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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

A (não) extração do objeto a na psicose: algumas notas sobre o Homem dos Lobos1

 

The (non) extraction of the object a in psychosis: some notes on the Wolf Man

 

 

Virginia L. Souto Maior Sanábio*

UNIPAC

 

 


RESUMO

Este trabalho se propõe a investigar o caso clínico freudiano conhecido como O Homem dos Lobos. O caso abre um campo vasto de discussão por apresentar um polimorfismo clínico; porém, nossa pesquisa se restringe à discussão da relação desse sujeito com o objeto pulsional que, na teoria lacaniana, é tratado pela noção de gozo, sob a forma de objeto a. Para o sujeito psicótico, não houve a extração do objeto a; o advento inicial de se tornar sujeito encontra-se em estado confuso, no lugar do Outro. Isto é, a distinção interior/exterior, dentro/fora, eu/outro, mostra-se esfumaçada. Para colocar em discussão esse tema, nosso trabalho se serve da topologia, da psicanálise e da fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty.

Palavras-chave: Psicanálise, Fenomenologia, Espelho, Objeto a, Olhar


ABSTRACT

This paper investigates the Freudian clinical case known as The Man of the Wolves. The case opens a vast field of discussion by presenting a clinical polymorphism; however, our research limits itself to the discussion of the relation of this subject to the pulsating object that, in the Lacan’s theory, evokes the notion of jouissance, under the form of the object a. For the psychotic subject there was not an extraction of the object a; the initial advent of becoming subject is in a confused state, i. e., the distinction interior/exterior, in/out, I/other is blotted out. In order to discuss this theme our paper uses the topology, the psychoanalysis and Maurice Merleau-Ponty’s phenomelogy of perception.

Keywords: Psychoanalysis, Phenomenology, Mirror, Object a, Look


 

 

Este trabalho tem como objetivo investigar a noção lacaniana de “objeto a” e, ainda, o modo como Lacan opera com esse conceito em relação à extração do objeto. O estudo faz uma articulação entre a teoria e a clínica, examinando o caso clínico freudiano, o “Homem dos Lobos”. Entretanto, não temos a pretensão de fazer da clínica a validação da teoria e, muito menos, de estabelecer normas ou critérios que possam servir para a conformidade clínica de um diagnóstico.

Em relação ao caso clínico, optamos por apresentar alguns pontos das leituras de Freud, Lacan e Ruth Brunswick. Com Freud, destacamos uma questão sobre o caso, que segue como uma via de discussão entre a teoria e o caso. Freud indaga “se uma criança na tenra idade de um ano e meio poderia estar numa posição de absorver a percepção de um processo tão complicado e preservá-la tão acuradamente em seu inconsciente” (FREUD, 1969, p. 55).

Freud levanta uma dúvida que será investigada ao longo do tratamento com o Homem dos Lobos. Verificamos que nessa questão a visão da cena primária e seu registro inconsciente constituem, na leitura freudiana do caso, um ponto específico para a construção de uma lógica do caso. O essencial é, então, localizar de que modo o sujeito articulou essa cena em significantes, em seu sintoma.

Sobre a impressão da cena primitiva, Lacan comenta que esta cena estava excluída da história daquele sujeito, permaneceu durante anos, não servindo para nada, como uma letra morta. Foi, então, com a insistência de Freud, que a experiência com o sonho infantil, o sonho com os lobos, permitiu não o revivido, mas a reconstrução direta da história do sujeito. Adiante, retomaremos esse sonho infantil e sua articulação à cena primária.

O Homem dos Lobos iniciou sua análise com Freud aos 23 anos de idade, já tendo se submetido à outra forma de tratamento anteriormente. Desde a infância, apresentava uma série clínica que se caracterizava por sintomas obsessivos, fóbicos e histéricos. Esse polimorfismo clínico constituiu uma dificuldade específica do caso. Embora Freud o tenha diagnosticado como neurótico obsessivo, há aí certa disjunção entre sintoma e a neurose tal como Freud a formulou em seus casos clínicos paradigmáticos.

Nossa investigação sobre a extração do objeto levanta algumas questões que remetem à discussão fenomenológica: como eu, sujeito da consciência, posso apreender um objeto no mundo sensível?

Para responder a essa questão, iremos localizar, na psicanálise e na fenomenologia da percepção, o advento de se tornar sujeito.

 

Os impasses do caso clínico

O Homem dos Lobos não apresentava conflitos de ordem moral, mas de esfera sexual. Sua infância fora marcada por uma oscilação entre a atividade e a passividade, e sua puberdade por um esforço de masculinidade. Esses impulsos sexuais conflitantes colocaram o sujeito em uma posição paradoxal frente à castração. As lembranças que o sujeito trazia em análise colocavam em cena o tema da castração, e permitiam Freud concluir que, para esse sujeito, as tendências passivas haviam aparecido ao mesmo tempo em que surgiram as sádico-ativas, expondo, assim, seu caráter de ambivalência. As fantasias de conteúdo sádico se transformavam em tendências masoquistas. E a problemática da castração foi resolvida quando uma terceira corrente entrou em atividade. Tal corrente está ligada ao fenômeno da alucinação, a alucinação do dedo cortado. O modo como o sujeito lida com a castração é uma problemática específica do caso.

No esquema clássico freudiano sobre o recalque, este está ligado à rivalidade com o pai, rival onipotente, sancionado pelo temor da castração. O recalque exibe, pois, uma dissociação entre a sexualidade e o eu (moi), processo duplo que teria um resultado normativo e feliz no período de latência. Mas o retorno do recalcado provoca as neuroses infantis que sobrevêm no período de latência.

Nesse caso clínico, a rivalidade com o pai está longe de ter se realizado e é substituída por uma relação que, desde a origem, se apresenta como uma afinidade eletiva com o pai. O Homem dos Lobos amava seu pai, que era muito gentil com ele. O pai não é castrador nem em seus atos, nem em seu ser. Trata-se de um pai doente, mais castrado que castrador. Todavia, Freud nos diz que o temor da castração domina esse sujeito.

Na observação de Freud, a vida sexual desse sujeito regride a uma fase da organização pré-genital, assumindo um caráter anal-sádico. As tendências passivas estavam ligadas a outro problema: contemplar o pai como objeto sexual. O menino passa a forçar castigos por parte do pai, para, dessa forma, obter dele a satisfação sexual masoquista que desejava.

Entretanto, a partir de um sonho, o sonho dos lobos, aparece uma mudança de caráter no menino e ele passa a se identificar à mãe castrada. Nesse sonho traumático, chama a atenção o ato de abertura da janela, a imobilidade dos lobos e o olhar:

Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (Meu leito tem o pé da cama voltado para a janela: em frente da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho, e de noite). De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, as orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei (FREUD, 1969, p. 45).

Freud comenta sobre esse sonho que “a única ação no sonho foi a abertura da janela, pois os lobos estavam sentados muito quietos e sem fazer nenhum movimento sobre os ramos da árvore, à direita e à esquerda do tronco, e olhavam para o menino” (Ibid.). O sonho, segundo Freud, torna possível reviver uma cena, esquecida em sua memória, a cena de um coito a tergo dos pais, capaz de mostrar-lhe como era a satisfação obtida pelo pai; e o resultado foi o terror da realização desse desejo:

Sob a influência da cena primária, chegou à conclusão de que a mãe ficara doente por causa daquilo que o pai lhe fizera; e seu medo de ter sangue nas fezes, de estar doente como a mãe, era a sua recusa a identificar-se com ela nessa cena sexual – a mesma recusa com a qual despertou do sonho. Mas o medo era também uma prova de que, na sua elaboração posterior da cena primária, colocara-se no lugar da mãe e invejara-lhe essa relação com o pai. O órgão pelo qual sua identificação com as mulheres, sua atitude homossexual passiva para com os homens, estava apto a expressar-se, era a zona anal (Ibid., pp. 99-100).

Na explicação freudiana, “sua atitude feminina em relação aos homens, que fora repudiada pelo ato de recalque, retraiu-se para os sintomas intestinais e expressou-se nos episódios de diarreia, prisão de ventre e dores intestinais” (Ibid., p. 102).

Freud considera possível que o recalcamento e a rejeição operem lado a lado. Lacan comenta que para esse sujeito não houve o recalque, pois um recalque é outra coisa que um julgamento que rejeita e escolhe e, para haver um recalque, é preciso um primeiro núcleo do recalcado. Para Lacan, a cena primária permanecia não significantizada, foi preciso o acosso de Freud para que ela entrasse na história daquele sujeito. No Homem dos Lobos, a impressão da cena primordial permaneceu lá durante anos, não servindo como significante, mas como letra morta. Assim, conclui Lacan, “o que não veio à luz do simbólico reaparece no real” (LACAN, 1998, p. 390).

Freud comenta que o reconhecimento da castração é atestado no momento do despertar do sonho, ele acrescenta aí uma terceira corrente em atividade relativa ao fenômeno de alucinação ocorrido aos cinco anos de idade:

Quando eu tinha cinco anos, estava brincando no jardim perto da babá, fazendo cortes com meu canivete na casca de uma das nogueiras que aparecem em meu sonho também. De repente, para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo mínimo da mão (direita ou esquerda?), de modo que ele se achava dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor, mas um grande medo. Não me atrevi a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas alguns passos de distância, mas deixei-me cair sobre o assento mais próximo e lá fiquei sentado, incapaz de dirigir outro olhar ao meu dedo. Por fim, me acalmei, olhei para ele e vi que estava inteiramente ileso (FREUD, 1969, p. 108).

Sobre o fenômeno da alucinação Lacan comenta que é “um real primitivo, um real não-simbolizado” (LACAN, 1985, p 74). Assevera que nessa alucinação episódica “mostram-se as virtualidades paranoicas do homem dos lobos” (Ibid., p. 57).

Freud estabelece, no que concerne à alucinação, uma equivalência entre dedo e pênis, sendo possível entender que a castração opera aí, de modo alucinado.

A questão do gozo é uma outra problemática no caso. O intestino passa a ser erotizado e o pênis é não é atingido pela castração. O sujeito desloca a questão da castração, ter ou não ter o pênis, para o traseiro da mulher, e passa a sofrer de obstinadas perturbações na função intestinal, que só são resolvidas com a aplicação de enemas, administrados por um enfermeiro. O gozo anal é articulado pelo sujeito no fenômeno do véu: “O mundo, dizia ele, estava oculto dele por um véu”, e, segundo a interpretação freudiana, o “rompimento do véu era análogo à abertura da janela e dos seus olhos” (FREUD, 1969, p. 126), na cena do sonho.

O sujeito comentava ainda que “nascera com um âmnio e por esse motivo sempre se considerara uma criança especial, com sorte, a quem nenhuma desgraça podia sobrevir” (Ibid., p 125). Essa convicção permaneceu até o aparecimento de uma gonorreia. O âmnio era o véu que o escondia do mundo e que escondia o mundo dele. Tem-se aí, então, o significante velando o objeto de gozo que marca no sujeito sua falta-a-ser.

Entretanto, em outubro de 1926, o Homem dos Lobos se apresenta no consultório de Ruth Brunswick, sofrendo de uma ideia fixa de hipocondria. Lamentava-se de ser vítima de um dano sofrido no nariz, provocado pela eletrólise que foi utilizada no tratamento para obstrução de glândulas sebáceas desse órgão. Diz a analista: “o dano, segundo ele, consistia alternadamente em uma cicatriz, em um furo, ou em uma pequena cavidade no tecido cicatricial. Haviam arruinado o perfil do seu nariz” (BRUNSWICK, 1976, p.180).

Na análise com Ruth Brunswick, tem-se que o vazio essencial do mundo se dá a ser visto. Nesse momento, a angústia designa o olhar como objeto a. Aparece aí um furo no nariz, elemento causador de angústia, pois o sujeito acredita que o furo será visto por todos. Desse modo, o véu de sua primeira doença, pela qual o mundo se abria na evacuação, nesse momento, ele o cobria totalmente. O sujeito passa a ter preocupações perturbadoras com o corpo e nenhum procedimento médico o acalmava. Ora encontrava-se estável, sentindo inclusive êxtase durante algum procedimento médico, ora encontrava-se perturbado, desconfiando dos médicos e sentindo-se perseguido por eles.

Temos, então, que na infância o sujeito consegue velar o olhar por meio de suas construções fantasmáticas, mas na fase adulta ele não dispõe de uma significação fantasmática para recobrir o olhar. O olhar aparece no Real. Nesse episódio hipocondríaco, aparece a zerificação do falo, todos olham o furo no seu nariz, mais precisamente: o “furo da imagem especular” (QUINET, 2006, p. 147).

 

A extração do objeto a e a fenomenologia do objeto

Lacan se interessa pela fenomenologia de Merleau-Ponty porque, na Fenomenologia da Percepção, a trajetória do pensamento de Merleau-Ponty marca a passagem de uma perspectiva fenomenológica para uma investigação ontológica. Merleau-Ponty propõe uma interrogação no nível do próprio fenômeno, rechaçando os aspectos da consciência do percipiens, por exemplo, do juízo e da atenção, presentes na tradição fenomenológica. Ele interroga o fenômeno em si, situando-o em um nível pré-reflexivo e anterior a qualquer atribuição de sentido, valor e juízo. O que interessa a Merleau-Ponty é apreender a percepção a partir de sua emergência originária no fenômeno perceptivo. Ele tem a preocupação de revelar que a consciência perceptiva é fundante em relação à consciência representativa.

Bernard Baas comenta que Merleau-Ponty fala da pré-história do sujeito como uma espécie de tradição pré-pessoal. Antes mesmo do acontecimento do sujeito, antes mesmo da bifurcação do sujeito e do objeto, já é determinado certo modo de relação com o mundo que não cessará, e, em seguida, determinará secretamente essa relação. Esse sujeito pré-subjetivo é o corpo, enquanto carne. Assim, o corpo apresenta o atributo do objeto, isto é, a visibilidade. O corpo é o visível que se vê, um tocado que se toca, um sentido que se sente. O corpo enquanto carne é a fonte da experiência, somente há o mundo pela experiência. Para Bernard Baas, esse modo de relacionar a fenomenologia a uma espécie de ontologia do corpo aproxima-se do que Freud chamou de Coisa.

A Fenomenologia da Percepção está organizada a partir da concepção de um sujeito unificado (o sujeito que percebe) e de uma unidade antepredicativa do objeto. Lacan vai demonstrar que o sujeito já está incluído no próprio fenômeno, e que este em si não é unívoco, mas tem uma estrutura significante. O fenômeno já é estruturado pelas relações dos significantes. Ou seja, o percebido tem uma estrutura de linguagem, já que o homem está imerso em um universo de discurso que estrutura sua realidade e suas percepções. Lacan propõe uma lógica da percepção, em que superpõe significante e sujeito.

O perceptum, como significante, vem primeiro, e o percipiens é determinado por ele. O sujeito se constitui como recalcado, separado do Outro. “O sujeito subordinado ao primado do significante sofre um efeito de divisão, de fenda, de perda, de eclipse, de fading, e apela à função de um objeto que o complemente” (LACAN apud MILLER, 2005, p. 264).

Com essa construção, Lacan se pergunta como o sujeito do inconsciente pode encontrar seu equivalente no nível da pulsão? A libido vai alojar-se no circuito que vai da falta do sujeito à falta do Outro. A pulsão é esse movimento psíquico em torno de um objeto que foi extraído de nosso corpo e se relaciona ao objeto de modo congruente, em uma lógica de reversibilidade.

Freud privilegiava o estatuto do olhar como narcísico, dirigido para o corpo próprio na fase do autoeorotismo. Em seu texto sobre o Fetichismo (1927), ele cita o caso de um rapaz que “tinha erigido como condição de fetiche certo brilho no nariz – Glanz auf der Nase” (FREUD, 1969, p. 179). Na análise do caso, Freud nota que o “brilho no nariz” designava, na verdade, o “olhar no nariz”.

Consideremos esse brilho luminoso como representando o objeto a olhar, no campo visual: o olhar como objeto, o olhar que não é visível, mas o olhar de onde sou percebido. O estabelecimento do campo visual implica na perda desse objeto da pulsão que é o olhar, sua elisão é a condição da organização desse campo. Podemos dizer que, após a barreira do olhar, surge o sujeito da percepção.

É nessa direção que caminha Merleau-Ponty em Visível e Invisível, cujo ponto central é a preexistência de um olhar no espetáculo do mundo. A iluminação é o que preexiste, ela é o guia do olhar, diz o que é para ver.

Segundo Lacan, existe a preexistência de um dado-a-ver. O olhar lacaniano está do lado do perceptum e não do percipiens. Para ele, a iluminação faz concentração de luz, “ali onde não parece servir para se ver os objetos, mas sim ela própria se dá a ver. É o ponto luminoso, ou ainda o que faz opacidade no campo do Outro” (MILLER, 2005, p.285).

Temos, então, a luz como equivalente do olhar. O sujeito pode se sentir olhado e isto pode produzir desejo ou angústia. O sujeito é olhado. Há um olhar normalmente elidido do campo da visão, que visa ao sujeito. Por isso a necessidade da tela para apagar o olhar do mundo.

Com base nessa dimensão da função do olhar, este tornar-se mancha por parte do sujeito, Lacan completa Merleau-Ponty e os dados psicológicos da Gestalt por meio dos fenômenos do mimetismo: “É com o mimetismo que assistimos ao sujeito fazendo-se mancha, entrando no quadro e produzindo – para acomodar-se à estrutura do percebido – o semblante, destacado dele próprio, pois poderá assumir um outro” (LACAN apud MILLER, 2005, p. 288). De acordo com Miller, o mimetismo ilustra certo “fazer-se objeto” (Ibid.). O mimetismo é certo esboço de separação do objeto, “uma separação primitiva na qual o sujeito se liberta de uma parte de si mesmo, se automutila de seu semblante” (Ibid.).

 

Conclusão

Esse objeto, que é designado por Lacan como objeto a, é paradoxal: ao mesmo tempo que é sinal de perda é sinal de mais, isto é, da recuperação de um gozo. Tomemos o exemplo do olhar. O olhar é inapreensível para o neurótico, mas pode ser imaginado no campo do Outro, seja quando uma porta se fecha, seja quando se escuta barulho de passos em toda situação que se supõe a presença de alguém e que o sujeito se sente olhado. Na psicose, entretanto, o olhar pode surgir como um fenômeno no campo da realidade.

Lacan afirma: “se o que mais existe de mim mesmo está do lado de fora, não tanto porque eu o tenha projetado, mas por ter sido cortado de mim, os caminhos que eu seguir para sua recuperação oferecerão uma variedade inteiramente diferente” (LACAN, 2005, p. 246).

A partir do esquema ótico, Lacan percebe que é necessária uma distância do sujeito em relação ao espelho “para dar ao sujeito o distanciamento de si mesmo que a dimensão especular é feita para lhe oferecer” (Ibid., p. 134). No caso das psicoses, escreve Lacan, “não é que os objetos [sejam] invasivos (…). O que constitui seu perigo para o eu? É a própria estrutura desses objetos, que os torna impróprios para a egoização, ou seja, na estrutura de alguns desses objetos há uma forma não especularizável” (Ibid.). Em termos fenomenológicos, a despersonalização começa com o não-reconhecimento da imagem no espelho: “Se o que é visto no espelho é angustiante, é por não ser passível de ser proposto ao reconhecimento do Outro” (Ibid.).

A imagem especular torna-se a imagem estranha e invasiva do duplo. Esse objeto que aparece repentinamente é o objeto a. Quando na psicose o sujeito é incapaz de ceder o objeto, ele o encontra no Real.

É o que acontece no Homem dos Lobos. Com a produção do sonho, o sujeito tem uma posição de perplexidade e imobilidade, ele crê naquilo que vê. Lacan comenta que na janela que se abre, coberta de lobos, o sujeito fica estupefato por aquilo que observa, paralisado por esse fascínio de ver seu próprio reflexo na imagem da árvore e dos lobos empoleirados, numa cena em que o sujeito vê e de onde é visto: “O sujeito não passa de uma ereção nessa tomada que faz dele o falo, que o imobiliza inteiro, que o transforma em árvore” (Ibid., p. 284).

 

 

Referências bibliográficas

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QUINET, A. (2006) Psicose e Laço Social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

MILLER, J.-A. (2005) “Lição 18 – Consistência lógica e extração corporal”, in Silet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 259-274.         [ Links ]

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Artigo recebido em: abril de 2009
Aprovado para publicação em: junho de 2009

 

 

1 Esse texto é resultado de uma pesquisa de Mestrado em Psicologia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), área de concentração: Estudos Psicanalíticos, sob orientação do Prof. Doutor Antônio Teixeira.
* Graduada em Psicologia (PUC-MG); Mestre em Psicologia pela UFMG. Professora do Curso de Psicologia da UNIPAC (Universidade Professor Antônio Carlos) – Ipatinga/MG. E-mail: wsanabio@uai.com.br
** rosangd@uol.com.br

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