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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. v.3 n.2 Florianópolis dez. 2003
ARTIGOS
A resignificação do sofrimento psíquico no trabalho informal
Re-meaning of psychic suffering at informal work
Carla Faria MorroneI; Ana Magnólia MendesII
IMestrado em Psicologia, Universidade de Brasília
IIDoutorado em Psicologia, Universidade de Brasília (anamag@unb.br)
RESUMO
Esse estudo investiga o prazer e o sofrimento de trabalhadores em atividades informais sob o prisma da psicodinâmica do trabalho. Tem por objetivo analisar as relações entre as vivências de prazer e de sofrimento, as características da organização do trabalho e a dinâmica do reconhecimento. Participaram da pesquisa 20 trabalhadores, donos de barraca em uma feira de importados do DF. Foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas, todas transcritas e submetidas à análise de conteúdo categorial. Os achados demonstram características de flexibilidade da organização do trabalho que favorecem o prazer, e precariedade das condições de trabalho como elemento provocador de sofrimento. Esse sofrimento é enfrentado por estratégias defensivas e re-significado pela dinâmica do reconhecimento, que implica a valorização da atividade informal como alternativa para sobrevivência e para fazer face ao desemprego. Conclui-se considerando que essa categoria profissional tenta encontrar caminhos para a manutenção da saúde ao utilizar mecanismos que favorecem o enfrentamento do sofrimento e a busca do prazer. Futuras pesquisas, com outras categorias de trabalhadores informais, devem ser realizadas para confirmar esses resultados.
Palavras-chave: atividades informais; prazer-sofrimento; organização do trabalho; reconhecimento.
ABSTRACT
This study investigates the pleasure and suffering of workers in informal activities through the approach of the psychodynamics of work. It aims at analyzing the relationships between pleasure and suffering experiences, the characteristics of the work's organization and the dynamics of recognition therein. Semi-structured interviews were conducted with 20 workers which own stands in a fair of imported goods in the Federal District. The data were submitted to categorical content analysis. The discoveries demonstrate that characteristics of flexibility of the organization of work benefit the pleasure, and that precarious conditions of work are an e1ement which leads to suffering. This suffering is dealt with by means of defensive strategies, and it is ressignified by the dynamics of recognition. The lalter implies a valuation of informal work as a survival alternative and as a means to cope with unemployment. The following concIusions are drawn: this professional category tries to find ways to keep health by means of mechanisms which favor coping with suffering and the pursue of pleasure. Future research with other categories of informal workers shall be conducted in order to confirm these results.
Keywords: informal activities; pleasure-suffering; organization of work; recognition.
1. Introdução
As relações entre a organização do trabalho, a dinâmica de reconhecimento e a vivência de prazer e de sofrimento no trabalho de trabalhadores em atividades informais constituem o objeto deste estudo. A organização do trabalho compõe o contexto para a realização da dinâmica de reconhecimento no trabalho. Articulados, estes elementos criam uma dinâmica específica para a vivência de prazer e de sofrimento no trabalho.
Os referenciais teóricos utilizados fundamentam-se nos pressupostos estabelecidos pela psicodinâmica do trabalho, e levam em conta reformulações apresentadas nas últimas décadas por teóricos e pesquisadores desta abordagem.
A fim de possibilitar uma melhor compreensão das variáveis a serem investigadas, faz-se necessário esclarecer, inicialmente, o que compreendemos por atividade informal. A definição conceitual do termo deriva de contribuições da teoria sociológica e econômica. Neste estudo, não se pretende elaborar uma discussão exaustiva sobre o conceito, mas apenas partir de uma definição dada, a fim de possibilitar uma melhor articulação entre as variáveis do estudo e esta categoria de trabalhadores.
A compreensão conceitual das atividades informais implica a análise da trajetória histórica do próprio conceito, uma vez que ele surge e se modifica para atender às metamorfoses do mundo do trabalho, que vêm determinando a proliferação de modalidades alternativas ao emprego formal. A heterogeneidade destas modalidades coloca em risco uma definição conceitual capaz de abordar de forma definitiva e única o conjunto de atividades informais. O debate teórico caracteriza a atividade informal como aquela na qual os seguintes critérios se fazem presentes: facilidade de acesso, pouca estruturação, baixo capital investido, não prevalecimento de relações do tipo assalariado, capital de giro voltado para sobrevivência do negócio e não para acumulação, baixa remuneração e condições de trabalho precárias.
A primeira menção ao trabalho informal é realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no relatório sobre Emprego e Renda no Kenya, em 1972. Neste documento, trabalho informal, identificado como setor informal, terminologia empregada posteriormente por diversos teóricos, caracteriza o trabalho em condições de pobreza. Setor informal é definido como composto por empresas de pequeno porte, mercados simples, competitivos e não-regulados, que empregam recursos locais, tecnologia adaptada e uso intenso de mão-de-obra.
Embora seja abrangente, considera-se que este conceito tem pouca utilidade, tanto no nível empírico como no analítico, pois não abarca um conjunto coerente e articulado de características particulares, mas sim uma definição pautada na conveniência ética e política que determinou, por exemplo, a exclusão de atividades ilegais e domésticas.
Na tentativa de estabelecer um conceito capaz de abarcar a grande heterogeneidade do setor informal e de qualificar a competição existente entre setor formal e informal-uma vez que este último não pode ser considerado como um circuito inferior ocupado por pobres e com relações estritas de autoconsumo, devendo, antes, ser visto como um setor que mantém relações de competição e complementaridade com o setor formal -, Souza (1980) propõe critério baseado no tipo de organização produtiva.
Neste sentido, o setor informal é caracterizado por um conjunto de atividades essencialmente pré-capitalistas, ou seja, atividades que não acumulam nem reproduzem o capital e que não utilizam permanentemente nem fundamentalmente trabalho assalariado. Compõe-se de empresas quase capitalistas, semelhantes, em vários aspectos, às empresas familiares, com a diferença de que lançam mão, permanentemente, de formas de organizações mercantis simples - sem assalariamento permanente -, como empresas familiares, trabalhadores por conta própria que atendem a mercados locais, elaboração de bens ou prestação de serviços, trabalhadores por conta própria subordinados a empresas voltadas para a redução de custos, pequenos prestadores de serviços como vendedores ambulantes, engraxates, cuidadores de carro (flanelinhas) e trabalhadores domésticos.
O autor ainda enfatiza a impossibilidade de se estabelecer uma concepção dualista entre setor formal e informal, diante da complementaridade e até mesmo da competitividade entre eles. Afirma que "no setor formal prevalecem as relações capitalistas, no sentido de que se distinguem a propriedade do capital e do trabalho e que a produção está dirigida principalmente para o mercado. No informal, por sua vez, não predomina a divisão entre proprietários do capital e do trabalho, e conseqüentemente o salário não constitui uma forma usual de remuneração ao trabalho" (Souza, 1980:133). Alerta que o crescimento do mercado informal tende a significar uma redução de rendimento e a reprodução da pobreza em níveis cada vez mais baixos.
Ampliando o conceito, Dalbosco (2000) considera que a heterogeneidade das atividades informais - marcadas pelas diferentes modalidades de obediência e desobediência às regulamentações -, e ainda a complementaridade e a competitividade existentes entre economia formal e informal, inviabilizam a utilização do termo setor, uma vez que este representa uma noção excludente característica da dicotomia entre formal e informal. A abordagem da atividade informal deve ser realizada a partir de uma visão sistêmica, que considera os mecanismos econômicos e as lógicas sociais existentes. Propõe a utilização do termo informalidade, prática essa que permearia toda a economia.
Buscando avançar nesta conceituação, a própria OIT propõe um novo conceito, mais objetivo, cuja extensão dê conta dum certo tipo de excedente de mão-de-obra: aquele que, condenado a ocupações ocasionais, encontre na atividade informal um meio de sobrevivência. A OIT estabelece, então, um conceito construído em oposição ao conceito de setor formal, sob a ótica da produção. 'Setor informal' passa a ser considerado um agrupamento de atividades de "baixo nível de produtividade, trabalhadores independentes (exceção feita aos profissionais liberais) e empresas muito pequenas ou não organizadas, geralmente unidades familiares, com raros assalariados e/ou aprendizes sem remuneração, empresas com baixo capital, técnicas rudimentares, baixo nível tecnológico, mão-de-obra desqualificada e reduzida produtividade" (Dalbosco, 2000:71)
A atividade informal é vista como uma unidade produtiva, resultado da descentralização e da reorganização dos processos de produção, fruto da globalização econômica e da busca, por parte das empresas, de maior produtividade e minimização de custos, minimização esta responsável, dentre outras coisas, pela redução de mão-de-obra. Abarcando uma grande diversidade produtiva, a atividade informal combina formalidade e informalidade; permeia relações complexas no seu interior e com a economia formal, chegando a estabelecer uma relação de concorrência, quando não combina formalidade e informalidade em uma mesma atividade.
Isto posto, e para fins dessa pesquisa, a atividade informai é aquela que mistura práticas legais e ilegais, que combina baixa proteção social com rápida capacidade de adaptação às oportunidades do mercado, com alta flexibilidade nos processos de trabalho e nas formas de remuneração, permitindo redução de salários. Tais atividades são, em sua maioria, marcadas pela precarização das condições de trabalho, pela falta de garantias legais e geralmente constituídas como alternativa de geração de renda diante do desemprego.
2. Organização do trabalho, dinâmica do reconhecimento e vivências de prazer-sofrimento
Na década de oitenta, Dejours (1987), na tentativa de estabelecer uma definição operacional para o conceito, afirma que a organização do trabalho compreende a divisão do trabalho ou de tarefas e a divisão dos homens. Desde então, esta definição vem sendo utilizada por diferentes estudos empíricos e análises teóricas desenvolvidos sob a ótica da psicodinâmica do trabalho. Divisão do trabalho ou divisão de tarefas compreende o modo operatório prescrito para a execução das tarefas: o coneúdo da tarefa; a divisão dos homens abrange a estrutura hierárquica, de comando, controle e de relação entre os membros das equipes de trabalho, as relações socioprofissionais.
O autor, adotando o posicionamento de uma análise crítica, aponta como indicadores para organização do trabalho características atreladas às idéias concebidas pela Administração Científica do Trabalho, a qual estabelece como princípios 1. o trabalho parcelar e fragmentado, decomposto em atividades específicas e simplificadas, 2. o controle do tempo de execução e dos movimentos fisicos dos trabalhadores, 3. o rigor na separação entre elaboração e execução do sistema produtivo, com a transferência da dimensão intelectual do trabalho para esferas gerenciais, e 4. a estrutura hierarquizada, em que a verticalização assinala uma forte disciplina.
Nesta perspectiva, a divisão das tarefas foi abordada por características como a fragmentação das operações, a repetitividade, a monotonia, a incapacidade de gerar uma visão integrada da produção e de estabelecer sentido e significado ao trabalho. Por sua vez, a divisão dos homens foi considerada relativamente a características relacionadas com a verticalização das relações socioprofissionais: distanciamento e adoção de técnicas de disciplinamento próprias à exploração da força de trabalho pelas estruturas hierárquicas, e atomização do grupo de trabalhadores, pela homogeneização das condições de existência e conseqüente processo de personalização do grupo de trabalho.
Mudanças estruturais ocorridas nos últimos anos, em decorrência do processo de reestruturação produtiva, fizeram surgir novos modelos de organização do trabalho, os quais sinteticamente preconizam, dentre outros, a produção ligada aos fluxos de demanda, variada, heterogênea e diversificada; o trabalho em equipe, com multivariedade e flexibilidade de funções; a polivalência dos trabalhadores; a redução dos níveis hierárquicos, com o estabelecimento de coordenação horizontal; e finalmente, a valorização da autonomia e a qualificação profissional.
Na tentativa de adequação aos novos paradigmas, autores da abordagem psicodinâmica passam a incluir outras características para delimitar a organização do trabalho, tais como participação, autonomia e globalização dos processos de trabalho (Mendes, 1995); descentralização das decisões, flexibilidade hierárquica, autonomia técnica e liberdade de expressão (Mendes e Abrahão, 1996); participação coletiva, polivalência, autonomia do trabalho em equipe (Carpentier-Roy, 1996); estímulo à criatividade, comunicação e trabalho em equipe (Périlleux, 1996), dentre outros. Essas características permeiam o presente estudo.
A organização do trabalho é compreendida como "um processo intersubjetivo, no qual se encontram envolvidos diferentes sujeitos em interação com uma dada realidade, resultando em uma dinâmica própria às situações de trabalho enquanto lugar de produção de significações psíquicas e de construção de relações sociais" (Mendes, 1999:40). Comporta o conteúdo significativo do trabalho, composto por conteúdos materiais, relacionados, por exemplo, aos instrumentos de operação e às características da tarefa; comporta, ainda, conteúdos simbólicos derivados do conteúdo significativo atribuído à dificuldade prática da tarefa, à significação da tarefa acabada em relação à carreira profissional, ao estatuto social ligado ao posto de trabalho, bem como ao sentido simbólico do trabalho, determinado em função da história de vida do trabalhador.
Em relação à outra variável do estudo, a dinâmica de reconhecimento, a abordagem da psicodinâmica do trabalho vem considerando o reconhecimento como um dos ícones para construção da identidade do trabalhador no campo social. A construção dessa identidade mobiliza um processo de retribuição simbólica, de re-conhecimento do indivíduo em sua singularidade pelo "outro", onde o trabalho exerce papel de mediação da relação estabelecida entre o indivíduo e esse "outro".
Segundo Sainsaulieu (1994), o processo de constituição da identidade pressupõe uma resposta contínua à estrutura social da qual o trabalhador faz parte, resposta esta derivada da dinâmica do reconhecimento que tem no trabalho um dos locusprivilegiados para o seu desenvolvimento. Trata-se de "um processo conjunto de identificação e de diferenciação que se inscreve no jogo das relações entre dois registros associados - aquele da aproximação afetiva e aquele do poder social de se destacar impondo uma singularidade" (p. 332).
Neste sentido, a dinâmica do reconhecimento assume papel de articulação entre o processo de constituição da identidade e o campo social. No trabalho, o trabalhador vivencia um processo de reapropriação pelo qual repatria as conquistas do seu fazer em direção à realização do eu e à construção da identidade. Tais conquistas estão diretamente relacionadas com as contribuições do trabalhador à organização do trabalho, especificamente com aquelas dirigidas à superação das contradições entre organização prescrita e real.
A dinâmica do reconhecimento pressupõe a articulação dos desejos individuais à busca do reconhecimento social, pela sublimação, mecanismo compreendido, à luz da psicanálise, como aquele pelo qual a energia pulsional é direcionada a alvos socialmente valorizados, possibilitando a satisfação do desejo (Laplanche e Pontalis, 1983). Este mecanismo permite a personalização entre inconsciente e campo social, garantindo singularidade ao trabalhador pela noção de realização e reconhecimento do fazer e ainda pela compatibilização entre os desejos simbólicos e a situação real do trabalho.
Tal compatibilização concretiza-se pela mobilização dos impulsos afetivos e cognitivos do trabalhador em busca do reconhecimento - mobilização subjetiva - que implica a utilização da inteligência da prática e a existência do coletivo de trabalho.
Prioritariamente, esta dinâmica estrutura-se, na inter-relação do trabalhador e do seu coletivo de trabalho, por uma ação de julgamento, isto é, o julgamento do outro, que na dimensão do trabalho se realiza pela hierarquia, por subordinados ou pelo coletivo de trabalho, em duas formas distintas: julgamento de utilidade e de beleza.
O julgamento de utilidade refere-se ao julgamento da utilidade técnica, social ou econômica da atividade de trabalho. Realiza-se normalmente pela hierarquia, por subordinados ou pelos clientes. O julgamento de beleza relaciona-se com a conformidade do trabalho, da produção, da fabricação ou do serviço às artes do oficio, bem como à sua apreciação quanto a distinção, especificidade, originalidade ou estilo. Confere ao ego, em termos qualitativos, pertencimento ao coletivo de trabalho ou à comunidade de pertença e reconhecimento da sua singularidade. É geralmente realizado pelos pares.
Assim sendo, compreendemos, neste estudo, a dinâmica do reconhecimento como o processo pelo qual é atribuído um valor ao trabalho a partir da interação do trabalhador com o contexto social no qual está inserido, valor este que determina a construção da identidade do trabalhador, no campo social; pelo mecanismo de reapropriação de si mesmo.
Por fim, a variável prazer-sofrimento no trabalho é entendida como vivências psíquicas, fruto da relação que o trabalhador estabelece com o seu trabalho, a partir da compatibilidade entre a sua história de vida, os seus desejos, projetos e esperanças, e a organização do trabalho. Formam um binómio intrinsecamente relacionado, coexistindo em igual intensidade, ou com o predomínio de uma sobre a outra. Inerentes à condição do homem no trabalho, compõem um processo dinâmico capaz de mobilizar diversos mecanismos na busca de uma relação mais gratificante com o trabalho.
Operacionalmente, definimos a vivência de prazer e a de sofrimento no trabalho associando-as a sentimentos específicos. Nos anos oitenta, a partir da análise do discurso dos trabalhadores, quatro sentimentos indicadores foram caracterizados como reveladores da vivência de sofiimento no trabalho: indignidade, inutilidade, desqualificação e vivência depressiva (Dejours, 1980/1992)
Na década de noventa, a realização de estudos empíricos conduz ao levantamento de outros indicadores, tais como: sentimento de solidão e cansaço, condutas de inibição e propensão à agressividade (Derriennic, 1996); sentimento de medo, ansiedade, tédio e insatisfação com o trabalho (Périlleux, 1996); sentimento de desgaste e cansaço (Mendes, 1997); sentimento de medo e condutas de obediência, isolamento e submissão (Dejours, 1999b), e ainda sentimento de desgosto e insegurança (Morrone, 2001).
Neste período, indicadores para a vivência de prazer são definidos operacionalmente como sentimento de valorização e reconhecimento (Mendes, 1997, 1999), Ferreira e Mendes (2001), Mendes e Tamayo (2001), Mendes e Morrone (2002). São indicadores da vivência de prazer no trabalho sentimentos de valorização e reconhecimento no trabalho; por valorização entende-se o sentimento de que o trabalho tem sentido e valor por si mesmo, é importante e significativo para a organização e a sociedade, e por reconhecimento entende-se o sentimento de ser aceito e admirado no trabalho, e de ter liberdade para expressar a sua individualidade. Relativamente aos indicadores da vivência de sofrimento, ou seja, aos sentimentos de desgosto e insegurança, por desgosto entende-se o sentimento de desânimo, descontentamento, adormecimento intelectual e apatia em relação ao trabalho, e por insegurança entende-se o sentimento de temor de não conseguir satisfazer as imposições organizacionais relacionadas com a competência profissional, a produtividade, os ritmos e as normas de trabalho.
Essas definições foram reelaboradas por Mendes (no prelo), sendo considerado como indicadores de prazer a realização e a liberdade no trabalho, e como indicadores de sofrimento o desgaste e a desvalorização. A realização é o sentimento de gratificação, orgulho e identificação com um trabalho que atende às necessidades profissionais; a liberdade é o sentimento de estar livre para pensar, organizar e falar sobre o trabalho. O desgaste é o sentimento de desânimo, cansaço, ansiedade, frustração, tensão emocional, sobrecarga e estresse no trabalho; e a desvalorização é o sentimento de incompetência diante das pressões para atender as exigências de desempenho e produtividade.
Com base na definição dessas variáveis, a pesquisa tem por objetivo investigar as relações entre a organização do trabalho, a dinâmica de reconhecimento e as vivências de prazer e de sofrimento de trabalhadores em atividades informais. O nosso pressuposto é o de que, estando esses trabalhadores submetidos a uma organização de trabalho "informal", a dinâmica subjacente ao reconhecimento e às vivências de prazer-sofrimento, no seu caso, é diferente daquela que ocorre com os trabalhadores inseridos no sistema de produção formal.
3. Método
3.1 Participantes
O universo da pesquisa foi o de trabalhadores da Feira de Importados do Distrito Federal, feira esta que surgiu em 1997 com . o intuito de regulamentar o trabalho de feirantes ambulantes que exerciam atividades clandestinas de cinco outras feiras do DF. Participaram 20 trabalhadores selecionados aleatoriamente por meio de sorteio, que, ao serem convidados, aceitavam fazer a entrevista. Esse grupo caracteriza-se por 12 mulheres e 8 homens, com idade entre 21-30 anos, primeiro grau completo, com 1 a 2 anos nessa ocupação, e sem outras ocupações.
3.2 Instrumento
Utilizou-se a entrevista individual, semi-estruturada. Entende-se por entrevista semi-estruturada aquela centrada na pessoa, na qual o entrevistador, numa atitude de empatia, utiliza técnicas de reformulação para coleta dos dados. Desenvolve-se segundo a lógica do entrevistado, a partir de estímulos eliciadores diretamente relacionados a ternas do estudo.
As entrevistas foram conduzidas de forma flexível, dirigidas de acordo com o conteúdo verbal apresentado pelo trabalhador, com questões abertas referentes a ternas previamente definidos: descrição do trabalho, sentimentos em relação ao trabalho, dificuldades encontradas no trabalho, relacionamento com os outros trabalhadores, concepções e sentimentos relacionados com a dinâmica de reconhecimento no trabalho.
O tema descrição do trabalho buscou identificar as rotinas e o processo de trabalho aos quais os trabalhadores estavam submetidos. Foram desenvolvidas perguntas em relação ao tipo de atividades realizadas e as condições nas quais eram executadas, à rotina de trabalho, ao processo decisório, ao fluxo de comunicação, à jornada de trabalho e ainda aos procedimentos e instrumentos de trabalho.
O tema sentimentos no trabalho teve por objetivo levantar informações quanto às vivências de prazer e sofrimento. A partir de uma questão geral, na qual se pedia que o sujeito descrevesse seus sentimentos com relação ao trabalho, já quando ele se dirige ao local de trabalho. Abordaram-se, também, exemplos de situações em que os sentimentos eram vivenciados, a sua freqüência, e quais as características do trabalho relacionadas com os sentimentos relatados.
O tema dificuldades encontradas no trabalho visou levantar que tipos de dificuldades os trabalhadores encontram, bem como os caminhos adotados para a administração e/ou a superaçâo dessas dificuldades. O tema relacionamento com os outros trabalhadores foi medido por questões que abordavam, dentre outros temas, o tipo de relação estabelecida entre eles, como estas relações se desenvolviam no dia-a-dia, a presença de regras e normas grupais, a transmissão das regras, existência de reuniões administrativas ou encontros sociais e os comportamentos frente à chegada de um novo trabalhador e à despedida de um já instalado.
Por fim, o tema concepções e sentimentos relacionados à dinâmica de reconhecimento no trabalho buscou auferir - além da visão do trabalhador acerca de como ele se identificava como profissional - o conceito que os trabalhadores possuíam para o termo 'reconhecimento', os seus sentimentos em relação ao reconhecimento do seu trabalho, a delimitação por quem o trabalho era reconhecido e os benefícios, percebidos pelo trabalhador, como obtidos pelo seu trabalho.
3.3 Procedimentos
As entrevistas individuais foram realizadas no horário e local de trabalho, conforme disponibilidade de cada trabalhador. Tiveram duração média de uma hora. Foram gravadas em fita k7 e integralmente transcritas.
3.4 Análise dos dados
Em relação às entrevistas individuais, o tratamento dos dados foi realizado pela análise de conteúdo segundo pressupostos metodológicos preconizados por Laurence Bardin, compreendendo-se análise de conteúdo como "conjunto de técnicas de análise da comunicação que visam obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens" (Bardin, 1977:42).
A técnica utilizada foi a de análise categorial temática. A escolha deveu-se ao fato desta técnica conceber a comunicação como um processo, e não como um dado estático, e o discurso não como um produto, mas como um processo de elaboração. A análise categorial temática consiste no desmembramento do texto em unidades, em categorias a partir da investigação dos temas do discurso. Segundo Bardin (op.cit.), "entre as diferentes possibilidades de categorização, a investigação dos ternas, ou análise temática, é rápida e eficaz, à condição de se aplicar a discursos diretos, significações manifestas e simples" (p.153).
Em uma primeira etapa, cada entrevista foi analisada por no mínimo 2 (dois) juizes, estudantes de graduação e pós-graduação do Curso de Psicologia da Universidade de Brasília, que, após leitura geral de cada entrevista e marcação de verbalizações que poderiam representar os temas, classificaram os temas em categorias e as definiram, transcreveram verbalizações por tema e registraram as freqüências. Os ternas foram categorizados pelo critério de semelhança de significado semântico e lógico.
Numa segunda etapa, o pesquisador agrupou as categorias, resultantes das análises dos juizes, também por semelhança de significado semântico e lógico, de cada uma das entrevistas, fazendo surgir categorias-sínteses. Em seguida, afim de permitir a comparação entre as vivências, o pesquisador agrupou as análises de conteúdo das entrevistas pelos fatores indicadores da vivência de prazer e de sofrimento, fazendo surgir categorias-sínteses por fator.
Ao longo desse processo, procurou-se preservar, em sua íntegra, o discurso do trabalhador. Assim, as definições das categorias estão permeadas de termos literalmente empregados pelos trabalhadores.
3.5 Resultados
Apresentam-se, nesta seção, os resultados das análises de conteúdo das entrevistas individuais, que resultaram em categorias específicas para a organização do trabalho e para as vivências de prazer-sofrimento, incluindo-se aí o reconhecimento no trabalho.
4. Categorias da organização do trabalho
1. Atividade
Os profissionais executam tarefas como limpeza, arrumação e desarrumação do ambiente de trabalho, disposição de mercadorias em local apropriado, controle de caixa e de estoque, reposição periódica dos produtos. A maior parte da jornada diária de trabalho é dedicada ao atendimento ao cliente, para o qual se adotam técnicas específicas. Buscam novidades em relação aos produtos comercializados. Estudam manuais e material publicitário para conhecimento do produto.2. Processo de trabalho
Os profissionais tomam decisões sobre o seu trabalho. Decidem sobre quais serão os produtos a ser comercializados, os preços a ser estabelecidos, a margem de lucro, promoções, sobre o horário de trabalho. Não recebem ordens, tendo responsabilidade pelo cumprimento das suas obrigações. A maioria dos profissionais trabalham sozinhos. Alguns deles trabalham com uma outra pessoa, geralmente na época de grande comercialização de produtos.3. Relação com os colegas
A relação com os colegas é determinada pela proximidade física. Com os vizinhos, esta relação é marcada pelo companheirismo, relação de amizade e de ajuda, caracterizada pela ajuda em cuidar da barraca e comercializar produtos um do outro quando o profissional se ausenta. Entre os profissionais da feira, prevalece uma relação de desunião, de individualismo: cada profissional cuida exclusivamente dos seus interesses. Esporadicamente, por iniciativa da associação, realizam reuniões, com a participação de poucas pessoas. Existem regras, estabelecidas pelo governo, de ocupação de espaço fisico e de horário.
Em relação às vivências de prazer-sofrimento, foram encontradas seis categorias-síntese, sendo três para o prazer e três para o sofrimento, considerando a fala global dos participantes da pesquisa. As categorias são apresentadas na ordem de predomínio.
5. Categorias de prazer no trabalho
1. Benefícios
O trabalho é visto como forma de alcançar metas materiais, pessoais e afetivas. Ele constitui um meio para que os profissionais satisfaçam metas pessoais, tais como adquirir uma profissão, um negócio. Além disto, proporciona segurança, um meio de sobrevivência pessoal e familiar. É tratado, ainda, como forma de ocupação diária: é uma oportunidade para que o trabalhador execute uma atividade, para que se distancie da desocupação.2. Gratificação
Os profissionais sentem-se felizes e satisfeitos com o trabalho que realizam: identificam-se com ele, fazem o que gostam e têm um bom relacionamento com os colegas. Trabalham em um ramo com que sempre sonharam. Demonstram desejo de estar sempre no ambiente de trabalho e de permanecer no ramo profissional. Ter o próprio negócio e ser responsável pelo sucesso alcançado são fatores de realização e de avaliação do trabalho como compensador e prazeroso. O trabalho é visto como capaz de proporcionar benefícios tais como poder aquisitivo, ocupação, vínculos sociais, segurança e independência financeira. Além disto, o trabalho faz com que a pessoa se sinta útil, gratificada, feliz, dignificada, vitoriosa, orgulhosa do próprio desempenho na vida. Sentem-se bem por trabalhar na feira, por possuir uma ocupação e forma de sobrevivência.3. Reconhecimento
Obtém-se reconhecimento quando os outros admiram os esforços do trabalhador, quando admiram o fato de este lograr exercer o seu trabalho. O reconhecimento é, ainda, compreendido como o retorno obtido pelo trabalho: relaciona-se com a capacidade de dar valor à pessoa e ao trabalho executado. Os profissionais sentem que o seu trabalho é reconhecido pelos clientes - relativamente ao tipo de atendimento oferecido, qualidade das mercadorias e capacidade de inovação - e pelos familiares - relativamente aos esforços despendidos e aos resultados do trabalho. Amigos também são citados como pessoas que reconhecem o trabalho. Recebem elogios, manifestação do reconhecimento. Direcionam esforços e ações para satisfazer os clientes. Como forma de retribuição, preocupam-se com os clientes e com a maneira de lhes retribuir o reconhecimento. Relatam a adoção de ações voltadas para tornar o seu trabalho reconhecido, tais como oferecer novidades em mercadorias, ser simpáticos e oferecer produtos diversos, de diferentes marcas. Associam ao reconhecimento o crescimento profissional, concretizado pela ampliação dos negócios e pela aquisição de uma identidade profissional: microempresário.
6. Categorias de sofrimento no Trabalho
1. Descontentamento
Os profissionais demonstram insatisfação com o resultado do seu trabalho por estar abaixo do esperado, com os clientes pelo tratamento recebido e com os colegas de trabalho pela incompreensão. Sentem cansaço pelo tipo de tarefa executada e pela jornada de trabalho. O trabalho é percebido como incapaz de proporcionar crescimento, pois não oferece oportunidades de aprendizagem, fato que retira uma perspectiva de futuro e gera angústia. Vivenciam sentimentos de insegurança, medo do futuro, angústia, tristeza e desânimo. Adotam uma postura de conformismo, seja não tomando nenhuma atitude modificadora da situação de conflito, seja assumindo a crença de que Deus modificará a situação. Manifestam interesse de mudar de atividade profissional. Os profissionais exercem este trabalho por ser a sua única oportunidade de ocupação, por ser um meio de sobrevivência e forma de evitar o desemprego. O trabalho é visto como cheio de aborrecimentos, desinteressante, rotineiro, sem oportunidades de crescimento profissional, com um ambiente marcado pela fofoca e pela desonestidade. Não traz benefícios e prejudica o convívio familiar. Os profissionais consideram que a profissão é discriminada e que proporciona baixa remuneração.2. Falta de reconhecimento
Obter reconhecimento é ter a sua identidade reconhecida, ser reconhecido em razão do que se está logrando alcançar e das ações em si mesmas. Os profissionais gostariam de ser mais reconhecidos, ou não sabem se são reconhecidos. Quando há reconhecimento, este é realizado pelos clientes, pelo tipo de atendimento oferecido. Citam descaso e falta de apoio do governo e da comunidade em geral. Profissionalmente, chamam-se a si próprios de feirantes, donos de casa ou vendedores.3. Falta de infra-estrutura
As condições do ambiente de trabalho são precárias. Não há proteção contra chuvas, que inundam o ambiente de trabalho e provocam perda de mercadorias e impossibilidade de circulação dos clientes na feira. A rede de energia elétrica não é capaz de atender às necessidades dos profissionais, que vivenciam apagões. Apontam a falta de banheiros adequados e também de calçamento, o que provoca queda dos clientes.
Com base nesses resultados, fica claro que esse grupo de trabalhadores vivencia tanto prazer quanto sofrimento no trabalho, apesar de submetidos à mesma organização do trabalho. Esta última foge, de alguma maneira, dos preceitos da racionalidade taylorista, devendo ser considerada como mais propiciadora de prazer; pode-se então inferir que outras variáveis estão influenciando no sofrimento, como a falta de infraestrutura e a falta de reconhecimento. Isto demonstra, ainda, relativamente às categorias gratificação e beneficios do prazer, uma possibilidade de uso de defesa de racionalização para justificar a permanência nessa ocupação. Ou seja, a organização do trabalho "informal" dessa categoria pode, de certa maneira, sec responsável pelo prazer no trabalho, ou permite, em função da liberdade no trabalho, a utilização de defesas para o enfrentamento do sofrimento - mas não imuniza o trabalhador contra esse sofrimento. Os resultados também apontam para diferenciações na dinâmica do reconhecimento para os trabalhadores que vivenciam mais prazer ou sofrimento.
7. Discussão
Os resultados revelam que o grupo de trabalhadores vivencia um modelo particular de organização do trabalho, já que todos são proprietários do seu negócio e responsáveis pelo planejamento e execução das atividades de trabalho. Tal configuração, a partir dos pressupostos do modelo teórico, leva-nos a inferir que o grupo de trabalhadores não vivencia uma organização prescrita de trabalho, responsável, na maioria das vezes, pelo estabelecimento de imposições aos modos de trabalho, mas sim uma organização de trabalho que possibilita autonomia, controle do processo de trabalho e liberdade de expressão. Isto pode explicar as vivências de prazer no trabalho, embora o sofrimento também esteja presente.
No que tange ao conteúdo das tarefas, tais características delineiam uma organização do trabalho marcada pela autonomia e pela realização das atividades em sua totalidade, que permitem a flexibilização das decisões e processos de trabalho e que trazem benefícios diretos ao trabalhador.
As vivências de sofrimento parecem mais associadas às relações socioprofissionais, expressas no coletivo de trabalho. Este último caracteriza-se pela ausência do exercício de um trabalho comum e de um grupo em constante interação que compartilhasse metas subjetivas, e ainda pela inexistência de acordos táticos, de estabelecimento de regras e normas, do conhecimento e interiorização de códigos e costumes pelos trabalhadores. De acordo com o conteúdo das categorias de sofrimento, a associação é inoperante e ineficiente; os trabalhadores têm pouca ou nenhuma participação nas atividades promovidas por ela, e a relação entre eles é marcada pelo individualismo, pela competição e pela desunião. As regras e normas existentes são impostas pelo governo, e dizem respeito exclusivamente ao horário de trabalho, à ocupação do espaço físico e ao pagamento de taxas. São fiscalizadas e o seu descumprimento implica em pagamento de multas ou de exclusão da feira, sendo, por isto, cumpridas pela maioria dos trabalhadores.
Dejours (1997), Périlleux (1996) e Maranda, Leclerc e Toupin (1997), salientam o papel do coletivo de trabalho como espaço de fala e expressão do sofrimento, e ainda como locuspara que se estabeleça o julgamento de utilidade e beleza, fundamentais para o processamento da dinâmica de reconhecimento do trabalho. Apontam como características essenciais para que o coletivo de trabalho desempenhe estes papéis, o exercício de um trabalho comum - com compartilhamento de metas, regras, códigos e costumes - e a interação constante, marcada até mesmo pelo emprego de uma linguagem particular.
Estes resultados permitem-nos sugerir que a organização do trabalho, na complexidade de seus elementos (atividade, processo de trabalho e relações socioprofissionais), é contraditória - é responsável pelas vivências tanto de prazer quanto de sofrimento. Tal organização também exerce influência no processamento da dinâmica de reconhecimento do trabalho, que para essa categoria pesquisada assume particularidades que possibilitam explicações mais detalhadas sobre as vivências desses trabalhadores.
Assim, quanto ao reconhecimento, nota-se que o julgamento do trabalho do grupo pesquisado se realiza, na maioria das vezes, pelos clientes, amigos e familiares. Isto vem a demonstrar que a dinâmica de reconhecimento do trabalho se processa por outros agentes que não aqueles diretamente relacionados com a situação de trabalho - no caso, hierarquia, subordinados e coletivo de trabalho, tal como propõe o modelo teórico,
Na categoria reconhecimento, há a menção de que os clientes reconhecem o trabalho pelo atendimento oferecido e pela qualidade das mercadorias comercializadas; a família o faz pelos esforços e conquistas; e os amigos reconhecem o trabalho pelas conquistas profissionais alcançadas pelos trabalhadores. Por sua vez, a falta de reconhecimento do trabalho também é associada a outros agentes que não aqueles enfatizados pelo modelo teórico. Os relatos evidenciam a percepção de descaso do governo ante as condições de trabalho, de desvalorização pelos clientes dos produtos comercializados, e de discriminação da profissão pela comunidade.
Estes resultados corroboram o que vem sendo apontado por pesquisas empíricas realizadas nos últimos anos (Soares, 1997; Lhuilier, 1997), que revelam que os trabalhadores transferem a outros agentes, não diretamente ligados à organização do trabalho, o papel de reconhecimento do trabalho executado.
Esse reconhecimento parece influenciar a identidade do trabalhador. Pesquisas empíricas realizadas nos últimos anos (Itani, 1997; Pellegrin-Rescia, 1997; Vargas, 2001; Dunezat, 2001) vêm apontando que a construção da identidade social passa pela identidade profissional, assumindo o trabalho um papel de construção e resgate da imagem de si mesmo. Os resultados alcançados por este estudo parecem confirmar tais constatações, ao revelar a percepção dos trabalhadores relativamente às conquistas alcançadas pelo trabalho, ao reconhecimento recebido e à titulação imposta à profissão.
Esta constatação sustenta o que vem sendo sugerido pela literatura (Dejours, 1997/1999, 1999a, 2000; Reicher-Brouard, 1997; Pellegrin-Reschia, 1997; Vargas, 2001; Drida e col. 2001; Mendes, Borges e Ferreira, 2002; Antloga, 2003; Perreira, 2003; Resende, 2003 e Rocha, 2003), que aponta a relação existente entre a dinâmica de reconhecimento do trabalho, o processo de construção da identidade do trabalhador e a vivência de prazer. Ela demonstra, ainda, que a vivência de sofrimento no trabalho não influencia o processo de construção da identidade do trabalhador, quando não representa uma situação de privação no que diz respeito à dinâmica de reconhecimento.
A análise da titulação imposta pelos trabalhadores à sua profissão vem exemplificar tais evidências. Na categoria reconhecimento salienta-se a percepção de microempresário; há relatos de sentimentos de satisfação e vitória pela conquista desta identidade profissional, a qual aufere status social. Por sua vez, na categoria falta de reconhecimento há relatos de um sentimento de discriminação da profissão, referindo-se a profissões anteriormente exercidas como ainda fazendo parte da sua identidade profissional atual.
Os resultados também apontam para a influência de duas outras variáveis que parecem também interferir na vivência de prazer ou sofrimento no trabalho: o caráter do trabalho como meio de sobrevivência e as condições de trabalho.
O trabalho como meio de sobrevivência aparece nas categorias de prazer. Segundo os relatos, o trabalho é importante por fornecer meio de obtenção de poder aquisitivo suficiente para a própria sobrevivência e a de sua família, além de facultar o alcance de metas pessoais e de independência financeira. Estes benefícios são associados à situação de desemprego, situação presente no discurso dos trabalhadores, seja por ter sido vivida anteriormente, seja por uma leitura do mercado de trabalho.
Por um lado, há que levar em conta que este resultado pode estar diretamente relacionado com as características do grupo pesquisado: trabalhadores em exercício de atividade informal, principalmente pelo papel que estas atividades possuem como alternativa ao desemprego. Por outro lado, inferimos que a visão do trabalho como meio de sobrevivência confere ao trabalho um sentido simbólico e material, cuja função é de veículo para a realização da dinâmica de reconhecimento do trabalho, e consequentemente de construção da identidade do trabalhador, nos parece ser de fundamental importância.
Sob um outro enfoque, que não invalida aquele anteriormente descrito, o valor atribuído ao trabalho como alternativa de sobrevivência pode exercer ainda um papel preponderante na dinâmica de enfrentamento das situações de trabalho propiciadoras de vivências de sofrimento. A manifestação desta variável nos leva a inferir que a utilização do mecanismo de mobilização subjetiva pode estar associada ao valor de sobrevivência atribuído ao trabalho, valor este que impulsiona o grupo a adotar atitudes e comportamentos em direção à modificação da circunstância geradora de sofrimento, para uma situação capaz de promover a vivência de prazer.
Vargas (2001) aponta as consequências para as vivências de prazer e sofrimento oriundas da valoração do trabalho como meio de sobrevivência, do ponto de vista dos trabalhadores. O autor baseia-se em dados empíricos colhidos junto a trabalhadores desempregados. Segundo Vargas, o desemprego não caracteriza uma vivência de sofrimento quando não representa uma situação real de privação - por exemplo, de debilitação da autonomia financeira. A ausência de autonomia financeira pode produzir um sentimento de inferioridade, de baixa de dignidade, que impossibilita a realização da dinâmica de reconhecimento, uma vez que o trabalhador passa a perceber-se como inferior ao "outro".
Nesta perspectiva, sugerimos que, provavelmente, o valor de sobrevivência atribuído ao trabalho exerce influência sobre a vivência de prazer e sofrimento não somente no caso de trabalhadores em exercício de atividades informais, mas inclusive no caso daqueles em exercício de atividade formal, variando possivelmente de intensidade, de acordo com a história de vida de cada trabalhador.
Verbalizações atreladas às condições de trabalho demonstram inadequação do ambiente de trabalho. Este é caracterizado por condições de saneamento deficitárias, rede de energia elétrica insuficiente para atender às necessidades locais, construções precárias, falta de proteção contra chuvas e espaço pequeno e sem ventilação.
A precariedade das condições de trabalho é um dos elementos recorrentes relatados pelo grupo como responsáveis pela ausência de realização da dinâmica de reconhecimento, uma vez que o descaso do governo para com este aspecto é compreendido como a origem da falta de reconhecimento profissional. Associa-se ainda à presença de sentimentos indicadores da vivência de sofrimento no trabalho.
De uma forma geral, os resultados demonstram que as características da organização do trabalho exercem papel importante para a vivência de prazer no trabalho. A realização de atividades que tenham começo, meio e fim, a visualização dos resultados do trabalho, a flexibilização das decisões e processos de trabalho e o desenvolvimento de atividades que requerem iniciativa tomada de decisão, visão estratégica, capacidade de argumentação e comunicação verbal - favorecem a vivência de prazer. No entanto, não podemos deixar de considerar que a atividade informal, tal como relatada pelos entrevistados, é também fonte de sofrimento, e é percebida como uma solução para a desocupação e a falta de meios de sobrevivência. O significado da atividade informal como alternativa ao desemprego pode estar associado ao quadro de saúde delineado neste estudo, pelo grupo pesquisado. Neste sentido, a saúde psíquica adquire fundamentalmente dois caminhos distintos, mas concomitantes: é fruto da mobilização subjetiva, derivada do fato de ser a atividade informal fonte de ocupação, e é também fruto da utilização de estratégias de enfrentamento e transformação dirigidas a que se evite o adoecimento diante da falta de proteção e da precarização do trabalho. Assim, ousamos levantar a hipótese de que possuir um trabalho, mesmo que em condições precárias, é de suma importância para a saúde psíquica dos trabalhadores.
8. Conclusão
Os resultados obtidos na pesquisa junto à categoria de trabalhadores pesquisada sugerem as seguintes conclusões gerais:
As vivências de prazer e de sofrimento coexistem na situação dessa categoria de trabalhadores informais. Essas vivências, juntas, constituem um processo (i. e., não são estáticas), abarcando dinâmicas intersubjetivas e intra-subjetivas que, em inter-relação com variáveis relacionadas com a situação de trabalho, determinam a saúde do trabalhador.
A existência de um coletivo de trabalho que não propicia a expressão da fala e a construção das regras não favorece a expressão do sofrimento, a possível transformação das situações geradoras de sofrimento, a vivência de prazer no trabalho e a realização da dinâmica de reconhecimento do trabalho.
O valor atribuído ao trabalho como alternativa de sobrevivência exerce um papel preponderante na dinâmica de enfrentamento das situações de trabalho propiciadoras da vivência de sofrimento.
A precariedade das condições de trabalho influenciam a realização da dinâmica de reconhecimento no trabalho e a vivência de sofrimento.
Por fim, é importante salientar que não é pertinente considerar o trabalho informal como uma alternativa às transformações produtivas ocorridas nas últimas décadas, ou como uma solução para que os trabalhadores se libertem da "escravidão ao patrão". Estes trabalhadores, de acordo com os resultados deste estudo, mesmo apresentando indicadores de saúde, vivenciam sofrimento e possivelmente atingem equilíbrio psíquico pelo fato de exercerem um trabalho que lhes possibilita ocupação, caminho de sobrevivência, alternativa ao desemprego. Isto funciona como uma estratégia defensiva para manter um investimento no "trabalho" como fator de realização e identidade psicológica e social.
Para melhor compreender a saúde dos profissionais dessas categorias em atividades informais, atividades essas que se desenvolvem em diversos e diferentes contextos, futuras pesquisas devem ser realizadas para confirmar e/ou ampliar os resultados aqui apresentados.
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Recebido: 15/09/02
Revisado: 18/09/03
Aceito: 30/09/03