorre não porque somos incompreensíveis, mas porque somos tratadas como ausências.

Hooks e Anzaldúa se posicionam do lado de pesquisadoras, cientistas e intelectuais contra-hegemônicas que denunciam suas realidades e não as que falam a língua do "colonizador", do outro.

Para superarem essas barreiras, as negras que conseguem continuar dedicadas individualmente a uma vocação intelectual, sentindo-se igualmente ligadas à comunidade, tem de mapear essas jornadas, nomeando o processo. (hooks, 1995, p. 471)

Não podemos deixar que nos rotulem. Devemos priorizar nossa própria escrita e a das mulheres do terceiro mundo. (Anzaldúa, 2000, p. 231)

Evidencia-se, aqui, a compreensão da ciência como resultante de uma produção de conhecimento linear e cumulativa, legitimadora de verdades universais que alcançaram o período histórico contemporâneo. Distintas correntes do pensamento contemporâneo, no entanto, realizaram apontamentos críticos sobre a universalidade, a neutralidade e a objetividade científica. Os estudos pós-coloniais, a teoria sociológica da ciência, a história da ciência, os estudos culturais, a teoria crítica, a teoria pós-moderna, entre outros, são exemplos desses estudos (Menafra, 2007).

O questionamento dos pilares da definição dominante de ciência retoma, assim, a importância do pensamento científico como um campo de disputas. A ciência é entendida como produto do meio social e, assim sendo, envolve relações de poder e interesse, o que explicita a não neutralidade e o combate à ideia simplista de que a ciência é um espaço para todos e todas. Essa afirmação tem como pano de fundo o reconhecimento de que o campo científico não é um espaço de "concorrência perfeita", mas, sim, um lócus em que as desigualdades também se fazem presentes. Dessa forma, o campo científico é abordado neste estudo como o resultado de disputas entre agentes e posições por um capital simbólico, por legitimidade e reconhecimento como produtores de verdades. Por isso, Bourdieu (1983) contesta a ideia de que o campo científico seja um campo neutro; ao contrário, ele é revestido de disputas constantes por legitimidade de falas e ações a partir da ciência. Nos termos bourdieunianos, portanto, a ciência se configura, também, como um espaço de disputa por um capital que resulta em autoridade intelectual e científica.

Ao se referenciar a um "campo de batalhas" para substancializar o "campo científico", fica explícito que o espaço de produção da ciência é também um espaço de luta concorrencial, onde o que está em jogo é o monopólio da autoridade, ou seja, a exclusividade sobre a capacidade técnica e o domínio do poder social. Dessa maneira, o cientista passa a ser dono de certo capital social. Dito de outro modo, a autoridade científica se converte em uma espécie bastante particular de capital social, o qual implica em reconhecimento e, assim, em ter um nome que o diferencie do homem comum.

Portanto, o suposto "universo puro" da "mais pura ciência" é, na verdade, um campo social como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, de lutas e estratégias, de interesses e lucros, em que todas essas invariantes revestem formas específicas (Bourdieu, 1983, p. 122). Nos termos propostos por Bourdieu (1983), os conflitos explicitados por hooks (1995) e Anzaldúa (2000) acerca do campo científico envolvem uma dimensão dupla: a política e a epistemológica. Anzaldúa (2000) e hooks (1995) se encontram no lado "subversivo" do campo de batalhas e desenvolvem suas estratégias científicas de modo a romper com uma posição de conservação do modelo dominante, denunciando-o como sexista, racista e lesbofóbico. As duas autoras em foco, em seus textos analisados, deixam ver que o "modelo de ciência hegemônico" faz calar as mulheres. Por isso, como intelectuais, elas falam de um outro lugar, do lugar da ciência contra-hegemônica.

Na escolha da denúncia, hooks explicita que a ciência está ancorada em um sistema patriarcal, de supremacia masculina, no qual a "vida da mente" (hooks, 1995, p. 268) não cabe às mulheres. Nesses termos, o espaço científico é apresentado como um lugar interdito (hooks, 1995), uma esfera do público negada às mulheres. Hooks toca no vespeiro da legitimidade e (des)legitimidade sem encontrar uma resposta, porém traz outros sujeitos para a discussão de legitimidade.

Para acadêmicos e/ou intelectuais negras, o estilo de escrever pode evocar questões de aliança política. Usar um estilo que possa nos fazer conquistar aceitação acadêmica e reconhecimento pode depois alienar-nos de um público leitor negro mais amplo. Mais uma vez enfrentamos, de maneira diferente, problemas de isolamento e envolvimento com a comunidade. A opção por escrever num estilo tradicional acadêmico pode levar ao isolamento. E mesmo que escrevamos pelas linhas do estilo acadêmico aceito, não há nenhuma garantia de que vão respeitar nosso trabalho. (hooks, 1995, p. 242)

Muitas das mulheres evocadas por hooks (1995) em suas teorizações tiveram o campo científico extirpado do seu campo de possibilidade. Hooks afirma que, para algumas mulheres, a esfera científica é ainda mais distante, já que a intelectualidade é racializada e generificada. No mesmo caminho, encontramos as reflexões de Anzaldúa (2000) que apontam como o escrever é difícil, especialmente para mulheres de cor, lésbicas, terceiro-mundistas. Mulheres que em toda a existência foram colocadas em outro lugar que não o da escrita e, consequentemente, o da ciência, da literatura, da história. Nas palavras de Anzaldúa (2000, p. 229), a mulher de cor iniciante no processo de escrita "é invisível no mundo dominante dos homens brancos e no mundo feminista das mulheres brancas, apesar de que, neste último, isto esteja gradualmente mudando. A lésbica de cor não é somente invisível, ela não existe".

Ao discorrer sobre uma pergunta que tradicionalmente faz aos seus alunos e alunas sobre quais intelectuais negros vêm à cabeça de cada um e depois da a constatação de que os poucos que são resgatados da memória de seus alunos/as são homens e que as mulheres ficam sempre no lado mais distante da lembrança, hooks afirma que "a subordinação sexista na vida intelectual negra continua a obscurecer e desvalorizar a obra das intelectuais negras. Por isso é tão difícil aos alunos nos citarem" (hooks, 1995, p. 467).

Hooks e Anzaldúa evidenciam seus lugares de fala e como as relações sociais são estabelecidas no espaço científico a partir desses lugares.

É improvável que tenhamos amigos nos postos da alta literatura. A mulher de cor iniciante é invisível no mundo dominante dos homens brancos e no mundo feminista das mulheres brancas, apesar de que, neste último, isto esteja gradualmente mudando. A lésbica de cor não é somente invisível, ela não existe. Nosso discurso também não é ouvido. Nós falamos em línguas, como os proscritos e os loucos. (Anzaldúa, 2000, p. 229)

As intelectuais negras trabalhando em faculdades e universidades enfrentam um mundo que os de fora poderiam imaginar que acolheria nossa presença, mas que na maioria das vezes encara nossa intelectualidade como "suspeita". (hooks, 1995, p. 468)

Ao romper com a neutralidade na produção científica, as intelectuais explicitam um modelo contra-hegemônico nessa produção. São, ao mesmo tempo, sujeitos da enunciação e sujeitos nas enunciações. O seu lugar epistêmico étnico-racial/sexual/de gênero é explicitado e sua produção influi e é influída por eles (Grosfoguel, 2008).

Sem jamais pensar no trabalho intelectual como de algum modo divorciado da política do cotidiano, optei conscientemente por tornar-me uma intelectual, pois era esse trabalho que me permitia entender minha realidade e o mundo em volta, encarar e compreender o concreto. Essa experiência forneceu a base de minha compreensão de que a vida intitula não precisava levar-nos a separa-nos da comunidade, mais antes pode capacitar-nos a participar mais plenamente da vida da família e da comunidade. Confirmo desde o início o que os líderes negros do século XIX bem sabiam - o trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação, fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas, que passariam do objeto a sujeito, que descolonizariam e libertariam suas mentes. (hooks, 1995, p. 466)

As intelectuais falam a partir de um "nós", contrariando a universalidade e neutralidade impostas na ciência hegemônica. Ao desvelar o lugar epistêmico geopolítico e "corpo-político" das estruturas de poder/conhecimento imperialista, tornam-se sujeito da pronúncia, desfazem o mito da existência de um conhecimento universal verdadeiro (Grosfoguel, 2008, p. 46).

Certamente hooks e Anzaldúa não são alocadas no campo de estudos dos saberes subalternos. Contudo, é inegável que ambas cumprem um papel de abordar discussões e de trazer suas contribuições para:

As discussões sobre gênero, feminismos, estudos sobre mulheres e a teoria queer, esse conjunto de enunciações teóricas que reconhecemos como sendo saberes subalternos justamente pelo enfrentamento teórico, metodológico, ético e epistemológicos que fazem aos saberes hegemônicos. (Pelúcio, 2012, p. 403)

Nesse caminho, Anzaldúa (2000) discorre sobre o contar histórias, aproximando-se do que os teóricos dos estudos subalternos propõem, reescrevendo as histórias sobre si e sobre sua comunidade.

Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias. (Anzaldúa, 2000, p. 232)

As autoras buscam novas/outras estratégias epistemológicas de estabelecerem um diálogo crítico com distintas correntes do pensamento afim de "desvelar as redes de poder que ocultam a aparente objetividade do conhecimento científico" (Pelúcio, 2012, p. 404).

Assim como afirmou Preciado em entrevista a Carillo (2010, p. 62),

O acesso dos subalternos às tecnologias de produção de saber vai produzir uma ruptura epistemológica. Esta ruptura abre uma nova topografia do conhecimento, conforme havia indicado Donna Haraway, marcada pelo deslocamento da unidade de um saber hegemônico a uma multiplicidade de "saberes localizados". O saber localizado é para Haraway a prática da objetividade subalterna frente ao saber científico e universal, portador dos valores da colonização, da heterossexualidade e do patriarcado.

Elas falam ao mesmo tempo em que são silenciadas, já que a subalternidade é uma posição subjetiva relacional e não uma identidade. Quer dizer, a subalternidade não é um lugar estanque e, sim, produto e produtora de relações de poder. As mulheres investigadas transitam entre o audível e o silenciável. Precisam produzir uma nova inteligibilidade, outra norma científica, uma epistemologia distinta da ciência hegemônica dominante, uma nova hegemonia. Dito isso, esse outro desenho possibilita refletir que só conseguem fazer suas falas ecoarem quando falam a partir da língua do outro. Assim, transitam entre o silêncio e a fala; entre a ausência de uma produção audível e a denúncia de uma história invisível e uma ciência imperialista.

É certo que se Pierre Bourdieu (1985), em "Qué significa hablar? Economía de los intercâmbios linguísticos", olha para o silêncio do dominado como uma existência possível, uma resistência, Spivak (2010) afirma, em um exercício acadêmico teório-político, que cabe aos intelectuais denunciarem o silenciamento de uns, em um movimento de criar espaços de enunciação destes na vida pública. Para Spivak (2010), como afirma Carvalho (2001, p. 120), "a condição de subalternidade é a condição do silêncio".

 

Considerações finais

Mesmo que alguns/mas digam que parece antiquado falar em subalternidade feminina na ciência, haja vista o número de mulheres que tem, na atualidade, ocupado espaços como universidades, reitorias, prateleiras inteiras de grandes livrarias, o que estamos tratando, aqui, é a constatação das hierarquias científicas que têm originado a inferiorização de uns/umas em detrimento da valorização de outros/outras. Essa constatação, por sua vez, guiou o pensamento feminista a perpetrar duras críticas ao modelo científico hegemônico.

A teoria feminista, em sua multiplicidade, questiona uma racionalidade machista, a qual estava submetida à ciência a partir do seu ethos masculinista. Assim, as críticas feministas versam em torno da naturalização da ciência como um lugar de homens, da suposta neutralidade científica, da presença da objetividade e universalidade atribuída ao saber científico. Algumas perguntas insistem em desafiar práticas científicas contra-hegemônicas no campo feminista, são elas: como investigar/interagir com realidades invisibilizadas? Como enfrentar problemas que não são reconhecidos como problemas? Diante dos desafios trazidos/produzidos com as críticas feministas, seria reducionista pensar metodologias como simples procedimentos técnicos, o desafio é o de dialogar com sujeitos historicamente "sem voz", subalternos, e de traçar caminhos metodológicos que nos possibilitem ouvi-los, deixando suas vozes ecoarem.

Não há um consenso no que se refere à proposição de um outro método; o que há são lentes a partir das quais nós vamos escolher os métodos, analisar os dados e realizar os procedimentos. O problema a se enfrentar é pensar como permitiremos que as intelectuais pesquisadas falem em nosso trabalho. Quais procedimentos metodológicos permitirão uma interação teórica em que se fale com e não se fale por.

As análises apontam que as teóricas estudadas buscam novas estratégias epistemológicas e estabelecem um diálogo crítico com distintas correntes do pensamento, a fim de explicitarem as redes de poder que invisibilizam a aparente objetividade do conhecimento científico. Anzaldúa e hooks caminham em suas teorizações para a incorporação da dimensão da subjetividade aos pilares da produção científica, e o fazem a partir da introdução da ideia de experiência. A experiência como fator de análise rompe com a dicotomia sujeito-objeto, questiona a suposta neutralidade científica e clarifica a ideia de que sujeito e objeto estão diluídos um no outro. "Escreva sobre o que mais nos liga à vida, a sensação do corpo, a imagem vista, a expansão da psique em tranquilidade: momentos de alta intensidade, seus movimentos, sons, pensamentos. Mesmo se estivermos famintas, não somos pobres de experiências" (Anzaldúa, 2000, p. 235).

As experiências constroem escritores e intelectuais que enxergam um conhecimento imbricado na transformação da sociedade e que contestam as marcas do racismo e do sexismo na ciência. A ideia de experiência é imprescindível para a compreensão da ciência contra-hegemônica. Ela parece apresentar um ponto de partida para o desenvolvimento de novas práticas de pesquisa. Pensar uma ciência a partir da experiência permite a reinterpretação da história, de seus sujeitos.

Portanto, a experiência, nessa perspectiva, se atenta às múltiplas vozes e à diversidade de mulheres. As mulheres silenciadas e invisibilizadas, anunciadas por Spivak, Anzaldúa, hooks - e por tantas outras mulheres -, poderiam romper com o silêncio na ciência e enfatizar a inserção da experiência como uma diretriz para a produção de conhecimento. Anzaldúa e hooks pocisionam-se ao lado de um pensamento contextual e narrativo e, com isso, mostraram como o sujeito e suas experiências distintas interferem significativamente na produção do conhecimento e no seu lócus enunciativo (Furlin, 2012).

A pergunta de Spivak, "pode o subalterno falar?", manteve-se durante todo o processo de escrita. Buscamos possíveis respostas e, para isso, propusemos um diálogo com Anzaldúa e hooks. Mas, a pergunta se mantém em nossa mente: "podemos falar?" Estar com essa questão em mente nos deixa atentas aos processos de subalternização, mantendo-nos em constante movimento de resistência. Sem escapar de uma resposta a Spivak (2010) sobre a fala subalterna, acreditamos que Anzaldúa e hooks falam ao mesmo tempo em que são silenciadas. Compreendemos a subalternidade como uma posição subjetiva relacional e não uma identidade ou um lugar estanque e, sim, produzida e resultante de relações de poder. Por isso, as mulheres investigadas transitam entre o audível e o silenciável, elas transitam entre o silêncio e a fala, entre a ausência de uma produção audível e a denúncia de uma história invisível e uma ciência imperialista.

Dessa forma, esse outro desenho demonstra que as subalternas só conseguem fazer suas falas ecoarem quando falam a partir da língua do outro. As mulheres, que até agora haviam sido produzidas como objetos do saber, reclamam a produção de um saber local, um saber sobre si mesmas, um saber que questione o saber hegemônico. Assim, elas transitam entre o silêncio e a fala, entre a ausência de uma produção audível e a denúncia de uma história invisível em uma ciência imperialista.

 

Referências

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Recebido em: 15/10/2019
Aceito em: 20/5/2020

 

 

1 A pesquisa que resultou neste artigo contou com o auxílio da bolsa de pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
2 Originalmente publicado como parte do livro Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life, foi intitulado "Black women intellectuals". O capítulo foi originalmente publicado em Boston, pela editora South End Press e traduzido por Marcos Santarrita e publicado pela Revista Estudos Feministas no ano de 2000. Em "Intelectuais Negras", hooks discorre sobre o trabalho intelectual de negros e negras, assim como sobre o compromisso que essa profissão deve ter com a transformação social. Propondo uma explicação para o trabalho dos intelectuais negros, utiliza, mais uma vez, a própria trajetória intelectual para analisar dinâmicas de violência e de discriminação às quais mulheres negras estão submetidas nas universidades. Esses escritos põem em evidência a importância do diálogo entre a experiência negra vivida e o pensamento crítico, o que permitiu que o conhecimento fosse interpretado como uma possibilidade de transgressão das fronteiras discursivas ligadas à ideologia do colonialismo.
3 Em 1978, bell hooks lançou uma coleção de poemas, em forma de livro, intitulado "And There We Wept". Nessa ocasião, Gloria Jean Watkins adotou o pseudônimo "bell hooks", usado em referência ao sobrenome de sua avó. A grafia em letras minúsculas tem a função de indicar o conteúdo e a importância de seu texto, e não a biografia da autora (Williams, 2006).
4 O texto intitulado de "Speaking in tongues: a letter to Third World women writers", de autoria de Gloria Anzaldúa, compõe o livro This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color, organizado por Anzaldúa em parceria com Cherrié Moraga e publicado em 1981. Em "Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo", Anzaldúa escreve o capítulo no formato de uma carta dirigida às mulheres de cor. Discorre sobre os desafios da escrita e os "porquês" de mulheres negras e lésbicas terem mais dificuldade de utilizar a escrita como forma de expressão de si. Vale acrescentar ainda que o falar em línguas tudo tem a ver com a impossibilidade de escuta. O falar em línguas se torna uma marca de Anzaldúa que, sem cerimônia, transita por idiomas distintos e identidades durante sua escrita. O capítulo foi um dos poucos textos da autora traduzidos para o português, o que aconteceu em 2000.
5 O Campo científico é abordado neste estudo como o resultado de disputas entre agentes e posições por capital simbólico, legitimidade e reconhecimento, como produtores de verdades. Nos termos bourdieunianos, a posse de capital nesta proposta resulta em autoridade intelectual e científica. A ciência é entendida como produto do meio social, assim sendo, envolve relações de poder e interesse, o que explicita a neutralidade e combate à ideia de que a ciência é um espaço para todos e todas. Essa afirmação tem como pano de fundo o reconhecimento de que o campo científico não é um espaço de "concorrência perfeita", mas sim um lócus em que as desigualdades se fazem presentes.
6 No original: Para usar una conocida metáfora de Gayatri Spivak, lo que comenzó como portrait - representación en el sentido de "hablar de" se convirtió en proxy - representación en el sentido de hablar por - y lo que apareció como algo que interrumpía o excedía la lógica del capital y del estado moderno - la proliferación de heterogeneidades culturales más allá de los límites de la "ciudad letrada" y la cultura pedagógica hegemónica - de nuevo se volvía un problema de la razón del estado y de la colaboración de la institución académica con esa razón.

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