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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  n.0 México ago. 2002

 

ARTÍCULOS

 

Psicologia e políticas públicas de saúde: anotações para uma análise da experiência brasileira1

 

 

Denis Barros de CarvalhoI*; Oswaldo H. YamamotoII**

IUniversidade Luterana do Brasil, Manaus - Amazonas
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte

Apoio CNPq, processo no. 520218/96-5

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo enfoca a inserção do psicólogo nos serviços de saúde pública no Brasil, no contexto da reforma neoliberal no campo das políticas sociais. São discutidos a constituição e a crise do Estado do Bem-Estar Social, os elementos da ideologia neoliberal, a introdução do psicólogo no setor público da saúde, a agenda neoliberal para o campo da saúde e as conseqüências destas para a psicologia no Brasil.

Palavras-chave: Psicologia da saúde, Psicologia no Brasil, Neoliberalismo, Estado do bem-estar social, Políticas públicas.


ABSTRACT

Psychology and public health policies: notes for an analysis of the Brazilian experience. This paper presents an analysis of the introduction of psychologists in the public health services in Brazil, in the context of social welfare's neoliberal reforms. The constitution and the crisis of Welfare State, the neoliberal ideology, the introduction of psychologists in the public health services, the neoliberal agenda for the public health services and its consequences to the Brazilian Psychology are discussed.

Keywords: Health psychology, Psychology in Brazil, Neoliberalism, Welfare state, Public policies.


 

 

Introdução

Qualquer estudo que pretenda enfocar a gestão das políticas públicas no Brasil, hoje, deve considerar, enquanto um aspecto nuclear, a ideologia neoliberal, cujo programa compreende uma ênfase na decomposição do atendimento público e estatal no setor da assistência social - a saúde aí incluída. A situação decorrente dessa desmontagem, se já é problemática tomando-se as nações que desenvolveram um Estado do Bem-Estar Social de forma consistente2, torna-se virtualmente insustentável naquelas em que, como o Brasil, em que a cobertura no campo social é histórica e reconhecidamente precária.

O objetivo do presente ensaio é contribuir para o debate acerca impacto dessa ideologia - e agenda - na configuração da estrutura institucional do serviço público em que se insere o psicólogo profissional da saúde no Brasil.

Divide-se o trabalho em cinco partes: na primeira, discute-se a constituição e a crise do Estado do Bem-Estar Social; na segunda, apresentam-se os princípios da ideologia neoliberal; na terceira, relata-se a inserção do psicólogo no serviço público de saúde; na quarta parte, apontam-se os elementos constituintes da agenda neoliberal para as políticas públicas de saúde e, na quinta e última, discutem-se as possíveis conformações da psicologia da saúde em um contexto de hegemonia neoliberal.

 

As contradições do Estado do Bem Estar Social

A primeira metade do nosso século assistiu a consolidação das estruturas industriais de produção em ampla escala, encetadas no século XIX. O modelo taylorista de gestão "científica" do trabalho - expropriação do conhecimento do trabalhador, tarefas fragmentadas dissociação concepção-execução sob responsabilidade de especialistas em administração associa-se à proposta fordista de produção e consumo de massa. A internacionalização do modelo taylorista-fordista se acentua no segundo pós-guerra, impulsionada pelo Plano Mashall - grosso modo, um projeto de abertura de mercados para indústria estadunidense. A estratégia fordista baseava-se não somente no aperfeiçoamento técnico e gerencial, mas das próprias relações sociais: era indispensável a criação de novas formas sociais que garantissem o crescimento da renda, possibilitando a participação de camadas antes excluídas do consumo. Em suma, além do setor da produção, a circulação das mercadorias era elemento constituinte da estratégia. Em uma palavra, a garantia da realização do valor.

Tal padrão de acumulação - tradução de uma "onda longa expansiva" de parte significativa deste século -, requer um ordenamento sócio-político (na ordem do capital) que viabilizaria a compatibilização da dinâmica de acumulação capitalista com um determinado patamar de atendimento no campo social: o Estado do Bem-Estar Social, um pacto social entre o trabalho e capital no segundo pós-guerra.

Como ilustração, o caso britânico é exemplar: no contexto internacional de reorganização capitalista, forja-se o que se convencionou denominar de "consenso", um pacto político entre conservadores e trabalhistas, que tinha, enquanto pontos não-negociáveis, alguns dos pressupostos que irão constituir a base do Estado do Bem Estar Social, ou Welfare State. Constavam dessa pauta, além do papel do Estado e a administração da economia, o pleno emprego, a seguridade social, a construção do sistema nacional de saúde, entre outros pontos (Clarke, 1989; Marquand, 1989).

O Estado do Bem Estar Social começa a ruir no momento em que o padrão de acumulação fundada na base taylorista-fordista entra em crise. Em cadeia, processos interligados são desencadeados - entre eles, a chamada "crise do petróleo", promovendo uma ampla retração da atividade econômica, incremento dos níveis inflacionários em patamares assustadores, e uma desestruturação dos sistemas produtivo e financeiro. Alguns analistas (Oliveira, 1988) procuraram, inclusive, interpretar a falência do próprio padrão como conseqüência da necessidade, cada vez crescente, da utilização do fundo público como pré-condição para a valorização do capital. De qualquer forma, desencadeia-se, na década de setenta, em escala planetária, uma ampla e orquestrada ofensiva contra o Estado do Bem Estar Social, em nome da primado do mercado, base da ideologia neoliberal.

 

O neoliberalismo: condições, histórico, pressupostos e propostas

Em meio à crise, e como herança do período de acumulação pregressa, começa-se a operar uma significativa mudança nas bases técnicas da produção, traduzida na "revolução informacional" (Lojkine, 1995). O salto tecnológico fundado na automação, robótica e microeletrônica, base dos novos processo produtivos, rebate no mundo do trabalho, promovendo uma verdadeira metamorfose. A produção em série e de massa são substituídos pela flexibilização da produção. A chamada lean production, na realidade, é um compósito de mudanças que compreendem desde a própria base técnica referida acima, mas também uma desconcentração industrial, novos padrões de qualidade (a chamada "qualidade total"), "gestão participativa", entre outras (Antunes, 1995).

As repercussões no mundo do trabalho não cessam aí. As inovações tecnológicas impõem um desemprego estrutural, provocando o desaparecimento de postos de trabalho no setor produtivo e uma precarização do trabalho. São eliminados, nesse processo, alguns dos direitos e conquistas históricas da classe trabalhadora.

A situação de crise do padrão de desenvolvimento e o advento dessa nova base microeletrônica, e conseqüente reorganização produtiva em ampla escala, representam também a substituição do Estado do Bem Estar Social pelo ideário neoliberal. Hibernando desde a década de quarenta, a partir das formulações originais de teóricos como Hayek, Friedman e Popper, o neoliberalismo alcança a posição de ideologia hegemônica nesse processo.

O pensamento neoliberal distingue-se do pensamento conservador e do liberal clássico. Em contraposição ao conservadorismo, os neoliberais defendem o individualismo e o encaram como chave para o sucesso da democracia em um contexto de "Estado Mínimo". O liberalismo do século XIX acreditava que as crises econômicas deveriam ser corrigidas por reformas do mercado e por intervenções eventuais. Além disso, defendia uma política antimonopolista no que concerne à produção e distribuição, e reconhecia, nos sindicatos operários, uma fórmula legítima de defesa diante dos monopólios. O neoliberalismo, por seu turno, defende o automatismo autoregulador do mercado. O sindicalismo, por conseqüência, é combatido como inimigo da liberdade de empreendimento.

A crise econômica da década de setenta é resultado, conforme o pensamento neoliberal, do capitalismo centrado no Estado intervencionista. Somente um sistema calcado no primado do mercado pode, ao mesmo tempo em que maximiza a eficiência econômica, garantir a liberdade individual. A ordem social resulta da coordenação, via mercado, dos comportamentos individuais. Os indivíduos, entendem os neoliberais, motivados por interesses próprios, cooperam involuntariamente devido ao mecanismo de regulação do mercado. Dessa forma, a finalidade precípua do Estado é cuidar para a otimização dos mecanismos reguladores do mercado. Intervenções outras são consideradas tão ineficientes do ponto de vista econômico quanto tirania do ponto de vista político. É importante asseverar que o individualismo competitivo (possessivo, portanto) não pode se expandir infinitamente, o que coloca a necessidade de um Estado mínimo mas forte, a fim de cumprir as leis das quais depende a propriedade privada e a competição. Conforma-se, assim, o que Netto (1993) define como o "Estado mínimo" para o trabalho e o "Estado máximo" para o capital...

Dentre as responsabilidades do Estado mínimo, figuram, ao lado do combate ao protagonismo de classe dos trabalhadores, o controle da emissão monetária, a manutenção de elevadas taxas de juros, uma política privatista agressiva e, com destaque, a promoção (ou a priorização) dos gastos públicos e a desmontagem da cobertura social, ponto que nos toca neste estudo.

 

A inserção do psicólogo no serviço público de saúde

A psicologia é uma profissão muito recentemente regulamentada no Brasil, conquanto a prática psicológica remontasse à década de vinte. A regulamentação, contudo, somente ocorreria com a Lei 4.119, de 27 de agosto de 1962, que criou a profissão de psicólogo. Na década de setenta, com um considerável intervalo com relação à lei, cria-se o Conselho Federal de Psicologia (CFP), pela Lei 5.766, de 1971, e regulamentada em 1977, com o Decreto 79.822. O CFP somente começa a atuar em 1973. Portanto, pode-se afirmar que em princípios da década de setenta, a profissão de psicólogo começa a se estabelecer, apesar de duramente atacada pela corporação médica (que pretendia conservar supostos direitos seus de intervenção em "problemas de ajustamento").

Nos Estados Unidos, durante a década de sessenta, surge o Programa de Saúde Mental Comunitária, cujos objetivos eram: propiciar tratamento aos doentes mentais na própria comunidade a que pertenciam, tornar os recursos da comunidade mais acessíveis e implantar centros de saúde comunitários como alternativa aos grandes hospitais psiquiátricos.

A mudança de política de saúde mental no Brasil, ocorrida no final de década de setenta, é influenciada pela psiquiatria comunitária estadunidense. Tal mudança foi motivada pelo alcance restrito do setor de assistência à saúde e pelos altos custos dos serviços prestados, que não mais seriam sustentados pelo falido "milagre econômico" brasileiro (suporte do regime autocrático-burguês). O renascimento dos movimentos populares também cria uma oposição organizada às políticas arbitrárias e privatizantes de saúde, levando o Estado a reformular suas proposições.

A inserção do psicólogo no setor público de saúde dá-se em um momento em que o modelo médico privatista-assistencial estava em franca decadência. Almejava-se desenvolver redes de serviços alternativos ao hospital psiquiátrico, que fossem concomitantemente mais eficazes e de menor custo. O interesse dos órgãos públicos por psicólogos decorre da constatação de que o psiquiatra não poderia modificar o quadro assistencial tradicional, necessitando-se, assim, de grupos multiprofissionais.

Além dessa nova política de saúde pública, dois fatos contribuíram para o incremento da presença de psicólogos no serviço público. Primeiro, o mercado de atendimento psicológico privado vinha sofrendo uma drástica redução em decorrência da crise econômica que afetava o país; segundo, a crítica feita à psicologia clínica tradicional, por não apresentar um significado social, motivando o surgimento de práticas alternativas que fossem socialmente mais relevantes. Os hospitais, os ambulatórios e os centros de saúde foram os lugares mais utilizados para a construção de novos espaços de atuação em busca de inserção social mais significativa por parte do psicólogo. O impacto dessas novas propostas na formação do psicólogo, contudo, foi insuficiente para mudar o perfil tradicional do psicólogo brasileiro, identificado com um modelo de intervenção clínica construído em países industrializados para uma clientela de poder aquisitivo mais elevado. A produção social da identidade do psicólogo resulta da articulação de dois movimentos: o primeiro, decorrente da aplicação de um terminado sistema teórico-técnico; o segundo, ocorre no nível das representações sociais do psicólogo e da psicologia (Nader, 1990). A resultante gerada pela confluência desses dois caminhos é, no caso da psicologia no Brasil, uma incapacidade de compreender a especificidade da sociedade brasileira e uma imagem que é a mescla da onipotência clínica e da incompetência social.

A atuação tradicional do psicólogo clínico, em síntese, foi norteada pela necessidade de atender a uma demanda individual, sem contudo ter como preocupação, a criação de uma demanda social por serviços psicológicos.

 

A política de saúde mental no contexto da agenda neoliberal

O projeto neoliberal no campo da saúde mental fundamenta-se em sua lógica de regulamentação pelo mercado e pelo pressuposto de que os serviços públicos são sempre mais ineficientes que os particulares3. No Brasil, contudo, são os manicômios privados, sustentados pelo repasse de recursos do Estado, que abrigam a maior parte dos doentes mentais do país. A política de descentralização e controle democrático da gestão dos recursos contida no Sistema Unificado de Saúde (SUS), vem sendo destruída por uma política de redução constante de recursos para a área da saúde4. Assim, as principais bandeiras de luta, para uma construção do Sistema Único de Saúde, com base em suas diretrizes originais, são a mobilização contra o sucateamento dos serviços públicos de saúde, por recursos mínimos e estáveis para o setor e pela manutenção e aprofundamento do caráter público dos serviços de saúde, que se contraponha a uma vigorosa expansão das Fundações Privadas, que se espalham por quase todo o país, a exemplo do Hospital das Clínicas de São Paulo, levando a uma privatização crescente dos serviços, por elas intermediada, especialmente através de contratos com empresas de medicina de grupo e seguros de saúde, que além de passarem a utilizar instalações e equipamentos públicos, ocupam vagas e procedimentos antes destinados à população em geral, criando mecanismos de discriminação contra pacientes do SUS, a exemplo de filas-duplas (onde as do setor privado são mais rápidas), agendamentos mais rápidos, e mesmo oferta diferenciada de qualidade de serviços.

Estas propostas, de cunho neoliberal, vêm sendo firmemente difundidas através de organismos como o Banco Mundial (Costa, 1996), que propõe, explicitamente para o Brasil e demais países de periferia, o fim do direito ao atendimento equânime e universal pelos serviços de saúde, substituindo-o por uma "cesta básica" de doenças e procedimentos (simplificados e de baixo custo) a serem destinados aos pobres, e outra, complementar, apenas aos que por ela puderem pagar, mecanismo explícito de exclusão social que não precisa de comentários.

Dentre estas propostas, destaca-se o PAS (Plano de Atendimento à Saúde), da Prefeitura Municipal de São Paulo. Esta proposta só se tornou possível após três anos de deliberado sucateamento e desmonte da rede de serviços, ainda na gestão Paulo Maluf, seguidos, de um só golpe, pelo violento afastamento da grande maioria dos trabalhadores da rede (neste processo, foram afastados de suas funções originais 35.035 servidores, 88,30% dos existentes, que se negaram a ingressar neste esquema, apesar das pretensas "vantagens", dos quais 17.705 "exilaram-se" em outras Secretarias, muitos demitiram-se e os demais foram para espaços remanescentes da SMS não repassados para o PAS) (Sá, 1997), associado a uma rápida e vultosa injeção de recursos - especialmente em pinturas, móveis e reformas, com grande impacto visual, além de uma excepcional intervenção na mídia e na campanha eleitoral, criando um contraste imediato - e real - entre a situação anterior (de quase colapso) com a nova (salas pintadas e serviços reabertos), pagando a seus "cooperados", muitas vezes, salários acima do mercado, especialmente para os médicos, de modo a tentar diminuir sua resistência, e "pro-labores" a seus diretores próprios de altos executivos. Considerando sua lógica de financiamento, pré-pagamento fixo por população estimada para cada "cooperativa" - na qual a "sobra" de recursos é rateada segundo critérios locais, passa a ocorrer a negação de internações e procedimentos mais complexos - e caros - endereçados para o setor público estadual. Deste modo, voltando-se apenas para o atendimento "sintomático-curativo", rápido e simplificado, e fechando serviços caros e complexos, como os centros de excelência que existiam em alguns hospitais, ou na área de Saúde Mental, ocorre ainda o abandono das ações programáticas, típicas da saúde coletiva, que não fazem sentido neste modelo, (idosos, AIDS, crônicos, saúde mental, adolescentes, saúde da mulher...), assim como o abandono das ações sanitárias próprias da saúde pública, como o controle de vetores (mosquitos etc.), cobertura de foco (meningite, tuberculose, sarampo etc.) e inúmeras outras ações coletivas que até então eram executadas por estas unidades.

As formas alternativas de tratamento da doença mental nunca tiveram uma política de disseminação promovida pelo governo federal. O Projeto de lei do deputado Paulo Delgado (PT-MG), aprovado pela Câmara Federal em 1991, ainda está em tramitação no Senado. A Comissão de Assuntos Sociais daquela casa aprovou um relatório de Senador Lucídio Portella (PPB-PI), que desfigura o Projeto de Delgado, mantendo inalterado o atual sistema de atendimento mediante internação em hospitais psiquiátricos. A própria viabilidade do SUS passa a ser objeto de questionamento: projetos alternativos (como o da Prefeitura Municipal de São Paulo, com um serviço de saúde privatizado) começam a ser implantados e pululam agências ofertando planos de saúde privados, alguns incluindo assistência psiquiátrica.

Para a lógica neoliberal, o serviço de saúde é uma mercadoria como outra qualquer, tendo seu preço determinado pelo mercado. A redução dos serviços públicos é, concomitantemente, implementada para que se possa deixar a cargo do setor privado, os serviços de saúde, que seriam, então, ofertados de forma mais "competente". O resultado obtido, contudo, é desanimador. No modelo chileno comentado por Laurell (1995),

são estabelecidos mecanismos que permitem estratificar a população em função da sua capacidade de pagamento e probabilidade de adoecer. Dessa forma, constituem-se dois sistemas paralelos de administração de fundos e prestação de serviços - o privado e o público -, com livre adscrição dos segurados a um ou outro sistema. O ponto chave deste modelo é o direito do sistema privado de não aceitar os segurados de "baixo pagamento-alto risco", porque a sua cota não consegue cobrir o prêmio, enquanto o setor público é obrigado a aceitar a todos.(...) Essa situação leva o sistema público a um círculo vicioso de deterioração, ao assistir, com seus recursos limitados, tanto os pobres como os velhos e os mais doentes, enquanto o sistema privado floresce e obtém lucros elevados. O caso chileno ilustra essa dinâmica, já que esse tipo de (contra)reforma resultou numa polarização do sistema de saúde: de um lado, o sistema público, que atende 84% da população com 59% do orçamento ,e, de outro, o sistema privado (os ISAPRES), que atende 16% da população, dispõe de 41% do orçamento da saúde, e alcança uma rentabilidade média de 40% sobre o investimento (pp. 170-171).

A psicologia da saúde sob a agenda neoliberal

A inserção do psicólogo na rede pública brasileira de saúde ocorreu em um contexto de maximização dos recursos e diversificação das modalidades de tratamento mediante a formação de equipes multiprofissionais (Arcaro & Mejias, 1990). O projeto neoliberal simplesmente transfere para o setor privado a tarefa de implementar tais modelos de uso de recursos. A psicologia passa a ter uma dupla tarefa para se manter no serviço público de saúde: elaborar formas mais eficazes de lidar com as questões básicas de saúde mental comunitária brasileira (Lo Bianco, Bastos, Nunes, & Silva, 1994) e construir um movimento político de resistência ao modelo neoliberal de gestão social (Gallo & Nascimento, 1989). Essas duas tarefas, na verdade, são ambas decorrentes de fragilidades estruturais modelo de profissional de psicologia vigente no Brasil.

Uma classificação das áreas de atuação proposta pelo relatório do recadastramento da região 6 (que compreende os estados de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e congrega aproximadamente 40% dos psicólogos brasileiros), sugeriu a denominação "psicologia da saúde", para definir uma nova constituição da área clínica, que passaria a ser englobada por uma categoria mais geral, composta por novos espaços de serviços psicológicos dirigidos à população excluída do atendimento tradicional (CRP/06, 1995; Silva, 1988, 1992; Spink, 1992).

Ao analisar os dados do recadastramento que, embora digam respeito à região 6, apontam a tendência do movimento, por ser a região na qual a psicologia se encontra mais desenvolvida - teremos um quadro promissor: a área de saúde conta com mais da metade dos profissionais (54,67%). Mas, se consultarmos os dados referentes ao local de trabalho, verificaremos que 40,75% do total de psicólogos exerce suas atividades na clínica particular.

A precária organização política, a decantada dispersão teórica e de modelo de atuação, o (sempre presente) fascínio da psicoterapia como instrumento de atuação, são questões congênitas da psicologia brasileira (Yamamoto, 1996). Momentos de profunda crise social como a que atravessamos não são terreno fértil para que a psicologia busque um significado social maior, enquanto mantém um modelo (anacrônico) de profissional liberal duramente atingido pela crise (que reduz drasticamente o poder aquisitivo da classe média). A predominância de um modelo de psicologia da saúde será determinada pelo resultado combinado da luta política pelo controle do Estado e da capacidade dos psicólogos de construir um modelo profissional cujos serviços possam ser vistos pela comunidade como essenciais para manutenção da saúde mental e do bem estar. Eis o grande desafio!

 

Referências

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Endereço para correspondência
DEPSI-UFRN, Caixa Postal 1622, 59.078-970, Natal, RN, Brasil.
E-mail: yamamoto@ufrnet.br

 

Notas

1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no II Encontro Temático de Psicólogos do Mercosul, em agosto de 1997, na cidade de Assunção, Paraguai.

2 A extensão da desmontagem das políticas do campo social nos países que desenvolveram o Estado do Bem Estar Social é uma questão controversa. Autores como Anderson (1996) defendem a tese de que, em diversos deles - os nórdicos, como exemplo mais claro -, o êxito da estratégia neoliberal é bastante reduzido.

3 E mesmo por uma política deliberada de desqualificação dos serviços públicos em favor daqueles oriundos da iniciativa privada.

4 Seguindo a premissa de priorização dos gastos públicos, o Brasil é um dos países que menos gasta com a saúde: US$ 67.00 por habitante/ano, contra US$ 370.32 do Uruguai e US$ 255.78 da Argentina (e US$ 150.00 na Bolívia!). As dotações orçamentárias no campo da saúde caíram, em 1995, em 49,5% com relação ao ano anterior. E, no Plano Plurianual (que define os investimentos no intervalo de quatro anos), os investimentos propostos para a Defesa Nacional atingem o montante de R$ 5,6 bilhões até 1999, contra R$ 4,5 bilhões para a saúde (Pires Filho, 1996).

 

* Professora de psicologia da Universidade Luterana do Brasil, Manaus - Amazonas.

** Grupo de Pesquisas Marxismo & Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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