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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.13 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2020

https://doi.org/10.4013/ctc.2020.132.07 

ARTIGOS

 

O encontro com o primitivo na UTI neonatal: contribuições da clínica winnicottiana a partir de um estudo de caso

 

The meeting with the primitive in the NICU: contributions of the winnicottian clinic from a case study

 

 

Carolina Marocco Esteves; Cesar Augusto Piccinini

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Correspondência para

 

 


RESUMO

O objetivo do presente estudo foi investigar os alcances e limites da clínica winnicottiana dos estágios primitivos, no atendimento de uma mãe primípara e sua filha nascida prematura. Foram realizados treze atendimentos durante a internação da bebê na UTI Neonatal. Foi utilizado um delineamento de estudo de caso único. O material do caso foi organizado em forma de relato clínico e revelou que a mãe encontrava-se em um estado regressivo, que com a prematuridade da filha desorganizou-se ainda mais. A desintegração por parte da mãe, não permitia que ela conseguisse lidar bem com sua filha. Os atendimentos, baseados no holding e em uma escuta sensível auxiliaram a mãe a integrar-se mais e se aproximar da filha. Evidências indicaram a importância da escuta profissional sensível e atenta ao mundo psíquico da mãe, que contribuiu para a integração psíquica do bebê prematuro.

Palavras-chave: prematuridade; clínica winnicottiana; maternidade.


ABSTRACT

The aim of the current study was to investigate the scope and limits of the Winnicottian clinic of early stages in the care of one primiparus mother and her premature born daughter. Thirteen consultations were made during the baby's hospitalization in the NICU. A single case study design was used. The material was organized in the form of a clinical story and revealed that the mother was in a regressive state, which with her premature daughter's became even more disorganized. The results revealed that the mother's deep disintegration did not allow her to handle her daughter well. Consultations based on the holding and on sensitive listening helped the mother to become more integrated and closer to the daughter. Evidence indicated the importance of sensitive professional listening, attentive to the mother's psychic world, which contributed to the psychic integration of the premature baby.

Keywords: prematurity; winnicottian's clinic; motherhood.


 

 

Introdução

A modernização das Unidades de Terapia Intensivas Neonatais - UTIs Neo1 foi um marco no cuidado de bebês nascidos prematuros, pois reduziram a mortalidade neonatal (Cordova & Belfort, 2020). O bebê prematuro pode ser classificado como extremamente prematuro (EP), com menos de 28 semanas gestacionais; muito prematuros (MP), que englobam os nascidos entre 28 e 32 semanas gestacionais; e prematuros moderados, que nasceram entre 32 e 37 semanas gestacionais (Maxwell, et al., 2017). A classificação do bebê no nascimento pode ser feita também considerando seu peso (American Academy of Pediatrics, 2008): extremo baixo peso (EBP), com menos de 1000g; muito baixo peso (MBP), com menos de 1500g e baixo peso (BP), com menos de 2500g (Stoll et al., 2015).

Estudos também têm destacado associação entre o nascimento prematuro e o comportamento materno alterado (Neri, et al., 2018). Em particular, as mães de bebês prematuros tendem a olhar, sorrir, vocalizar e tocar seus bebês menos do que as mães de bebês a termo (Miljkovitch et al., 2013). Inicialmente, a participação das mães e pais no cuidado com o bebê é limitada, tendo em vista que para sua sobrevivência, o cuidado substitutivo da equipe de saúde é vital (Heinemann et al., 2013). Neste contexto, as primeiras experiências mãe-bebê nascido prematuro acabam sendo muito afetadas e tendem a ficar mais distantes das que ocorrem no contexto do nascimento a termo.

De acordo com Winnicott (2006), a dependência ambiental é total após o nascimento do bebê. A partir dos últimos meses da gestação até alguns meses após o parto, a mãe passa a viver o que ele denominou de preocupação materna primária2. Contudo, no contexto do nascimento prematuro, a mãe poderá ter mais dificuldade para ingressar em tal estado. Na sua obra, o autor não se debruçou especificamente sobre a relação mães e bebês nascidos prematuros, mas referiu que pareciam existir diferenças nas necessidades emocionais de um bebê nascido a termo e um bebê nascido prematuro (Winnicott, 1963/2007).

Diversos estudos têm investigado as dificuldades da maternidade no contexto da prematuridade propondo intervenções com abordagens teóricas diversas. Por exemplo, o estudo de Palazzi, Meschini e Piccinini (2019) propôs uma Intervenção Musicoterápica para mãe-bebê nascido prematuro. O objetivo foi sensibilizar a mãe a cantar para seu bebê nascido prematuro durante a internação na UTI Neo. Os resultados destacaram que a intervenção favoreceu tanto o empoderamento da mãe e do bebê, quanto à musicalidade comunicativa da díade. Outro estudo, realizado por Schaefer e Donelli (2017), investigou a repercussão de uma intervenção psicoterápica na capacidade de mentalização materna e na interação mãe-bebê. Participaram da intervenção duas duplas mãe-bebê nascido prematuro, durante a internação em UTI Neo. Os resultados revelaram que a intervenção levou a mudanças na capacidade de mentalização materna e aumentou sua sensibilidade quanto às necessidades iniciais do bebê, repercutindo positivamente na interação mãe-bebê.

Tais estudos retratam o interesse pelas primeiras relações da mãe com seu bebê nascido prematuro, especialmente no contexto atual, em que tem aumentado o número de nascimentos prematuros. Porém, a abordagem winnicottiana para a prática clínica na UTI Neo é ainda pouco explorada e foi o foco do presente estudo. Nesse sentido, descreve-se a seguir alguns dos elementos centrais da clínica winnicottiana dos estágios primitivos, que embasou a prática clínica utilizada no presente estudo.

Para Winnicott (1947/2000), o terapeuta deve saber reconhecer as necessidades do paciente e querer dar a ele o que realmente necessita, principalmente na terapia de pacientes no estágio de regressão à dependência. O ambiente protetor e contínuo torna-se mais importante que as interpretações (Winnicott,1955-6/2000). O terapeuta permanece atento ao paciente, esperando o gesto dele, em contato, sustentando a situação. Nesse sentido, entende-se que a interpretação deve ser algo criado/encontrado pelo paciente (Dias, 2014). De acordo com Little (1992), a interpretação winnicottiana tem a qualidade da ilusão, ou seja, o paciente acaba por criar o que já estava ali para ser encontrado.

As atitudes presentes no modo como o terapeuta trata seu paciente e que se expressa no contexto do atendimento são chamados por Winncott de manejo (Winnicott, 1960/2007). De acordo com Loparic (2011), o manejo consiste na prática pela qual Winnicott revolucionou a clínica psicanalítica. No tratamento por manejo o relacionamento paciente-terapeuta é pautado em uma série de atitudes e providências, que incluem: a confiabilidade do analista, a regularidade ambiental, a capacidade do analista de reconhecer seus erros e decisões. A função terapêutica de holding encontra-se entre os principais componentes do manejo na clínica e relaciona-se com a integração da personalidade do paciente. Uma vez atingido tal objetivo, o paciente, caso seja sua necessidade, poderá regredir, para depois retomar seu desenvolvimento emocional (Winnicott, 1954/2000).

Esses aspectos da clínica winnicotiana irão se deparar com a complexidade da situação vivida pelas mães no contexto da prematuridade do seu filho/a, e, nesse contexto, a pertinência, da clínica winnicottiana merecem ser considerada. Nesse sentido, durante o doutorado da primeira autora deste artigo (Esteves, 2017) foi proposto um atendimento baseado nos pressupostos da clínica winnicottiana, voltado para o contexto da prematuridade. O atendimento foi oferecido a cinco mães com bebês internados na UTI Neo, sendo que um dos casos é apresentado neste artigo. Assim sendo, o presente estudo teve por objetivo investigar os alcances e limites da clínica winnicottiana dos estágios primitivos, no atendimento de uma mãe e sua filha nascida prematura.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo a mãe, Mayara3 (20 anos), e sua filha Estefani, nascida prematura (27 semanas gestacionais e 1020 gramas), que permaneceu 81 dias internada em um hospital público. A família era de nível socioeconômico baixo e elas não viviam com o pai de Estefani. O caso atendeu aos critérios de inclusão no estudo: mãe primípara e a bebê nascida extremamente prematuro. Os critérios de exclusão foram: não apresentar má-formação congênita e impedimentos significativos do sensório; meningites e Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV).

Além disso, a indicação para atendimento, atendeu à solicitação da psicóloga da UTI Neo, devido aos sintomas de tristeza, estresse e cansaço, apresentados pela mãe. Havia também relatos de conflitos da mãe com o pai de Estefani, desde a gestação e outros conflitos familiares. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (protocolo 512.422) e do hospital público no qual a bebê estava internada (protocolo 534.779).

Delineamento, procedimentos e instrumentos

Foi utilizado um delineamento de estudo de caso único (Stake, 2006), de caráter longitudinal, com o objetivo de investigar os alcances e limites da clínica winnicottiana dos estágios primitivos, no atendimento de uma mãe e sua filha nascida prematura. O caso aqui relatado foi escolhido, pois apresenta uma boa oportunidade de aprendizado (Stake, 2006).

Após o nascimento da filha, no 17º. dia, a mãe foi convidada e aceitou participar do presente estudo, tendo assinado Termo de consentimento livre e esclarecido. Foram realizados 13 atendimentos com a mãe e/ou bebê. Os atendimentos propostos para o presente estudo tiveram como base a teoria e a clínica winnicottiana, como foi destacado acima. O setting não pode seguir ao que ocorre na clínica winnicottiana tradicional, e precisou ser adaptado para as condições da uti neo e do próprio estado de saúdo do bebe. Assim, os atendimentos ocorreram principalmente em sala de atendimento individual, mas também junto à incubadora, e eventualmente em outros locais do hospital.

Após cada atendimento, era feito o relato clínico do atendimento. Tal relato consistiu na descrição detalhada de cada sessão com a mãe e quando o bebê esteve presente em algumas vezes. Além disso, também constaram no relato as impressões e sentimentos da terapeuta a respeito da sessão, somado a observações da interação mãe-bebê e do bebê na UTI Neo, além de outros aspectos não-verbais observados pela primeira autora do presente estudo. O relato clínico era levado semanalmente para supervisão com duas supervisoras clínicas de orientação psicanalitica, onde eram discutidos os encaminhamentos dos atendimentos, bem como os aspectos transferenciais e contratransferenciais.

Com base no prontuário do bebê foi também preenchida a Ficha de dados demográficos da família (NUDIF/PREPAR, 2009a), Ficha de dados clínicos gestacionais (NUDIF/PREPAR, 2009c), Ficha de dados clínicos do bebê pré-termo e da mãe/ pós-parto (NUDIF/PREPAR, 2009b), e a Ficha de dados clínicos do bebê pré-termo e da mãe/pré-alta (NUDIF/PREPAR, 2009b), que contribuíram para caracterizar o caso.

Todos os dados derivados destes instrumentos e das transcrições das gravações dos atendimentos, assim como as anotações derivadas da supervisão clínica do caso, foram reunidos para fins de análise. Foram feitas repetidas leituras de todos os dados, buscando-se entender o processo clínico realizado.

 

Resultados

Os resultados foram organizados em forma de relato clínico (Epstein, 2011; Mordcovich, 2011). O relato clínico é usualmente utilizado na clínica psicanalítica e igualmente em pesquisas da área por permitir uma escrita privilegiada, rica em detalhes verbais e não verbais e que produz efeitos, tanto em quem relata, quanto em quem escuta (Epstein, 2011). Dessa forma, o relato clínico permite que o pesquisador se aprofunde nos dados e insira em sua análise suas expectativas e subjetividades (Mordcovich, 2011).

Para ilustrar o atendimento realizado, serão apresentadas algumas das principais falas, diálogos e situações diversas ocorridas nas sessões com a mãe e filha. As falas foram, por vezes, transcritas literalmente, outras vezes referidas no próprio relato clínico. O material proveniente das transcrições literais foi colocado em itálico para facilitar a sua identificação. Após a apresentação do caso, são discutidas algumas especificidades da técnica utilizada. A apresentação do material será feita na primeira pessoa do singular, com o objetivo de ilustrar a proximidade da autora com os participantes e com todo o processo da clínica.

Caso Mayara e Estefani

Mayara, 20 anos, residia em uma cidade localizada na região metropolitana de Porto Alegre-RS, com sua mãe e três irmãs, Tamara, Gilmara e Lara. Seus pais eram casados, porém o pai morava em outra cidade. Sua mãe estava desempregada. Na época da gestação, Mayara trabalhava em uma empresa de turismo. Ela não havia concluído o ensino médio, porém ressaltava que, com a saída de sua filha Estefani do hospital, voltaria a estudar. Seu namorado, Miguel, 21 anos, era profissão, tinha segundo grau incompleto e, residia na mesma cidade e é o pai de Estefani. Mayara ressaltou que realizou todo seu pré-natal em um Posto de Saúde. Ela relatou que começou a sentir dores fortes quando completou seis meses de gestação. Ela contraiu sífilis e teve infecção urinária na gravidez.

Em setembro de 2014 nasceu Estefani, com 27 semanas gestacionais e pesando 1020 gramas. Seu Apgar4 atingiu cinco pontos no primeiro minuto e sete nos cinco minutos posteriores (numa escala de no mínimo 0 e no máximo 10), precisando de oxigênio inalatório após o nascimento. A situação de saúde da bebê era grave, pois além da prematuridade, ela contraiu sífilis da mãe na gestação e no momento do nascimento teve anoxia perinatal.

No primeiro contato que eu tive com Mayara, sua filha, Estefani, estava com 17 dias de vida. Inicialmente, a mãe parecia não conseguir enxergar aspectos físicos e limitações relacionadas à prematuridade da filha: "Tu sabia que ela riu para mim ontem? Olhou para mim e riu. Mas é a cara do pai mesmo! Já me conformei, ele no início não queria assumir, mas foi só́ ver ela que mudou de ideia. Ela tá gordinha! ". Eu estranho, inicialmente, a constatação da mãe, pois Estefani é muito prematura e pequena, com pezinhos e mãozinhas minúsculas. Penso um pouco antes de responder e resolvo não concordar, nem a confrontar com a realidade, seria muito intrusivo naquele momento e ela não parece pronta para isso.

Mayara destacava indícios de fantasias a respeito da morte da filha na gestação: "Eu achava que ela poderia estar morta, e um dia ela ficou das nove horas da manhã até o outro dia de tarde, sem se mexer. " É importante destacar que após o nascimento de Estefani, tais fantasias anteriores parecem ter se concretizado como reais para Mayara: "Porque eu já descobri tarde, já pensei que tinha dado um monte de problema nela. Até quando fiz a primeira eco, eu disse para o médico "ela tá todo inteirinha, não tá falando nada? " e ele me acalmou, disse que estava tudo bem. E agora de novo". Penso que ela estava relatando o quanto estava sendo difícil não ter passado pelo processo gestacional de nove meses, sendo que parecia dar indícios de que ainda estava gerando psiquicamente Estefani.

Eu também percebia a fala de Mayara desprovida de afeto, sobre questões importantes do parto e nascimento da filha. Seu amadurecimento psíquico parecia impedir que vivenciasse o contexto da prematuridade da filha de forma mais vívida: "Hoje mesmo a doutora tava falando "tem que pegar um chinelo e dar nessa guria, que ela tá com preguiça de respirar sozinha". E aí a doutora fazia assim com a mão [ela mostra com a mão dela, como se a médica tivesse ameaçado dar uma palmada na filha]. Daí ela [Estefani] levantava a mão para ela e fazia assim tipo "vem bater, então" [gesticula como se a filha tivesse levantado a mão para a médica]. Na sequência das sessões, Mayara foi dando mais ênfase a seu relacionamento com o pai de Estefani e toda problemática envolvida: "Eu disse "tá bom então eu vou embora para P." e ele "se tu for não tem mais direito à pensão" e eu "tu fez, agora tem que pagar".

Com o passar do tempo, observei que mesmo com o desenvolvimento saudável da filha, Mayara não se importava em delegar seus cuidados para membros da equipe médica. Algumas profissionais da UTI Neo, inclusive pareciam assumir a maternidade de Estefani, fato este que pode ter intensificado os receios de Mayara de se responsabilizar pela sua função materna. Mais perto da alta, a equipe começou a chamá-la para assumir o manejo com Estefani, como destacado na fala da enfermeira: "Tu que vai trocar a "minha filha". Mãe: "Eu??". "Sim, vou ficar te auxiliando, mas tu trocas". Mayara colocou Estefani em cima de um trocador e começou a trocar a fralda. A enfermeira tentou ajudar: "Tem que levantar a perninha assim e tirar a fralda por baixo". Mãe: "Eu não quero fazer assim porque ela já fez muito cocô comigo trocando, quando eu pressionei a perna dela na barriga. Fez uma "cocozeira". Enfermeira: "Não tem problema se ela fizer cocô, é bom que faça mesmo".

Eu fico observando e tenho a sensação de que ela saberia como fazer, sem a intervenção da enfermeira e tendo um espaço para errar. Ela parece ficar com vergonha de manusear a filha, com a enfermeira lhe assessorando. Eu começo a falar com Estefani e através disso incentivar Mayara: "Mamãe tá trocando a tua fraldinha, para tu ficares bem sequinha. É bom quando ela troca a tua fralda. Vai ficar com a fraldinha bem sequinha e depois tá na hora de mamar". Mãe: "Pronto, tá bem lindinha e cheirosa!". [Mayara cheira o pescoço da filha] Terapeuta: "Hum, deve ter um cheirinho bom esse pescoço!". Ela leva Estefani até o meu rosto para que eu possa cheirá-la e diz que a bebê tem cheiro de leite. Eu tenho a impressão de estar presenciando o início de uma sintonia entre a mãe e filha.

Nos atendimentos, ela trazia relatos a respeito do ambiente no qual se desenvolveu: "Eu nunca quis fazer nada para dar orgulho para ela [sua mãe], porque quanto mais eu fazia, mais ela dizia que não tinha do que se orgulhar de mim. Ela achava que ia me derrubar, mas quanto mais ela falava, mas eu me fortalecia". Palavras tão fortes, com tanto ódio, rancor, parecem refletir que a mãe de Mayara era distante de ser suficientemente boa e que não contribuía para que a filha pudesse se vincular a ela.

Seus relatos apontaram brigas familiares e uso de projeções intensas, inclusive nas mães que frequentavam a UTI Neo: "Minha amiga teve alta ontem, aí chegou a Alice na sala bem assim "tu viu quem teve alta ontem, eu nem tô bem feliz". E eu, meio que dormindo, meio irritada "se tu continuar falando assim, eu vou te pegar lá na rua e vou te quebrar". Agora ela passou por mim e me deu um baita encontrão no ombro. Ela só pode ser meio louca". Discutimos em supervisão que a briga de Mayara com Alice [que eu também atendia] podia estar relacionada a inveja que a primeira sentia da segunda. Alice encontrava-se mais organizada psiquicamente, formando sua família junto ao marido, o que podia estar despertando a inveja de Mayara, além da disputa pela minha atenção. A competição em relação a mim mostrava a tendência de Mayara à repetição do comportamento competitivo e possessivo que mantinha com as pessoas fora do setting terapêutico. As irmãs eram agora representadas pelas outras mães da UTI Neo e eu a "mãe", pela qual Mayara disputava a atenção e o amor.

Nesse sentido, abriu-se no setting um espaço de acolhimento para que Mayara conseguisse expressar seu sentimento de raiva em relação ao ambiente que a cercava, para que ela pudesse fazer menos uso da projeção para enfrentar a situação e elaborar o que sentia. Porém, ela ainda não conseguia ter insight a respeito de seus sentimentos: "Não sei nem dizer como me sinto. Mas a culpa foi delas, óbvio!". Seu ego parecia não ter se desenvolvido a ponto de conseguir ter muitos insights sobre seus próprios sentimentos e responsabilizar-se por eles. Por vezes, me senti frustrada como terapeuta, com a sensação de que não estava conseguindo fazer suficientemente bem a ela, na minha função de holding, o que reproduzia em parte como Mayara se sentia em relação à filha: frustrada e incompetente para realizar sua função materna.

A relação de reciprocidade com a filha parecia que se invertia: "Porque antes era assim "pega isso aqui, Estefani, se não vou te dar umas tundas!" Daí as gurias me disseram que tem que ter paciência. Tem horas que a gente fala bem carinhosa com ela e ela não faz as coisas, quando engrossa um pouco a voz, ela faz rapidinho. Não sei se ela também não sente que eu fico nervosa, estressada com ela, e quer fazer birra também". Discutiu-se em supervisão que as fantasias de Mayara chegavam ao ponto de querer destruir a filha. Sua onipotência parecia acreditar que ela era capaz, através de seus sentimentos de raiva e destruição, de prejudicar a bebê.

Nos atendimentos, Mayara contou que sua irmã "substituiu" a mãe nos cuidados maternos relacionados a ela, porém tal fato parecia despertar um profundo ressentimento: "A nossa relação [com a própria mãe] sempre foi mais distante. A minha irmã me trata como a filha mais velha dela. Sempre fazia as coisas que eu gostava. A gente fica conversando, conversando. Me espelho nela, não na minha mãe". Seus relatos indicavam que ela tinha uma profunda gratidão e amor pela irmã.

Mayara relatava que a filha não mamava, ou piorava de saúde porque era "preguiçosa". Verbalizava que iria dar "uma tunda" na filha, caso ela não obedecesse: "Já sabia que não tinha nada [referindo-se a exames], isso é preguiça dela mesmo, uma tunda bem dada, um xingão, que ela se recupera da preguiça de mamar". O momento da amamentação ao peito de Estefani, que passou a ocorrer 25 dias após o nascimento mereceu o seguinte comentário de Mayara: "É, estranho ela ficar ali, sugando, sugando. Eu tenho vontade sim [de amamentar], mas é estranho. Só que hoje ela começou a sugar esse aqui [aponta para o peito] e começou a sair leite. Eu pensava que teria muito leite, mas vendo que tenho pouco, fico me achando estranha. Até a técnica me contou que ela tomou [Equilid, remédio que ajuda na produção de leite] e que pingava leite dela. A médica me deu a receita hoje e vou pegar na farmácia". Parece que a amamentação trazia outras particularidades ligadas a própria disponibilidade da mãe para amamentar naquele momento de vida e, particularmente em um contexto complexo, como o da prematuridade, que exige da mãe mais persistência e disponibilidade.

Quando perguntei a respeito de sua história sobre ser amamentada ela disse: "Não, eu nem tenho vontade de perguntar [para a mãe]. Eu me lembro que eu tomava mamadeira, só isso que eu sei e me lembro". Seus sentimentos relacionados a sua mãe eram de ter recebido pouco afeto e dedicação, porém, Mayara não percebia conscientemente o quanto ela reproduzia tal relação com a filha no presente.

A história de Mayara com sua mãe parece ter sido difícil, fato este que pode ser um fator complicador na relação dela com Estefani. O modo como Mayara foi cuidada, amada, respeitada no passado estava refletindo diretamente no seu presente com a filha. Talvez a própria família não esteja "autorizando-a" a exercer e a reconhecer seu papel materno.

Em um dos últimos atendimentos, Mayara traz que sonhou com a filha: "Essa noite sonhei com ela. Acordei com a impressão de que ela tava na cama comigo e acordei preocupada, procurando ela pelo quarto. Outro sonho que tive com ela foi quando ela piorou, eu sonhei que ela tava dentro da incubadora, com aquele pano azul [um pano que a equipe cobre o bebê que falece]. Ela segue relatando que chorava desesperada do lado da incubadora, porém Estefani estava viva e rindo no sonho.

Nos últimos atendimentos, Mayara verbaliza sobre a sua infância com mais profundidade: "A Gilmara me cuidava, porque eu era a mais pequininha, me dava colo. A Tamara, que era a maior, a minha mãe que cuidava, por isso eu acho que tenho mais apego com a minha irmã do que com a minha mãe". Explico que, muitas vezes, a forma como fomos cuidadas, influencia na nossa maternagem com as nossas filhas. Ressalto que, por mais que a gente diga "não quero fazer completamente diferente do que a minha mãe fez", tem coisas dentro de nós que estão tão enraizadas, que às vezes, é difícil fazer diferente. Refiro que quando começamos a pensar nelas, talvez consigamos fazer diferente.

Enquanto fala, Mayara parece cada vez mais fragilizada: "Porque ela [sua mãe] chegava assim, eu bem feliz ia contar "passei em uma prova", e ela "tu passaste em uma prova, mas rodou em tudo!". Báh, me dava aquela, raiva. Daí eu fui ficando cada vez mais triste, triste e me apeguei na minha irmã. Que nem eu disse "vou ser advogada" e ela "para que se tu não gostas de estudar, como é que tu vai fazer uma faculdade?". Eu destaco que Mayara ergueu uma fortaleza para se proteger, porém ela não precisava dessa fortaleza para se proteger de Estefani: "Sim, eu acho que sim. Não, com ela não... Sim... (começa a chorar)".

Ficamos em silêncio e ela chora muito. Eu fico do lado dela, em silêncio também. Eu sinto que foi a primeira vez que consegui me aproximar verdadeiramente dela e entendê-la. Entender melhor seu comportamento com Estefani, com Miguel e com o ambiente. Senti, conhecendo melhor a história de vida dela, que a maternidade que ela internalizou e conhece não é acolhedora, nem amorosa, nem continente. E que o jeito que ela se aproxima de Estefani e fala da filha está muito contaminado por essas experiências precoces.

Mayara segue relatando sobre sua mãe: "Mas ela fala, quando a Estefani vier para casa, eu vou cuidar dela, mas bem capaz que eu vou deixar ela botar a mão". Pergunto do que ela tem receio e ela destaca: "tenho medo que ela trate a Estefani como ela me tratava". Isso me levou a pensar se esse medo é realmente que a mãe trate mal Estefani ou medo dela mesma maltratar a filha?

Ela parece sentir falta da filha e pede para encerrar o atendimento para vê-la: "Eu tô querendo ir lá ver a Estefani, tudo bem? Quero ficar com ela aqui na salinha. Tu ainda vai falar com mais alguém hoje?" respondo que não e ela pede que eu vá ver as duas mais tarde. Eu confirmo que vou. Discutimos em supervisão que seu pedido parecia ser no sentido de chamar sua mãe, que sempre se negou a se aproximar dela, a se aproximar dela e de Estefani. Ela pediu uma nova chance de aproximação, agora comigo/terapeuta, de reconhecê-la como mãe e receber um holding materno, o qual ela não teve por parte de sua mãe. E eu aceitei essa função: eu te seguro e seguro Estefani. Penso também que seu pedido pela minha presença parece refletir seu desejo de estender o ambiente terapêutico para ela e Estefani. Como se a minha presença pudesse neutralizar seus conflitos e conter Mayara, para que, assim, ela pudesse ser uma mãe suficientemente boa para a filha.

Após alguns instantes, saio à procura delas na Sala dos Pais (salinha) e encontro Mayara com Estefani no colo. Cumprimento as duas e fico sentada ao lado delas. Mayara parece mais cuidadosa com a bebê, seu colo mais aconchegante e Estefani relaxada. Ela dorme com a mão perto do rostinho e a mãe refere que não vai acordá-la agora para mamar. Cheira seu pescoço e diz que é "o melhor cheiro do mundo, só fede quando tem cocô". Discutiu-se em supervisão a importância da mutualidade/reciprocidade na relação mãe/bebê. Elas pareciam, enfim, conectadas de alguma forma. Mayara estava começando a desenvolver essa segurança com Estefani, o que tende a demorar mais em mães de bebê nascidos antes do tempo, pois estes são menos responsivos às mães, inicialmente. Realizo o último atendimento das duas no dia da alta hospitalar e destaco que é importante que ela siga no atendimento junto a UBS, conforme já conversado com ela.

Penso que gostaria de ter mais tempo com elas, poder ajudar mais. Porém, o tempo, pode ser curto, longo, mas sempre tem data para terminar, por vezes com alegria, outras com muita tristeza e sofrimento. Sinto que poderia ter feito mais, e até me

preparado mais, tecnicamente falando, para levar a clínica winnicotiana para o contexto de UTI Neo. Ao mesmo tempo, sinto que estava lá para elas, disponível e escutando, e provendo um ambiente para Mayara conseguir trazer todas as suas decepções, raivas e abandonos, para o setting de acolhimento que contruimos, permintindo que ela elaborasse alguns desses conflitos, minimizando seus efeitos na relação com filha. Enfim, finalizar os atendimentos com elas foi difícil, mesmo com a percepção de ter ajudado a díade.

 

Discussão

Considerando o relato clínico apresentado acima, discute-se à luz da literatura, as contribuições, alcances e limites da clínica winnicottiana dos estágios primitivos, para o atendimento de Mayara. Também se destaca especificidades da técnica considerando o atendimento na UTI Neo. Como já destacado, Mayara apresentava uma estrutura psíquica que teve a continuidade do ser interrompida no seu processo de amadurecimento emocional e, neste sentido, um fator importante para o tratamento é a avaliação da estrutura do ego (Winnicott, 1964/2011). Os atendimentos focaram na percepção do estado de integração conquistado pela mãe e no grau de distorção do ego em termos de verdadeiro e falso self presentes na sua personalidade (Winnicott, 1964/2011).

De acordo com Winnicott (1960/2007), para se conseguir ajudar pacientes com as características como as de Mayara, é necessária uma regressão a uma dependência absoluta infantil. Segundo o autor, o paciente precisará passar por um colapso e o analista precisará desempenhar o papel de mãe/ambiente que sustenta para o paciente. Nesse sentido, no decorrer dos atendimentos de Mayara, minha função como terapeuta teve como base teórica a tolerância e a confiabilidade. Contudo, na prática isso se tornou uma difícil função, por diversas razões.

Em alguns momentos, minha tolerância com ela não foi adequada e passei a ter uma postura crítica em relação às suas atitudes. Inicialmente, ela me despertava sentimentos contratransferenciais de irritação, impotência e incompetência profissional, pois sentia que não estava conseguindo ajudar ela e a filha. Sentia uma carga emocional grande durante e após as sessões com Mayara. Meus sentimentos contratransferenciais pareciam estar relacionados aos sentimentos de Mayara pela filha: incapaz de prover o que a bebê necessitava. Winnicott (1947/2000) destacou que os fenômenos contratransferenciais são caracterizados também por anormalidades nos sentimentos, o que consiste em identificações padronizadas e reprimidas pelo analista. As identificações iniciais, as tendências e o desenvolvimento emocional do analista fornecem estruturas sólidas para o trabalho analítico.

O lugar no qual Mayara me colocou, parecia ser o mesmo lugar que a filha Estefani a colocava. Mayara me fez sentir seu ódio, impotência e incompetência em relação a filha. De certa forma ela estava regredida, necessitando de provisão ambiental exatamente como a filha, pois revivia seu nascimento através de Estefani. Tal fenômeno é esperado nesse período do puerpério, quando ocorre uma crescente alteração no funcionamento habitual da mulher, no qual ela estabelece uma associação entre a gestação recente e suas vivências passadas (Bydlowsky, 1997). A autora formulou o conceito de transparência psíquica, que descreve um estado particular do psiquismo materno, onde fragmentos da pré-consciência e do inconsciente encontram saída facilitada à consciência.

A supervisão dos atendimentos e minha análise pessoal foram fundamentais para conseguir entender o que essa relação me despertava e a ligação de tais sentimentos com o meu próprio desenvolvimento emocional. Winnicott (1947/2000) ressaltou que uma das tarefas mais importantes na análise de qualquer paciente é manter a objetividade a respeito de tudo o que o paciente traz e, nesse sentido, permitir-se odiar o paciente também objetivamente.

Com o passar de algumas semanas de atendimentos, Mayara foi se sentindo confiante o suficiente no ambiente/terapeuta. Fui adotando uma postura mais tolerante, de sustentação, pois passei a conhecer mais a fundo sua triste história, além de oferecer uma provisão ambiental confiável do setting terapêutico e do holding emocional (Winnicott, 1963/2007). Em um dos atendimentos, Mayara chorou e trouxe temores íntimos. Ficamos em silêncio por um tempo, o que percebi como um avanço para ela, que muitas vezes parecia vomitar palavras nas sessões. Winnicott (1958/2007) ressaltou que uma sessão silenciosa está longe de ser considerada como resistência por parte do paciente, mas sim, uma conquista. Este momento vivenciado por Mayara pode ter sido um dos poucos que presenciei, onde ela teve a capacidade de ficar só, mesmo na minha presença.

Acredito que ela conseguiu se beneficiar mais do manejo nesse atendimento, que consistiu na minha capacidade de acolher seu sofrimento. Muitas vezes, optei por não interpretá-la, já que a clínica winicotiana proposta para o caso priorizava o holding. Tal postura foi importante nos atendimentos, neste contexto de muita fragilidade e regressão no qual Mayara se encontrava.

O ambiente da UTI Neo suscitava em Mayara sentimentos primitivos e regressivos, como ocorria também com outras mães atendidas. Pode-se dizer que o "clima" entre as mães era regredido e acontecia uma competição precoce: qual bebê era o maior; qual respirava sozinho; quem tinha leite; quem tinha gêmeos [caso de Alice]; ou a equipe médica dava mais atenção. Nesse contexto, abria-se um espaço para sentimentos como raiva, inveja e competição entre mães que estavam muito fragilizadas, com uma estrutura de ego frágil para suportar. Assim, destacou-se a importância de Mayara falar a respeito desses sentimentos para que não fossem negados. Caso não sejam verbalizados, tais sentimentos poderiam se transformar em material tóxico para seu psiquismo.

Nas sessões que realizei fora da sala de atendimento, optei por uma escuta sensível, por vezes simplesmente permanecendo ao lado da díade, junto à incubadora, em silêncio (Winnicott, 1958/2007), não impondo posturas específicas, já que diversos profissionais participavam dos momentos íntimos da mãe com a bebê. Algumas vezes, acompanhei e com sensibilidade incentivei Mayara nos cuidados com a filha, ao mesmo tempo que reconhecia o seu esforço, limites e suas dificuldades (Slade, 2002). Já que, entendendo sua estruturação psíquica, sabia do enorme esforço que estava fazendo, para dar conta do filho e toda situação da prematuridade. Eu buscava encontrar um equilíbrio nos atendimentos para não ser invasiva, ameaçando a mãe na sua função, ou passiva, deixando-a desamparada (Ciotti, 2007).

Quando tinha oportunidade, também me dirigia e conversava com Estefani, utilizando um tom de voz baixo e calmo, para não perturbá-la, com novos sons e vozes, para além de todas as que ela já ouvia na UTI Neo. Assim, falar com Estefani tinha o objetivo de ajudá-la a se conectar com seu mundo interior, compreendendo melhor o que se passava com ela e com o mundo externo que a cercava (Gutman, 2014). Ao mesmo tempo, ajudava a mãe a perceber o quanto o mundo externo, especialmente ela mesma, era importante para a construção psíquica da Estefani.

Winnicott (2006) sugeriu que os profissionais da saúde que acompanham a mãe e o bebê no período do pós-parto devem evitar perturbar tudo aquilo que se desenvolve naturalmente nas mães. De acordo com o autor, para dar instruções à mãe, a equipe deve saber esperar até que ela tenha condições psíquicas para recebê-las. Na UTI Neo, a sensibilidade da equipe médica se faz ainda mais relevante, procurando perceber em que momento intervenções com a mãe podem ser mais adequadas. No decorrer dos atendimentos, foram identificados momentos nos quais a equipe adotou uma postura de "ensinar" a mãe a como cuidar da sua filha.

Os atendimentos também ajudaram a mãe a verbalizar e elaborar sentimentos de culpa pela prematuridade da filha ou por fantasias dela mesma ter causado algum dano na saúde da bebê. Os achados de Arzani et al. (2015) sugeriram que em mães de um bebê nascido prematuro, as angústias e culpas esperadas para para o puerpério em nascimentos a termo, são mais acentuadas e o desafio imposto é ainda maior, pois necessitam trabalhar com sua culpa pelo nascimento prematuro do filho, a separação precoce e o risco de morte.

Ainda sobre a aproximação da mãe e da filha, foi observado que mesmo com o desenvolvimento saudável da filha, Mayara não se importava em delegar seus cuidados para a equipe. Tal dificuldade de aproximar-se da filha poderia estar relacionada tanto ao receio da própria agressividade como ao medo de se vincular à filha e perdê-la. De acordo com Krodi (2008), o que dificulta a identificação da mãe com o bebê nascido prematuro é a condição inicial em que se encontra este bebê. O desamparo é vivenciado em um grau máximo por ambos. De acordo com o autor, os procedimentos invasivos deferidos ao corpo do bebê contribuem para que os pais se sintam impedidos de se aproximar dele. O autor destacou ainda que reconhecer o bebê e investir libidinalmente nele pode ser um desafio para as mães e pais que ainda não têm certeza da sobrevivência do filho.

Ao longo dos atendimentos, senti que na medida do possível, consegui atender a um dos pressupostos do manejo da clínica winnicottiana, que é garantir um ambiente que atenda às necessidades da mãe (Winnicott, 2006). Porém, o ambiente da UTI Neo, é repleto de intrusões, e muitas vezes, proteger o bebê e a mãe disso tudo, não foi possível.

Em um dos últimos atendimentos, Mayara começa a atender às necessidades da filha (neste momento, de dormir), respeitando sua continuidade. De acordo com Winnicott (2006), a base para o desenvolvimento humano é a continuidade. O autor referiu que, inicialmente, o bebê ainda não estabeleceu uma divisão daquilo que ele constituiu como não- EU e EU, não havendo, um vínculo entre psique e corpo. O acolhimento materno destas forças impulsiona a continuidade do ser do bebê e se inaugura o si-mesmo como singularidade, sendo existencialmente junto com a mãe (Winnicott, 1990).

No contexto do atendimento clínico winnicottiano na prematuridade, é fundamental que o terapeuta priorize o setting interno como componente terapêutico, adotando uma postura de confiabilidade e continuidade (Winnicott, 1954/2000). A importância de se trabalhar o setting interno se dá justamente pelo ambiente intrusivo da UTI Neo.

A proposta inicial era de realizar pelo menos três sessões semanais individuais com a mãe, o que acabou não acontecendo. Eu ia três vezes por semana ao hospital, porém, nem sempre encontrava Mayara. Geralmente, no final de cada atendimento, marcava com ela o próximo, mas sempre de forma flexível para os imprevistos que poderiam acontecer. A duração de cada atendimento também foi variável, dependendo da necessidade e da possibilidade de atendimento, no dia e hora agendados, já que no hospital as questões médicas, como exames, procedimentos, devem ser sempre consideradas prioridade (Simonetti, 2004).

Outro desafio da clínica winnicottiana no contexto da prematuridade, foi o término dos atendimentos. Próximo a alta hospitalar, Mayara parecia começar a se aproximar da filha, porém estava longe de estar bem psiquicamente. O término dos atendimentos esteve atrelado situação concreta de alta da filha do hospital. Como ela apresentava demanda e motivação para continuar o tratamento psicológico, a solução encontrada foi encaminhá-la para atendimento na rede pública.

 

Considerações finais

Os achados revelaram que o atendimento baseado na clínica winnicottiana dos estágios primitivos, realizado com uma mãe que se encontrava em um estado de imaturidade egóica e sua bebê prematura, trouxe ganhos para elas. É possível se pensar que o atendimento clínico realizado, fornecendo um holding e um ambiente mais confiável, ajudou esta mãe a se integrar, pelo menos parcialmente. Nesse sentido, entende-se que a abordagem winnicottiana usada neste estudo, pode ser utilizada com muito proveito para mães e bebês, no contexto da UTI Neo, mas recomenda-se a supervisão clínica, tendo em vista seu pioneirismo. Em relação à abordagem winnicottiana em si, constatou-se que o setting hospitalar e o momento delicado no qual a mãe se encontrava, permitiram acesso aos conflitos, dificuldades e grande sofrimento psíquico, e possibilitou que a terapeuta tivesse acesso a conflitos primitivos da mãe, que em outros momentos talvez não tivesse a chance de trabalhar. Após escrever e elaborar melhor os sentimentos contratransferenciais de esgotamento físico, impotência e esvaziamento, percebi durante a supervisão que esses estavam associados, em grande parte, aos sentimentos da mãe de angústias de morte da sua filha, medo, raiva, ressentimentos e carência afetiva.

Apesar da pertinência e alcances da abordagem winnicotiana, limitações também merecem ser destacadas. uma delas foi a dificuldade de se disponibilizar um holding e ambiente seguro à mãe, dada as condições da UTI Neo, à instabilidade de saúde da bebê, bem como frente as várias demandas associadas a grande vulnerabilidade social e emocional da mãe. Outra limitação, para o caso relatado no presente estudo, foi em relação à duração dos atendimentos, quando se percebeu que a mãe precisava e gostaria de continuar os atendimentos. Infelizmente, diante da fragilidade social da mãe, foi mais complicado o encaminhamento para psicoterapia privada, restando o encaminhamento para uma unidade básica de saúde. De qualquer forma, foi importante que a mãe aceitou o encaminhamento para continuar os atendimentos, o que pode ter contribuído para evitar que o seu sofrimento psíquico e repetições de sua história, se cronifiquem na relação com a filha.

Para além de disponibilizar atendimento emocional às mães e bebês, seria também oportuno oferecer uma escuta sensível às demandas da equipe técnica, que precisa lidar diariamente com intensos sentimentos envolvendo vida e morte dos bebês, bem como lidar com as angustias e demandas emocionais das próprias mães e demais familiares.

É importante destacar que atendimentos na UTI Neo com mães e bebês precisam ser pautado pela sensibilidade, sutileza e afeto. É dentro deste setting que sentimentos de vida e morte se reproduzem no dia a dia desse ambiente hospitalar. E o quanto cada um de nós pode suportar estes sentimentos? No atendimento retratado nesse artigo, as feridas, os temores que nos atravessavam, de não saber o que nos aguardava no dia seguinte, na verdade revelaram o que em nós estava vivo, e, portanto, nos fazia seguir adiante. E, foi a partir disso, que começamos a nos vincular, eu, terapeuta, e a mãe/bebê, como pacientes, o que me proporcionou uma rica experiência pessoal e profissional.

 

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Correspondência para:
Carolina Marocco Esteves
Instituto de Psicologia
Rua Ramiro Barcelos 2600, Santana
Porto Alegre - Rio Grande do Sul. CEP: 90035-006
Fone:+55 51 33085246
E-mail: carolmak2006@gmail.com

Submetido em: 16.04.2020
Aceito em: 01.09.2020

 

 

1 Para fins deste estudo, a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal será denominada UTI Neo.
2 Winnicott (1956/2000) chamou de Preocupação Materna Primária um estado psicológico muito especial da mãe, em que sua sensibilidade em relação ao filho torna-se exacerbada. Tal estado tem início ainda na gestação, sendo acentuado no seu final, estendendo-se até as primeiras semanas ou meses após o parto. Trata-se de uma condição fundamental da mãe para que o bebê tenha suas necessidades atendidas de maneira satisfatória, sejam elas quais forem, e possa, a partir daí, continuar se desenvolvendo. Desta forma, uma mulher que cuida de seu bebê, embalando-o, oferecendo-lhe o seio, consolando-o de suas dores, encontra-se preocupada.
3 Todos os nomes foram trocados, para evitar identificação dos participantes.
4 O Índice de Apgar consiste na avaliação de cinco sinais objetivos do recém-nascido no primeiro e no quinto minuto após o nascimento, sendo utilizado para avaliar as condições dos recém-nascidos (Ramos et al., 2006). Os sinais avaliados são: frequência cardíaca, respiração, tónus muscular, irritabilidade reflexa e cor da pele. O somatório da pontuação, numa escala de 0 a 10 resultará no Índice de Apgar e o recém-nascido será classificado como sem asfixia (Apgar 8 a 10), com asfixia leve (Apgar 5 a 7), com asfixia moderada (Apgar 3 a 4) e com asfixia grave (Apgar 0 a 2).

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