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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.1 Juiz de fora jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Comportamento de cuidado entre crianças institucionalizadas: observações nos pátios do abrigo e da escola

 

Behavior of caretaking among institutionalized children: observations of shelter and school yards

 

 

Débora Lisboa Costa1; Lília Iêda Cavalcante

Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil

 

 


RESUMO

O comportamento de cuidado compreende ações prossociais que sofrem a influência de fatores físicos e sociais do ambiente. Este estudo objetivou investigar aspectos do ambiente que concorrem para a manifestação do comportamento de cuidado entre crianças, de quatro a seis anos de idade, no pátio da escola onde estudam e do abrigo em que estão acolhidas. Foram realizadas dez sessões para observação dos sujeitos focais com duração de 50 minutos em cada ambiente. Ao todo, 43 eventos comportamentais foram registrados e organizados nas seguintes subcategorias: Ajudar, Brincar de cuidar, Estabelecer contato afetuoso e Entreter. Diferentemente da maioria dos estudos, esta pesquisa mostra que não houve diferença significativa na manifestação do comportamento de cuidado associada a aspectos físicos do pátio do abrigo e da escola. Contudo, indicou ser significativa a influência de características pessoais do sujeito focal, como o sexo do receptor, o tempo de permanência e a atividade lúdica, corroborando a literatura.

Palavras-chave: Comportamento de Cuidado, Abrigo, Escola


ABSTRACT

The behavior of caretaking includes prosocial actions which are influenced by physical and social factors of the environment. This study aimed at investigating aspects of the environment which contribute to the manifestation of the behavior of caretaking among children, from four to six years of age, in the yard of the school where they study and of the shelter in which they live. Ten sessions were conducted for the observation of the focal subjects with a lenghth of time of fifty minutes in each environment. In all, 43 behavioral events were recorded and organized into the following subcategories: helping, caretaking playing, establishing afection, and entertaining. Unlike most studies, this survey shows that there were no significant differences in the manifestation of the behavior of caretaking associated to physical aspects of the shelter and the school yards. However, it suggested that the influence of personal characteristics of the focal subject is significant, such as the gender of the receiver, the period of permanence, and the ludic activity, corroborating the literature.

Keywords: Behavior of Caretaking, Shelter, School


 

 

A Psicologia Ambiental clássica deu inicio à investigação sobre a relação pessoaambiente, considerando a influência das características físicas do ambiente sobre o indivíduo, como forma de regular suas interações (Sager, Sperb, Roazzi, & Martins, 2003). Mais tarde, esse enfoque foi ampliado e os estudos sobre o tema passaram a considerar também variáveis relacionadas às características do indivíduo (Carrus, Fornara, & Bonnes, 2005). Nesse sentido, o comportamento começou a ser analisado sob o olhar da mútua influência das características do sujeito e do ambiente fisico e social em que se encontra.

Para Carrus et al. (2005), esses aspectos foram sendo mais e mais incluídos em estudos bioecológicos que se propunham a analisar como se manifesta o comportamento humano em ambientes distintos. Os autores mostram que, mais tarde, as ciências bioecológicas cresceriam sob a influência da Psicologia Ambiental, contudo, dispostas a consolidar a visão inovadora de que as características da pessoa devem ser igualmente consideradas ao se investigarem variáveis que exercem influência direta sobre o comportamento humano.

Em particular, a perspectiva bioecológica na pesquisa do desenvolvimento humano difundida por Urie Bronfenbrenner (1996) mostra dois pressupostos importantes que norteiam a discussão em pauta. O primeiro refere-se ao fato de que a relação entre pessoa-ambiente deve ser compreendida como uma relação bidirecional, em que um núcleo exerce influência sobre o outro para efeito de análise do comportamento, caracterizando-se como processos de interação que ocorrem dentro de um determinado período de tempo. O segundo pressuposto defende que a noção de ambiente deve ser ampliada pelos pesquisadores, compreendendo-o, agora, não apenas como uma estrutura microssistêmica, espaço físico e imediato onde os parceiros estão em interação face a face, mas também a partir de outras dimensões que o constituem: o mesossistema (marcada pela relação entre duas instituições), o exossistema (representada pela relação entre dois microssistemas sem a presença dos indivíduos) e, por fim, o macrossistema (relacionada a crenças culturais, valores políticos).

Essa perspectiva teórica tem impulsionado o crescimento de estudos que investigam as interações sociais em diferentes ambientes dos quais as crianças e seus pares participam (família, creche, escola, internatos, instituições de acolhimento), assim como as características bioecológicas dos sujeitos envolvidos.

Considerando-se em particular o microssistema escola e os ambientes que constituem esse contexto de desenvolvimento, torna-se importante destacar o estudo que investiga a influência para as interações infantis de características próprias do pátio escolar, publicado por Sager et al. (2003). Nele, os autores procuraram investigar a relação entre os aspectos ambientais presente em dois pátios escolares e seus efeitos sobre as interações das crianças nesses espaços. A pesquisa constatou que as atividades grupais foram realizadas mais no pátio grande e as atividades solitárias desenvolvidas no pátio pequeno. Assim, Sager et al. (2003) concluíram que o pátio grande, apesar de deixar as crianças espacialmente mais afastadas, proporcionou maior variação de interações. Na discussão, os autores concluíram que o contexto escolar, particularmente os pátios e suas características ambientais, influenciam de maneira importante a forma como as interações infantis acontecem.

Além das características ambientais, estudos indicam que os arranjos espaciais e a organização do ambiente são indispensáveis para o desenvolvimento infantil e para estimular as interações infantis. Os estudos sobre a contribuição dos arranjos espaciais para a interação criança-criança e delas com os adultos (Campos-de-Carvalho & Padovani, 2000; Meneghini & Campos-de-Carvalho, 2003) analisaram a distribuição espacial de criança de 2-3 anos em creches. As autoras concluíram que, em espaços mais estruturados, é maior a ocorrência de agrupamentos infantis e que, em áreas de presença dos adultos e sem muitos arranjos, as crianças se organizavam de forma isolada, observando as outras.

A literatura (Camaioni, 1980; Cavalcante, 2008) sugere ainda que tem aumentado o número de estudos que investigam as interações infantis, reconhecendo-as a partir de episódio em que uma pessoa emite uma ação para o parceiro e este responde com outro comportamento, segundo definição de Hinde (1976). Para o autor, o estudo das interações permite compreender a evolução de comportamentos específicos, como o comportamento prossocial, compreendido como ações que têm o objetivo de promover bem-estar ao outro sem a intenção de esperar algo em troca (Del Prette & Del Prette, 2008).

Sobre essa modalidade de comportamento social, estudos (Carvalho, 2000; Kail, 2004) destacam mais recentemente os benefícios dessas ações para o desenvolvimento infantil, em que se inclui o refinamento da habilidade empática, já que, ao interagir, a criança precisa alternar entre a primazia de suas vontades e as situações nas quais ela precisa ceder em prol do grupo. Nessa dinâmica de interação, percebe que, ao se preocupar com o bemestar do outro, a criança passa a se sentir e será mais útil ao grupo e tenderá caminhar para outras ações de cuidado infantil, como apoio emocional, proteção, demonstrações de afeto com ou sem contato físico, sendo que todas elas mimetizam o cuidado parental do adulto. Essas ações de suporte são conhecidas pela literatura como "comportamento de cuidado" (Carvalho, 2000) e têm sido estudadas no contexto das interações entre grupos e amostras de crianças em diferentes contextos.

Sobre os comportamentos de natureza prossocial, o levantamento literário mostra que, em que pese a sua importância, ainda são poucos os estudos que investigaram atitudes de cuidado entre crianças. No Brasil, um dos estudos precursores na introdução desse debate foi realizado por Lordelo e Carvalho (1989), que verificaram a ocorrência do comportamento de cuidado entre crianças na faixa etária de cinco meses a seis anos, em ambiente natural, organizadas por grupos de quatro participantes. Os resultados da pesquisa indicam que variáveis como diferença de idade, sexo e familiaridade influenciaram o comportamento de cuidado entre crianças.

No que se refere ao microssistema constituído a partir do ambiente de instituições de acolhimento para crianças, pesquisas que consideram a influência das características específicas desse contexto e do espaço definido como pátio são raras. Entre os registros, deve-se citar o recente estudo realizado por Cavalcante (2008) sobre comportamento de cuidado em um abrigo infantil da região metropolitana de Belém. A investigação teve como objetivo analisar a dimensão ecológica do cuidado institucional, voltado às crianças de zero a seis anos, a partir da percepção da dinâmica interacional entre subsistemas que constituem o abrigo como contexto de desenvolvimento humano. E, nesse sentido, analisar fatores contextuais que influenciaram a presença de padrões de interação prossocial e a emergência de comportamentos de cuidado entre pares nesse ambiente institucional.

Cavalcante (2008) observou e filmou dez sujeitos focais, na faixa etária de dois a quatro anos, durante 60 sessões de cinco minutos cada. Dentre os principais resultados, a autora percebeu 957 eventos comportamentais distribuídos dentro das seguintes subcategorias: 537 da subcategoria Estabelecer contato afetuoso, 321 da Ajudar, 96 da Brincar de cuidar e três para Entreter. Os dados revelaram que, no abrigo pesquisado, o cuidado manifestou-se na forma mais frequente de demonstrações de afeto por meio do contato físico.

Apesar de o número de pesquisas nessa temática ser mais comum na atualidade, a revisão da literatura mostra que, quando o objetivo é descrever e analisar esse comportamento a partir da observação dos pares em mais de um ambiente, constata-se que ainda são raros casos desse tipo e menos frequentes ainda quando orientados por uma perspectiva mesossistêmica. No Brasil, entre as primeiras iniciativas nessa direção, destaca-se o estudo de Carvalho (2000), que teve como objetivo investigar uma determinada modalidade de comportamento prossocial: formas de cuidado entre crianças em três ambientes institucionais.

O método utilizado por Carvalho (2000) foi caracterizado pela observação de 30 crianças, sendo 15 meninos e 15 meninas, na faixa etária de dois anos, oriundos de duas pré-escolas e de um orfanato. As sessões observacionais tiveram duração de 20 minutos, o que resultou em 16 horas de filmagem e registro cursivo de diversas situações de recreação livre. O autor recortou, do conjunto de episódios registrados, cenas que retratam quatro subcategorias do comportamento de cuidado: Estabelecer contato afetuoso, Entreter, Ajudar e Brincar de cuidar.

Entre seus achados, a principal constatação foi de que a organização ambiental influenciou diretamente a ocorrência do comportamento de cuidado. Os resultados da pesquisa de Carvalho (2000) mostraram também que as creches apresentaram uma frequência maior na ocorrência desse tipo de comportamento, mas especialmente a subcategoria Estabelecer contato afetuoso (Z = 3,91; p < 0,05), por ser um ambiente que incentiva os alunos ao exercício do toque dentro da interação professor-aluno e aluno-aluno e pela diversidade de parceiros que os participantes dispõem na escola em relação ao abrigo.

Além dos achados dos estudos citados anteriormente, que enfatizaram a influência das características de um ou mais contextos sobre a emergência do comportamento de cuidado entre pares, deve-se considerar, na perspectiva da dinâmica social que os constituem, outros aspectos ambientais.

Dellazanna e Freitas (2010), após realizarem pesquisa sobre comportamento de cuidado de irmãos mais velhos para com seus menores de três classes sociais distintas na ausência dos pais, constataram que o tipo de cuidado oferecido variou de acordo com a situação financeira e cultural das famílias. Nesse estudo, discutiram que o comportamento de cuidado foi influenciado por vários aspectos que poderiam ser definidos em termos macrossistêmicos. Tais argumentos aproximam-se do que compreende Bronfenbrenner (1996): 1) o fator histórico, no qual se vê que, com a inserção da mulher no mercado de trabalho, os irmãos mais velhos passaram a ficar com os mais novos, para que os pais possam trabalhar, ou sob a responsabilidade de cuidadores profissionais; 2) o fator econômico, que indica que o cuidado estabelece diferentes níveis de responsabilidade devido à baixa condição financeira dos pais; e, por fim, 3) o fator cultural, no qual se percebe que a forma como o cuidado é desempenhado depende do modo como cada família está organizada, ou seja, do conteúdo cultural do grupo, como mostram particularmente o estudo etnográfico de Rogoff (2005). Outros estudos (Motta, Falcone, Clarck, & Manhães, 2006; Shannon, Mastergeorge, & Ontai, 2009) acrescentam que, além dessas características que favorecem o comportamento de cuidado, outro fator de estímulo é a orientação do adulto no direcionamento de atividades que estimulem ações de solidariedade e cuidado mútuo durante a infância.

Com base em estudos teóricos e empíricos que destacam a importância de se investigar o comportamento de cuidado entre crianças, este artigo apresenta resultados da pesquisa que teve por objetivo investigar aspectos do ambiente físico (tamanho do pátio, arranjo e organização espacial) e sociais (atividades realizadas no espaço), que concorrem para a manifestação do comportamento de cuidado entre pares nos pátios da escola e do abrigo.

 

Método

Participantes

Esta pesquisa utilizou a técnica dos "sujeitos focais". Os envolvidos foram cinco crianças que estavam em acolhimento institucional, na faixa etária de quatro a seis anos, sendo quatro do sexo masculino e uma do sexo feminino. O grupo foi observado e filmado, ora no pátio do abrigo, ora no pátio da escola, durante dois meses. A seleção dos participantes priorizou crianças na faixa etária de quatro a seis anos, levando em conta o que discute a literatura (Lordelo & Carvalho, 1989; Cole & Cole, 2003; Kail, 2004), ou seja, a hipótese de que o avançar da idade proporciona maiores probabilidades da ocorrência do comportamento de cuidado devido à maturidade e à habilidade empática do indivíduo. Quanto ao tempo de permanência no abrigo, deu-se preferência para os sujeitos que estivessem em regime de acolhimento institucional há no mínimo 12 meses, adaptados à rotina institucional do abrigo e da escola, sem perspectiva de retorno à convivência familiar no período previsto para a realização das sessões de observação. E, por fim, a condição dessas crianças estarem devidamente matriculadas e frequentando a escola, a fim de que fosse possível analisar a frequência do comportamento de cuidado em um mesmo grupo de crianças, considerando-se, para tanto, a influência dos aspectos contextuais onde foram observadas em suas interações.

Ambiente físico

O abrigo definido como contexto de pesquisa foi criado em 1994, com o objetivo de acolher provisoriamente crianças que residem no estado do Pará e que estavam em situação de vulnerabilidade social. A instituição abriga crianças de ambos os sexos, na faixa etária de zero a seis anos. A organização das atividades realizadas com as crianças acolhidas se dá por faixa etária/dormitório, privilegiando grupos de coetâneos. As sessões de observação foram realizadas no pátio do abrigo conhecido como barracão, que oferece às crianças uma área de 231,26 m2. O espaço é coberto, sem paredes laterais, sendo sustentado por colunas. Possui um palco e uma área livre. A outra instituição selecionada para o estudo está localizada na região metropolitana de Belém e atende a alunos da Educação Infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental, filhos de funcionários do Serviço Social da Indústria (SESI), e à comunidade a partir da taxa de mensalidade. A escola também oferece bolsas de estudo para alunos de baixa renda e instituições conveniadas, como o abrigo pesquisado. O pátio foi selecionado para a realização das sessões observacionais por se entender que esse espaço é um local privilegiado para o encontro de crianças de diversas idades e por estas terem a possibilidade de brincar de forma espontânea (Fernandes, 2006; Sager et al., 2003). O pátio possui uma área de 316,8 m2, distribuída entre mesas e cadeiras, área livre central, uma lanchonete e um cantinho para televisão.

Instrumentos e materiais

Durante a pesquisa de campo, foram utilizados três instrumentos. O Formulário de Caracterização da Criança (FCC) permitiu que fossem registrados dados pessoais dos sujeitos focais, perfil da família, motivo do acolhimento pela instituição e aspectos da escolarização. Na Folha de Registro dos Dados Observacionais (FRDO), consta a transcrição das filmagens, minuto a minuto, realizadas no ambiente da pesquisa. Por fim, foi utilizado o Diário de Campo (DC), para registrar as percepções da pesquisadora apuradas durante o período de observação.

Procedimento

a) Autorização judicial e aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética

Esta pesquisa contou com autorização do juiz titular da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Belém. Quanto à aprovação do Comitê de Ética, o presente projeto obteve parecer favorável à realização da pesquisa a partir do dia 10 de fevereiro de 2010.

b) Período de habituação

O período de inserção no ambiente da pesquisa teve como objetivo fazer com que tanto as crianças quanto os educadores pudessem ficar à vontade na presença da pesquisadora, sem que isso pudesse alterar de maneira substancial a rotina de funcionamento da instituição e as manifestações habituais dos sujeitos. O período de habituação teve um mês de duração nas instituições. Nele, a investigadora fez o contato inicial com os frequentadores dos ambientes. Em seguida, foram realizadas as primeiras filmagens, para que as crianças se acostumassem com o equipamento.

c) Preenchimento do formulário para caracterização das crianças

Os prontuários foram examinados e as informações registradas em um formulário próprio. Em função da análise pretendida, foram priorizados dados relativos à composição familiar e o número de irmãos nesse período, bem como informações sobre a presença de grupo de irmãos na instituição e o seu perfil.

d) Realização das sessões de observação das crianças definidas como sujeito focal

A técnica de observação das interações dos sujeitos focais foi naturalista (Altmann, 1993), ou seja, procurou-se registrar comportamentos emitidos espontaneamente pelos participantes em ambientes reais de convívio com outras crianças (em acolhimento institucional e demais estudantes da escola). Cada criança foi observada por cinco minutos ao longo de dez sessões por sujeito focal em cada pátio. O tempo total de observação de cada participante foi de 100 minutos, sempre nos mesmos ambientes de pesquisa.

e) Análise dos dados

Primeiramente, procedeu-se à sistematização dos dados coletados. Depois, a análise estatística foi realizada com base no cálculo de frequências e percentagens, tanto simples quanto acumuladas.

Com relação à análise dos eventos comportamentais, o ponto de partida foi a sua classificação a partir de subcategorias predefinidas por Carvalho (2000) e Cavalcante (2008): 1) Ajudar: iniciativa de fazer, oferecer-se para fazer algo pelo outro, ou ainda buscar ajuda de terceiros e disponibilizá-la ao parceiro em situação de dificuldade ou risco. Acrescenta-se o cuidado habitual com a alimentação, o sono, a higiene, a aparência e a segurança do outro; 2) Brincar de cuidar: atitudes de cuidado que são experimentadas no contexto de brincadeiras, levando a criança a realizar gestos que, por um lado, representam comportamentos de atenção, apoio e ajuda ao parceiro e, por outro, simulam ou assumem imaginariamente papéis típicos de cuidadores e alvos de cuidado, como: mãe/filha e avô/neto; 3) Entreter: atitude de chamar a atenção do outro com a intenção de envolvê-lo em uma atividade lúdica, por meio de gestos, fala ou contato físico, e conduzir o outro em situação de passeio ou em qualquer outra atividade de lazer; e 4) Estabelecer contato afetuoso: entende-se como atitudes de carinho com o outro, nas quais se pode localizar especificamente atitudes como abraçar, beijar e afagar.

A análise dos dados exigiu o cálculo da frequência dos eventos relacionados a cada subcategoria do comportamento de cuidado. Para se garantir a independência do estudo, foi realizada a reanálise dos dados coletados por um investigador independente, tendo sido o nível de acordo superior a 90%.

Em seguida, foi realizada análise estatística que avaliou eventos do comportamento de cuidado, segundo grupo de amostra de sujeitos focais. O estudo considerou como subcategorias do comportamento - Ajudar, Brincar de cuidar, Estabelecer contato afetuoso e Entreter - foram direcionadas ao alvo do cuidado (outra criança) nos pátios das duas instituições. Foram aplicados métodos descritivos e inferenciais: Teste Binomial, para avaliação intergrupal, por permitir examinar a diferença entre duas proporções amostrais, apontando em qual ambiente predominou determinado comportamento e o Teste Qui-Quadrado para análises do comportamento de cuidado em apenas um ambiente, por possibilitar a análise da associação entre duas variavéis independentes.

Além da apuração da frequência das subcategorias, foram analisadas as atividades registradas durante as sessões de observação emitidas pelos sujeitos focais no momento da ocorrência do comportamento de cuidado nos pátios da escola e do abrigo, posteriormente organizadas em torno das seguintes categorias: Refeição (almoçar, jantar ou lanchar); Assistir à TV (desenho animado), Brincadeira (correr, brincar de boneca) e Outros (ficar parado e conversar).

 

Resultados e discussão

O perfil dos sujeitos focais da pesquisa

A partir do levantamento realizado por meio do formulário de caracterização das crianças, os dados revelam que, das cinco crianças em situação de acolhimento institucional, 100% tinham idade superior a 64 meses. Quanto ao tempo de acolhimento, todas estavam há mais de 24 meses na instituição, contrariando o disposto nas Orientações Técnicas: Serviços do Acolhimento de Crianças e Adolescentes (2009): "Todos os esforços devem ser empreendidos para que, em um período inferior a dois anos, seja viabilizada a reintegração familiar - para família nuclear ou extensa, em seus diversos arranjos - ou, na sua impossibilidade, o encaminhamento para família substituta (p. 19)".

Quanto à situação familiar, o levantamento indicou que 80% contava com a presença de irmãos no abrigo e 20% estavam sem irmãos. No que diz respeito às visitas de parentes, os dados apontaram que, desde o início do acolhimento institucional, 80% recebiam visita de seus familiares. Com relação ao motivo do acolhimento, os dados coletados mostram que 60% foram institucionalizados por negligência familiar, 20% por pobreza e 20% por violência física. Os dados mostraram ainda, quanto à situação sociojurídica, que, durante e após o período da pesquisa, 60% dos participantes adoção internacional e 40% estão destituídos do poder familiar e aguardam adoção. Por fim, no que diz respeito à escolarização, os dados indicam que três crianças estavam estudando na instituição há 15 meses, uma a mais de 24 meses e outra a quatro meses.

O comportamento de cuidado entre crianças no abrigo

Ao se observar o comportamento de cuidado entre crianças institucionalizadas, os resultados indicaram 17 eventos comportamentais no pátio do abrigo. Houve maior manifestação do Ajudar (41,2%); em seguida, tem-se o comportamento Estabelecer contato afetuoso (35,3%); e, por fim, Brincar de cuidar (23,5%) O ato de Entreter não foi observado nesse ambiente. O Teste Qui-Quadrado revelou que não houve predomínio de nenhuma subcategoria (Ajudar, Estabelecer contato afetuoso, Brincar de cuidar e Entreter) no pátio do abrigo.

 

Tabela 1

 

Esse resultado pode estar relacionado à ausência de atividades programadas pelos profissionais nesse espaço, que incentivem as crianças a desenvolverem atitudes prossociais. Diversos estudos (Motta et al., 2006; Shannon et al., 2009) mostram o quanto é importante que o adulto incentive as crianças a ajudar seus parceiros. Essas atitudes tendem a prevenir a ocorrência de conflitos e agressões e permitem que a criança desenvolva suas habilidades sociais e supere seus limites; por exemplo, o egocentrismo.

Outro provável fator que pode ter contribuído para a baixa frequência desse comportamento no abrigo é a ausência de arranjos espaciais no pátio da instituição, que efetivamente propiciem a interação entre as crianças, como a diversidade de brinquedos e a estruturação de cantinhos que favoreçam a formação de grupos e ações de solidariedade, conforme mostram os estudos da Psicologia Ambiental (Campos-de-Carvalho & Padovani, 2000; Fernandes, 2006; Meneghini & Campos-de-Carvalho, 2003; Sager et al., 2003). Sabe-se que a forma como um ambiente está estruturado, ou seja, a combinação entre arranjos e sua organização espacial, pode contribuir de forma significativa para a ocorrência das interações infantis e, consequentemente, para a manifestação de comportamentos prossociais entre as crianças. Ou seja, da mesma forma que um ambiente bem estruturado pode gerar diversas situações prossociais, um espaço onde não existem muitos artifícios físicos pode fazer com que as crianças fiquem mais isoladas.

O comportamento de cuidado entre crianças no pátio da escola

A revisão da literatura mostra que são poucos os estudos que investigam um grupo de crianças institucionalizadas em outro ambiente, revelando como estas se relacionam dentro da comunidade durante o processo de acolhimento institucional. Nesse sentido, esta pesquisa revelou que, quando observados no pátio escolar, os sujeitos focais emitiram 26 episódios comportamentais, marcados pela presença de todas as subcategorias. Do total de manifestações do comportamento de cuidado no pátio da escola, 23 ocorrências foram entre crianças do abrigo e três entre crianças do abrigo com as da escola. A mais frequente foi Ajudar (53,8%) e a que teve menos ocorrências foi Brincar de cuidar (7,7%).

O teste estatístico mostrou que, com relação à manifestação das subcategorias de cuidado no pátio da escola, foi registrado um predomínio do comportamento Ajudar (p = 0,0034) em relação aos demais. Supõese que esse dado está relacionado ao estímulo a atos de solidariedade que a escola vem construindo ao selecionar atividades de classe que estão direcionadas a ações prossociais e ao trabalhar com a inclusão de pessoas com necessidades especiais na escola. No diário de campo, houve registro de situações em que os alunos da escola ajudavam um estudante cadeirante a se movimentar pelo pátio. Esse dado corrobora o que mostra a literatura (Motta atividades programadas e mediações durante et al, 2006; Shannon et al, 2009), uma vez os conflitos infantis, maior a possibilidade que, quanto maior o estímulo que o adulto que elas têm de emitir comportamento proporciona às crianças por meio das prossocial.

 

Tabela 2

 

O que também pode estar ligado a esse resultado são os fatores físicos do pátio escolar, como as dimensões desse espaço, visto que ele é aproximadamente 100 m2 maior que o do abrigo, além de seus arranjos espaciais, como as mesas e cadeiras espalhadas pelo espaço, lanchonete e a televisão, que fica próxima à cantina. Todos esses artefatos permitem que o aluno tenha a possibilidade de optar por diversos espaços e objetos que possibilitam uma série de atividades que promovem interação entre os estudantes, bem como a organização do espaço que possibilita a estruturação de diversos cantinhos de interação, que podem ter contribuído para que o ambiente escolar tivesse essa diferença estatística do comportamento Ajudar, uma vez que os estudos (Fernandes, 2006; Sager & Sperb, 1998) mostram o quanto esse conjunto de fatores ambientais, arranjos e organização espacial (Campos-de-Carvalho & Padovani, 2000; Meneghini & Campos-de-Carvalho, 2003) pode contribuir para as interações infantis.

O comportamento de cuidado entre crianças nos pátios do abrigo e da escola

Quanto aos resultados derivados da observação dos sujeitos focais, constatou-se que, quando comparados os pátios das duas instituições, percebeu-se que os cinco participantes, manifestaram comportamentos prossociais nos contextos considerados pela pesquisa. Ao todo, 43 eventos comportamentais, sendo registradas 26 ocorrências do comportamento de cuidado na escola e 17 no abrigo.

Ao se descrever a frequência com que esses comportamentos foram emitidos pelo grupo de sujeitos focais no abrigo, verificouse que a subcategoria mais frequente em ambos os ambientes foi o comportamento Ajudar (41,2% no abrigo e 53,8% na escola). Entretanto, a partir de uma avaliação intergrupal, o Teste Binomial apontou que, em relação às subcategorias do comportamento de cuidado, os dois ambientes não apresentaram diferença estatística significativa, como mostra a Tabela 3.

A semelhança estatística da manifestação do comportamento de cuidado em ambos os ambientes pode estar relacionada a função dos pátios, pois eles se constituem em espaços coletivos de recreação infantil. Segundo estudos (Fernandes, 2006; Sager et al., 2003), o pátio se caracteriza como um espaço onde as crianças têm a possibilidade de interagir de forma mais livre ao se relacionarem com coetâneos e nãocoetâneos e ao realizarem brincadeiras diversificadas. Os resultados estatísticos revelaram que essa característica cultural do pátio tende a propiciar um padrão de interação infantil ainda que em ambientes diferentes.

Entretanto, ao comparar a frequência das subcategorias, é possível perceber que elas possuem diferenças nos dois pátios. Nota-se que o comportamento Ajudar, apesar de ter sido o mais frequente em cada ambiente, teve maior ocorrência na escola (53,8%) do que no abrigo (41,2%). A subcategoria Brincar de cuidar ocorreu mais no abrigo (23,5%) do que na escola (7,7%). Nota-se também que o comportamento Estabelecer contato afetuoso foi mais frequente no abrigo (35,3%) do que na escola (26,9%). E, por fim, a subcategoria Entreter só teve ocorrência no pátio da escola (11,5%).

Ao comparar a manifestação das subcategorias de cuidado, é possível perceber que cada ambiente possui seu próprio perfil. Por exemplo, na escola, o comportamento de cuidado foi mais diversificado, pois se teve a ocorrência de todas as subcategorias, enquanto, no abrigo, houve apenas três das quatro subcategorias de cuidado. As ocorrências corroborram o que revelam os estudos sobre arranjos ambientais (Campos-de-Carvalho & Padovani, 2000; Meneghini & Campos-de-Carvalho, 2003), que indicam que, quanto mais recursos, como mobiliário e organização de cantinhos, houver no espaço, maior a probabilidade de as crianças se organizarem em grupos e maior a diversidade das interações.

Quanto aos dados qualitativos, o diário de campo aponta que os comportamentos de cuidado ocorreram de formas diferenciadas nos dois ambientes. Por exemplo, a subcategoria Ajudar, no pátio do abrigo, era marcada por atitudes de compartilhamento de alimento, em que o sujeito focal dividia seu lanche com o parceiro de interação. Já no pátio da escola, essa subcategoria era marcada por ações de cuidado, como o episódio no qual o sujeito 2 (S2) brinca de corrida com sua colega e, durante a brincadeira, ela cai e S2 a ajuda a se levantar.

Outro exemplo é a subcategoria Brincar de cuidar, que, no abrigo, era caracterizada por corrida (esconde-esconde) e, na escola, envolvia objetos, como brincar de boneca ou carrinho. Já a subcategoria Entreter foi aquela que mais se mostrou de forma diferenciada, havendo ocorrências apenas no pátio escolar. Por exemplo, o S2 convidou uma criança para brincar ao perceber que ela estava isolada.

Ao se compararem os episódios em ambos os pátios, é possível perceber que os comportamentos podem variar de acordo com as características de cada ambiente, ou seja, de acordo com os aspectos físicos e sociais de cada um. Assim, supõe-se que quanto mais estrutura (arranjo e organização espacial) a instituição tiver, maior a possibilidade de interações.

Um ambiente aumenta seu potencial de desenvolvimento do indivíduo na medida em que oferece aos seus usuários a possibilidade de participar de atividades que proporcionem interações recíprocas e o engajamento em situações que promovam a ampliação das habilidades de pessoas nele inseridas, conforme explica Bronfenbrenner (1996).

Embora a análise estatística tenha sido semelhante em ambos os ambientes, os dados do diário de campo revelaram que houve diferença qualitativa na manifestação do comportamento de cuidado nas duas instituições. Por exemplo, a subcategoria Ajudar, na escola, foi marcada por atos de solidariedade, como levantar um amigo que caiu. Já no abrigo, essa subcategoria foi marcada por ações, como repartir o lanche com o parceiro de brincadeira. Do ponto de vista ecológico, ambientes diferentes têm efeitos distintos sobre o desenvolvimento dos que dele participam. Logo, acredita-se que os padrões de atividades, papéis e relações estabelecidos nesses contextos revelam as diferenças ecológicas entre esses ambientes em termos desenvolvimentais.

Nesta seção, será apresentada a frequência das atividades realizadas nos pátios das instituições no momento em que os comportamentos pesquisados foram emitidos pelos sujeitos focais. As filmagens das sessões de observação dos sujeitos focais mostraram quatro atividades principais na hora da emissão do comportamento de cuidado: Brincadeira, que abrange ações como correr e brincar de boneca; Refeição, que contempla atividades como almoçar, lanchar e jantar; Assistir à TV; e Outros, referente a atos como conversar, ficar parado e observar uma ação. A atividade Outros reúne esses três tipos de ações devido ao fato de sua ocorrência ter sido muito baixa.

A análise descritiva indica que os dois ambientes ofereceram aos sujeitos focais no período observado quase que os mesmos tipos de atividade, só que realizadas de formas diferentes.

Conforme apresentado na Tabela 4, no abrigo, a atividade mais frequente foi a Brincadeira (82,4%) e depois a Refeição (17,6%). Já as atividades como Assistir à TV e as consideradas dentro da categoria Outros (conversar e ficar parado) estiveram presentes apenas em um dos espaços; no caso, o pátio da escola.

A Tabela 4 mostra que, na escola, houve uma diversidade maior de atividades realizadas no espaço, haja vista que todas elas apresentaram frequência. Nessa instituição, a Refeição foi a atividade mais presente (42,3%), seguida por Brincadeira (26,9%), Assistir à TV (23,1%) e Outros (7,7%). Entretanto, quando se comparam os dois pátios, é possível perceber que as crianças exploraram ao máximo o espaço da escola em comparação ao do abrigo.

O resultado do Teste Binomial revelou que a atividade Brincadeira, quando comparada nos dois ambientes, mostra que a sua influência sobre o comportamento foi mais significativa no ambiente de abrigo (pvalor = 0,004). Para a atividade Refeição, o resultado mostra que esta foi semelhante em ambos os ambientes. Para as demais atividades (Assistir à TV e Outros), não foi possível aplicar teste estatístico por insuficiência de dados.

Os dados do Teste Binomial indicam que, apesar de o pátio do abrigo não oferecer muitas opções de entretenimento devido à ausência de brinquedos e outros objetos que poderiam diversificar as atividades realizadas no dia a dia, percebe-se, entretanto, que a atividade Brincadeira predominou nesse ambiente. Isso revela a riqueza de recursos internos das crianças institucionalizadas, que, em meio à pobreza de arranjos nesse espaço, seus usuários conseguiram construir brincadeiras na ausência de materiais estruturados.

No que diz respeito ao tipo de atividade, os dados do diário de campo registraram que elas foram diversificadas em cada instituição. A Brincadeira, no pátio do abrigo, ocorreu por meio de atos lúdicos, como brincar de esconde-esconde (correr); já na escola, por meio de objetos, como brincar de boneca ou carrinho. A atividade Refeição, no abrigo, era geralmente almoço e jantar, e sempre de forma coletiva. Na escola, eram, geralmente, lanches, e as crianças, em sua maioria, faziam seus lanches isoladas ou em pequenos grupos. As atividades Assistir à TV e Outros (ficar parado ou conversando) foram registradas apenas no pátio escolar.

Os dados qualitativos citados mostram que cada espaço tem sua especificidade devido às diferentes atribuições que os usuários dão a cada lugar, bem como aos valores e crenças de cada instituição.

Supõe-se também que um dos fatores físicos que mais contribuiu para que a Brincadeira (82,4%) tenha prevalecido sobre as demais atividades nas interações criançacriança no pátio do abrigo foi a dimensão do espaço físico, que equivale a 4,63 m2 por criança. Embora não seja a medida ideal para oferecer conforto aos usuários segundo os especialistas (Sager & Sperb, 1998; Sager et al., 2003), provavelmente essa aproximação física entre os usuários proporcionou um ambiente favorável à Brincadeira, em que as crianças interagiram entre si e se comportaram de modo a zelar pelo bem-estar do outro.

O resultado do teste estatístico também corrobora o que diz a literatura, quando entende que a brincadeira é um momento no qual a criança desenvolve suas habilidades sociais e experimenta o que aprende com os adultos. Nesse sentido, compreende-se que o pátio do abrigo tem sido um espaço de desenvolvimento infantil (Carvalho, 2000; Fernandes, 2006; Sager et al., 2003;).

Supõe-se que a Brincadeira, nesse espaço, tem um benefício muito maior para crianças em acolhimento institucional que o de costume, pois auxilia na superação do sentimento de tristeza provocado pelo distanciamento da família (Alexandre & Viera, 2004; Cavalcante, 2008). Além disso, auxilia também na prevenção contra os comportamentos antissociais, como a agressão.

No abrigo, as crianças dispõem de poucas áreas livres, uma vez que os demais espaços são utilizados com um rigor de atividades e grupos normalmente estabelecidos por coetâneos. Talvez, devido a isso, a Brincadeira tenha influenciado de maneira mais evidente o desempenho do comportamento de cuidado nesse ambiente por se constituir em uma atividade rica em interações infantis, em que a criança tem a possibilidade de escolher o parceiro com o qual possui mais afinidade, escolhendo-o entre usuários de diferentes idade ou sexo (Fernandes, 2006; Sager et al., 2003).

Ao se compararem os resultados dos dois espaços, conclui-se que um espaço pode oferecer diversos recursos (arranjos espaciais, como no caso da escola que possui mesas e cadeiras e uma modesta organização desse ambiente, como a presença de cantinhos), que favorecem a dinâmica interacional, porém a sua função social e a representatividade que seus usuários lhe atribuem podem influenciar na forma como será utilizado e nos comportamentos a serem emitidos. Por exemplo, o diário de campo registrou que, no pátio escolar, há maior estrutura que favorece a dinâmica interacional quando comparado ao abrigo. Afinal, neste, as crianças precisavam utilizar seus recursos internos, como a criatividade e imaginação, para brincar e oferecer cuidado,visto que, no pátio do abrigo, não havia nenhuma estrutura espacial que estimulasse o desenvolvimento infantil e a manifestação do comportamento prossocial.

 

Considerações Finais

O comportamento prossocial entre crianças institucionalizadas tem sido objeto de foco de estudo de diversos pesquisadores tanto em experimentos clássicos (Freud & Dann, 1967; Lordelo & Carvalho,1989) como em estudos contemporâneos (Carvalho, 2000; Cavalcante, 2008).

Pesquisas da Psicologia Ambiental e do modelo ecológico (Bronfenbrenner, (1996) mostram que diversos fatores devem ser considerados durante a investigação desse comportamento entre crianças em acolhimento institucional; por exemplo, as características físicas e sociais de cada ambiente, as atividades nele realizadas e as especificidades de seus usuários, para se conseguir entender como esses fatores se interinfluenciam na manifestação de atos de cuidado infantil.

A revisão da literatura permitiu observar que tem crescido o interesse por estudos sobre o comportamento de cuidado entre crianças institucionalizadas, principalmente no estado do Pará. Esse número decresce mais ainda quando o perfil do estudo é mesossistêmico, observando um mesmo grupo de crianças em duas instituições diferentes.

A literatura (Carvalho, 2000; Cavalcante, 2008) aponta que, se para as demais crianças o comportamento de cuidado é importante para o desenvolvimento social do indivíduo durante a infância, quando se trata da criança em acolhimento institucional é ainda mais importante, pois, além do refinamento de suas habilidades sociais, ela encontra na relação de cuidado com o parceiro apoio para superar o distanciamento da família e as situações de enfrentamento dentro do abrigo; além de terem um parceiro disponível para interagir durante a ausência das educadoras, que, normalmente, estão envolvidas em diversas atividades e, muitas vezes, não têm tempo para disponibilizar a atenção necessária para as crianças.

No sentido de contribuir para a temática, este estudo teve como objetivo investigar aspectos do ambiente físico e social que concorrem para a manifestação do comportamento de cuidado entre pares nos pátios da escola e do abrigo, ambos localizadas na região metropolitana de Belém, procurando apontar diferenças na proporção de eventos como Ajudar, Brincar de cuidar, Entreter e Estabelecer contato afetuoso, segundo as características físicas e sociais dos ambientes selecionados.

Quando se investigou a proporção de comportamentos por ambiente, obteve-se que os eventos apresentaram variação significativa em ambos as instituições. No abrigo, não houve predomínio de nenhuma subcategoria segundo os resultados do teste Qui-Quadrado. Quando a instituição selecionada é a escola, os dados do teste estatístico apontam que houve destaque para a subcategoria ajudar. Entretanto, ao se comparar a manifestação do comportamento de cuidado emitido pelos sujeitos focais em ambos os ambientes, o teste Qui-Quadrado indicou que a ocorrência desse comportamento foi semelhante em ambos os espaços.

Os resultados aqui apresentados indicam que aspectos como as características específicas de cada ambiente (a dimensão e os arranjos espaciais) influenciaram na manifestação do comportamento de cuidado. Um exemplo disso é a escola, que, provavelmente, por dispor de uma área maior que a do pátio do abrigo e por ter mais cantinhos que favorecem a interação entre os usuários, teve a manifestação significativa do comportamento Ajudar. Esse dado mostra a importância de projetos bem elaborados, com atividades que estimulem o comportamento prossocial entre as crianças (Shannon et al., 2009), visto que, na escola, todas as atividades de aula e extraclasse, como feira da cultura e eventos da escola, estão direcionadas pela temática do Projeto Político Pedagógico voltado para a cidadania.

Porém, quando se comparam os dois ambientes, percebe-se que a característica física é semelhante entre eles, uma vez que ambas as instituições não possuem um pátio estruturado de forma ideal com diversos arranjos, que, quando bem organizados, estimulem as interações entre as crianças, conforme indica a literatura (Campos-de-Carvalho & Padovani, 2000; Meneghini & Campos-de-Carvalho, 2003). Esse fator pode ter influenciado o resultado do teste estátistico, que revelou que não houve diferença da manifestação do comportamento de cuidado nos dois pátios, já que as duas instituições se propõem ao cuidado infantil.

Nos contextos pesquisados, os resultados apurados referentes às atividades realizadas nesses espaços mostraram, por meio dos dados do teste estatístico, que, no pátio do abrigo, predominou a Brincadeira, o que nos permite compreender que, nessa área, apesar da pobreza de recursos espaciais, as crianças utilizam sua imaginação e criatividade para se divertir e interagir com diversos parceiros e de, por alguns momentos, se distanciar de sentimentos, como a saudade da família.

Isso mostra também que outros fatores, além dos aspectos físicos, são importantes no ambiente, a fim de contribuir para a manifestação de atos prossociais, como a rotina da instituição, pois é no pátio que os acolhidos dispõem da liberdade de optarem por diversas atividades e parceiros, embora a instituição não ofereça uma estrutura adequada para que a criança possua opção de atividade nesse espaço e que estimule a manifestação do comportamento prossocial entre elas.

Diante dos resultados, este artigo aponta na direção da construção de um novo olhar para algumas questões relacionadas ao comportamento de cuidado de crianças que estão em acolhimento institucional, como a necessidade de estudos que investiguem a influência do ambiente sobre o comportamento de cuidado, de forma a serem redimensionados, adotando uma perspectiva ecológica. Isso significa considerar que a relação entre pessoa e ambiente é bidirecional (mútua influência) e a noção de ambiente é contextual, ou seja, dimensões interdependentes, ligando do micro ao macrossistema (Bronfenbrenner, 1996).

Os dados desta pesquisa revelaram a frequência das interações entre crianças acolhidas no pátio do abrigo e delas com os alunos da escola. Esses dados podem auxiliar na construção e execução do Projeto Político Pedagógico do abrigo, que pode ter como um de seus objetivos o direcionamento de atividades que estimulem o comportamento prossocial nesse espaço.

Espera-se que os resultados desta pesquisa venham contribuir para futuros estudos que se realizarão em ambientes infantis, como a escola e o abrigo, por exemplo; e que esta temática possa ter continuidade, averiguando mais profundamente o comportamento de cuidado entre crianças, principalmente das que se encontram em situação de acolhimento institucional.

É interessante que em novos estudos se ampliem o número de sujeito, o tempo de observação e o número e/ou os tipos de ambientes pesquisados, investigando como as crianças direcionam o comportamento de cuidado a crianças com as quais convivem fora do abrigo, em lugares como a comunidade e a igreja. A ideia é estudar quem são os seus alvos do cuidado e qual o perfil desse cuidado em ambiente extrainstitucional.

Outra opção de continuação desta pesquisa é a realização de um rearranjo espacial dos pátios, para uma nova análise do comportamento de cuidado nas interações infantis, após a inserção de instrumentos lúdicos que aproximem as crianças nesse espaço, visto que os resultados mostraram que os dois ambientes ainda estão longe da estrutura espacial ideal apontada pela literatura (Campos-de-Carvalho & Padovini, 2000; Meneghini & Campos-de-Carvalho, 2003).

 

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Recebido: 03/11/2011
Aceito: 08/02/2012

 

 

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