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CliniCAPS

versão On-line ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.2 n.5 Belo Horizonte ago. 2008

 

ARTIGOS

 

O fenômeno psicótico: sob a ótica de Freud e Lacan1

 

 

Fabíola Moreira Alvarenga*

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, MG

 

 


RESUMO

O presente trabalho aborda o fenômeno psicótico na esquizofrenia e na paranóia, sob a ótica de Sigmund Freud e Jacques Lacan. O texto é enriquecido por exemplos clínicos, principalmente aqueles retirados do ‘Caso Schreber’, artigo escrito por Freud, em 1911. Objetiva-se, com esta escrita, investigar características da estrutura psicótica e os caminhos que levam à formação dos fenômenos.

Palavras-chave: Psicanálise, Fenômeno psicótico, Esquizofrenia, Paranóia.


ABSTRACT

This article approach psychotic phenomenon in schizophrenia and paranoia under the view of Sigmund Freud and Jacques Lacan. The text has clinical examples, mainly from ‘The Schreber Case’, written by Freud in 1911. The article also investigate psychotic states and how psychotic phenomenon appears in psyche.

Keywords: Psychoanalysis, Psychotic phenomenon, Schizophrenia, Paranoia.


 

 

Introdução

Na primeira parte deste artigo, procurou-se investigar as características do desenvolvimento libidinal na esquizofrenia. Trata-se do estudo do movimento empreendido pelas catexias libidinais, movimento que permite tanto o aparecimento dos fenômenos hipocondríacos e megalomaníacos quanto a recuperação e estabilização do quadro clínico.

Na segunda parte, o ego é a instância psíquica que mais nos interessa. Uma de suas funções é a de exercer censura sobre os fragmentos externos indesejáveis ou mesmo insuportáveis, protegendo o sujeito das situações desprazerosas. A defesa por ele exercida na psicose, a rejeição, e as conseqüências advindas dessa defesa, são os pontos privilegiados a serem abordados. Na língua alemã, o termo utilizado por Freud para rejeição é verwerfung, diferente da verdrangung, traduzido como recalque, defesa específica da neurose. Lacan, ao retornar à obra freudiana, fez novas contribuições e criou outra denominação para verwerfung: foraclusão. Esse termo confirma a radicalidade da defesa que ocorre na psicose, já apontada por Freud. Lacan escreve sobre a foraclusão de um significante, chamado por ele ‘Nome-do-Pai’. Como resultado desse mecanismo, emergem os fenômenos psicóticos. O caminho psíquico que resulta em seu aparecimento é, sem dúvida, o que se objetivou detalhar com esta escrita.

Assim, ao retomar teoricamente o desenvolvimento libidinal na esquizofrenia e a função de defesa que a instância egóica exerce na psicose, pretende-se esboçar o percurso específico da estrutura psicótica necessário ao aparecimento dos fenômenos. Há, sem dúvida, algo próprio da psicose que não pode ser confundido com outras estruturas. A escolha por um diagnóstico na direção do tratamento não é sem conseqüências para o sujeito, o que aponta a relevância do tema e seu estudo, não apenas em termos teóricos, mas também devido a suas implicações na clínica.

 

Parte 1 - O desenvolvimento da libido na esquizofrenia

Em seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914, Freud teoriza sobre a libido. Distingue libido do ego e libido objetal, e afirma que “quanto mais uma é empregada, mais a outra esvazia”. (FREUD, [1914] 1996, p.83). Com a matemática, pode-se pensar que elas são inversamente proporcionais. Quanto a essa distinção, Freud fala de sua importância, ao escrever que “o valor dos conceitos ‘libido do ego’ e ‘libido do objeto’ reside no fato de que se originam do estudo das características íntimas dos processos neuróticos e psicóticos”. (FREUD, [1914] 1996, p.85).

Freud caracteriza o narcisismo como uma atitude que se origina do afastamento da libido do mundo externo e seu direcionamento ao ego. A esquizofrenia seria o protótipo do narcisismo em alto grau, ou seja, o ego é tomado como objeto e superinvestido libidinalmente. Cabe dizer que Freud sugeriu, na descrição do ‘Caso Schreber’, Notas psicanalíticas sobre um relato aubiográfico de um caso de paranóia, de 1911, um novo nome para esta enfermidade: ‘parafrenia’. Faz uma crítica ao termo ‘esquizofrenia’, postulado por Bleuler, que significa literalmente ‘mente dividida’, condição que, segundo Freud, está presente também nas demais estruturas, o que se verifica nas duas teorizações sobre o aparelho psíquico, nas quais o psiquismo é dividido em diferentes instâncias. No decorrer desta elaboração será utilizado o termo ‘esquizofrenia’, pois seu uso é corrente no meio acadêmico, tanto na época do próprio Freud, quanto na atualidade.

Na esquizofrenia, o afastamento da libido do mundo externo pode ter como conseqüência duas possibilidades: megalomania e hipocondria. É importante retomar a afirmação de Freud, no ‘Caso Schreber’, no qual escreve que o desligamento da libido do mundo externo não é um mecanismo específico da psicose. Na vida cotidiana, as pessoas desligam a libido do mundo externo a todo o momento, sem, no entanto, adoecerem. Isso porque, assim que a libido é retirada, logo é reinvestida novamente em outros objetos. Na psicose, a libido retirada dos objetos externos não é imediatamente reinvestida, mas retorna a pontos específicos do desenvolvimento libidinal e a eles se fixa, dando origem aos sintomas megalomaníacos e hipocondríacos.

No curso do desenvolvimento da libido, é esperado que ela percorra diferentes fases: auto-erotismo, narcisismo e, finalmente, deve ser investida no mundo exterior. Como a pulsão é sempre parcial, essa característica permite pensar que parte da libido se desenvolve, mas a outra se fixa em algum lugar nesse percurso.

Na teorização do ‘Caso Schreber’, Freud demarca que o ponto de fixação não é o mesmo na esquizofrenia e na paranóia. Na esquizofrenia, a regressão da libido passa pelo narcisismo, dando origem aos fenômenos megalomaníacos, mas ela se estende ainda mais, e retorna ao auto-erotismo infantil, no mais “completo abandono do amor objetal.” (FREUD, [1911] 1996, p.84). É a partir do retorno ao auto-erotismo que os fenômenos hipocondríacos se manifestam. O auto-erotismo seria o ponto de fixação privilegiado na esquizofrenia e, na paranóia, esse ponto de fixação é o narcisismo. Porém, mesmo no quadro paranóico, a libido pode retornar à primeira fase do desenvolvimento, dando origem a manifestações esquizofrênicas.

Pode-se perceber que o desenvolvimento libidinal não é linear. Há, em cada enfermidade, um ponto de fixação que é predominante, mas isso não impede que a libido retorne a outros pontos e com isso apareçam novos fenômenos. Freud demarca uma distinção clara entre esquizofrenia e paranóia como quadros clínicos diferentes, apesar dos fenômenos em comum:

O que me parece mais essencial é que a paranóia deve ser mantida com um tipo clínico independente, por mais freqüentemente que o quadro que ofereça possa ser complicado pela presença de características esquizofrênicas. Do ponto de vista da teoria da libido, embora se assemelhe à demência precoce na medida em que a repressão propriamente dita em ambas as moléstias teria o mesmo aspecto principal – desligamento da libido, juntamente com sua regressão para o ego -, ela se distinguiria da demência precoce por ter sua fixação disposicional diferentemente localizada e por possuir um mecanismo diverso para o retorno do reprimido. (FREUD, 1911/1996, p.82-83). 2

Frente à distinção precisa entre esquizofrenia e paranóia, pode-se perguntar: por que Freud denomina tanto uma quanto a outra pela denominação ‘neuroses narcísicas’? Isso pode ser esclarecido através de uma passagem do texto de 1915, O inconsciente, no qual Freud dedica um capítulo ao entendimento de alguns aspectos da esquizofrenia. Ele afirma:

No caso da esquizofrenia, (...), fomos levados à suposição de que, após o processo de repressão, a libido que foi retirada não procura um novo objeto e refugia-se no ego; isto é, que as catexias objetais são abandonadas, restabelecendo-se uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto. (FREUD, 1915/1996, p.201).

Pode-se supor que Freud utiliza o termo ‘neurose narcísica’ para se referir à esquizofrenia porque mesmo sendo o ponto de fixação desta enfermidade o auto-erotismo ele o considera como uma condição de narcisismo de ausência de objeto. O auto-erotismo, se assim se pode dizer, seria uma forma primitiva de narcisismo, seu primeiro esboço. Diante dessa explicação, fica claro porque o ego, embora apresente uma fragilidade, é uma instância presente na esquizofrenia, enquadrando-se dentro da definição ‘neurose narcísica’.

Freud considera que nessa enfermidade o mecanismo de adoecimento e de recuperação centra-se no movimento da libido, na maneira como ela se afasta do mundo externo e depois como restabelece seus laços com seus objetos de amor. Já o paranóico utiliza outros mecanismos na reconstrução da realidade: projeção, transformação do afeto e de percepções internas em externas, além da homossexualidade, algo que Freud considera como próprio da paranóia. As características desse quadro clínico serão abordadas mais detidamente na segunda parte do artigo.

Freud escreve que o esquizofrênico, ao retirar sua libido de pessoas e coisas, a fez sem substituí-las por outras na fantasia, como o fazem as histéricas e os obsessivos. Sem a mediação da fantasia, a libido retorna diretamente sobre o corpo. É possível dizer, junto com Lacan, que esse retorno é vivido como uma invasão de gozo.

O represamento da libido no ego, característico da esquizofrenia, é sentido como desprazeroso. Freud considera que o desprazer é resultado de um grau elevado de tensão, o que confirma a idéia de que a libido, ao retornar sem a mediação da fantasia, é vivida como um excesso no corpo.

Freud aborda as duas vertentes da esquizofrenia: a megalomania e a hipocondria. A primeira permite uma maior elaboração interna da libido que se encontra concentrada no ego, constituindo, portanto, uma forma de tratamento mais bem sucedida. Nela, ocorre um domínio psíquico desse excesso de libido. A megalomania seria o correspondente das fantasias encontradas nas neuroses de transferência (histeria e neurose obsessiva). No entanto, quando o represamento da libido no ego fica mais intenso e a megalomania não é suficiente para fornecer o suporte psíquico necessário a esse excesso, a libido retorna ao auto-erotismo e a patologia torna-se mais evidente, caracterizando os fenômenos da hipocondria. Nela, a angústia invade o corpo sem mediação. Recalcati (2003) considera a megalomania o pólo positivo da esquizofrenia e a hipocondria o pólo negativo, forma extrema do narcisismo do sujeito. Embora os termos ‘negativo’ e ‘positivo’ possam carregar um certo juízo de valor, não é por essa vertente que segue o pensamento de Recalcati. Em sua leitura detida do texto freudiano, considera a megalomania um pólo positivo por apresentar mais recursos psíquicos para tratar a libido, enquanto na hipocondria os fenômenos corporais são avassaladores: desintegração, despersonalização, desmaterialização, até o desaparecimento do sentimento de vida, o sujeito colocando-se como um corpo morto.

Na descrição do ‘Caso Schreber’, Freud destaca alguns fenômenos hipocondríacos presentes no quadro agudo da doença, momento de grande sofrimento para o paciente. Cita passagens do próprio livro de Schreber e fragmentos de relatórios médicos sobre a evolução clínica. Nestas passagens e fragmentos, o paciente queixava-se de amolecimento no cérebro e anunciava a proximidade de sua morte. Dizia ter vivido por longo tempo sem estômago, intestinos, pulmões, bexiga. A costela e o esôfago estavam despedaçados e às vezes afirmava ter engolido pedaços da laringe com a comida. Freud escreve:

Acreditava estar morto e em decomposição, que sofria de peste; asseverava que seu corpo estava sendo manejado da maneira mais revoltante, e, como ele próprio declara até hoje, passou pelos piores horrores que alguém possa imaginar. (FREUD, 1911/1996, p.24).

As alucinações também são fenômenos freqüentes na esquizofrenia. Freud as explica tendo como referência sua teorização da libido. Na esquizofrenia, o afastamento da libido do exterior e sua concentração no ego são traços característicos e as alucinações seriam “uma tentativa de restabelecimento, por devolver a libido novamente a seus objetos.” (FREUD, 911/1996, p.83) Pode-se dizer, a partir de Freud, que as alucinações, embora vividas de maneira invasiva pelo sujeito, são um caminho possível para maior estabilização do quadro clínico, menos avassalador que o sentimento de despedaçamento e mortificação corporal que se sobressaem na hipocondria.

Freud, em seu texto O inconsciente, capítulo VII, aborda uma outra característica importante da esquizofrenia: a especificidade de sua fala. Ele explica este fenômeno também a partir de sua teoria da libido, o que ratifica a afirmação de que os mecanismos de adoecimento e recuperação dessa enfermidade giram em torno do emprego libidinal. Para teorizar sobre a fala dos esquizofrênicos, cita um caso atendido por um colega médico, Dr. Victor Tausk. A paciente queixava-se de ter os olhos tortos e que isso se devia ao seu amante, que era “um entortador de olhos”. A partir desse exemplo, Freud escreve que, nessa enfermidade, a palavra é superinvestida libidinalmente e, por isso, tem um grande peso, produzindo uma sensação imediata no corpo. A esse fenômeno Freud denomina “fala do órgão”. Quanto a este ponto, demarca uma diferenciação com relação à histérica, que efetivamente iria entortar os olhos. O que se passa na esquizofrenia é uma sensação, uma certeza de que os olhos estão tortos, sem estarem realmente.

Freud esclarece pormenores desse fenômeno. Teoriza que o objeto externo apresenta duas vertentes: representação da palavra e representação da coisa, sendo essa última caracterizada por possuir traços de memória visual do objeto. Quando a libido é retirada do mundo externo na esquizofrenia, a catexia que entra no caminho da regressão é apenas a da apresentação da coisa. A catexia da apresentação da palavra permanece e fica superinvetida. Desta forma, o pensamento da paciente de Tausk de que o amante era um ‘entortador de olhos’ é considerado literalmente, a palavra é tomada como algo concreto, “o simbólico não mata a coisa, mas é a coisa” (RECALCATI, 2003, p.171, tradução nossa) 3.

Dentre os fenômenos típicos da esquizofrenia abordados neste trabalho, os hipocondríacos trazem um ponto de reflexão fundamental: possibilitam pensarmos a fragilidade da imagem do corpo e, conseqüentemente, do ego. Freud já havia mencionado que a unidade atribuída ao ego não é natural, mas construída: “(...) uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido.” (FREUD, 1914/1996, p.84). Os fenômenos de fragmentação e despedaçamento são o indicativo clínico dessa fundamentação teórica. Se o ego pôde se constituir enquanto unidade, é porque em momento anterior (em um momento lógico e não cronológico) encontrava-se informe. Como e através de que ele se constitui enquanto unidade?

Lacan vai teorizar sobre esse ponto através do estádio do espelho. Nele, a criança busca o reconhecimento da própria imagem no olhar do Outro. Esse olhar, como Laznik (2004) aponta, é diferente de ver. O ver relaciona-se à visão, aos órgãos de sentido. O olhar, para além da função de ver, indica a presença de um investimento libidinal. Quem seria este grande Outro para a criança? Freud escreve: “(...) os primeiros objetos sexuais de uma criança são as pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é, no primeiro caso, sua mãe ou quem quer que a substitua.” (FREUD, 1914/1996, p.94).

O Outro, para além do cuidado, como indica o próprio texto freudiano, deve se fazer objeto sexual para a criança, ou seja, deve ser o objeto para o qual ela pode se voltar libidinalmente e, ao mesmo tempo, esse Outro deve ser o objeto do qual emanam erotização e significantes que possam marcar o corpo da criança. A relação do bebê com o Outro segue uma via de mão dupla: o bebê se vira na direção de quem lhe atribui cuidados, na medida em que pode encontrar no olhar desse Outro algo que o enlace e confirme sua imagem, o que, conseqüentemente, possibilita um sentimento de unidade e não de estilhaçamento.

Na esquizofrenia, a hipótese é a de que algo falha nessa relação. O bebê é tomado como puro objeto, desnudo, no qual predomina algo que não ultrapassa os limites da necessidade. A falha desse olhar, desse investimento libidinal por parte do Outro, pode gerar a não constituição do corpo enquanto unidade, mas ele permanece enquanto fragmentos: “(...) o corpo esquizofrênico se configura como esse corpo que não ascende à representação virtual de si mesmo, mas se vê esmagado pela imagem real.” (RECALCATI, 2003, p.168, tradução nossa). A fragmentação pode proporcionar o sentimento de mortificação corporal, pois é próprio do corpo morto se degradar, se deteriorar.

Assim, os fenômenos hipocondríacos de despedaçamento e fragmentação revelam que o ego não é uma unidade acabada, mas sua formação depende das marcas que o Outro produz neste corpo.

O banho de linguagem que marca o corpo do bebê amarra as pulsões parciais. Se antes elas estavam separadas, cada qual seguindo os próprios caminhos na busca do prazer, a incidência dos significantes possibilita a concentração dos “instintos componentes” 4. Na esquizofrenia, devido à falha nessa relação com Outro, sua imagem corporal fica prejudicada. Quando o sujeito se depara com uma situação insuportável no mundo externo, a libido retorna ao auto-erotismo e as pulsões, que estavam organizadas por algo muito frágil, separam-se novamente, e o estado de anarquia pulsional prevalece, trazendo consigo todos os fenômenos avassaladores de despedaçamento e fragmentação sentidos no corpo e no psiquismo.

 

Parte 2 – A foraclusão do Nome-do-Pai na paranóia

Em Notas psicanalíticas sobre um relato aubiográfico de um caso de paranóia, texto de 1911, Freud faz interpretações e levanta hipóteses sobre o mecanismo da paranóia a partir do livro Memórias de um doente dos nervos, escrito por Daniel Paul Schreber e publicado em 1903. Essas considerações ficaram conhecidas no meio psicanalítico como ‘O caso Schreber’.

Freud pôde teorizar sobre a psicose a partir dos fenômenos corporais e do percurso delirante descrito por Schreber. É interessante notar que o próprio Freud, que sempre baseou suas teorias a partir da fala de seus pacientes e do que era possível escutar desses relatos, tenha se debruçado sobre um escrito e utilizado este material como fonte de pesquisa e de construção. A especificidade do ‘Caso Schreber’ encontra-se neste ponto: a escrita tem o mesmo peso que a fala. No entanto, não é qualquer escrito que apresenta essa dimensão. Como ressalta Andrade (2002, p.27), na sua dissertação A experiência da escrita nas Memórias de Schreber, não se trata da escrita em si, mas da peculiaridade de quem escreve: um paranóico.

Freud indicou, através de passagens que podem ser extraídas ao longo de sua obra, que na psicose algo se revelava de maneira mais visível quando comparada à neurose. Como exemplo, um fragmento do texto O Inconsciente, no qual afirma:

Só a análise de uma das afecções que denominamos de psiconeurose narcisista promete proporcionar-nos concepções através das quais o enigmático Ics. ficará mais ao nosso alcance, tornando-se, por assim dizer, tangível. (FREUD, 1915/1996, p.201)

O inconsciente se revela na psicose de maneira mais proeminente, é o que se pode concluir com os casos clínicos. Porém, permanece a questão: por que Freud utiliza-se de um escrito para construir a teoria que se tornou o paradigma do estudo das psicoses?

A partir das Memórias de Schreber, Freud pôde extrair fenômenos clínicos muito preciosos, pois foram descritos com minúcias pelo paciente, que vivia a experiência da loucura em todas as suas dimensões.

A principal hipótese formulada por Freud, tendo como base a leitura do relato autobiográfico, é a de que, na paranóia, os sintomas se originam a partir de uma fantasia de desejo homossexual. Na tentativa de confirmar tal consideração, destaca alguns pontos construídos no delírio e na história pessoal do paciente.

Freud escreve sobre as relações delirantes que Schreber estabelece com Paul Emil Flechsig, neurologista e psiquiatra, médico responsável pelo tratamento de Schreber na clínica da Universidade de Leipzig, Alemanha, quando foi internado pela primeira vez em 1884.

Em suas Memórias, Schreber escreve uma “Carta aberta ao sr. conselheiro prof.dr. Flechsig”, na qual tenta promover uma separação entre o Flechsig de seus delírios e o “homem vivo”. Reafirma que os nervos extraídos do sistema nervoso de Flechsig adquiriram poder sobrenatural e exerceram sobre Schreber uma influência nociva. Porém, escreve que o médico não tinha plena consciência dessas mudanças, e ao final da carta solicita uma resposta de Flechsig quanto a alguns pontos de dúvida: se durante o tratamento de Schreber ele ouvira vozes ou tivera visões que apontassem para algo sobrenatural. Há uma passagem interessante dessa carta que é muito ilustrativa:

(...) sem que o senhor tivesse consciência disso e de um modo apenas explicável como sobrenatural, uma parte de seus próprios nervos saiu do seu corpo e subiu ao céu como “alma provada” 5, adquirindo um certo poder sobrenatural. (...) Assim, talvez fosse possível atribuir apenas àquela “alma provada” tudo aquilo que eu, erroneamente, acreditei dever imputar-lhe – refiro-me às influências nocivas sobre meu corpo. Neste caso não seria necessário deixar recair sobre sua pessoa a menor suspeita (...). (SCHREBER, 1995, p.26)

Embora Schreber tente distinguir o homem da realidade e aquele de seus delírios, situa Flechsig enquanto seu perseguidor durante todo o percurso da doença, ainda que de maneiras diferentes. Primeiramente, como o único inimigo, ao qual chamava ‘assassino da alma’; em um segundo momento, como o responsável por instigar mudanças no próprio Deus, antes aliado de Schreber e agora influenciado negativamente pelo médico. Schreber constata a presença de uma conspiração promovida por Flechsig e situa Deus como cúmplice de suas tramas, principalmente quanto a assassinar a sua alma e entregar seu corpo para ser usado com fins de abuso sexual. Além desses pontos destacados, mesmo quando Schreber é levado para outro local de tratamento, a ‘alma de Flechsig’ permanece reunida à do novo assistente-chefe e, posteriormente, é subdividida em várias almas. Ou seja, a posição de perseguidor permanece intocada.

Sobre este lugar de perseguidor atribuído a Flechsig, Freud faz uma generalização e afirma que,

(...) a pessoa a quem o delírio atribui tanto poder e influência, a cujas mãos todos os fios da conspiração convergem, é, se claramente nomeada, idêntica a alguém que desempenhou papel igualmente importante na vida emocional do paciente antes da enfermidade, ou facilmente reconhecível como substituto dela. A intensidade da emoção é projetada sob a forma de poder externo, enquanto sua qualidade é transformada no oposto. A pessoa agora odiada e temida, por ser um perseguidor, foi, noutra época, amada e honrada. (FREUD, 1911/1996, p.50).

Nesta citação encontra-se um aspecto importante: a de que o perseguidor foi uma pessoa significativa na vida emocional do paciente, antes amada por ele e agora odiada.

Freud observa que, no intervalo entre a nomeação de Schreber para o novo cargo e a efetiva posse do mesmo, o paciente sonhou várias vezes que sua doença havia retornado e, certa noite, quando se encontrava semi-adormecido, veio-lhe à mente o pensamento de que seria bom ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula. A hipótese é a de que, ao rememorar a doença anterior, uma recordação de Flechsig tenha lhe vindo à mente, pois este foi o médico de referência em seu primeiro tratamento. O afeto dirigido ao médico, na época de sua primeira doença, ainda era remanescente e intensificou-se em um desejo erótico. A fantasia de ser uma mulher que se submete à cópula foi, desde o início, segundo o próprio Freud, dirigida a Flechsig.

Outro ponto que reafirma a presença da homossexualidade é a passagem do livro do Schreber destacada por Freud. Nela, o paciente escreve que o fator determinante na irrupção de sua doença localiza-se em uma noite em que, na ausência de sua mulher, teve seis ejaculações durante o sono. Freud pressupõe que a ausência da esposa ativou fantasias homossexuais inconscientes. Essas fantasias, que foram concretizadas no pensamento de ser uma mulher no ato da cópula, foram repudiadas e, logo em seguida, teve início o quadro agudo da doença:

A causa ativadora de sua doença, então, foi uma manifestação de libido homossexual; o objeto desta libido foi provavelmente, desde o início, o médico, Flechsig, e suas lutas contra o impulso libidinal produziram o conflito que deu origem aos sintomas. (FREUD, 1911/1996, p.52)

Um outro aspecto destacado por Freud refere-se ao fato de que Flechsig talvez tenha sido o substituto de uma pessoa específica da história pessoal de Schreber, via transferência. O investimento libidinal fora transposto da figura paterna ou fraterna para o médico, que, de alguma maneira, apresentava um traço que possibilitou o deslocamento de catexia.

Freud, nas suas investigações, descobriu que, na época do desencadeamento agudo da doença, o pai e o irmão de Schreber já haviam falecido. O pai (Daniel Gottlieb Moritz Schreber) era um médico ortopedista renomado e educador, com vários artigos publicados, e exerceu grande influência em seus contemporâneos. Publicou livros sobre higiene, ginástica e educação, criou diversos aparelhos ortopédicos de ferro e couro, que serviam para corrigir a postura de crianças. No entanto, há relatos que afirmam que esses aparelhos assemelhavam-se a instrumentos de tortura, com ferros que eram posicionados de maneira à ‘forçar’ a postura. Nesta função de ortopedista, havia uma rigidez e um exagero nos procedimentos, o que pode ser extraído de uma colocação de Marilene Carone (1995) sobre o pai de Schreber: “Pregava uma doutrina educacional rígida e implacavelmente moralista, que objetivava exercer um controle completo sobre todos os aspectos da vida, desde os hábitos de alimentação até a vida espiritual do futuro cidadão.” 6 Segundo a mesma autora, esses mesmos métodos eram aplicados também em seus filhos.

Na relação entre pai e filho, Freud relembra a atitude infantil das crianças diante do pai, que ora se submetem a ele, numa atitude de reverência, ora se rebelam, ridicularizando-o. Há uma ambivalência entre amor e ódio. O pai de Schreber era digno de reverência, devido ao seu reconhecimento social, porém, na sua maneira ortopédica de lidar com os pacientes e com os seus filhos, poderia instigar uma rebeldia contra a tentativa forçada de “endireitamento”. Diante da ambivalência presente nesta relação, Freud assinala: “Um pai como esse de maneira alguma seria inadequado para a transfiguração em Deus na lembrança afetuosa do filho (...).” (FREUD, 1911/1996, p.60). Poder-se-ia pensar esse Deus Pai em duas vertentes: um Deus poderoso, diante do qual os filhos se curvam e adoram, e, ao mesmo tempo, um Deus coercivo, que, ao impor sua força e seus métodos rígidos, promove a revolta. Ao serem submetidos a severos procedimentos, os filhos se rebelam e ridicularizam o próprio Deus.

No delírio de Schreber, a ambivalência diante do Deus Pai é muito presente, o que pode servir como base para confirmar a idéia freudiana de que Deus, neste caso, seria o representante do pai. O paciente, ao mesmo tempo em que descreve atributos excepcionais de Deus e sua hierarquia divina, afirma que todo o seu poder pode ser abalado por uma falha na Ordem das Coisas. Deus é enfraquecido quando homens especiais, como Schreber, exercem poder atrativo sobre os raios divinos. Devido a essa atração, Deus perde os raios dos quais é constituído e se enfraquece. Outra fraqueza de Deus é não compreender os homens vivos, pois apenas se comunica com os mortos:

(...) de acordo com a Ordem das coisas, Deus realmente não sabia nada sobre os homens vivos e não precisava conhecer; em consonância com a Ordem das Coisas, Ele precisava apenas manter comunicação com cadáveres. (SCHREBER, apud FREUD, 1911/1996, p.35).

Diante do exposto, a hipótese de que Deus, no delírio, representava o pai de Schreber, fica mais consistente, e nos permite seguir por essa linha de raciocínio.

O desejo homossexual despertado em Schreber e dirigido à Flechsig teve suas origens na relação de amor com as figuras masculinas mais próximas: irmão e pai. Primeiramente, a catexia foi deslocada do irmão para Flechsig, porém, este deslocamento foi insuficiente. Tanto o é que Schreber o chamava com desdém: “Pequeno Flechsig!”. Posteriormente, a catexia se deslocou de Flechsig para o pai, representado por Deus. Se, num primeiro instante, era insuportável para Schreber ser a mulher de Flechsig, era aceitável, no delírio, ser a mulher de Deus, responsável pela geração de uma nova raça de homens após a extinção de humanidade. A saída “ser a mulher de Deus” reconcilia-se com o desejo homossexual que havia sido repudiado inicialmente.

A fantasia feminina, que despertou uma oposição tão violenta no paciente, tinha assim suas raízes num anseio, intensificado até um tom erótico, pelo pai e pelo irmão. Esse sentimento, na medida em que se referia ao irmão, passou, por um processo de transferência, para o médico, Flechsig; e quando foi devolvido ao pai, chegou-se a uma estabilização do conflito. (FREUD, 1911/1996, p.59)

Nesta citação, há algo de fundamental. O desejo erótico, ao ser devolvido ao pai, possibilitou a estabilização do conflito, ou seja, o pai como uma amarração possível. Se Deus, enquanto representante do pai, tornou o delírio estabilizador da doença, sem este representante, sem o Nome-do-Pai, ocorre um desencadeamento psicótico, com todas as manifestações possíveis decorrentes da ausência simbólica desse nome.

A experiência clínica de Freud com pacientes psicóticos, juntamente com a de seus colegas Jung e Ferenczi, o levou à conclusão de que as fantasias de desejo homossexuais estão intimamente relacionadas ao surgimento da paranóia. Freud exemplificou com detalhes essa conclusão com o ‘Caso Schreber’, mas, antes disso, ele e seus colegas já haviam empreendido uma pesquisa com pacientes paranóicos, homens e mulheres, de diferentes raças, ocupações e posições sociais, e também chegaram a concluir que o fator sexual estava na origem da paranóia:

(...) ficamos estupefatos ao descobrir que, em todos esses casos, uma defesa contra o desejo homossexual era claramente identificável no próprio centro do conflito subjacente à moléstia, e que fora numa tentativa de dominar uma corrente inconscientemente reforçada de homossexualismo que todos eles haviam fracassado. (FREUD, 1911/1996, p.67)

O paranóico, para se defender da fantasia de desejo homossexual, utiliza-se de mecanismos de projeção, mas esses mecanismos não são específicos da paranóia, pois estão presentes em outras condições psicológicas, sendo inclusive muito comuns no dia a dia das pessoas. Na paranóia (e também na esquizofrenia), pode-se delimitar um mecanismo específico: a rejeição, que se distingue do recalque, próprio da neurose. Ambos os processos podem ser localizados no desenvolvimento da libido e são divididos em três momentos diferentes: fixação, recalque/rejeição e retorno do recalcado/rejeitado.

No primeiro momento, ocorre uma inibição de um componente pulsional que, ao invés de seguir o curso esperado do desenvolvimento, fixa-se em determinado estágio e se comporta como se fosse um elemento inconsciente e recalcado. As fixações no curso do desenvolvimento predispõem o sujeito a uma enfermidade específica, que vai depender em qual estágio a libido se fixou: auto-erotismo ? narcisismo ? relações de objeto. Na segunda fase, os derivados psíquicos, tanto oriundos dos pontos de fixação, quanto advindos de outras instâncias, entram em conflito com o ego, que exerce sobre eles uma censura e torna-se responsável pelo recalque/rejeição propriamente ditos. É interessante que Freud tenha utilizado o termo ‘derivados psíquicos’, pois como ele próprio escreve em O inconsciente, à pulsão enquanto tal não se tem acesso, mas sim aos representantes psíquicos pulsionais. A terceira fase caracteriza-se pelo retorno do recalcado/rejeitado, na forma de sintomas e fenômenos.

Cabe a pergunta: o que diferencia recalque e rejeição? Em A perda da realidade na neurose e na psicose, de 1924, como o próprio título indica, Freud considera que há um afastamento da realidade nos dois casos, ainda que por processos distintos. Na neurose, o sujeito se depara com um fragmento externo insuportável e o ego exerce sobre ele o recalque. Há, porém, um fracasso em conter o recalcado e ele retorna na formação dos sintomas, chistes, lapsos. Na psicose, frente a esse fragmento, o ego atua de maneira mais incisiva, rejeitando-o. O sujeito vai tentar restaurar o que foi rejeitado por meio da criação de uma nova realidade, substituta da primeira.

O processo de reparação que se dá na psicose, através do delírio, da alucinação e demais fenômenos, utiliza, como fonte de energia, o id, instância pulsional. Assim também o fazem os elementos que ultrapassam as barreiras do recalque: são todos derivados psíquicos pulsionais. É por isso que Freud atribui ao seu texto um título que diz da ‘perda da realidade’, pois o id, ainda que tente ser barrado pelo ego, não se deixa ditar por ele e pela realidade, mas retorna e insiste. Nesse retorno insistente, está à procura de caminhos possíveis à sua satisfação, mas seus substitutos são insuficientes. O recalcado não consegue um substituto satisfatório e a tentativa do psicótico de remodelar a realidade também malogra. Nos dois casos, a satisfação é sempre parcial. O recalcado procura outras vias para se satisfazer e o fragmento rejeitado na psicose se impõe para o sujeito de maneira avassaladora. Assim, ao mesmo tempo que o neurótico e o psicótico tentam modelar o retorno da pulsão, seja através do sintoma, seja através da alucinação/delírio, essas mesmas formações são vividas com angústia, pois são insatisfatórias, apresentam uma cota de fracasso.

É importante frisar uma característica do fragmento externo indesejável que é recalcado na neurose e rejeitado na psicose, e a partir do qual emergem os sintomas e os fenômenos.

Freud ressalta, em seu Rascunho K, de 1896, que a defesa é ativada sempre que o ego se depara com um excesso de excitação de cunho sexual, ou seja, o que é insuportável é da ordem da sexualidade. Ele escreve que esse excesso de excitação pode ter acontecido prematuramente, mas é reativado quando uma lembrança ou uma idéia rememora a situação primeira. Este esboço teórico nos remete a um outro, à Carta 52 escrita por Freud, em 1896, e que compõe uma série de outras cartas dirigidas a Fliess. Nela, a teorização gira em torno dos traços de memória que, frente a determinadas situações, estariam sujeitos a rearranjos. O processo de rearranjo recebe o nome de retranscrição ou tradução. Pode-se pensar, a partir da leitura dessa carta, que, quando o sujeito se depara com um fragmento externo insuportável ao ego, um traço de memória é reativado e com ele emerge o desprazer. O excesso de excitação sexual que estava presente no aparelho psíquico apenas como um traço de memória é reativado e esse excesso precisa ser eliminado. O ego entra em ação e o fragmento que promoveu o rearranjo do traço é recalcado, ou, no caso da psicose, rejeitado: “O que determina a defesa patológica (recalcamento), portanto, é a natureza sexual do evento e a sua ocorrência numa fase anterior.” (FREUD, 1896b/1996, p.284).

A teoria de que o insuportável no fragmento seja algo da sexualidade corrobora a hipótese de que o paranóico se defende de um desejo homossexual. Porém, é importante dizer que, embora o mecanismo de defesa seja o mesmo tanto para a esquizofrenia quanto para a paranóia - a rejeição -, no relato do ‘Caso Schreber’, Freud não acredita que a homossexualidade fosse o elemento do qual o esquizofrênico se defenderia. Ele afirma:

(...) não é de modo algum provável que impulsos homossexuais, tão freqüentemente – talvez invariavelmente – encontrados na paranóia, desempenhem papel igualmente importante na etiologia desta enfermidade muito mais abrangente, a demência precoce. (FREUD, 1911/1996, p.84)

Freud levanta essa idéia porque na esquizofrenia o ponto predominante de fixação é o auto-erotismo e a homossexualidade se situaria, na linha de desenvolvimento libidinal, em um lugar posterior, entre o narcisismo e o amor objetal. A primeira escolha objetal é sempre homossexual e apenas subseqüentemente ocorre a escolha heterossexual.

Na paranóia, a libido retorna regressivamente ao narcisismo. Porém, ao percorrer esse caminho, ativa a homossexualidade latente e ocorre a sexualização da pulsão outrora inibida em sua finalidade. Na esquizofrenia, a hipótese é de que o percurso seja diferente: a libido regride ao narcisismo e ao auto-erotismo sem ativar a homossexualidade. O porquê desta trajetória Freud não o esclarece. O que se pode supor é que, mesmo que o elemento rejeitado na esquizofrenia não seja a homossexualidade, ele é, segundo Freud, de caráter sexual.

Diante do exposto, pode-se dizer que o desejo homossexual é o fragmento insuportável rejeitado na paranóia e ele pode ser condensado na proposição: “Eu (um homem) o amo (um homem)”. Na defesa contra esse desejo inconsciente, essa proposição será transformada através de diferentes contradições que incidem sobre o predicado, o objeto, o sujeito da oração ou sobre a oração como um todo. Ocorrem também a transformação do afeto e a substituição de percepções internas por externas. Quanto a essa análise semântica empreendida por Freud, Lacan (1998) ressalta que essa dedução gramatical aponta para relação do psicótico com o outro, ou seja, para como ele vai se defender de algo que o outro lhe causa. Cada desmembramento possível dos elementos gramaticais caracteriza um tipo específico de paranóia. São eles:

Delírio de perseguição:
Eu o amo → Eu não o amo → Eu o odeio → Ele me odeia

Erotomania:
Eu o amo → Eu não o amo → Eu a amo → Ela me ama

Delírios de ciúme:
Eu o amo → Ela o ama

Megalomania
Eu o amo → Eu não amo a ninguém → Eu só amo a mim mesmo

Freud ressalta que a megalomania está presente de alguma maneira nos quadros de paranóia, pois o ponto de fixação característico dessa enfermidade, como abordado em vários momentos deste trabalho, é o estágio do narcisismo. Cabe ainda dizer que, nos casos de paranóia nas mulheres, pode-se pensar na proposição inversa “Eu (uma mulher) a amo (uma mulher)” e, desta oração, decorrem os demais desmembramentos.

Tendo como referência o ‘Caso Schreber’ e os aspectos teóricos escritos por Freud, pode-se dizer que um fragmento insuportável, o desejo homossexual, foi veementemente rejeitado por Schreber. A radicalidade dessa rejeição pode ser constatada na própria teorização do caso, pois Freud afirma que, na psicose, o “que foi internamente abolido retorna desde fora.” (FREUD, 1911/1996, p.78). O desejo de ser uma mulher no ato da cópula foi abolido e o psicótico poderá reconstruir uma nova realidade delirantemente. No período de reconstrução, enquanto a libido ainda permanece centrada no ego, Schreber vivencia fenômenos diretamente no corpo, pois há um excesso de libido ainda não investida externamente. Na medida em que a libido é novamente catexizada, quando sua fantasia de desejo feminino se dirige ao pai, o quadro se estabiliza. O desejo homossexual rejeitado retorna externamente como vontade divina: “ser a mulher de Deus”.

É interessante notar que o fator desencadeador, a homossexualidade inconsciente, quando retorna como algo que vem de fora, torna-se aceitável. O que possibilita, porém, a estabilização do quadro clínico, é a fantasia feminina ser devolvida ao pai, como ressalta Freud. Ele inclusive escreve: “(...) No caso Schreber, mais uma vez encontramo-nos no terreno familiar do complexo paterno.” (FREUD, 1911/1996, p.63). Como explicar essa constatação, tendo como referência a foraclusão do Nome-do-pai presente na psicose e que fora postulada por Lacan?

Se o que amarra o sujeito na neurose é o Nome-do-Pai, a ausência simbólica desse nome na psicose pode desencadear o surto psicótico. Antes do desencadeamento, um elemento qualquer amarrava a estrutura. Diante de uma situação insuportável de cunho sexual, a defesa egóica é ativada e o fragmento é rejeitado. Porém, se o que é rejeitado também é abolido internamente, apresenta-se um furo na estrutura psíquica que não pode ser recoberto pelo Nome-do-Pai. O que foi abolido retorna como fenômeno no real, sem mediação simbólica.

Na medida em que algo pode ser reconstruído, por exemplo, delirantemente, e a libido regredida pode ser recatexizada aos objetos externos e ser devolvida ao pai, o quadro se estabiliza novamente. Quando Freud afirma que a fantasia feminina, ao ser devolvida ao pai, promoveu a estabilização clínica do paciente, não significa necessariamente a sua devolução ao Nome-do-Pai, pois este é ausente no simbólico na psicose, mas sua devolução a um significante qualquer que venha exercer uma amarração e um bordejamento ao furo aberto pela foraclusão desse significante.

A consideração lacaniana de que o fenômeno psicótico retorna no real converge com a idéia freudiana de que o fragmento externo, rejeitado e abolido, retorna desde fora, externamente. Freud utiliza o verbo “impor” para designar a invasão do fenômeno no psiquismo e no corpo do sujeito e a utilização desse verbo é importante, porque aponta para o caráter de exterioridade da linguagem que se revela de maneira contundente na psicose.

O fenômeno psicótico pode ser caracterizado como o retorno do significante não simbolizado e que outrora foi rechaçado. A alucinação e o delírio são fenômenos de linguagem, são significantes provenientes do grande Outro, na sua vertente invasiva. O caráter de estranheza que esse retorno provoca deve-se a essa exterioridade radical, pois, se algo foi abolido, não pode ser reconhecido como próprio:

O que é o fenômeno psicótico? É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada – e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou no sistema da simbolização. (LACAN, 1985, p.102).

Jacques-Alan Miller, em 1981, exemplifica esse ponto da teoria com o fragmento de um caso clínico. Um paciente do sexo masculino tem seu primeiro desencadeamento aos 66 anos de idade, após ser internado por problemas pulmonares. Logo depois de sua passagem pelo hospital, acredita ter “nascido de novo” e começa a escrever sua autobiografia, cujo conteúdo delirante é estabilizador de seu quadro clínico. Miller chama a atenção para o dizer do paciente, quando questionado sobre sua doença. Ele afirma: “Eu não tenho problemas psíquicos, meus problemas são externos”. A partir desse exemplo, o referido autor assinala que fica evidente que o sujeito vive o fenômeno como algo que está fora, no real: “É bem isso que faz o problema de fundo da psicose, o psicótico tem sobre nós a vantagem de saber que o significante está fora”. (MILLER, 1997, p.61).

A exterioridade do elemento rejeitado, não simbolizado, é um ponto que Lacan também aborda em O Seminário. Livro 3. Ele afirma que o significante inconsciente na psicose aparece no exterior. É comum dizer que, nessa estrutura clínica, o inconsciente está a céu aberto e que, na neurose, há um véu que o escamoteia, que é a barreira do recalque. Lacan, porém, introduz algo fundamental: o inconsciente está mesmo na superfície, mas, devido à especificidade do significante que está fora, no real, o psicótico dele não se apropria: “A se supor que alguém possa falar numa língua que lhe seja totalmente ignorada, diremos que o sujeito psicótico ignora a língua que ele fala.” (LACAN, 1985, p.20).

A não apropriação do significante pelo sujeito psicótico deve-se justamente à posição do significante: ‘do lado de fora’. Quem fala na cabeça do psicótico e quem manipula o seu corpo é o Outro, que lhe é totalmente alheio, o que pode ser extraído do próprio livro de Schreber, no qual o autor relata que as vozes o insultam e seu corpo é constantemente manipulado com fins de abuso sexual. Schreber inclusive é ‘coagido a pensar’. Os pensamentos devem fluir constantemente, caso contrário, Deus se afasta, e esse distanciamento é insuportável para Schreber. Nesse ponto, mais uma vez é possível lembrar parte da citação de Freud, que é de suma importância para o entendimento do caso: o pai promove a estabilização do conflito, ainda que por um caminho muito frágil, pois, se a presença de Deus é imprescindível, qualquer descuido pode romper essa tênue ligação imaginária que liga um ao outro.

Todas essas considerações sobre os fenômenos na psicose e sobre o mecanismo específico de defesa dessa estrutura , a verwerfung ou foraclusão, são muito importantes para o direcionamento clínico dos casos, pois auxiliam os que trabalham com a psicanálise no tratamento da psicose a terem uma conduta mais consistente e orientada.

Os fenômenos psicóticos apresentam duas vertentes: ao mesmo tempo que podem mover-se em direção ao restabelecimento, à estabilização do sujeito, podem também aumentar a angústia e o sentimento de invasão. Perceber a posição em que o sujeito se encontra diante do Outro da linguagem é permitir que o psicótico mostre quais as situações que o assujeitam e quais os caminhos possíveis para amenizar os efeitos da abusiva presença desse Outro. Esta, sem dúvida, é uma postura ética fundamental.

 

Conclusão – A psicose se revela “por escrito”?

Memórias de um doente dos nervos. Este é o título com que Daniel Paul Schreber nomeou o seu livro de memórias. Logo de início, pode-se perguntar: “doente dos nervos”? Será que Schreber aponta, no próprio título, a causa de seu adoecimento?

Schreber constrói em torno dos nervos algo interessante. O homem, segundo sua concepção, é formado pelo corpo e pelos nervos. Estes últimos contêm a alma humana. Deus, por sua vez, é constituído apenas por nervos, que se apresentam em número infinito e podem se transformar em qualquer criatura. Quando sofrem transformações, os nervos são denominados raios. Em alguns homens especiais, como em Schreber, os nervos podem entrar em um estado de excitação intensa, o que possibilita uma conexão direta com Deus. Essa proximidade exerce sobre Deus um poder de atração dos nervos, que se deslocam e penetram no corpo de Schreber, possibilitando a sua transfiguração em mulher.

Em uma nota, Schreber, na tentativa de explicar como ele próprio pode exercer atração sobre os nervos divinos, acaba por definir algumas características essenciais desses elementos:

(...) a atuação da força, de atração, é para mim, como fato, algo absolutamente indubitável. O fenômeno ficará talvez mais compreensível e mais próximo do entendimento humano se se tiver presente que os raios são seres animados e que por isso, no que concerne à força de atração, não se trata de uma força que age de modo puramente mecânico, mas de algo semelhante aos impulsos psicológicos (...).(SCHREBER, 1995, p.36).

Tendo-se como referência essa passagem das Memórias, torna-se mais claro porque Freud afirmou, na descrição e interpretação do ‘Caso Schreber’, que o delírio antecipava a teoria da libido. Os nervos/raios divinos e seu movimento podem ser comparados aos mecanismos de investimento libidinal que ocorrem entre o ego e os objetos. Schreber descreve os raios como uma força dinâmica, “animada”, que, por apresentarem essa característica fundamental, podem se deslocar de um lugar para outro, de Deus para Schreber. Os nervos promovem uma conexão entre ambos, aproximação que Schreber sente no corpo como uma volúpia. No entanto, se ocorre um desligamento de Deus e seus raios, ou, em outros termos, um afastamento da libido, Schreber sucumbe e adoece. Nesse ponto, pode-se lançar a hipótese de que Schreber é um doente dos nervos: ele adoece quando os nervos/libido se desligam de seus objetos de amor, quando o outro de quem necessita se afasta e ele permanece sozinho, sem a orientação da palavra que vem desse lugar.

A partir dessas considerações, pode-se pensar que a obra de Schreber revela algo da estrutura psicótica, algo que Freud captou, mas que estava lá, por escrito. Porém, reafirmando Andrade (2002), não se trata da escrita em si, mas da peculiaridade de quem escreve: um paranóico.

Lúcia Castello Branco (1998), em artigo intitulado Só os loucos escrevem completamente, toma emprestada uma formulação de Marguerite Duras, para esclarecer a peculiaridade da escrita do psicótico: diante do vazio da página em branco, os loucos revelam o que o neurótico escamoteia.

É preciso confiar no texto e extrair dele o que ali se revela. Quando se trata da psicose, então, parece que é a escrita (quando temos a chance de ter em mãos um livro como o de Schreber) o que nos oferece as chaves mais precisas para a leitura dos delírios e das alucinações, ou, mais propriamente, para a leitura do inconsciente. Freud oferece essa indicação no final do caso Schreber, quando afirma: “Compete ao futuro decidir se existe mais delírio em minha teoria do que eu gostaria de admitir, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que outras pessoas estão, por enquanto, preparadas para acreditar.” (FREUD, 1911/1996, p.85) Há, no livro de Schreber, uma verdade sobre a estrutura psíquica que Freud tentou decifrar e que possibilitou às Memórias tornar-se um clássico no estudo das psicoses.

 

 

Referências Bibliográficas:

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1 Este texto é um resumo da monografia apresentada ao programa de pós-graduação lato-sensu Saúde mental e Psicanálise do Centro Universitário Newton Paiva em maio de 2008, elaborada sob orientação da Profa. Dra. Lúcia Castello Branco, com o título: “O fenômeno psicótico: sob a ótica de Freud e Lacan”.
2 Na presente citação os termos ‘repressão’ e ‘reprimido’ aparecem transcritos conforme a tradução inglesa, embora possam ser substituídos por ‘rejeição’ e ‘rejeitado’, respectivamente.
3 Texto original em espanhol.
4 Termo utilizado por Freud nas Conferências XXI e XXII ao se referir aos componentes pulsionais.
5 Schreber esclarece, no capítulo primeiro de seu livro, a expressão “alma provada”, que significa uma alma impura, que ainda não passou pelo processo de purificação.
6 Passagem retirada da Introdução à edição brasileira das Memórias, traduzida por Marilene Carone. Cf. SCHREBER, 1995, p.11.
* Psicóloga pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, MG. Graduada pela PUC-Minas. Especialista em Saúde Mental e Psicanálise pelo Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: fabiolaalvarenga@yahoo.com.br

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