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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

Dos primeiros passos da Psicossociologia no Brasil: o Setor de Psicologia Social da UFMG

 

From the First Steps of Psychosociology in Brazil: the Social Psychology Sector of UFMG

 

Desde los primeros pasos de la Psicosociología en Brasil: el Sector de Psicología Social de la UFMG

 

 

Marcela Alves de AbreuI; Ana Maria Jacó VilelaII

IDoutorado em Saúde Coletiva (UFRJ). Mestrado em Psicologia Social (UERJ). Graduação em Psicologia (PUC-MG). Pesquisadora assistente no Laboratório de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais (LASER), do Departamento de Endemias Samuel Pessoa, da Escola Nacional de Saúde Pública (DENSP/ENSP/Fiocruz)
IIProfessora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), atuando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e no curso de graduação em Psicologia. Coordendora do Laboratório de História e Memória da Psicologia - Clio-Psyché (Uerj), dedicado à investigação sobre a história dos saberes psi no Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho é fruto de uma investigação histórica sobre as condições da emergência do grupo do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como o desenvolvimento de suas atividades. Tomamos como abordagem metodológica a análise documental, além de entrevistas, com foco no período 1964-1994, estando este marcado por uma grande repressão política que, todavia, não silenciou um debate crítico, o que levou o Setor a ter uma grande contribuição para a institucionalização e fortalecimento da Psicologia Social no Brasil. O intuito é examinar a proposição do Setor a partir das disciplinas ofertadas e entender a diversidade de seus temas, o intercâmbio de pesquisadores e alunos com outras universidades, além da internacionalização desse projeto, incluindo grupos franceses, enfatizando a sua contribuição para a disseminação e consolidação da Psicossociologia.

Palavras-chave: Setor de Psicologia Social. Psicossociologia. História da Psicologia. UFMG.


ABSTRACT

This paper is the result of a historical investigation about the conditions of the emergence of the Social Psychology Sector of the Universidade Federal de Minas Gerais as well as the development of its activities. We took as methodological approach, the documental analysis besides interviews and with focus on the period 1964-1994, which was marked by a great political repression, that nevertheless did not silence a critical debate, which led the Sector to have a great contribution to the institutionalization and strengthening of Social Psychology in Brazil. The purpose is to examine the proposal of the sector from the disciplines offered and to understand the diversity of its themes, the interchange of researchers and students with other universities and the internationalization of this project including French groups, emphasizing its contribution to the dissemination and consolidation of Psychosociology.

Keywords: Social Psychology Sector. Psychosociology. History of Psychology. UFMG.


RESUMEN

Este trabajo es el resultado de una investigación histórica sobre las condiciones del surgimiento del Sector de Psicología Social de la Universidade Federal de Minas Gerais, así como el desarrollo de sus actividades. Nuestro enfoque metodológico se basó en el análisis documental y las entrevistas, centrándose en el período 1964-1994, que estuvo marcado por una gran represión política, pero que no silenció el debate crítico, y que llevó al Sector a hacer una gran contribución a la institucionalización y fortalecimiento de la Psicología Social en Brasil. El propósito es examinar la propuesta del sector desde las disciplinas ofrecidas y comprender la diversidad de sus temas, el intercambio de investigadores y estudiantes con otras universidades y la internacionalización de este proyecto incluyendo grupos franceses, destacando su contribución a la difusión y consolidación de la Psicosociología.

Palabras clave: Sector de Psicología Social. Psicosociología. Historia de la Psicología. UFMG.


 

 

Introdução

As narrativas sobre a História da Psicologia Social no Brasil apontam múltiplas emergências e processos de institucionalização, o que não é de se estranhar em um campo com tantas interlocuções e possibilidades. Uma dessas é, sem dúvida, embasada no Setor de Psicologia Social, instância do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O propósito deste trabalho é relatar a contribuição fundamental do Setor para a constituição de uma abordagem da Psicologia Social no Brasil, mais especificamente de uma Psicossociologia. Para isso, vamos utilizar basicamente da pesquisa realizada por uma das autoras (Abreu, 2012), que contou com a contribuição imprescindível de Célio Garcia e de Marilia Novais da Mata Machado, por meio de entrevistas e de cessão de material de arquivo. Esses dois personagens, como veremos ao longo deste texto, serviram de ponto de apoio e trabalharam ativamente para a construção do Setor.

O curso de Psicologia da então Universidade de Minas Gerais foi criado em 1962, graças aos esforços de um grupo de pessoas capitaneadas por Pedro Parafita de Bessa (1923-2002). Bessa convidou professores de Psicologia em outros cursos da UFMG, bem como profissionais que atuavam no Departamento de Orientação e Treinamento do Banco da Lavoura (Goulart, 2011, p. 143), para compor o corpo docente do novo curso.

A escolha desses últimos profissionais merece uma contextualização e a referência a outro importante nome da História da Psicologia no Brasil que atuou em Minas: Pierre Weil.1 Embora conhecido principalmente por seu trabalho no Departamento de Orientação e Treinamento do Banco da Lavoura, que introduziu uma Psicologia nas organizações de orientação não psicotécnica, Weil teve inúmeras outras contribuições, dentre as quais também se destaca sua participação na Sociedade Mineira de Psicologia, ao sugerir uma pesquisa sobre a atuação de psicólogos em Minas Gerais. Tal pesquisa foi conduzida por Daniel Antipoff e trouxe como resultado a descrição das 11 instituições que já contavam com serviços de psicólogos, totalizando 69 profissionais (Antipoff, 1962, p. 51), o que é um número muito alto, considerando-se que a profissão e os cursos foram regulamentados naquele ano. É importante ressaltar que, entre essas instituições e profissionais, a presença do Departamento chefiado por Pierre Weil era grande. Estava, portanto, mais que no momento de se criar o curso de Psicologia, pois já existiam tanto uma associação quanto um grupo de profissionais atuantes e diversas publicações no campo.

Um dos profissionais que atuava no Banco da Lavoura era Célio Garcia,2 que vinha de uma experiência de estudos na França. Quando se propôs a retornar ao país, Pierre Weil o convidou para fixar residência em Belo Horizonte e trabalhar na equipe que coordenava. Ali criaram o Desenvolvimento em Relações Humanas (DRH), "amálgama de contribuições norte-americanas, como grupo T, e europeias, como grupo de formação e socioanálise de van Bockstaele" (Machado, 2001, p. 163).

Weil e Garcia tornaram-se, então, professores do recém-criado curso de Psicologia da então Universidade de Minas Gerais (UMG), atual UFMG, caracterizando uma forte influência francesa no curso desde seus primórdios. Weil se destacou principalmente pelo ensino e formação em psicodrama. Garcia, convidado para ministrar disciplinas de Psicologia Social, criou, a partir do grande interesse que desperta nos alunos, o que se torna o "Setor de Psicologia Social".

São inúmeros os trabalhos do Setor no âmbito do ensino, do intercâmbio com pesquisadores, na realização de pesquisas e intervenções em diferentes instituições. Como diz Machado, 1986a, p. 36),

nossos clientes eram empresas, hospitais, congregações religiosas, escolas, bancos, penitenciárias e organizações governamentais de saúde. Tal como alquimistas, trabalho e estudo, teoria e prática eram reunidos. Tínhamos uma pequena renda advinda dos trabalhos: parte do que um recebia ficava em conta conjunta.

Neste texto, vamos nos dedicar às suas atividades de ensino, porque é por meio dele que os integrantes do Setor divulgavam às novas gerações de psicólogos aquela perspectiva que estavam implantando. Nesse sentido, consideramos que os intercâmbios com a França, pelo qual foram enviados alunos, e alguns professores e pesquisadores foram recebidos, que fazem parte da constituição e divulgação desta abordagem. Vamos nos referir ao período que vai de 1964, início do Setor, logo após a criação do curso de Psicologia da Instituição, até o ano de 1992, data em que foi aprovado o Mestrado em Psicologia na UFMG. Esse recorte se deve ao fato de que, a partir dessa data, lideranças do grupo se transferiram para outros cursos ou até mesmo outras universidades.

Uma das primeiras observações a serem feitas com relação à perspectiva teórica apresentada pelo Setor é que ela não relegava, ao menos inicialmente, nenhuma abordagem. Assim, embora às vezes se apresente o Setor como contrário aos trabalhos de Aroldo Rodrigues (nascido em 1933), o grande expoente brasileiro da Psicologia Social de orientação cognitivo-experimental (Lima, 2008), deve-se notar que tanto houve contato direto com Rodrigues - com quem Marília Novais da Mata Machado realizou seu mestrado - como também nos trabalhos do grupo há referência à Psicologia Social norte-americana. Vale lembrar que o próprio Desenvolvimento em Relações Humanas, com o qual os membros do Setor realizavam seus primeiros diagnósticos institucionais, vinha do trabalho de Kurt Lewin (1890-1947) e seus discípulos.

Observa-se nesse período uma tentativa de articulação entre psicólogos sociais da América Latina, por meio de incentivo de León Festinger (1919-1989) e Serge Moscovici (1928-2014), interessados em conhecer e divulgar os trabalhos psicossociais em todo o mundo (Moscovici & Marková, 2006). Em 1968, Festinger visitou vários países da América Latina, com o objetivo de dialogar com profissionais da Psicologia Social, facilitando o contato e interlocução de vários psicólogos sociais dessas localidades, o que resultou na criação do Comitê Latino-Americano de Psicologia Social (Colapso) durante o "XII Congresso da Sociedade Interamericana de Psicologia Social", em Montevidéu, em 1969. Os integrantes do comitê se reuniram novamente em janeiro de 1970, em Valparaíso, no Chile. Entretanto, "turbulências políticas e outras dificuldades (falta de recursos, largas distâncias, comunicação difícil etc.) ensejaram o desaparecimento desta primeira tentativa de organização" (Rodrigues, 1989, p. 127). Célio Garcia foi um dos representantes do Brasil que participou dos encontros, o que propiciou uma interlocução com outros países da América Latina, trocas de experiências e conhecimento das referências teóricas da Psicologia Social que eram utilizadas pelo grupo.

Enquanto isso, no Brasil, se iniciava a discussão que é identificada nas publicações da época como uma crise - teórica, metodológica - vivida pela Psicologia Social, o que ficou conhecido como "crise de relevância" da Psicologia Social, levando a um repensar sobre os fundamentos epistemológicos da Psicologia Cognitivo-Experimental. Garcia (s.d., p. 1), refere em um texto, que produziu para os estudos do grupo do Setor, que "a construção do objeto da Psicologia Social permanece paralisada pelo que assegura o sucesso na vulgarização dessa disciplina, isto é, uma metodologia de inquérito que, até uma época recente, dissimulava as pressuposições sobre as quais se fundava".

Assim, não se pode afirmar que a Psicologia Social proposta pelo Setor inicialmente era "contra" ou "a favor" de determinadas teorias e personagens, pois enquanto procurava conhecer vertentes e se definir, o Setor pretendia criar um espaço de diálogo e de conhecimento das teorias de Psicologia Social da época - mas isso a partir de uma perspectiva da Psicologia Social reflexiva e propositiva com relação aos problemas sociais brasileiros. Nesse sentido, o Setor foi um espaço de integração entre áreas como Sociologia, Filosofia, História, Saúde, promovendo conhecimento, críticas e possibilidades para articulação de novas formas de pensar a atuação do psicólogo social.

 

O ensino de Psicologia Social

Como dito, Célio Garcia fora contratado para ministrar Psicologia Social e formular a grade de disciplinas dessa temática para o curso. As aulas eram divididas em conteúdo teórico e prático, este envolvendo inclusive reprodução de experimentos de laboratório. O conteúdo programático definido para o ano de 1966 está apresentado no Quadro 1.

Este conteúdo não era uma especificidade do Setor. Parece que, até os anos de 1970 e o imenso reconhecimento que recebe Aroldo Rodrigues, o ensino de Psicologia Social tinha um caráter mais interdisciplinar, mais próximo às Ciências Sociais. Vemos isto em um texto de memórias de Celso Sá, sobre o que estudava em Psicologia Social no Rio de Janeiro, com o prof. Eliezer Schneider:

lembro-me nitidamente de ter sido em função de cursar a disciplina que eu li o "Totem e tabu" de Freud, os trabalhos no campo da "cultura e personalidade", como os de Mead, Benedict e Kardiner, contribuições de ambos os lados da discussão "nature vs nurture", incursões no domínio da "psicologia coletiva", como Blondel (1966), e os ensaios sobre o "caráter nacional brasileiro" confrontados por Moreira Leite (1969). (Sá, 2007, p. 8)

No Setor, o programa de Psicologia Social para 1967acrescentou novas temáticas, como "experiências de treinamento mental, dissonância cognitiva, Psicologia e Desenvolvimento, Intervenção psico-sociológica, comunidade terapêutica" (Setor, 1967). Houve também a utilização de textos de autoria de Célio Garcia, referentes a temas estudados na disciplina, como "O problema das comunicações em Política"; "Comunicação - Experiência de Bales"; "O sistema de Bales"; "Roteiro técnico para uma intervenção psico-sociológica"; "Intervenção psico-sociológica", que seriam publicados na edição dos 'debates sociais'. (Setor, 1967). Vale destacar que, neste período, era pequena a produção editorial brasileira na área de psicologia, então estes textos funcionavam como fundamentação teórica básica para os alunos. Além disto, Machado (2011) relembra que no Setor era muito comum tradução de textos para leitura dos os próprios participantes do grupo e para uso em sala de aula, o que permitia uma atualização do grupo com relação às novas publicações que eram divulgadas. (ver, a respeito, Jacó-Vilela, 2012).

Em 1967, o Setor já contava com a participação de bolsistas, que desenvolviam atividades de ensino, como confecção do material didático, acompanhamento de alunos, reuniões semanais de planejamento da disciplina, até participação nas pesquisas que eram desenvolvidas pelo Setor.

Ao analisar o conteúdo programático que era definido anualmente, observa-se uma frequente atualização, com inclusão de novas referências teóricas e temáticas. No Programa de Psicologia Social de 1969, verifica-se um maior enfoque em questões referentes à psicologia de grupo e seus fenômenos, destacando-se os estudos sobre as bases psicológicas do rumor, a partir dos trabalhos de Gordon Allport e Leo Postman, e sobre cultura de massa e lazer. (Setor, 1969).

Já durante o período de 1969 a 1970 o Setor promoveu seminário sobre "Fundamentação Matemática em Ciências Sociais", coordenado por professores do Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Minas Gerais. O objetivo do seminário era aprimorar os estudos sobre estatística, com a finalidade de auxiliar e instrumentalizar a equipe em suas pesquisas, principalmente aos estudos vinculados à análise de testes.

Em 1971, houve uma ampliação da oferta da disciplina de Psicologia Social na Universidade, também para os cursos de Ciências Sociais e nas Faculdades de Educação, de Ciências Econômicas, de Comunicação, bem como nas Escolas de Odontologia e de Enfermagem. Neste momento o Setor contava com o quadro de nove professores para lecionarem as disciplinas teóricas e práticas.

Quando, em 1972, a partir da legislação da Reforma Universitária, foi organizado o Ciclo Básico na Universidade, estabeleceu-se um conjunto de disciplinas que seria comum para diversos cursos. Assim, o Setor compôs a programação da disciplina Psicologia Social e realizou o planejamento das turmas, estimando que, para o primeiro semestre seriam inscritos um total de 739 alunos, e que para isso seria necessário ofertar 19 turmas distribuídas para 10 professores (Setor, 1972). Esta integração possibilitou que o conhecimento da Psicologia Social fosse disseminado para outros cursos, promovendo a interlocução com outros campos de saber, ampliando também suas parcerias acadêmicas com profissionais de outras áreas da Universidade.

Na ementa de 1972 são inseridas as temáticas referentes ao estudo de atitudes, de grupos, conflito intergrupal, rumor, cognição, sendo o "tema de debate, enriquecido pelas obras de Edgar Morin". (Setor, 1972, p. 3-4). O item relativo à cognição visava uma reflexão teórica sobre a Psicologia Social, suas limitações e suas principais contribuições ao pesquisador do campo. (Setor, 1972, p. 5).

Já a ementa da disciplina de Psicologia Social III, específica para o curso de Psicologia, apresentava as seguintes temáticas: teorias e métodos em Psicologia Social, orientações gestálticas, orientação teórica de campo, orientação cognitiva, teorias de reforço, modelos matemáticos do comportamento social e outras abordagens teóricas de Psicologia Social. (Amaral, 1972). Evidencia-se no programa a inclusão das abordagens da Psicologia cognitiva experimental, ao mesmo tempo que a Psicologia da Gestalt. Vale ressaltar que este foi o ano de introdução da Gestalt-terapia no Brasil, a partir publicação do artigo sobre "Psicoterapia Guestáltica", no Boletim de Psicologia de São Paulo, retratando a grande rapidez de incorporação de novas teorias e a atualização das disciplinas ofertadas no curso de Psicologia da UFMG. (Esch & Jacó-Vilela, 2019. p. 10).

O debate sobre o tema da saúde mental e a crítica ao modelo assistencial, que ocorriam no período, estiveram também presentes nas atividades e estudos desenvolvidos pelo Setor. Uma das iniciativas a respeito foi a criação do grupo de 'discussão sobre doença mental', que ocorria semanalmente, em 1971,em que, por exemplo, se estudaram as formas de expressões vinculadas aos doentes mentais a partir do método de análise de discurso proposto pelo teórico francês Michel Pêcheux4.O autor também era referenciado durante os estudos sobre Análise de Conteúdo, tendo o seu livro "Analyse automatique du discours" traduzido para utilização em apostila de estudo. (Setor, 1968-1971)5.

A grande influência e a rápida difusão da produção de teóricos franceses no Setor de Psicologia Social foi intensificada a partir do convênio de cooperação científica e cultural com a França, financiado inicialmente pelo Serviço Cultural da Embaixada da França, sendo beneficiários os Departamentos de Psicologia e Filosofia da FAFICH/UFMG (1967-1975). Durante o período em que o programa vigorou, a partir de 1969, 5 participantes do Setor estudaram na França. Consta que mantinham contatos estreitos com os que ficaram no Brasil, através do envio de textos e bibliografia, como também na articulação para organização de palestras e intercâmbio de professores franceses. (Machado, 2004, p. 25)

O início do convênio ocorreu em maio de 1968, quando o Setor recebeu a visita de Max Pagès6 que teve duração de 30 dias, com seminários sobre intervenção psicossociológica. Já no ano seguinte, 1969, foi o período da visita de André Levy7, com seminários sobre os fundamentos teóricos da intervenção psicossociológica, o que se tornou uma das grandes contribuições dos estudos desenvolvidos pelo grupo. (Machado, 2001; Garcia, 2004).

Além da visita dos professores franceses, marca da influência da Psicossociologia no Setor, também estiverem presentes no grupo professores de outras localidades propiciando a interlocução com diversas vertentes teóricas. Diversos estiveram presentes nos anos de 1970 e 1971, por isto fazemos um breve registro de sua passagem na UFMG a convite do Setor.

No ano de 1970, a temática da Psicologia Experimental ecoava no Setor, a partir do curso de Psicologia Social Experimental, ministrado pela Professora Carolina Masttucelli Bori (1924-2004). Também ocorreu o curso do Professor Roger Lambert e a visita do professor Aroldo Rodrigues, então na PUC Rio. (Setor, 1968-1971, p. 8). Já no ano de 1971, o Setor recebeu a visita dos Professores Jean Stoetzel, "mestre de Psicologia Social na Sorbonne e Presidente do Conselho Internacional para as Ciências Sociais" (Deslandes, 1989) e Jean Labbens, delegado da UNESCO no Brasil, que buscava fomentar novas pesquisas e ampliar o ensino da Psicologia Social em Belo Horizonte. (Setor, 1968-1971, p. 8). Também no ano de 1971, ocorreram as visitas do Professor Jorge Balan, com curso sobre Organizações; do professor Raymond Boudon, diretor do "Centro d'Études Sociologiques", unidade para pesquisas na área de Ciências Sociais na França e do Professor Paul Arbousse Bastide da Universidade de Paris, dirigente da "Seção de Psicologia Social" da Sorbonne.

Em 1972, veio ao Brasil Georges Lapassade8, apresentando as temáticas da socioanálise e análise institucional. Sua estadia em Belo Horizonte foi de oito semanas, permitindo que utilizasse os pressupostos teóricos da Análise Institucional para desempenhar o seu papel de analisador do grupo do Setor, o que desencadeou conflitos e alterações no grupo.

Em sua 'missão' de analisador do grupo do Setor, Lapassade nomeou e dividiu o grupo entre brancos e pretos. Os brancos eram os integrantes do Setor que tinham como tarefa a organização da parte acadêmica e burocrática. Os pretos eram o grupo instituinte, que lutava pela autogestão na Universidade e nos espaços por onde passavam. "Lapassade acusou-nos de auto-repressão. Como bom analista institucional, provocou-nos". (Machado, 1986a, p. 39).

A temática da análise institucional no Setor não foi utilizada apenas para refletir sobre instituições externas ou a relação no próprio grupo, mas também para pensar o contexto institucional da Universidade, da relação professor-aluno. Em suma, a análise institucional foi compreendida como a melhor metodologia para se pensar relações de poder.

Garcia (2011) relembra as dificuldades do período da Ditadura, como a aposentadoria compulsória dos professores, e entende que Lapassade não tinha a compreensão do momento vivido no Brasil e o risco eminente que sofriam os professores que se mobilizavam para qualquer ação política. "Lapassade queria que a gente fosse para a favela, realizar análise institucional lá. Eu cheguei a conversar com ele sobre isso." (Garcia, 2011).

Após a estada de Lapassade, a Análise Institucional se estabeleceu tanto pela sua contribuição teórica, como a partir da sua prática como analisador, que movimentou o grupo interna e externamente. Segundo Machado (1986a, p. 39), nesse período, "dentro do Departamento de Psicologia e na FAFICH já éramos discriminados. O Departamento de Sociologia pedira-nos as salas do subsolo. Acomodamo-nos no quinto andar".

Retratos desta ruptura ficou evidente no ano de 1973, durante a visita de Michel Foucault à UFMG. Devido às tensões vividas durante a estadia de Lapassade no Setor, o Departamento de Psicologia se negou a recebê-lo.Célio Garcia, que no momento estava se desligando do Setor e já estava vinculado ao Departamento de Filosofia, fez a mediação para que o novo departamento autorizasse a ida de Michel Foucault à UFMG.

Apesar de sua visita à UFMG não ter sido realizada pelo Departamento Psicologia, os professores e alunos do curso também participam da palestra que o filósofo proferiu na Universidade. Segundo Corrêa (2004, p. 11) "uma inconciliável batalha era travada entre behavioristas e adeptos da Psicologia Social e/ou psicanalistas freudo-lacanianos. Todavia o que se irá ouvir e/ou 'outro discurso', se tratará de conhecimento com uma outra prática na produção do saber".

 

Reforma Curricular de 1974

Durante o processo de reforma universitária que gerou mudança curricular no curso de Psicologia da UFMG, em 1974, o Setor teve grande participação na interlocução e mediação junto à Universidade para a negociação das disciplinas, e também com os alunos, acolhendo suas reivindicações e sugestões. Neste período em que o Setor enfrentava restrições impostas pelo Departamento, o grupo reagiu de forma propositiva para alcançar as alterações pretendidas para o currículo. (Machado, 2001, p. 39).

Com a mudança curricular aprovada, os professores do Setor se articularam para assumirem as novas disciplinas, como 'Psicologia Comunitária e Ecologia Humana'; 'TPC (Teorias Psicológicas Contemporâneas), Psico-sociologia da Mulher' bem como a disciplina eletiva Intervenção Psicossociológica. Segundo Machado, Roedel e Rodrigues (2017, p. 316) "pós-Lapassade, tanto 'negros' quanto 'brancos' do Setor participaram da implantação da reforma universitária na UFMG, o que talvez tenha amenizado a cisão interna. A análise institucional aprendida com Lapassade conferiu uma direção a esses trabalhos."

O curso de 'Psicologia Comunitária e Ecologia Humana', inicialmente lecionada pelo Professor Júlio Miranda Mourão, teve como foco a ecologia e o ecodesenvolvimento. Neste período o conteúdo programático tinha como referência as obras de Ignacy Sachs9, que realizou várias visitas a Belo Horizonte. "O prof. Sachs já esteve algumas vezes em Belo Horizonte trabalhando conosco, e nos estimulou no sentido de testar as proposições do ecodesenvolvimento no nosso contexto. Certamente o ecodesenvolvimento se revelará importante fonte de inspiração para nossas hipóteses de trabalho na comunidade." (Mourão, 1986, p. 21)

Em 1978, o Professor Romualdo Damaso lecionou esta disciplina apresentando como proposta o estudo das relações dos homens com o meio ambiente e as implicações de uma abordagem ecológica na psicologia. A ementa contemplava uma diversidade assuntos, agregando conceitos da Psicologia Comunitária e Psicossociologia. Além disso, a disciplina discutia temas sobre os determinantes sociais da Psicologia, a visão do homem no espaço urbano e no campo, planejamento urbano, discriminação social, saúde e políticas públicas, medicina social comunitária e aspectos psicossociais relacionados à saúde e doença. (Setor, 1978, p. 4).A mesma disciplina também foi lecionada pelo Professor Cornelis van Stralen, já com um enfoque maior para questões da saúde mental, especialmente sobre as políticas públicas de saúde.

Segundo Mourão (1986), "Psicologia Comunitária e Ecologia Humana" era anteriormente uma unidade da disciplina de Psicologia Social, ganhando espaço a partir da reforma curricular e tornando-se assim uma disciplina específica. Bomfim (1989), por sua vez, esclarece que, como a Psicologia Comunitária não era uma disciplina obrigatória que havia surgido no Brasil a partir de dois pilares, um priorizando os diversos tipos de atuação do psicólogo em comunidades, e outro com enfoque na urbanização, ela de fato era "(...) fruto de uma Psicologia Social preocupada com a realidade circundante. De uma Psicologia Social que via com bons olhos o crescimento do movimento comunitário brasileiro e que a ele aderiu num trabalho de busca de melhoria das condições de vida." (Bomfim, 1989, p. 47).

Outra disciplina incluída no curso de Psicologia da UFMG foi "TPC (Teorias Psicológicas Contemporâneas) - Psico-sociologia da Mulher", lecionada em 1978 pelas Professoras Marília Mata Machado e Maria Auxiliadora Bahia. Na ementa consta que o objetivo da disciplina era definir o que é psicologia da mulher, compreendendo-a como sujeito psicossocial. Para atingir o objetivo, o conteúdo programático incluía como temáticas: o estudo de teorias do desenvolvimento feminino a partir de diversas abordagens teóricas; personalidade; características biológicas, sexuais, hormonais e genéticas; sexualidade feminina, fisiologia, aspectos psicológicos, lesbianismo; e estudos culturais, referentes à mulher nas diferentes culturas. (Setor, 1978). A bibliografia indicava textos que permitisse o estudo a partir do referencial da análise de discurso, das construções linguísticas atribuídas ao feminino e ao masculino. Apesar da disciplina ter sido incluída no currículo do curso de Psicologia como eletiva, a resistência e as críticas com relação à legitimidade do tema eram grandes. As professoras eram questionadas com provocações sobre a disciplina, sendo indagadas pelo fato de não ser ofertado uma disciplina sobre "Psicossociologia do Homem"; respondiam argumentando sobre a importância da disciplina para uma reflexão sobre identidade social.

Apesar dos esforços para justificar sua relevância, a" TPC (Teorias Psicológicas Contemporâneas) - Psico-sociologia da Mulher" foi retirada do currículo. Em 1988, Machado publicou relato sobre a disciplina, afirmando que "Ignorar a psicossociologia da mulher é ignorar metade da experiência humana". (Machado, 1988, p.143).

Outra disciplina ofertada a partir da reforma curricular de 1974 foi a eletiva Intervenção Psicossociológica. Na ementa de 1978 consta como objetivo "analisar a prática pedagógica, enquanto prática inserida em instituições". (Setor, 1978, p. 2). Neste ano a disciplina foi lecionada pelo Professor Cornelis Johannes van Stralen, contemplando estudos sobre modelos de análise do aparelho escolar e métodos sobre intervenção na escola.

O curso articulava o estudo e análise do ambiente escolar com práticas comunitárias. A disciplina estava, portanto, em consonância, neste período de 1978, com a disciplina de Psicologia Comunitária, que também era lecionada pelo Professor Cornelis, apontando assim uma articulação entre as disciplinas e as práticas realizadas na área da Psicologia Social (Setor, 1978).

A disciplina de Psicolinguística, lecionada no ano de 1978 pela Professora Sônia Cerqueira tinha como meta a análise das relações entre linguagem e sociedade, e para isso utilizava tanto o campo da psicologia como o da linguística. A disciplina realizava uma crítica tanto à teoria behaviorista, e sua visão da linguagem como um comportamento verbal, como da teoria estruturalista de Piaget, em que a linguagem é entendida a partir das relações entre operações mentais. Assim, a partir da psicanálise e da história, a disciplina trazia questionamentos com relação à linguagem e ao pensamento, o inconsciente e sua estruturação "na e pela linguagem", mecanismos de dominação pela linguagem, ideologias e processos de comunicação. (Setor, 1978).

Já a disciplina "PPC - O Problema do Tempo em Psicologia", que surgiu na grade curricular em 1978, visava abordar o fenômeno do tempo "dentro da abordagem fenomenológica, mostrando as concepções derivadas do realismo do senso comum, ou da física clássica, como insuficientes para a compreensão das vivências temporais, nos níveis: pessoa, grupo, sociedade". (Setor, 1978, p. 3). Em 1978, a disciplina era lecionada pelo Professor José Newton Garcia de Araújo e em sua ementa estavam presentes teorias fenomenológicas e psicanalíticas, psicopatologia, Gestalt-terapia e psicossociologia.

A diversidade de disciplinas eletivas identificadas no programa de 1978mostra também o tópico de "TPC - Psico-sociologia Urbana", lecionado pelo Prof. José Renato Campos Amaral, que visava tanto uma formação teórica como uma profissionalizante. Para o conteúdo teórico foi programado uma atividade interdisciplinar, envolvendo psicologia, economia, sociologia e urbanismo. "O urbano com sua multiplicidade de práticas parece-nos um terreno ideal para tal estudo". (Setor, 1978, p. 4). Já para a etapa prática, descrita como profissionalizante, os alunos eram preparados para realizarem trabalhos de intervenção urbana, principalmente com relação a "marginalidade, delinquência, habitação, lazer". (Setor, 1978).

Percebe-se que tanto a Psicossociologia quanto a Psicologia Comunitária permeavam as novas disciplinas eletivas inseridas no curso, característica também evidente na disciplina "TPC - Psico-sociologia Urbana". Outro traço desta disciplina era o estudo histórico da urbanização e o estudo sobre cultura urbana.

 

1985: a Psicologia Social e a proposta de mudança social

Em 1985, com o processo de redemocratização vivido no Brasil, e diante do momento profícuo para a reestruturação dos movimentos sociais, abriu-se espaço e possibilidades para que Universidades também refletissem sobre o seu papel de formação crítica e de fomento para repensar estratégias para mobilização e ação social.

Este movimento também se refletiu no Setor, sendo possível identifica-loa partir das alterações nas ementas da disciplina de Psicologia Comunitária e Ecologia Humana, com temáticas como comunidades alternativas, ecologia, escritos anarquistas, metodologia de trabalho comunitário, pesquisa participante, estudo de casos, psiquiátrica comunitária e educação comunitária. Neste ano a disciplina era lecionada por Marília Novais da Mata Machado e Elizabeth Bomfim. Segundo Machado (1986b), o estudo sobre ecologia era recente no Brasil, o que tornava positiva a união dos temas ecologia e comunidade.

Assim, a proposta da disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana torna-se a reflexão sobre as possibilidades de construção de um conhecimento em conjunto com a comunidade. "Uma vez que o cientista social sabe que não sabe a respeito das comunidades e de si próprio na estrutura social, vai buscar saber." (Machado, 1986b, p. 111). Como metodologia para o estudo das comunidades foi utilizado o referencial teórico da socioanálise e da análise institucional, a partir de autores como Lapassade e Lourau.

Bomfim, Lima e Machado (1986) relataram que sua turma realizou como trabalho final uma atividade denominada Comunidades Alternativas, em que os alunos analisavam, no contexto histórico, manifestações de autonomia comunitária. Os trabalhos desenvolvidos por alunos da disciplina em 1985 foram apresentados durante o I Encontro Mineiro de Psicologia Social. Observava-se uma diversidade temática, como análises sócio-históricas de regiões da cidade de Belo Horizonte, estudo sobre comunidades alternativas, como Canudos, a República dos Guaranis e estudos sobre tecnologias. (Bomfim, Lima, & Machado, 1986).

A disciplina realizou também trabalho sem três vilas de Belo Horizonte - região do Acaba Mundo, Morro do Querosene e Conjunto Santa Maria - porém só houve continuidade nas atividades no Acaba Mundo e no Santa Maria. Para o financiamento foram articulados convênios com diversas instituições, como: CAPES-COFECUB, PTAC (Programa Transsetorial de Ação Comunitária, com financiamento da fundação norte-americana Kellogs), ASHOKA (programa norte-americano de fomento a agentes sociais inovadores), Pró-Reitoria de Extensão da UFMG, CAPES, CNPq e a Secretaria Especial de Desenvolvimento Social do Estado de Minas Gerais.

Participaram deste trabalho em torno de 20 pessoas, que se subdividiam em equipes para promoverem reuniões com os moradores. No Conjunto Santa Maria foram organizadas oficinas de artesanato e dança, e um estudo sobre a região, sendo realizadas técnicas de entrevista e preenchimento de questionários com moradores, com perguntas como: "O que você acha que falta aqui na vila e que vocês têm direito a ter? Vocês já participaram de alguma cooperativa?" (Machado, 1988, p. 38). A coleta de dados foi iniciada no ano de 1987, com participação de alunos da disciplina de Psicologia Comunitária e Ecologia Humana I. Já na Vila do Acaba Mundo, os trabalhos foram realizados com grupos de adolescentes e mães, com a produção de um filme que reproduz a história e o cotidiano da comunidade. O objetivo do trabalho nas duas comunidades era a auto-organização e de provocação para mobilização dos moradores. "Levamos dispositivos de facilitação que eventualmente podem auxiliar a população a solicitar junto aos órgãos públicos os seus direitos. Levamos também informações de que têm direitos". (Machado, 1988, p. 39).

Já entre os anos de 1989 a 1991, foram realizadas ações do projeto denominado "Meninas de rua", com a supervisão da Professora Elizabeth Bomfim e financiamento da UFMG e do CNPq. Teve como objetivo analisar e descrever o cotidiano de meninas de rua da cidade de Belo Horizonte, a partir de pesquisa participante, ou como preferiu definir Bomfim (1991), "pesquisa dialogante", tendo como atividades a realização de entrevistas, acompanhamento direto das crianças e análise de reportagens divulgadas no período estudado. Para este levantamento participaram orientandas de graduação de Elizabeth Bomfim, que também auxiliaram na confecção do livro referente à pesquisa. A professora relatou que o trabalho de participação foi desenvolvido junto com os educadores de rua da Pastoral do Menor. (Bomfim, 1991, p. 47).

Em 1985, a disciplina Intervenção Psicossociológica sofreu alterações, com a inclusão de atividades práticas socioanalíticas em três espaços: uma residência universitária (Moradia Estudantil Borges da Costa); um hospital Psiquiátrico (Instituto Raul Soares) e uma congregação religiosa (Sociedade São Vicente de Paulo). (Mello Filho, Mata-Machado, & Laia, 1985). Neste ano, a disciplina foi lecionada pela Professora Marília Novais Mata Machado. Todos estes trabalhos ocorreram a partir de demanda das instituições e cada um deles teve a duração de três semestres.

Outro trabalho realizado, nos anos de 1985 e 1986, foi o Grupo Operativo no Hospital Galba Velloso (HGV), hospital psiquiátrico de Belo Horizonte. A atividade fora demanda pelo Diretor do hospital, Dr. Cezar Rodrigues Campos, importante ator no processo de reforma psiquiátrica mineira, que "havia recentemente assumido o cargo imbuído do espírito de democratização, tal como ele próprio relata em um certo momento, referindo-se ao projeto que ali fora discutido e implantado". (Almeida, 1986, p. 29).

Nessas experiências, os referências teóricos utilizados eram os da Análise Institucional, da Psicanálise e do Grupo Operativo. Como objetivo, o trabalho visava democratizar o hospital, instrumentalizando os estagiários para trabalharem com grupo operativo, para integrarem o hospital e seus profissionais. O supervisor convidado foi o Professor Célio Garcia que, apesar de formalmente não integrar mais ao Departamento de Psicologia, mantinha contatos com integrantes do Setor e desenvolvia supervisão de projetos de instituições governamentais.

 

Considerações finais

Desde sua fundação, o Setor produziu uma grande diversidade de projetos e atividades, tanto os inicialmente de dinâmica de grupo, como posteriormente os de intervenção psicossociológica, psicologia comunitária, saúde mental, saúde coletiva. O Setor se construiu como um espaço de fomento para pesquisa e estudo, proporcionando uma visão crítica sobre a atuação do psicólogo, agregando a participação de professores e estudantes. Trazia em sua concepção uma abertura para participação, o que permitia a parceria com profissionais e com outras áreas de conhecimento, gerando projetos interdisciplinares.

O caminho do Setor não foi linear durante todo o período que existiu. Passou por várias fases, mudanças dos seus integrantes, vários rearranjos. Também vale ressaltar o delicado momento político vivido no Brasil e os riscos enfrentados por aqueles que foram os iniciadores da Psicossociologia em Minas Gerais. Atualmente, para os ex-integrantes que participaram, o que permaneceu são lembranças de um grupo que soube criar, reagir. Como diz Mata-Machado, "Na memória dos que o vivenciaram, ele é o grupo que se despregou da formação coletiva e soube transgredir, quando era necessário fazê-lo. Com todas as suas dificuldades, ele foi capaz de se abrir para o mundo e viver a diversidade; é digno de ser lembrado, agora, nesta época de pensamento único e de fundamentalismo religiosos e políticos". (Machado, 2001, p. 40) Célio Garcia (2011), por sua vez, aponta o Setor como um grupo 'outsider', o que possibilitou que, além de seu compromisso teórico, pudesse ter uma conduta pautada por ações práticas, criativas e políticas. Para ele, a trajetória do Setor, apesar das precariedades, dificuldades financeiras e restrições políticas, "foi uma aventura intelectual significativa e que marcou pelo resto da vida" [pois]"não é todos os dias que a gente faz uma experiência dessa natureza. " (Garcia, 2004, p. 13-18).

Se entendemos que o Setor, suas pesquisas, seu ensino, foram de grande relevância naquele momento, podemos avaliar que sua influência se estendeu, no exercício profissional e na formação de novos psicólogos, à medida em que aqueles estudantes dos anos de 1970 compartilharam seus projetos e teorias. Entretanto, como a matriz original se desfez, aos poucos sua perspectiva também se torna mais opaca, menos conhecida. Assim, pouco existe hoje em dia em nossa Psicologia Social que reverbere a vertente psicossociológica, embora outras formas de orientação francesa, como análise institucional, se façam presentes em alguns territórios brasileiros, como por exemplo o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul.

 

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Recebido em: 7/12/2020
Aceito em: 1º/5/2021

 

 

1 Pierre Weil (1924-2008) estudou com Henri Pieròn, Jean Piaget e León Walther, que o convidou para orientar as equipes que organizariam os trabalhos de Psicologia no Senac. Veio para o Brasil em 1948. A convite do Banco da Lavoura, transferiu-se para Belo Horizonte em 1958. Foi professor da UFMG, onde divulgou o psicodrama de Moreno e a Psicologia Transpessoal. A partir de 1987, dedicou-se à Universidade Holística para a Paz em Brasília (Bomfim, 2001).
2 Célio Garcia (1930-2020) fez o curso de Letras na Universidade Católica do Ceará (1952), indo em seguida cursar especialização em Licenceès Lettres - Mention Psychologie Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), U.P. III, na França, que terminou em 1955, quando iniciou o curso de Psicologia na Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), finalizado em 1959 (Machado, 2001). Atuante na UFMG de 1964 até 1993, recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Dedicou-se também à clínica psicanalítica.
3 Segundo Machado (2001, p. 36-37,) o teste de bolinhas era um teste argentino, "projetivo que visava ao estudo e à compreensão da dinâmica de grupos pequenos".
4 Michel Pêcheux (1938-1983). Fundador da Escola Francesa de Análise de Discurso que teoriza como a linguagem é materializada na ideologia e como esta se manifesta na linguagem.
5 Como já indicado, muitos textos eram traduzidos pelos próprios professores e disponibilizado aos alunos, o que facilitava a divulgação de publicações recentes que demorariam para serem publicados no Brasil, como o caso deste livro de Michel Pêcheux que só foi publicado em português no ano de 1990.
6 Max Pagès (1926-2018). Professor de Psicologia da Universidade de Paris VII, psicoterapeuta, pesquisador em ciências humanas, desenvolveu o método de análise dialética das teorias e práticas em psicoterapia.
7 André Levy (1925), professor no College Universitaire des Sciences Humaines Cliniques da Universidade de Paris. Em agosto de 1969, cumpriu missão cultural no Brasil, especificamente em Belo Horizonte, onde realizou cursos e conferências, uma delas no Centro de Estudos do Hospital Galba Velloso.
8 Georges Lapassade (1924-2008). Filósofo e sociólogo francês. Em 1958, Georges iniciou seus estudos sobre: Psicodrama (Moreno), dinâmica de grupos e pesquisa-ação (Lewin) e não-diretividade (Rogers), criando posteriormente sua abordagem de análise institucional. (Gradim, 2008)
9 Ignacy Sachs (1927), economista polonês naturalizado francês. Professor Emérito da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris/França, foi orientador de doutorado de Júlio Miranda Mourão.

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