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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.2 n.1 Juiz de Fora jun. 2008

 

RESENHA

 

Book Review “Improving Literacy by Teaching Morphemes”

 

Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota

 

 

Estabelecer que desenvolver a habilidade de refletir sobre os sons que compõem a fala ajuda no aprendizado da leitura e escrita foi considerado um dos grandes sucessos da psicologia do desenvolvimento no século XX (Cardoso-Martins, 1995). Na entrada do século XXI, uma nova habilidade metalinguística, a consciência morfológica, tem ocupado o interesse de pesquisadores na área do processamento da língua escrita. Ao editar o livro “Improving Literacy by Teaching Morphemes”1 (“Melhorando a alfabetização ensinando morfemas”), Terezinha Nunes e Peter Bryant (2006) descrevem o resultado do amadurecimento de dez anos de pesquisas realizadas pelos autores nesta área. Apresentam um novo desafio para psicólogos e educadores interessados na aprendizagem da leitura e da escrita.

O conhecimento da morfologia da língua pode ser importante para se aprender a ler e escrever porque as línguas alfabéticas variam quanto ao grau de correspondência entre as letras e os sons da fala. Muitas das irregularidades encontradas na escrita podem ser explicadas pela estrutura morfológica das palavras. Por exemplo, “cobrisse” e “meninice” possuem o mesmo som final, mas são escritas de forma diferentes porque têm classes gramaticais diferentes. O morfema “ice” é usado em substantivos e os morfemas que formam a unidade “isse” em verbos.

O livro de Nunes e Bryant (2006) é dividido em três partes. Na primeira parte do livro, os autores discutem a importância do processamento morfológico para o desenvolvimento do conhecimento ortográfico. Nessa parte, composta de dois capítulos, os autores também descrevem resultados de pesquisas, quase todas realizadas por eles, em que mostram que o conhecimento sobre os morfemas que compõem as palavras evoluem ao longo do desenvolvimento e contribuem para a alfabetização. Essa relação é de causalidade múltipla, isto é, ao mesmo tempo em que o conhecimento da morfologia da língua ajuda na alfabetização, esta contribui para o desenvolvimento do conhecimento dos morfemas.

Na segunda parte do livro, os autores discutem a aplicação prática dessas pesquisas para a educação. São apresentadas evidências de estudos de intervenção realizados tanto no laboratório quanto na sala de aula. Os resultados de tais pesquisas demonstram que tornar explícita a relação em os morfemas que compõem a fala e a ortografia contribui de um modo geral para melhorar a escrita das crianças.

As considerações dos professores sobre o ensino dos morfemas são discutidas. Muitos professores, participantes das pesquisas descritas, relatam que antes da intervenção dos pesquisadores raramente incluíam um ensino sistemático da relação morfemas-ortografia na sua prática pedagógica.

Na terceira parte do livro, os autores discutem as implicações gerais dos resultados para a educação. Um aspecto interessante desse conteúdo do livro são as considerações dos autores sobre a transposição dos resultados de pesquisa no laboratório para o contexto da sala de aula. Essa é uma questão que permeia muitas pesquisas em desenvolvimento cognitivo, e a discussão de Nunes e Bryant (2006) aponta alguns caminhos. Um aspecto interessante que os autores levantam é a necessidade de flexibilização da intervenção na sala de aula, para atender às necessidades individuais dos professores e alunos, e, ao mesmo tempo, não se perder a possibilidade do controle de variáveis tão necessária para que possamos determinar o efeito da intervenção. Para Nunes e Bryant, a combinação de estudos de intervenção em laboratório, com estudos no contexto da sala de aula, podem conciliar as dificuldades encontradas por pesquisadores nesses dois settings.

O livro termina com uma discussão metodológica a respeito das quatro estratégias de pesquisa utilizadas pelos autores: estudos longitudinais, estudos de intervenção no laboratório, estudo de intervenção na sala de aula e entrevista com professores. Estudos longitudinais são utilizados com o objetivo de obter dados com validade ecológica e que controlem variações individuais no desempeno das crianças. Os estudos de intervenção, feitos em condições controladas, podem estabelecer possíveis relações de causa e efeito entre as variáveis estudadas. Os estudos de intervenção em sala de aula objetivam testar a validade dos achados dos estudos realizados de forma controlada no contexto realidade escolar. O relato dos professores, obtido através de entrevista, vem ajudar nessa contextualização. Ao longo do livro, para cada uma das estratégias são descritos resultados de pesquisas cuidadosamente delineadas. Em todas os capítulos, os autores ressaltam a importância de tornar o conhecimento morfológico explícito para as crianças e também para os professores. Apresenta-se assim um livro compreensivo que aborda as diversas facetas da pesquisa básica e aplicada em desenvolvimento.

O trabalho de psicólogos e educadores com o processamento morfológico, no contexto da sala de aula, é um campo de atuação relativamente novo que necessita ser mais bem estudado. Nesse ponto, o livro de Nunes & Bryant (2006) apresenta um ponto de partida interessante, com sugestões práticas testadas em situações reais em sala de aula. A experiência de Terezinha Nunes com questões educacionais é claramente refletida neste livro, e, como sempre, os autores apresentam sugestões inovadoras, que podem ajudar tanto nas práticas de sala de aula, quanto no atendimento clínico e de avaliação psicoeducacional.

Algumas sugestões de Nunes e Bryant (2006) se assemelham às propostas já implementadas no Brasil por Arthur Gomes de Morais (2002) em seu livro “ortografia: ensinar e aprender”, de forma que a adaptação das atividades para o português pode ser facilmente obtida. O diferencial do trabalho de Nunes e Bryant para o de Morais repousa em dois pontos: enquanto Morais apresenta um panorama geral do ensino da ortografia no português, Nunes e Bryant focam no processamento morfológico. O segundo aspecto diz respeito ao suporte empírico às práticas sugeridas. Embora, o livro de Morais seja rico na discussão pedagógica sobre o ensino da ortografia, poucas são as evidências empíricas apresentadas para validar a eficácia de suas sugestões.

A obra interessa não apenas a estudantes, professores e demais profissionais interessados nas questões práticas da alfabetização, mas também interessa a pesquisadores. Como é característico de outras obras de Peter Bryant, o livro apresenta uma discussão metodológica aprofundada a respeito de como obter evidências empíricas para substanciar hipóteses neste campo de atuação (Bradley & Bryant, 1985; Goswami & Bryant, 1990). Mas é justamente na descrição das evidências que o livro deixa um pouco a desejar. Embora, os autores reconheçam que há um grande número de estudos que mostram a importância do processamento morfológico na alfabetização, as descrições dos estudos se limitam quase todos aos realizados pelos autores e seus colaboradores. Como já mencionado acima, embora os trabalhos na área da morfologia e alfabetização tenham negligenciado a aplicação prática desses conhecimentos para o ensino, há um profusão de estudos que mostram a associação entre as duas habilidades cognitivas que não são descritas no livro. Esse fato, porém, em nada compromete a qualidade das informações contidas no livro.

Outra característica que se mantém nas outras obras de Bryant (Bradley & Bryant, 1985; Goswami & Bryant, 1990; Nunes & Bryant, 1997) é a linguagem que é acessível e proporciona fluidez na leitura, facilidade para o entendimento dos conteúdos, mesmo quando se discutem questões mais árduas como os conteúdos metodológicos. A experiência de Terezinha Nunes com questões educacionais complementa o rigor metodológico dos estudos apresentados, de forma que a obra se torna uma leitura indispensável para todas as pessoas que trabalham e pesquisam a alfabetização.

 

 

Referências:

Bradley, L. & Bryant, P. (1985). Children´s reading problem. Oxford: Basil Blackwells.

Cardoso-Martins, C. (1995). Consciência fonológica e alfabetização. Petrópolis: Vozes.

Goswami, U. & Bryant, P. (1990). Phonological Skills and Learning to Read. London: Lawrence Erlbaun Associates.

Morais, A. (2002). Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Ática.

Nunes, T. & Bryant, P. (1997). Crianças fazendo matemática. Porto Alegre: Artes Médicas.

Nunes, T. & Bryant, P. (2006). Improving Literacy by teaching Morphemes. London: Routledge.

 

 

1 Embora no Brasil a palavra literacy seja traduzida como letramento no texto ne Nunes e Bryant (2006), ela é usada no sentido clássico da palavra alfabetização.

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