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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.6 no.1 Belém  2014

 

Artigo

 

Antropologia do envelhecimento gay - experiências e vivências cotidianas de um grupo de quatro amigos homossexuais em processo de envelhecência

 

Anthropology of aging gay - daily experiences of a group of four homossexual friends in "oldering" process

 

Antropología de envejecimiento gay - experiencias y experiencias cotidianas de un grupo de cuatro amigos en el proceso del homosexual envelhecencia

 

 

Wladirson Cardoso1; Ernani Chaves

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados parciais da pesquisa de doutoramento realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA) e abordará, fenomenologicamente, a auto percepção e a auto representação bio-psico-antropológica de um grupo de quatro homossexuais em processo de envelhecência que se conhecem e convivem como amigos e que, a partir de um contexto social característico da "Amazônia Marajoara", buscam estratégias e alternativas para a experiência e vivência mesma de práticas eróticas marginais e dissidentes e que, por isso, rompem com as regras e normas da heterossexualidade compulsória, em um momento da vida no qual a cultura Ocidental (genericamente) e a ordem social (especificamente) prescrevem a aposentadoria e o recolhimento dos corpos, afim de que os "idosos" possam se conformar às determinações médico-gerontológicas e, também, de uma certa maneira, ao discurso de uma "psicológica do desenvolvimento", que entendem a vida como fases progressivas e justapostas e não como prática ou cuidado ou exercício de si. Neste sentido, realizou-se pesquisa de campo, mediante a inserção dos pesquisadores na realidade íntima da vida desses quatro sujeitos, utilizando-se da metodologia da observação participante, considerando-se a abordagem fenomenológica enquanto parâmetro hermenêutico-reflexivo de compreensão da "trajetória" ou "carreira existencial" do grupo de amigos que, por sua vez, colaboraram como interlocutores na realização deste trabalho.

Palavras-chave: homossexualidade masculina, envelhecimento gay, Amazônia Marajoara.


ABSTRACT

This paper aims to present partial results of a doctoral research by the Post-Graduate Program in Anthropology at the Federal University of Pará (PPGA/UFPA) and address, phenomenologically, "bio-psyco-anthropological" self perception and self representation of a group of four homosexuals in "oldering" process who know and live together as friends and that from a distinctive social context of "Amazon Marajoara" seek strategies and alternatives for the same experience of a group of dissidents erotic practices and that, therefore, break the rules and norms of compulsory heterosexuality, at a time of life in which Western culture (generally) and the social order (specifically) prescribe retirement and collecting the bodies, so that the "elderly" may conform to geriatric medical determinations and, also, in a sense, the "psychological development" which, in turn, understand life as sets of progressive and overlapping phases and not as a practice or care or exercise themselves. In this sense, field research was conducted by inserting the researchers in the intimate reality of the lives of these four subjects, using the methodology of participant observation, considering the hermeneutic phenomenological approach as parameter-reflective understanding of "trajectory" or "existential career" group of friends who collaborated as partners in this work.

Keywords: male homosexuality, gay aging, Amazon Marajoara.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo presentar los resultados parciales de una investigación doctoral por el Programa de Posgrado en Antropología en la Universidad Federal de Pará (PPGA / UFPA) y abordar la auto percepción fenomenológica y la auto-representación bio-pscio-antropológica de un grupo de cuatro homosexuales en processo de "envelhecência" que se conocen y viven juntos como amigos y que, a partir de un contexto social distintivo de la "Amazon Marajoara" buscan estrategias y alternativas para la experiencia y la vivencia misma de un conjunto de disidentes prácticas eróticas y que, por lo tanto, rompen las reglas y normas de la heterosexualidad obligatoria, en un momento de la vida en que la cultura occidental (en general) y el orden social (específicamente) prescriben la jubilación y la recogida de los cuerpos, por lo que la "vejez" puede ajustarse a las determinaciones médicas geriátricos y, también, en cierto sentido, el "desarrollo psicológico", que, a su vez, entiende la vida como conjunto progresivo y de fases superpuestas y no como una práctica o atención o ejercicio sí mismos. En este sentido, la investigación de campo se llevó a cabo mediante la inserción del investigadores en la realidad íntima de la vida de estos cuatro sujetos, utilizando la metodología de la observación participante, teniendo en cuenta el enfoque fenomenológico como parâmetro hermenêutico de comprensión de la "trayectoria" o "carrera existencial" de los amigos que colaboraron como socios en este trabajo.

Palabras-clave: la homosexualidad masculina, el envejecimiento gay, Amazon Marajoara


 

 

1. INTRODUÇÃO

Há aproximadamente 87 km de Belém, a cidade de Soure – localizada na Costa Oriental da Baía do Marajó – é conhecida pelas enormes fazendas de campos alagados, onde pastam tranquilamente grandes búfalos pretos, que servem não só para o transporte de carga, mas, também, para o corte e a produção do leite, que é utilizado na fabricação caseira/tradicional de queijo – o famoso Queijo do Marajó! – apreciado pelos habitantes nativos e servido como iguaria para visitantes e turistas da capital e/ou do Brasil e do exterior. Num trajeto que dura entre três horas/três horas meia e que vai da Companhia Docas Do Pará (CDP), no cruzamento da Avenida Doca de Souza Franco com o Boulevard Castilhos França – na "Cidade das Mangueiras" – até o Porto de Camará – já na Grande Ilha – prossegue-se, em via terrestre, até a cidade de Salvaterra, de onde se atravessa de "barquinho pô-pô-pô"1 pelo rio Paracauarí até a Ponte do Trapiche da "Pérola Marajoara".

De ruas largas e numeradas, com frondosas mangueiras ao centro e com um Mercado Municipal de frutas, verduras, peixes e artefatos – vendidos como "autêntico" registro da cultura material dos nativos do lugar – Soure é uma Cidade de médio porte, isto é, com uma atividade econômico-comercial que atende às necessidades dos habitantes municipais e dos moradores das comunidades próximas, como a comunidade do Caju-Una. Possuidora de uma história caracterizada por ciclos, tal qual o da colonização e o das fazendas de criação de equinos e de bubalinos (que, por sua vez, garantiu a territorialização desta parte da Ilha), Soure abriga uma Prelazia da Igreja Católica e durante algum tempo gozou de prestígio e importância política na região, sendo alcunhada de "Capital do Marajó", situação que começou a se inverter na segunda metade do século XX, perdendo o distrito de Salvaterra, que, hoje em dia, é o maior município em termos econômicos e populacionais do arquipélago.

Assim, enquanto Salvaterra vive a fleuma de sua "voação turística", de um lugar que se entrega àquela corrente alvoroçada de banhistas sedentos de "praia"; a tranquila Soure descansa esplendidamente de uma "belle époque" que só se agita em folias no período das férias escolares de janeiro/fevereiro, do carnaval e do chamado "verão amazônico" do mês de julho. Entretanto, é justamente na vida quase açoreana dessa realidade dos pastos aquosos e fluidos da Amazônia, que se encontram um grupo de amigos que se reúnem frequentemente na casa do mais velho deles para celebrar sua amizade, dividir uma boa companhia e brindar aprazíveis histórias de flertes e conquistas. É, portanto, nessa "geografia" – que se desenha nos contornos de um relevo homoerótico e diferenciado; mas também incômodo e perturbador – em que vivem Agatão, Fedro, Erixímado e Pausânias 1 : quatro amigos que se ajudam e "suportam", ao mesmo tempo em que brigam e discordam – mas, sobretudo, envelhecem juntos... Esse grupo de amizade e apoio constitui-se, destarte, no ponto nodal de uma paisagem sóciossexual complexa que aproxima categorias e/ou conceitos que se vinculam numa descrição etnocartográfica de relações bastante singulares, definindo, assim, uma fronteira entre "homossexualidade masculina" e "envelhecimento gay", em que o jogo afetivo se dá no horizonte de um registro marginal e dissidente, num sentido múltiplo - "homem gay" e "homossexual envelhecente"1 As estratégias de sobrevivência e de resistência ao preconceito homofóbico – seja na sua truculência discursiva, quando, por exemplo, são acusados de pedófilos pelo Bispo representante da Prelazia; seja, ainda, através da sutileza do gesto cordial e, obviamente, hipócrita da polícia, que já "reconduziu" um deles até à própria residência, para, com isso – supostamente – "evitar o perigo" – impõem-lhes um modo de vida íntimo, singular, onde performatizam não somente a amizade de uma maneira autêntica; mas também o gênero, os limites e possibilidades do corpo no envelhecimento, o desejo, o prazer, o sexo e o gozo.

Ora, sabe-se que a performatividade sóciossexual implica em certo número de práticas e técnicas corporais que descrevem um conjunto variado de cuidados de si para um uso ético/estético da sexualidade. Destarte, se considerarmos a especificidade do modo de vida gay e das experiências homoeróticas desse grupo de velhos homossexuais, nativos e/ou habitantes de Soure, tornar-se-á possível descortinar, sociológica e antropologicamente, alguns aspectos da política de sua existência e, certamente, do reposicionamento da questão da envelhecência quanto ao alargamento dos horizontes teóricos, no que respeita à questão da "terceira idade LGBT".

O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados parciais da pesquisa de doutoramento realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA) e abordará, fenomenologicamente, a auto percepção e a auto representação bio-psico-antropológica de um grupo de quatro homossexuais em processo de envelhecência que se conhecem e convivem como amigos e que, a partir de um contexto social característico da "Amazônia Marajoara" 1 , buscam estratégias e alternativas para a experiência e vivência mesma de práticas eróticas marginais e dissidentes e que, por isso, rompem com as regras e normas da heterossexualidade compulsória, em um momento da vida no qual a cultura Ocidental (genericamente) e a ordem social (especificamente) prescrevem a aposentadoria e o recolhimento dos corpos, afim de que os "idosos" possam se conformar às determinações médico-gerontológicas e, também, de uma certa maneira, ao discurso de uma "psicológica do desenvolvimento", que entendem a vida como fases progressivas e justapostas e não como prática ou cuidado ou exercício de si. Neste sentido, realizou-se pesquisa de campo, mediante a inserção dos pesquisadores na realidade íntima da vida desses quatro sujeitos, utilizando-se da metodologia da observação participante, considerando-se a abordagem fenomenológica enquanto parâmetro hermenêutico-reflexivo de compreensão da "trajetória" ou "carreira existencial" do grupo de amigos que, por sua vez, colaboraram como interlocutores na realização deste trabalho.

 

2. Homossexualidade masculina e envelhecimento gay em Soure: as vivências e experiências de quatro amigos na "Amazônia Marajoara"

A quem importa uma pesquisa junto a um grupo de quatro amigos homossexuais masculinos em processo de envelhecimento numa cidade no interior da Amazônia Marajoara? Em primeiro lugar, não se trata de uma percepção do ser velho necessariamente, já que envelhecer é um processo contínuo e ininterrupto (CORREA, 2009) 1 . Em segundo lugar, não se trata de discutir, comparativamente, um estrato homossexual mais jovem a outro de maior idade. Trata-se, isto sim, de discutir a peculiaridade atinente a cada um dos quatro interlocutores que, convivendo num mesmo contexto social específico, participam da mesma ordem discursiva, que produz um sentido acerca de um limite cruzado entre a velhice e a homossexualidade masculina, no horizonte de práticas que, supõe-se(!), estão muito mais relacionadas à juventude propriamente do que para a famigerada decadência do corpo, da libido e da própria imagem (PAIVA, 2009) 1 .

Inicialmente, portanto, abordaremos as práticas e, na sequência, adentraremos na especificidade/intimidade mesma do cotidiano de cada um dos quatro amigos/interlocutores que consubstanciam esta pesquisa – destacando que isto não teria sido possível sem a colaboração dos mesmos que, ao longo do trabalho de campo, me concederam, de bom grado, relatos que descrevem um pouco o seu modo de vida. Começaremos, então, pelo jogo da sedução e conquista, ou seja, pelas investidas através de olhares, gestos, palavras ou por um conjunto amplo (e aparentemente infinito!) de ações dirigidas à obtenção/satisfação do prazer, quanto à "presa", isto é, o menino, o garoto, bofe, o boy, o homem, o macho (FRY, 1982; MOTT, 2003) 1 – que é inserido e/ou deixa-se inserir no circuito de relações que caracterizam "a conquista" e o "exercício erótico" desses nativos envelhecentes do "amor que não ousa dizer o nome"...

Ora, foi, justamente, em primeira visita à casa de Agatão, na noite de 04/08/2012, que percebemos seu interesse por rapazes mais jovens. Quando chegamos lá, Agatão embalava-se em sua rede, atada de uma ponta a outra da sala, assistindo a uma partida de um jogo de vôlei da Seleção Masculina. Ele cumprimentou-nos; porém, imediatamente nos convidou – e aquele convite era quase uma intimação! – para assistirmos ao jogo juntos. Na medida em que a partida evoluía com ataques e contra-ataques dos jogadores brasileiros, Agatão exprimiu seu apreço pela modalidade esportiva e, também, pelos próprios atletas, que, em sua opinião, "(...) são jovens, altos, muito bonitos! É cada um mais gostoso que o outro!" (Em 04/08/2012). Indicando um especificamente, disse: "(...) Esse aí é muito bonito! É o mais bonito! Queria chupar o pau dele todinho! Já pensou o tamanho dessa rola dele, entrando no meu rabo?!" (Em 04/08/2012)

Esses relatos, anotados em nosso caderno de campo e, também, registrados em gravação de áudio, despertaram-nos a atenção etnográfica, quanto ao que Clifford Geertz (1989) 1 chama de "clínica do social", qual seja, tomar os relatos como dispositivo analítico-interpretativo da realidade e da vida nativa. Logo, a partir dessas poucas asserções, além de notarmos que Agatão gosta muito de vôlei e, preferencialmente, de homens "jovens, altos", percebemos nele mais do que isso; percebemos um despojamento quanto ao uso da linguagem e à aplicação de termos para definir o "objeto de desejo", como, por exemplo, quando exprime que queria chupar o pau de um dos jogadores da Seleção Masculina de Vôlei. Talvez isso se deva ao fato de termos nos apresentado para ele também como homossexuais e, com isso, criar um vínculo arriscado – mas necessário (na pesquisa em Antropologia Social) – no que respeita à relação de colaboração entre pesquisador-e-interlocutor. Perguntamos se ele gostava de assistir ao jogo da Seleção Feminina e ele respondeu que "(...) sim, eu gosto de assistir. É cada negona: elas são altas, fortes, mas eu prefiro mesmo é ver a Seleção Masculina. Eles tem um bração, um pernão, um bundão assim ó!!" E completou: "(...) eu gosto de homem assim, branco, bonito! Não gosto de [homem] preto!" (Em, 04/08/2012)...

Esta afirmação de Agatão intrigou-nos bastante. Por diversas vezes, ao longo do trabalho de campo em sua casa, durante a observação (participante) de seu cotidiano/intimidade, ele a repetiu categoricamente. Do mesmo modo como também fez questão de dizer que havia contribuído muito para a história da educação no Marajó, particularmente na localidade do Jubim (em Salvaterra), tanto quanto em Soure, de onde é natural. Portanto, Agatão quis que percebêssemos 1) que ele era uma pessoa importante/influente e que 2) ele possuía "um critério", "um padrão", quanto ao exercício de seu desejo e à prática de seu gozo. Todavia, na medida em que fomos nos acercando cada vez mais do dia-a-dia de Agatão e na medida em que fomos convivendo com ele e com os demais interlocutores da pesquisa, tivemos a oportunidade de perceber que nem sempre o "ideal de homem" expresso mediante um "juízo de gosto" de cunho marcadamente racista corresponde à realidade dos jogos de sedução e conquista, em especial do próprio Agatão.

Por exemplo, quando nos conhecemos e nos vimos pela primeira vez, ele havia acabado de completar 80 (oitenta) anos de idade e se relacionava com um rapaz, ou melhor, um homem de 28 anos – portanto bem mais jovem que ele! –, e a quem Agatão chama(va), ora de "Preto", ora de "Moreno", visto que o mesmo não se enquadrava naquele modelo ou "tipo ideal", principalmente por causa de sua raça/cor negra, de maneira que, por todo o trabalho de campo, nunca ouvimos Agatão se referir a ele pelo nome próprio, a não ser pela alcunha que, por fim, acabou virando substantivo. No entanto, havia um tempo já que Agatão estava com o "Preto" – uns cinco anos! Agatão não soube precisar exatamente; mas deixou claro que não gostava dele, mas sim de outro, que era mais jovem, branco e que de vez em quando ia em sua casa.

Aliás, desde a primeira viagem de campo e, particularmente, desde a primeira vez que tivemos a oportunidade de conhecer Agatão e conviver com ele e os demais (Erexímaco, Fedro e Pausânias), notamos que a casa de Agatão é uma espécie de ponto de encontro de amigos. É para onde esse "grupo de conhecidos" vai todas as vezes que querem se ver, se encontrar, conversar, trocar ideias, sentimentos e experiências e, também, dividir histórias, angústias e tensões. A casa de Agatão é, neste caso, um espaço de homossociabilidade, ao qual todos recorrem e por um motivo muito simples: Agatão é o mais velho deles, mora só desde há muito tempo e, hoje em dia, quase não sai mais. Quando está em Soure, prefere ficar em casa:

"(...) quase não saio. Já trabalhei muito e hoje tenho uma vida tranquila. Fico aqui assim o dia todo: me embalando na minha rede. Também gosto de fazer "Palavras Cruzadas" e de escutar minhas músicas. Tenho um monte de música aqui desse lado da estante. As pessoas quando vem aqui se passam pras minha músicas. São aquelas músicas das antigas. Daquele tempo em que os cantores sabiam cantar. Não era essa porcaria que é agora, um bando de vulgaridade. Fico aqui tranquilo, quando saio é só pra ir ali na Lotérica ou no Mercado. De vez em quando vem gente aqui pra conversar comigo. Mas eu gosto de viver sozinho." (Em 22/10/2012)

Ouvimos histórias da parte dos outros interlocutores de que, quando estes eram mais jovens, Agatão já tinha sua vida, morava só e recebia em sua casa os rapazes com os quais se relacionava. Todos (e inclusive o próprio Agatão!) são unânimes em dizer que tudo era feito com muita discrição e que Agatão nunca se expôs, muito embora todos em Soure saibam que ele é homossexual, termo com o qual, aliás, Agatão é bastante reticente, pois, na concepção dele:

"(...) hoje em dia é desse jeito, tudo exagerado, espalhafatoso! Por isso que dizem que homossexual não presta! Querem se exibir, mostrar jeito de mulher, colocar unha, peito. Eu sou na minha; por isso que ninguém perde o respeito por mim: quando eu tenho que fazer minhas coisas, eu faço aqui em casa, no quarto, em cima da minha cama e ninguém precisa ficar sabendo. Até porque a gente que tem essa vida não pode dar motivo pra ninguém falar da gente, pra ninguém fazer comentário que prejudique. Como acontece com o Erixímaco que não se dá o respeito. Ele meche com os garotos e a garotada meche com ele. Quando ele passa, gritam "- Ei, viado! Pau no cu!", e ele nem liga, não tá nem aí..." (Em 25/10/2012)

Na auto-percepção fenomenológica de Agatão, ele tem uma estilística discreta e reservada. Ele não se pensa espalhafatoso e vulgar e não vê com bons olhos as performatividades sóciossexuais recentes/emergentes. No que tange a "mostrar-se mulher", Agatão implica bastante com Erixímaco e Fedro; muito embora dentro de casa, vez por outra, ele se permita "brincar" com os amigos, chamando-lhes por termos e locuções femininas. 1 Com respeito a Pausânias, Agatão diz que "(...) ele é muito discreto, educado e inteligente. Mas é 'perigosíssima'! (Em 25/10/2012)..." De fato, Agatão possui gestos leves, delicados; porém nada muito exagerado. No entanto, tal delicadeza e leveza no falar, no caminhar e, particularmente, no gesticular estão, segundo ele mesmo, relacionados à sua formação acadêmico-escolar e posição social, pois "(...) também sou formado em Letras e tenho Especialização. Hoje eu estou aposentado, mas eu já dei muita aula. Eu ensinei muita gente aqui a ler, escrever, a como se comportar, a ter modos, postura." (Em 25/10/2012). E, completa:

"(...) o importante é sempre manter a educação. Nada adianta se não tiver educação. Ninguém mais se importa com o Português [o idioma, a Língua Portuguesa], com a pronúncia das palavras, com a escrita. Isso tudo conta! Quando esses meninos vem aqui, eu também educo eles, eu instruo, digo o que é certo, o que é errado. Teve uma vez que me chamaram pra dar aula para os policiais aqui. De vez em quando me chamam pra dar uma palestra, pra falar nas escolas..." (Em, 25/10/2012)

Deve-se perceber a importância que Agatão devota à educação enquanto um processo de formação e refinamento. Isto lhe parece algo de grande relevância, quanto a um posicionamento político e crítico que ele diz ter no que implica aos problemas sociais de Soure, como, por exemplo, "o enriquecimento ilícito dos agentes do poder executivo local", "o abandono do comércio, das práticas culturais, da própria rede pública municipal de ensino", "o abandono das ruas que são 'cheias de buraco'" e "o trânsito livre de búfalos" – que, na opinião dele, "(...) mijam e cagam em tudo por aí. Por isso que fica esse cheiro horrível, insuportável!" (05/08/2012). Entretanto, ainda no tocante à relevância que a educação tem como "ideal de vida" para Agatão, cabe relembrar as palavras de Serge André (1994)1 , o qual afirma que:

"[não] há preocupação mais nobre, não há ideal mais elevado, para o homossexual (mesmo que ele não seja pederasta no sentido estrito), do que formar e corrigir a juventude – entenda-se: os meninos pequenos. Montherlant, Jouhandeau e Genet afirmam essa vontade de maneira mais explícita; Gide a atesta mais discretamente. Nesse projeto de educação dos jovens, o homossexual se encarrega de bom grado da posição da mãe educadora que ensina as palavras de ordem da virilidade." (ANDRÉ, 1994:170)

Aqui, duas observações se fazem necessárias:

1) os jovens pelos quais Agatão e seus amigos se interessam não são infantes, mas rapazes púberes ou saídos da adolescência e recém-chegados à idade adulta. Isto provoca todas as indisposições de Agatão com o Bispo da Prelazia do Marajó que, generalizando de forma moralista e dogmática, acusa todos os homossexuais de pedófilos. De acordo com Agatão: "(...) esse Bispo é muito inteligente. Ele só tem um problema: ele acha que os homossexuais vivem uma vida errada, são pedófilos. Ele não respeita a diferença." (Em 29/11/2012) Perguntei a Agatão o que ele entendia por "pedofilia" e ele respondeu que "(...) é quando um adulto "tem relação" com uma criança. Eu não faço isso!" (Em 29/11/12). Ou seja, Agatão não se identifica com as pregações que o Bispo de Soure realiza aos domingos, reproduzindo um preconceito histórico da Igreja Católica contra todas/as aqueles/as que "amam diferente".

2) Não vemos de que modo Agatão e seus amigos assumam "de bom grado a posição da mãe"! Ele e os demais (Fedro, Erixímaco e Pausânias) não se perceberem desta maneira e nem tem qualquer interesse em assumir tal papel – ainda que, na maioria das conversas e situações, eles se tratem frescativamente no feminino e sempre se apresentem vestidos, geralmente, de bermuda, camiseta, sandálias ou boné, ou seja, à semelhança da moda usada pelos garotos por quem eles se interessam, numa possível tentativa de diminuir a distância entre os tempos, idades e gerações, aproximando-se, assim, de seus "alvos". Ora, não é o lugar da mãe que Agatão e seus amigos demandam, e sim o lugar do amante, ou melhor, "da amante", pois, eles se dirigem uns aos outros comumente através de termos e expressões que marcam e, portanto, definem a feminilidade e a preferência assumida pelo "sexo passivo" 1 . Quando, aliás, os amigos de Agatão estão na casa dele, todos se gongam, se tombam e frecam1 ; contam histórias e riem dos casos e aventuras amorosas uns dos outros. Pois a gongação, a tombação e a frescação são respectivamente isto: 1) ironizar, 2) expor ao ridículo, à chacota, ao riso e, finalmente, 3) apropriar-se exageradamente do feminino para, mediante gestos e palavras, descrever um sentimento, relatar uma emoção, emitir um pensamento e performatizar o "ser/estar mulher".

Supondo, então, que "(...) o sujeito "não está 'lá' exatamente desde o começo (isto é, desde o momento que nasce)" (SALIH, 2012:21-22)1 – quer dizer, supondo que o sujeito não é nem essencial e, tampouco, natural, mas sim um produto, um efeito cambiante, instituído a partir de momentos e contextos determinados, ou melhor, diferenciados –, é possível concluir que as "identidades generificadas" são sexualmente performativas. Neste sentido, portanto, caminhando à esteira de Salih (2012) é possível afirmar que "(...) a constituição do sujeito supõe que sexo e gênero são efeitos – e não causa – de instituições, discursos e práticas." (p. 21) Ora, na casa de Agatão, encontra-se um "território livre" para que as rígidas fronteiras que separam gênero e sexo em duas categorias estanques e apoditicamente binárias rompam-se em "devires variados", em que o "ser/estar mulher" torna-se uma atitude crítica fundada num jogo anti-melancólico que desmistifica a crença numa "metafísica da substância", para a qual "(...) o sexo e o corpo são entidades materiais, 'naturais', autoevidentes, ao passo que [...] sexo e gênero são construções culturais "fantasmáticas" que demarcam e definem o corpo." (SALIH, 2012:72)

Isto explicaria, ao menos em parte, a gongação, a tombação e a frescação dos interlocutores na casa de Agatão – coisa que, às vezes, esbarra nas alterações de humor e na impaciência dele, principalmente com Erexímaco e Fedro. Entretanto, ao longo de dois anos de pesquisa, compreendidos entre agosto de 2012 e abril de 2014 em Soure, junto a este grupo – investigando seu modo de vida, a estilística de sua existência, suas representações no tocante uns aos outros e, particularmente, no que diz respeito à questão do envelhecimento (substrato, pois, deste trabalho, o qual procura inter-relacionar as noções de homossexualidade masculina e envelhecência gay) – nunca conseguimos ver todos eles reunidos ao mesmo tempo. Era sempre Agatão e mais um ou dois de seus amigos – além dos dois pesquisadores. A despeito disto, pudemos constatar, mediante observação, que todos se respeitam, apesar de algumas divergências quanto a assuntos de ordem política, religiosa e, também, amorosa.

 

3. Auto percepção e auto representação fenomenológicas da homossexualidade envelhecente: as "carreiras" e "trajetórias existenciais" de Agatão, Erexímaco, Fedro e Pausânias.

As conversas, as concordâncias (de ideias), as divergências (de opinião), as acusações (no tocante a situações mal resolvidas e pouco esclarecidas) fluem num clima de amizade, companheirismo e, como anteriormente descrito, num ambiente de gongação/frescação – como anteriormente descrito –, em que, geralmente, se flagra Agatão deitado em sua rede ou sentado em sua cadeira de vime, fazendo palavras cruzadas e escutando suas músicas (boleros antigos de grandes nomes do cancioneiro brasileiro do passado – especialmente as "divas" Lana Bittencourt, Elizeth Cardoso, Ângela Maria e a cantora Maysa)1 É, pois, nesse clima que ele espera a Creuza – a diarista – preparar o almoço ou alguma visita (dos amigos, vizinhos, conhecidos, parentes ou... de algum garoto que a ele recorra atrás de um "aconselhamento"). Num espaço de homossociabilidade como este, resguardado pela intimidade, onde os convivas sentem-se à vontade para expressar a subjetividade, Agatão observa que "(...) aqui em casa é sempre assim: na brincadeira, na gargalhada! Um falando do outro, um tirando graça com o outro! Pra que viver com a cara fechada, amarrada, o tempo todo reclamando da vida? Toda vez que você chegar aqui vai ser sempre assim." (Em 05/08/2012) Seriam estas risadas e gargalhadas uma forma reativa de posicionar o envelhecimento e a velhice propriamente dita num campo emocional de ressignificação e aceitabilidade? Aparentemente sim, visto que para Salih (2012), por exemplo: "[t]odas as identidades de gênero estáveis são 'melancólicas', baseadas num desejo primitivo proibido que é escrito sobre o corpo." (p. 82) No entanto, não se está diante aqui de um grupo sóciossexual que resguarde uma identidade estável!

Neste aspecto, pois, Agatão e seus amigos – todos interlocutores nesta pesquisa – diferentemente dos heterossexuais, desconheceriam os limites rígidos de gênero que "(...) escondem a perda de um amor original, não reconhecido e não resolvido" (SALIH, 2012:82). Eis aí a hipótese do "gênero melancólico" e a reação que observamos no comportamento de nossos interlocutores em campo. Mas o que, precisamente, significa a "melancolia" no horizonte desta discussão? Nas palavras de Salih (2012), o sujeito heterossexual carrega na "(...) superfície do corpo seu desejo proibido pelo mesmo sexo, de modo que a 'ultrafeminilidade' e a 'ultramasculinidade' físicas denotam o desejo renegado do sujeito por um objeto do mesmo sexo." (SALIH, 2012:83)

Quando Agatão, então, destaca que em sua casa os amigos se encontram para rir, gargalhar, brincar e, finalmente, aproveitar a convivência uns dos outros, caracterizando, enfim, uma postura reativa à tristeza ou, numa linguagem muito mais técnica, numa reação à melancolia, pensamos estar constatando, in loco, entre um grupo específico de homossexuais masculinos em processo de envelhecimento em Soure, aquilo que Luiz Mott (2003) afirma desmistificar quanto à "(...) visão negativista do triste futuro das bichas velhas." (p. 49) No artigo intitulado Bichas de terceira idade: o alegre fim dos solteirões, o referido autor destaca, veementemente, que é comum se acreditar que "(...) todo homossexual estaria condenado à solidão na velhice, vegetando sozinho e abandonado, num quartinho sombrio de uma pensão de quinta categoria." (idem)

No entanto, Mott (2003) contrapõe-se ao senso comum desta representação, como ele mesmo diz, "negativista", adjudicando vários argumentos em favor de uma nova compreensão deste fenômeno sócio-antropológico, qual seja, o envelhecimento da população LGBT. Mott (2003) sente em si mesmo a "(...) a velhice como algo distante, não só porque [segundo ele, sente-se] jovem de espírito, muitas vezes, mesmo um menino brincalhão" (p. 50); mas também porque, como ele "(...) igual à maioria dos gays maduros, construí um patrimônio sólido – pagando o INPS e plano de saúde, além de ter aposentadoria garantida e casa própria". (idem) Tudo isto – satiriza Mott (2003) – lhe garante "(...) um futuro, quando menos, num hotel de várias estrelas... e não numa pensãozinha de beira de estrada." (idem) Ora, em nossa pesquisa de campo, observamos que o mesmo teor discursivo se encontra nas palavras de Agatão que, certa vez, confidenciou-nos que é uma pessoa independente, ou seja, que não possui vínculo de dependência (afetiva e/ou, principalmente, financeira) com ninguém. Segundo ele informou:

"(...) Sou aposentado, tenho o meu salário, a minha casa – graças a Deus! Quando tenho que ir pra Belém, fico no apartamento da minha sobrinha e aqui eu tenho a Crueza [a diarista] – que vem, limpa tudo e faz o meu almoço. E tem os 'meninos' que também vem me ver..." (Em 25/10/2012)

Se se alargar/ampliar o significado do termo e, com isso, se interpretar de forma extensiva o que disse Agatão, por "meninos", aqui talvez seja possível compreender, tanto a presença de seus amigos, isto é, Fedro, Erixímaco e Pausânias; quanto também da "visita" de seus casos ou namorados permanentes ou eventuais. De todo modo, o que é significativo é esta auto-percepção de uma vida em que o "salário da aposentadoria" e "a casa própria" constituem marcadores ou garantidores de uma envelhecência relativamente tranquila. Além do que,

"[n]ós gays, pelo fato de não reproduzirmos descendentes biológicos, criamos laços e entabulamos relações de amizade e coleguismo que podem ser tão duradouras e às vezes até mais profundas e gratificantes, do que os laços de sangue. Como diz a sabedoria popular, família a gente não escolhe, os amigos sim. E depende de cada um escolher e selecionar seleta plêiade de amigos, daqueles que se guardam no lado esquerdo do peito... e, de preferência, homossexuais que compartilhem nosso mesmo universo social e cultural, para envelhecermos juntos. Enquanto homossexuais, podemos ainda contar com outra possível vantagem: a existência de jovens gays que, desinteressadamente, curtem homens mais velhos, alguns preferindo inclusive os de cabelos brancos, barrigudos etc. Um presente dos deuses que existam pessoas com gosto tão generoso." (MOTT, 2003:50)

É a renda e a moradia própria, assim como o suporte da diarista e da sobrinha em Belém, tanto quanto dos amigos e convivas de Agatão, que lhe dão a garantia de uma existência amparada e a estabilidade emocional de que precisa para não sentir-se totalmente sozinho e abandonado. Aliás, é, justamente, esta independência, subscrita nestas condições objetivas, que permitem a Agatão o exercício de sua sexualidade, na reserva e intimidade de sua casa, mais precisamente, de seu quarto, pois, como ele mesmo afirma constantemente: "(...) eu gosto de fazer tudo na cama, deitado, com tranquilidade – nada de pressa! Sexo pra mim tem que ser desse jeito." (Em 25/10/212) Mas Fedro, que sempre está pela casa de Agatão, seja limpando ou cozinhando quando a diarista falta, seja mesmo fazendo-lhe companhia, tem a seguinte opinião:

"[h]um, isso aí?! Isso aí não presta, mana! Isso aí é perigosa! Tu não tá vendo? Ela não pode ver um garotinho desses que passam aqui na porta da casa dela que ela já quer! Quando ela não fode, não faz nada, ela fica agoniada, chata, num mal humor, num mal humor! Ela fica louca, mana! Essa coisa de tá sempre em casa, de não sair, isso é papo dela! É só porque ela já tem os cacho dela que vem aqui com ela todo o dia. E ela nunca tá contente, não se satisfaz! Não se satisfaz! Ela tem o "Preto", ela tem um outro bem dali, um daqui de perto – um monte, mana! Isso é foguenta! E é um calor, é um fogo, é um fogo, mais do que o meu! (risos) Mas ela é que tá certa, né, mana? Ela tem a vidinha dela, o dinheirinho dela, não tá morta e tem mais é que aproveitar!" (Em 25/10/2012)

Pausânias, que, mui carinhosamente, alcunha Agatão de "estrela das águas do Marajó" ou de "pérola marajoara" – numa alusão à paráfrase que remete ao nome da cidade de Soure – refere-se comumente ao amigo como "(...) a bicha mais ativamente passiva que eu conheço. [E que] não sabe lidar muito bem com a idade, a velhice, a doença, a perda de interesse dos garotos pelo corpo dele." (Em 05/08/2012) Na opinião de Pausânias, Agatão "(...) sofre muito com isso. Quando ele não "trepa", ele fica nervoso. Mas ele tem os meninos dele que sempre vão lá na casa dele e que ele alimenta, dá conselho, dinheiro." (Em 05/08/2012) De fato, Agatão gosta muito de observar o que ele chama de meninada ou rapaziada, isto é, os jovens púberes escolares que passam em frente o pátio de sua casa:

"[a]qui em Soure, meu amigo, tá crescendo uma rapaziada, que tu precisas ver: eles são jovens, fortes, bonitos. Todo o dia de tarde eu me sento aqui no pátio de casa pra ver eles passarem pra escola. Eles tem uma bundinha redondinha assim e são muito bonitinhos. De vez em quando um passa e meche comigo "– Oi, Professor!" e eu respondo "– Oi!" e fico pensando "ai, quem de dera! (risos)" (Em 13/01/2013)

Antônio Crístian Saraiva Paiva (2009) questiona-se:

"[s]eriam essas cenas, cenas abjetas, envolvendo velhos abjetos? Certamente, são cenas que perturbam o imaginário da velhice, do envelhecimento. As pesquisas em torno do campo de estudos sobre velhice no Brasil apontam que as representações acerca da velhice mudaram nas duas ou três últimas décadas, deixando esta de ser associada àquilo que Baudrillard (1996), num texto escrito em 1976, chama de 'morte social', morte do corpo, morte da vida, que podemos associar diretamente à exclusão dos velhos do mundo do trabalho, do acesso aos bens de consumo e ao desempenho de funções importantes nas solidariedades familiares. Temos hoje em construção um reposicionamento dos velhos em relação ao laço social, num processo ambivalente de positivação e de denegação da 'terceira idade'. Entretanto, os velhos evocados acima não são nada afeitos ao ideal médico-normativo-midiático da velhice risonha/dançante e saudável que vemos circular hoje. Seriam aqueles velhos tomados como corpos/seres abjetos, corpos/seres que não importam, corpos incoerentes, corpos sujos, poluidores do imaginário da velhice, derrisórios, sucatas do mundo (PEREIRA, 2001) sem lugar no laço social? Seria a velhice homossexual campo fértil para a abjeção?" (p. 197)

Ora, de acordo com Paiva (2009), o abjeto e a abjeção remetem às noções de "degradação", "aviltamento" e "desvalorização dos sujeitos", em face dos "(...) correspondentes esquemas classificatórios sociossexuais binaristas e aos correspondentes esquemas de constituição das subjetividades." (p. 198) Neste sentido, Agatão, Fedro, Erixímaco e Pausânias habitariam "zonas inóspitas" e "obscuras" do laço familiar e da vida social, numa dobradura em que, ao limite, circunscrevem-se e definem-se subjetividades marginais ou "periféricas" que não participam das benesses correspondentes ao "status de sujeito", mas que reivindicam seu direito à vida e à autonomia. Pois:

"[q]uando os sujeitos subvertem o imaginário do velho e da velhice (...) resistem ao lugar a eles reservado, lugar 'desistido' e, portanto, melancolizante, depressor, na medida em que o lugar do velho bonzinho, assexuado, sempre feliz, sempre dançante, quase uma criança, frequentemente significa a paralização do seu desejo e dos poderes de seu corpo, como se este não importasse mais enquanto corpo sexual, erógeno, mas somente enquanto corpo ofertado à medicina e aos medicamentos." (idem)

A resistência desse grupo de homossexuais envelhecentes não significa, necessariamente, uma negação da velhice, do transcurso do tempo e da memória; nem, tampouco, uma rejeição da trajetória existencial e da própria carreira sexual. Pelo contrário: é uma necessidade de atualização do desejo, de vivência mesma do prazer e, finalmente, de presentificação da sexualidade, num momento da vida em que todas essas coisas são tidas ou percebidas – vulgarmente – como impensadas ou inesperadas. Agatão, Fedro, Erixímaco e Pausânias atestam o contrário do imaginário popular que é muito cruel com os gays – particularmente quando se encontram no interior de uma coorte geracional (des)qualificada como "terceira idade". Se, portanto, Agatão chora quando escuta o bolero "O que é que falta", interpretado por Maysa, é geralmente de saudade de sua mãe e da relação que tinha com ela:

"(...) Eu gosto da minha vida; não tenho nada que reclamar. Fico em casa, tranquilo, fazendo minhas palavras cruzadas e escutando minhas músicas. Minha vida é essa. Mas tem uma música que eu não posso escutar sozinho que eu choro. É "O que é que me falta", da Maysa. Já ouviste? Eu tenho aqui. Mas essa eu não posso escutar. Lembro da minha mãezinha. Sinto falta dela." (Em 17/04/2014)

É claro que Agatão, como qualquer outra pessoa, tem seus problemas, suas preocupações, mas isso, sobremaneira, está relacionado exclusivamente à velhice. E se, neste grupo de amigos, há algum sinal de tristeza e insatisfação, talvez seja com relação à incompreensão social no que diz respeito à homossexualidade mesma, constrangia por um habitus, digo, uma "atitude natural" ou "experiência dóxica" (BOURDIEU, 2007:17)1 , sedimentadas naquilo que Eve Kosowsky Sedgwick (2007) define como "heterossexualidade compulsória" (p. 21-53)1 Daí, enfim, os risos, as brincadeiras e os chistes, isto é, a gongação, a tombação e a frescação. Todavia, Sara Salih (2012) adverte que, paradoxalmente, homossexuais em geral podem ser acometidos pela mesma "síndrome melancólica dos heterossexuais", mantida apenas por incorporação, "(...) uma vez que não existe a mesma sanção cultural contra o reconhecimento da heterossexualidade, [de modo que] a melancolia heterossexual e a melancolia homossexual não são, de fato, equivalentes." (SALIH, 2012:82)1 Entretanto, deparamo-nos no campo da pesquisa com outro cenário, bem semelhante àquele pintado por Mott (2003):

"(...) nenhum dos homossexuais mais velhos daquele grupo de bichas (...) permitiria qualquer associação com a imagem da bicha velha abandonada num quartinho sujo de uma pensão de quinta categoria. Por seus gestos exuberantes e alegria de viver a comparação era inevitável, entre este bando de gays velhos com os velhos heterossexuais e casais de marido e mulher, da mesma faixa etária (...) – apressados, tensos, carrancudos, sem tempo para sentar num banco para curtir a deliciosa fresca e a lua quarto crescente.

Comparando os velhos heterossexuais com os velhos homossexuais, não tive a menor dúvida de qual dos grupos enfrentava a velhice de forma mais feliz! Ponto para as bichas de terceira idade." (p. 52)

Pausânia relatou-nos que:

"(...) todas as vezes que venho a Soure, vou a casa de Agatão. Se eu não for, ele fica com raiva, chateado. Às vezes tomo café e almoço com ele, e volto para descansar. Quando vou lá à tarde, vou antes do jantar, pra fazer companhia pra ele; mas volto depois do Jornal, porque ele não gosta de assistir novela e muda de canal, ou pro SBT ou pra RECORD. E também esse é o horário que geralmente ele recebe o "Preto" ou os outros meninos. Quando eu tô lá e vejo que ele já tá agoniado, eu já sei o que é, e volto logo. Então a gente tem que respeitar esse movimento dele: quando ele estiver assim, a gente tem que sair." (Em 06/07/2012)

Erixímaco, por sua vez, descreveu-nos que:

"[q]uando eu tô por Soure, eu dou uma passada aqui com o Agatão. Não é sempre. Agora, por exemplo, eu tô muito ocupado, sem tempo. Eu tenho que me dividir entre a minha casa aqui e o Caju-Una. Não moro longe daqui, minha casa fica lá na Sétima Rua [de Soure]. Mas agora com o Círio [de São Sebastião], eu tenho ficado a semana todo fora [no Caju-Una], porque é difícil ir pra lá e voltar pra cá todo dia. É que eu organizo a procissão e a festa lá. Esse ano [de 2013] o Bispo proibiu que a festa ocorra junto com a procissão. Então, num final de semana vai ser a missa e no outro a bebida. Mas eu gosto de vim aqui com o Agatão: ele me fala dele, a gente fala dos machos, das rolas. Eu já prometi pra ele que qualquer dia desses eu passo mais tempo aqui com ele." (Em 18/07/2013)

Já Fedro disse:

"[m]oro um pouco longe daqui, mas minha mãe mora aqui do lado nessa casa branca. Quase todo dia eu venho aqui com ela, mana – até porque eu venho na mamãe; aí aproveito e venho aqui. Tem vezes que eu limpo a casa pra ela, faço a comida; só que quando ela tá chata, eu num fico, venho rápido, fico pela sala e vou logo embora." (Em 25/10/2012)

A percepção de Agatão quanto aos amigos:

"[o] Erixímaco também é professor, nós trabalhamos juntos na mesma escola, somos amigos de muitos anos. Eu só não gosto muito desse jeito dele. Às vezes ele é exagerado, gosta de falar alto, de gesticular, de chamar atenção. Quando a gente sai junto na rua, ele até se segura mais, tenta se comportar. Uma vez nós saímos e quando chegou perto de um grupo de meninos lá do Caju-Una, ele mexeu com eles, e eles tiraram uma gracinha com ele. Depois ele ficou meio assim, porque ele viu que eu não gostei. (...) Ele dá o cu em qualquer lugar: no mato, no quintal da casa dele – é uma puta! (...) Já o Pausânias é muito inteligente, educado, fala vários idiomas. Eu conheço a mãe dele, morei um tempo perto da casa dela, ali na Terceira Rua. Éramos vizinhos. (...) O namorado do Pausânias vive bem ali em frente, nessa direção. Ele se chama Eros, tem 18 anos, é um menino altão, bonitão; diz que tem um pauzão assim, ó! Daqui a pouco ele aparece ali na janela; ele ainda não apareceu porque deve tá dormindo – passa a noite acordado nas festas, bebendo. Tem muito tempo que ele fica com o Pausânias. E o Pausânias ainda é louco por ele! (...) Quem é amante do tio do Eros é o Fedro. Mas eles só se encontram quando a mulher dele [do tio de Eros] tá viajando. Aí quem vira a mulher é o Fedro! (risos) (...) Eu sempre falo pra ele [Fedro] que ele tem que se ajeitar e deixar de ser preguiçoso. Às vezes ele chega aqui com a cara inchada de cachaça, fedendo a cigarro, limpa tudo rápido, passa só uma vassoura na casa, mas não tira o tapete e faz a comida às pressas. Vem aqui e logo vai logo embora. Tem um mês que ele me pediu cem reais emprestado e disse que ia me dar no outro dia, quando ele voltasse de Salvaterra, e até hoje eu tô esperando... Ele é uma pessoa muito boa, mas tem esses problemas." (Em 17/07/2013)

Toda a complexidade das relações vivenciadas entre Agatão, Fedro, Erixímaco e Pausânias, isto é, seus consensos e seus dissensos, ou melhor, suas alianças e suas discordâncias são experenciadas numa "rítmica paisageira" (Sansot 1983) 1 que descreve o cotidiano daquela "Cidadezinha Qualquer", descrita e celebrada, antologicamente, em poema através da ilustre pena de Carlos Drummond de Andrade (2002) 1 , onde "(...) Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar./ Um burro [e um búfalo!] vai devagar./ [E] [d]evagar... as janelas olham." (p. 63) Muitas vezes era engraçado e ao mesmo tempo angustiante ir a casa de Agatão e esperar que um de seus amigos aparecesse e nos concedesse meia hora que fosse de uma simples observação participante. Outras vezes era frustrante marcar com Fedro ou Erixímaco na casa de Agatão e deparar apenas com a "imagem do sábio da Ilha de U-topos", sentado confortavelmente em sua cadeira, escutando música e "cruzando palavras". No entanto, em cada viagem a Soure, nossa proximidade com Agatão aumentava e o (im)provável "afastamento antropológico" no tocante aos sujeitos/agentes da pesquisa trocava-se, também, em convivência e amizade.

 

4. Considerações Finais

A discussão acerca do envelhecimento humano não pode se limitar, exclusivamente, ao domínio da Psicologia ou da Geriatria e, tampouco, da Gerontologia. (CORREA, 2009)1 Entretanto, a figura jurídica do "idoso", presente na legislação brasileira (Lei Nº 10.741/03)1 , quanto à definição do fenômeno humano da velhice, também não contempla a diversidade real, no que implica às representações sociais acerca deste período da vida. (MOTA, 2009)1 Os grupos etários e geracionais são culturalmente definidos e, como tal, variam de acordo com os contextos e, também, de acordo a relação que cada grupo humano mantém com a passagem do tempo e os imponderáveis da existência. (SIMÕES, 2005)1

Delimitar, portanto, faixas de idade para demarcar a saída e, consequentemente, a entrada em um determinado grupo etário é, pois, arbitrário, circunstancial. Assim, a noção de "terceira idade" dever ser compreendida apenas como um parâmetro e não como uma medida exata dos limites entre "o vigor e a maturidade" e "o ocaso ou o fim". Neste sentido, o envelhecimento tem de ser pensado como um processo contínuo e ininterrupto que se impõe a todos/as como parte da dinâmica da própria vida; mas, ainda, enquanto uma condição pessoal e cultural. (MUCIDA, 2009)1

A distância que se estabelece entre os marcadores sociais da juventude e da velhice operam um espécie de reforço das noções de "dinamismo/atividade" e "limitação/dependência" que supõem uma diferença entre os papéis culturais de jovens e velhos, relativamente às suas necessidades cognitivas, laborais e sexuais. (NEVES, 2012)1 Em um contexto sociopolítico como o do mundo capitalista, onde a importância dos laços humanos e o cultivo dos afetos se transfiguram em mercadoria e/ou se liquefazem na exigência de novidades, a pessoa definidamente velha representa um limite, uma barreira, um estorvo que é preciso reposicionar, a fim de que a própria noção de envelhecimento seja afastada e os imperativos da juventude celebrados. (STEPANSKY, 2012)1

Por outro lado, se aquela imagem da velhice encarnada na aposentadoria ou no isolamento e/ou no cuidado com os/as netos/as e, principalmente, no tratamento de doenças está sendo, cada vez mais, substituída pela imagem de velhinhos e velhinhas sorridentes, brincalhões e dançantes nos salões e festas dos Clubes ou Universidades da "terceira idade"; observa-se que a abordagem do tema não superou a ideia de que o lugar preferencial da velhice é mesmo o passado e a memória – entendidos como coisas distantes, que residem alhures, num tempo/espaço que parecem ter sentido apenas lá, onde a lembrança trava uma luta contra o esquecimento de si, dos outros e da própria vida. (MUCIDA, 2009)1 Enquanto categoria de análise, quer na Psicologia Social, quer na Antropologia Cultural, a memória é um aporte e uma referência necessária ao estudo e à reflexão das trajetórias biográficas, porquanto atualiza a auto-representação histórica e social que os sujeitos tem de si mesmos. (BOSI, 2005)1 Assim, ela não pode ser tomada simplesmente como um resgate de histórias perdidas nas lembranças, e sim como uma faculdade de reelaboração de um tempo vivo e presente, atual; pois, o que se narra e o que se cala descrevem os efeitos subjetivos de experiências socialmente compartilhadas. É, neste aspecto, que a noção de "trajetória de vida" ou "trajetória existencial" deve ser considerada, visto que desessencializa e desnaturaliza a noção de "fases da vida", com suas "demandas características" e seus "comportamentos típicos". Como se pode ver, o tratamento da questão do envelhecimento e da velhice possuem um teor amplo, geral e abstrato que, por sua vez, não vão além da comparação com as noções e representações de juventude e, comumente, não rompem com os imperativos da heterossexualidade, destacando-se mesmo a relevância do sexo neste período da vida, sem, contudo, romper os esquemas binaristas que opõem os gêneros e as performatividades sóciossexuais estabelecidas: homem/mulher, masculino/feminino. O presente trabalho procura superar os debates anteriores em quatro principais aspectos: 1) entrecruzando as noções de envelhecimento e homossexualidade; 2) aproximando as noções de "modo de vida gay" e masculinidade; 3) situando a reflexão ao nível das experiências de quatro homossexuais masculinos em processo de envelhecência e, finalmente 4) deslocando o olhar do universo centro-urbano para o contexto de uma cidade do interior do estado do Pará, localizada na Ilha do Marajó, na Amazônia Brasileira. Portanto, o tema "envelhecimento gay e homossexualidade masculina" emergiu tanto da necessidade de se contribuir com os debates acerca da velhice, numa perspectiva da diversidade sexual – tomando de empréstimo o modelo de análise da "coorte geracional", para se compreender o tempo/lugar das práticas de sociabilidade homoerótica de gays envelhecentes; quanto, também, da necessidade de se vislumbrar as estratégias de gozo e satisfação do prazer de homossexuais masculinos que, em virtude de não mais participarem do grupo social das "bichas novas", são, praticamente, impedidas de participar do mesmo "circuito" de expressão da sexualidade, porquanto estarem "coroas", "velhas", "barrocas". (SIMÕES, 2011)1

A escolha do local de pesquisa deveu-se, basicamente, a dois motivos. Primeiramente: a necessidade de operar um "giro copernicano" nos estudos antropológicos referentes à problematização do envelhecimento de homossexuais masculinos, ampliando horizontes etnográficos, descentralizando um debate que se "ensaia" a partir de grandes metrópoles como São Paulo, Fortaleza e Belém e desenvolvendo-o a partir de um contexto marajoara. Em segundo lugar: os interlocutores, em número de quatro, são todos nativos de Soure e tem mais de 45 (quarenta e cinco) anos de idade.

No imaginário coletivo – trata-se aqui do imaginário, isto é, de representação e não da realidade vivenciada necessariamente –, a passagem dos 20 (vinte) para os 30 (trinta) anos significaria, nas experiências de vida de um homossexual masculino e centro-urbano, uma preocupação quanto ao futuro. Isso se agravaria ainda mais no transcurso do tempo, à medida que se vai envelhecendo. (MOTT, 2003; SIMÕES, 2005)1 A restrição dos espaços de (homos)sociabilidade, em decorrência dos "interditos da idade", e os dramas pessoais/existenciais (como solidão, dificuldades para conseguir parceiros sexuais, limitações físicas, doenças e morte), imporia um triste e melancólico fim à "bicha velha". Entretanto, tais especulações se sustentam, inequivocamente, no mesmo campo dos "pré-juízos" e preconceitos que cercam as pessoas que ama e praticam o same sex love ou o amor que não ousa dizer seu nome. Se este amor não "se revela", é porque a ele se impõem as sanções compulsória de uma moral heternormativa; mas, este amor não se sufoca ou extingue, porque, de fato, ele descreve a condição subjetiva de todos/as aqueles/as que resistem às portas do armário que procura esconder a plasticidade e a diversidade estética do desejo humano. Ora, "ser um gay envelhecente" não pode ser uma tragédia. Pelo contrário, é um tom a mais no colorido LGBT. No entanto, se a questão apresenta contornos próprios, ela se torna muito mais específica quando se observa as experiências e trajetórias de vida de homossexuais masculinos em uma cidade de porte médio para a realidade de uma Amazônia Marajoara.

É justamente isso, portanto, que Agatão, Erexímaco, Fedro e Pausânias, interlocutores diretos nesta pesquisa, ensinam, qual seja – independentemente da idade –, o desejo e o exercício da sexualidade estão sempre renovados, ressignificados. Como muitos homossexuais envelhecentes nos centros-urbanos, eles constituem um grupo de amigos e uma rede de apoio e solidariedade, em que conflitos e tensões presentificam-se, visto que se tratam de sujeitos distintos que, ora demonstram afinidades e sentimentos/pensamentos convergentes, ora discordam e tencionam com respeito ao exercício e cuidado de si.

Todavia, enquanto um grupo de amigos nativos de Soure, Agatão e os demais possuem técnicas de flerte e conquista diferentes que se performatizam em situações que informam um contexto outro, em que o barco que realiza a viagem Belém-Camará-Belém é, por exemplo, lugar propício para olhares e "paqueras" ou, ainda, a reserva e a intimidade da casa/da cama indicam o sossego e a tranquilidade de um sexo que busca a calma de um prazer amadurecido. A economia das trocas afetivas integra cenários em que se transbordam os limites e fronteiras de gênero, no qual a gongação, a tombação e a frescação denotam as preferências sexuais, os sucessos e o fracassos quanto às parcerias; mas, também, integra as preocupações quanto à vida políticas e, consequentemente, a inserção de cada um deles em uma dimensão religiosa – seja negando ou afirmando o catolicismo ou exercendo uma outra devoção como Fedro que é pai de santo e tem um terreiro que se localiza num bairro de ocupação popular, distante do centro comercial da cidade.

A partir de nossa inserção no campo de pesquisa e da observação etnográfica do cotidiano de Agatão, Erexímaco, Fedro e Pausânias, pudemos constatar que a convergência de experiências geracionais encontra-se em um ethos homoerótico que lhes é comum, o que não significa, porém, a dedução de um modelo ou elaboração de um certo tipo ideal de comportamento, que apresente uma síntese numa fórmula a partir da qual seja possível entender as suas práticas. Quando, nesta pesquisa, buscamos a sistematização de algumas informações coletadas em campo e, a partir daí, estruturamos nossas interpretações, o método utilizado foi o comparativo, permitindo-nos cotejar e organizar esquemas de aproximação, sem nenhuma pretensão a busca a um esquema de valor categórico e peremptório.

Ora, esta pesquisa se inscreve nos horizontes de uma antropologia contemporânea e, como tal, pretende estabelecer um diálogo com as abordagens anteriores que tratam da questão do envelhecimento e da própria homossexualidade, problematizando, destarte, os silenciamentos em torno da relação entre o processo de envelhecimento de homossexuais masculinos e seu modo de vida, partindo-se de uma realidade nativa e local, de uma cidade ilhéu. Assim, considerando alguns debates foucaultianos e, também, algumas reflexões sociológicas e antropológicas de alguns autores das Ciências Humanas e Sociais – Simões (2011), Mota (2009) e Paiva (2007, 2009) – procuramos abrir novos arquivos, isto é, arquivos da dissidência e, com isso, avançar em uma direção do entendimento da ars erotica desses sujeitos/interlocutores.

Por isso, adotamos aqui a noção de "modo de vida" que, por sua vez, entendemos como a maneira pela qual determinado sujeito ou grupo constitui a própria existência quanto às vivências e/ou experiências passadas e presentes, às relações intersubjetivas, à auto percepção histórica, à memória e ao conjunto de suas práticas e representações simbólicas, desenhando, pois, ao longo da vida, uma carreira existencial, isto é, uma trajetória (auto) biográfica, que se exprime, tanto em atos de fala (no nível da linguagem), quanto pela performatividade (em termos de comportamento e ação), indicando signos e valores que delineiam, portanto, os traços de subjetividade e as marcas (sócio-históricas) da identidade. (PAIVA, 2007)1

Talvez a definição precise de alguns importantes ajustes; no entanto, nossas orientações teóricas ensejam, aqui, a noção de cultura como "teia de significados" (GEERTZ, 1989)1, o que nos possibilitou um exercício hermenêutico-fenomenológico e interpretativo das experiências de vida e memória de nossos interlocutores propriamente – em vista das trajetórias e carreiras existências que eles mesmos relataram em campo – e, também, da observação participante de seu cotidiano – seja embalando-se numa rede ao som de boleros antigos ou cruzando palavras no sossego de uma cadeira de vime, como no caso de Agatão; seja organizando uma procissão religiosa, como no caso de Erexímaco ou, ainda, celebrando e dançando entre deuses do Candomblé e espíritos e entidades metafísicas, como no caso dos festejos do Candomblé de Fedro.

Se Agatão aparece como personagem principal dessa trama cartografada entre idas e vindas a Soure, num intervalo de tempo que se prolongou de agosto de 2012 a abril de 2014; Pausânias tem, inequivocamente, um papel importante em nossas reflexões etnográficas, uma vez que: 1) possibilitou o contato com os interlocutores e, também, 2) conduziu nossos passos do começo ao fim, na "confecção" do presente texto. Esta é, certamente, uma situação singular que demonstra o seu grau de colaboração nesta pesquisa – sem, desconsiderar a importância de Agatão que, além de abrir as portas de sua casa, tratava-nos com o carinho de um velho amigo professor, que educava e instruía acerca de sua envelhecência. Envelhecência, envelhecência gay... Ambos os termos procuram relativizar uma condição sócio-existencial e sexual, a partir, justamente, do modo de vida de Agatão, Fedro, Erexímaco e Pausânias, no tocante a sua performatividade enquanto homossexuais em processo de envelhecimento. A heterotopia de seus desejos, gozos e prazeres remete a um conjunto de táticas ou estratégias de resistência e, também, de vivência/experimentação da sexualidade, onde Soure não é apenas uma metáfora ou somente um "pano de fundo"; mas sim uma personagem, que abriga a possibilidade de se compreender uma homossexualidade plena de cores, cheiros e sabores específicos...

 

Referências

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ANDRÉ, Serge. A impostura perversa. 1994. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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Nota sobre os autores
Wladirson Cardoso
:
Dr em Antropologia Social-PPGP-UFPA;
professor Auxiliar I da Universidade do Estado do Pará e
Coordenador de Interiorização.

Ernani Chaves:
Dr em Filosofia (USP, 1993).
Prof. Associado IV da Faculdade de Filosofia da UFPA

Recebido em setembro de 2014
Aceito em novembro de 2014