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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.11 no.1 Belém jan./abr. 2019

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº01rex27 

Relato de Experiência

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº01rex27

 

Violência contra mulheres e promoção de saúde mental na comunidade

 

Violence against women and Promotion of mental health in the community

 

Violencia contra mujeres y promoción de la salud mental en la comunidad

 

Cristina Vianna Moreira dos SantosI; Bruna Andrade IrineuII

I Universidade Federal do Tocantins

II Universidade Federal de Mato Grosso

 

 


RESUMO

O Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos da Universidade Federal do Tocantins articula ações de formação profissional com especial atenção para gênero, sexualidade, raça/etnia, classe social e direitos humanos. O debate promovido pelo Núcleo a partir das linhas de pesquisa sobre políticas públicas, saúde mental e violência constitui uma agenda de ações e práticas educativas que fomentam a reflexão crítica feminista na formação interdisciplinar e multiprofissional. Em maio de 2018, foi promovida uma roda de conversa sobre violência contra mulheres após o feminicídio de uma estudante do Curso de Serviço Social. Organizada pelo Núcleo, por professoras e estudantes do movimento estudantil e do movimento feminista, a proposta da roda de conversa foi prestar uma homenagem a vítima, quatro meses após seu assassinato, se tornar um espaço de partilha sobre o luto precoce nas vidas das/os sobreviventes e fomentar a promoção de saúde mental.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; Rodas de conversa; Saúde mental.


ABSTRACT

The Center for Studies, Research and Extension in Sexuality, Corporalities and Rights of the Federal University of Tocantins articulates professional training actions with special attention to gender, sexuality, race/ethnicity, social class and human rights. The debate promoted by the Nucleus from the lines of research on public policies, mental health and violence constitutes an agenda of educational actions and practices that foster critical feminist reflection in the interdisciplinary and multiprofessional formation. In May 2018, a round of talks on violence against women after the feminicide of a student of the Social Work Course. Organized by the Nucleus, by teachers and students of the student movement and the feminist movement, the proposal of the talk round was to pay tribute to the victim, four months after her murder, to become a space of sharing about the early mourning in the lives of survivors and foment mental health promotion.

Keywords: Violence against women; Conversation circles; Mental health.


RESUMEN

El Núcleo de Estudios, Investigaciones y Extensión en Sexualidad, Corporalidades y Derechos de la Universidad Federal de Tocantins articula acciones de formación profesional con especial atención para género, sexualidad, raza/etnia, classe social y derechos humanos. El debate promovido por el Núcleo a partir de las líneas de investigación sobre políticas públicas, salud mental y violencia constituye una agenda de acciones y prácticas educativas que fomentan la reflexión crítica feminista en la formación interdisciplinaria y multiprofesional. En mayo de 2018, se promovió una rueda de conversación sobre violencia contra mujeres producida después del feminicidio de una estudiante del Curso de Servicio Social. Organizada por el Núcleo, por profesoras y estudiantes del movimiento estudiantil y del movimiento feminista, la propuesta de la rueda de conversación fue rendir un homenaje a la víctima, cuatro meses después de su asesinato, convertirse en un espacio de compartir sobre el duelo precoz en las vidas de los / sobrevivientes y fomentar la promoción de la salud mental.

Palabras-clave: Violencia contra la mujer; Rueda de conversación; Salud mental.


 

 

INTRODUÇÃO

Este texto é fruto de reflexões que envolvem a extensão universitária em gênero e sexualidade em uma universidade pública federal no interior do estado do Tocantins. A discussão se desenvolve a partir de ações do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos da Universidade Federal do Tocantins que articula propostas no campo da extensão relacionadas a formação profissional com especial atenção para gênero, sexualidade, raça/etnia, classe social e direitos humanos.

O debate promovido pelo Núcleo se alinha ao campo das políticas públicas, da saúde mental e da violência, constituindo uma agenda de ações e práticas educativas que fomentam a reflexão crítica feminista na formação interdisciplinar e multiprofissional. Neste trabalho, descrevemos e refletimos acerca de uma ação promovida a partir de uma roda de conversa sobre violência contra mulheres produzida quatro meses após o feminicídio de uma estudante do Curso de Serviço Social e residente na cidade interiorana na qual o campus universitário se instala. A proposta da roda de conversa foi prestar uma homenagem a vítima, quatro meses após seu assassinato, através de um espaço de partilha sobre o luto precoce nas vidas das/os sobreviventes e fomentar a promoção de saúde mental.

Assim, construímos este trabalho a partir dos conceitos de gênero, violência, feminicídio, metodologia feminista, rodas de conversação e promoção da saúde, utilizandonos, especialmente, dos estudos feministas e do campo da saúde coletiva. Sabe-se que a extensão universitária desenvolve papel essencial na relação universidade-comunidade, e como professoras e educadoras feministas não podemos nos furtar de pensar e produzir sobre extensão sem também envolver a dimensão da sistematização da intervenção articulada ao campo da pesquisa. Portanto, oferece-se subsídios para discutir e compreender a relevância da universidade e das ações em gênero e direitos humanos em contextos interioranos.

 

ARTICULANDO OS CONCEITOS DE VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES E FEMINICÍDIO

De acordo com as Nações Unidas (United Nations, 1993), a violência contra as mulheres é todo ato de violência baseado no pertencimento ao sexo feminino, que tenha ou possa ter como resultado um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, assim como as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, quer se produzam na vida pública ou na vida privada. Esta definição, que orienta a comunidade internacional, leva em conta que a violência contra as mulheres na família e na sociedade está generalizada e manifesta-se independentemente do rendimento, da classe social e da cultura, o que embasa a necessidade de uma aplicação universal às mulheres dos direitos e princípios relativos à igualdade, liberdade, dignidade, integridade e segurança.

A violência contra as mulheres se caracteriza, portanto, como uma violação dos direitos humanos que as ameaça, no mundo inteiro, pelo único fato de serem mulheres, especialmente em sociedades devastadas pela corrupção, pela pobreza e pela guerra. Violência de gênero, por sua vez, é um conceito que abrange vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos, baseada na relação de dominação-exploração da categoria social homens que exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência no exercício da função patriarcal (Saffioti, 2001).

Ockrent e Treiner (2011) denunciam injustiças que afligem mulheres em todo mundo, mesmo em países do Ocidente, conhecidos por respeito aos direitos humanos. O direito das mulheres à igualdade está ameaçado pela falta de acesso a educação, pela desigualdade profissional e salarial, pela ausência de representatividade política, pela desvalorização do voto, pela marca do desempoderamento derivada da condição feminina. Em todos os países é preciso considerar que as mulheres continuam a ser as mais pobres entre os pobres, o que limita suas possibilidades de escolha e domínio sobre as próprias vidas.

A liberdade das mulheres está ameaçada à medida que setores religiosos e fundamentalistas apropriam-se do debate que pertence à cada mulher: a liberdade de dispor do próprio corpo. Assim, a garantia de direitos sexuais e reprodutivos, ainda constitui um entrave ao exercício da cidadania, na medida em que a opressão e o recrudescimento do conservadorismo põem em xeque a liberdade das mulheres, criminalizando-as em nome de tradições e costumes (Ockrent & Treiner, 2011).

Quando o tráfico de mulheres faz rotas em torno das comunidades, o direito à dignidade está ameaçado, mostrando que é possível não apenas violentar mulheres, mas obter proveito financeiro sobre os corpos femininos. O comércio vantajoso para os homenstambém se revela por meio de toda prática de compra e venda de meninas e mulheres para casamentos e outras negociações abusivas de poder. Do mesmo modo, para Ockrent e Treiner (2011), o direito a integridade das mulheres está ameaçado, pois a cultura do estupro é a prova que violentar mulheres, tratá-las como objetos pertencentes aos homens e as sociedades é um fenômeno banalizado e perpetuado pela misoginia e pela dominação sexista e patriarcal.

Indicadores apontam que o Brasil é o 5° país com maior taxa de mortes violentas de mulheres no mundo, e lidera índices alarmantes de violações de direitos das mulheres: 5 espancamentos a cada 2 minutos, segundo dados da Fundação Perseu Abramo de 2010; 1 estupro a cada 11 minutos, de acordo com o 9° Anuário da Segurança Pública de 2015; e 1 feminicídio a cada 90 minutos segundo dados do IPEA em 2013 (Romio, 2013). Considerando os índices de violência contra mulheres no país, é preciso destacar que distintos marcadores sociais atravessam as experiências de ser mulher, o que aponta maior desempoderamento de grupos mais vulneráveis.

Mulheres negras sofrem mais violência no decorrer da vida que outras mulheres: no Brasil, elas são as vítimas mais frequentes da violência obstétrica. De acordo com a Fiocruz este índice atingiu 65,9% em 2014. Segundo o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, mulheres negras foram 53,6% das vítimas de mortalidade materna no ano de 2015. Ainda em 2015, 58,86% das mulheres vítimas de violência doméstica eram mulheres negras de acordo com o Balanço Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher. Segundo o Diagnóstico dos Homicídios no Brasil do Ministério da Justiça, 68,8% das mulheres mortas por agressão foram mulheres negras (Prado & Sanematsu, 2017).

O direito à sua segurança está ameaçado, quando somando-se a violência na forma de agressões cotidianas contra os corpos femininos, em gradações físicas, sexuais e psicológicas, o feminicídio tem sido a prova que diversas formas de assassinato sexista, ou seja, assassinatos realizados por homens motivados pela noção de superioridade sobre as mulheres ou pela suposição de propriedade, é uma realidade perversa que se apoia na culpabilização da vítima. O feminicídio, quer ocorra dentro da família, unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, na comunidade, por parte de qualquer pessoa; quer seja perpetrada ou tolerada pelo Estado e seus agentes, por ação ou omissão, tem tomado proporções alarmantes nos últimos anos, com manifestações diversas e um aumento preocupante de sua prevalência em certos contextos.

Cunhada por Diana Russel na década de 1970, "femicídio" é a tradução espanhola do conceito "femicide", e caracteriza o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres. O termo foi usado pela primeira vez, em 1976, por Russel no Tribunal Internacional sobre Crimes contra as Mulheres, realizado em Bruxelas, definindo-o como uma forma de terrorismo sexual ou genocídio de mulheres. A antropóloga e deputada federal mexicana MarcelaLagarde diferencia femicídio de feminicídio, destacando o feminicídio como alternativa ao termo neutro "homicídio", e dá a este conceito um significado político, com o propósito de denunciar a falta de resposta do Estado nestes casos e o descumprimento de suas obrigações internacionais de proteção (Fernandez & Rampal, 2011). Portanto, o feminicídio é um assassinato de mulheres pautado pelo gênero e deve ser considerado um crime de Estado em casos onde a resposta das autoridades seja a omissão, a inércia e o silêncio.

Um feminicídio, sendo um assassinato realizado por um homem motivado pela noção de ter direito a fazê-lo, supondo sua superioridade sobre a mulher, se apresenta com múltiplos modi operandi como, por exemplo, tortura e asfixia por estrangulamento, homicídio por tiro, arma branca ou consecutivos espancamentos, para citar alguns crimes (Fernandez & Rampal, 2011). No imaginário social, porém, ainda permanece uma tendência de associar o femicídio à violência cometida por parceiro íntimo, ou seja, no âmbito doméstico e familiar, embora ela envolva um amplo espectro de situações que resultam em mortes como espancamento, estupro, tortura, escravidão sexual, mutilação, esterilização ou maternidade forçadas, ou ainda experimentação de medicamentos (Meneghel & Portella, 2017).

A morte violenta de uma mulher por motivos de gênero constitui o último ato de um continuum de violência, e muitas destas mortes são anunciadas e evitáveis. Segundo Meneghel e Portella (2017), a partir de pesquisas no campo da saúde coletiva e dos estudos de gênero, destacam que o feminicídio é um indicador para identificar situações de iniquidade de gênero na população, demonstrando que os contextos dos homicídios de mulheres são diversificados, mas o marcador de gênero, mesmo de modos diferentes, está sempre atuante. Condições de gênero, raça e classe social na arena do capitalismo patriarcal cria uma nova condição de vítima para as mulheres.

O feminicídio existe na realidade - é a expressão letal e representa a dimensão mais brutal da violência de gênero praticada contra as mulheres. A necessidade de tal afirmação revela a dificuldade de visibilizar e tornar relevante as experiências das mulheres, inclusive aquelas que passam pela violência e pela dor. O feminicídio é toda morte violenta de uma mulher, morte esta evitável, mas plenamente possível, num contexto social onde está presente o esquema de dominação exploração, sustentado por uma sociedade patriarcal, racista e capitalista que atinge a mulheres e homens de modo contraditório. Nesse contexto, as relações sociais estão marcadas por profundas desigualdades, que extrapolam a condição de gênero, mesclando-se com a condição de classe social, de raça/etnia e se estendem às identidades. (Gomes, 2018, p. 12)

Reconhecer que os feminicídios existem e que temos como tarefa essencial identificá-los dentre a mortalidade feminina, envolve uma postura de defesa dos direitos humanos. Assim, apropriar-se do conceito de "feminicídio" implica em "apreender um conjunto de concepções teórico-políticas que localizam a violência de gênero, suas características e seu contexto de produção". (Gomes, 2018, p. 03). Deste modo, é preciso considerar a gravidade de suas consequências para as vítimas, para as suas famílias, a comunidade e a sociedade, como um todo, sendo o debate de gênero necessário para o enfrentamento da violência e o combate ao feminicídio.

Como uma forma de abordar a violência contra as mulheres em contextos comunitários, o trabalho da roda de conversa mostra-se uma alternativa profícua, tendo em vista sua capacidade de promover diálogo de maneira horizontal, estratégia esta fortemente valorizada pela metodologia feminista como destacamos na próxima seção.

 

RODA DE CONVERSA E REFLEXÃO FEMINISTA

A roda de conversa é um recurso de intervenção que permite dialogar acerca de distintos temas, pressupondo uma condução individual ou coletiva com a tarefa de garantir vez e voz a todas/os as/os participantes, e desta forma permitindo a construção de um espaço para reflexões e troca de experiências (Grupo, 2010). O encontro é avaliado através dos relatos de participantes, observando o momento compartilhado, e o retorno sobre a conversa, que no caso da experiência relatada neste artigo foi conduzida criticamente acerca das violências imbricadas nos processos de hierarquização de gênero, sexualidade, raça e classe social.

A roda é uma metodologia profícua de trabalho com grupos que oportuniza encontros dialógicos e proporciona caminhos para produção e ressignificação de sentidos sobre as experiências de participantes. Com origem nos estudos de Paulo Freire sobre Educação Popular, por meio da horizontalização das relações de poder, a roda exige uma postura ético-política na produção do conhecimento, não usando nem da escrita, nem da leitura da palavra. Uma roda de conversa pressupõe mais do que a disposição em círculo. Estar lado a lado com o/a outro/a é essencialmente uma troca compartilhada, coletiva, entre sujeitos históricos e críticos, em busca de transformação social (Sampaio, Santos, Agostini & Salvador, 2014).

Assim como a roda de conversa, a metodologia feminista teve forte influência da Educação Popular de Paulo Freire, especialmente por seu impacto transformador no processo educativo. O Grupo Transas do Corpo – Ações Educativas em Gênero, Saúde e Sexualidade, uma organização não governamental feminista criada em 1987 em Goiânia aponta que metodologia envolve processo (concepção) e educação (processo). O conjunto de técnicas que envolvem uma metodologia estão imbricadas tanto na concepção quanto no processo,logo a metodologia feminista distingue-se por ser uma ação educativa que enfatiza atividades grupais de maneira participativa, "baseada na integração da experiência pessoal de participantes com conhecimentos teóricos e técnicos" (Grupo, 2010, p. 04).

A metodologia feminista tem clareza sobre os efeitos de gênero nas relações, reconhece a desigualdade de poder e promove a autonomia das mulheres. A metodologia feminista é largamente debatida como pesquisa, mas ainda não recebeu a mesma atenção como prática educativa (Pinto, 2011). Deste modo, a metodologia feminista articula também a dimensão de práticas educativas, e, portanto, da pedagogia feminista. A pedagogia feminista assume, como objetivo, o pleno direito ao corpo e à intimidade, que na abordagem mais tradicional da educação popular ainda era tabu ou que era vista como uma experiência da vida separada do projeto coletivo de emancipação.

Deste modo, percebe-se que a pedagogia feminista possui engajamento com as lutas sociais concernentes a gênero e sexualidade, bem como o combate à violência de gênero. E, nesta atual conjuntura de recrudescimento do conservadorismo, onde discursos de ódio são assumidos com centralidade em campanhas eleitorais, o número de proposituras legislativas de impedimento de discussões sobre gênero e diversidade sexual nas escolas têm aumentado alicerçadas no "pânico moral", que ocorre com a busca intensificada de bodes expiatórios (Rubin, 1989), e professoras/es vem recebendo ameaças e assédio para não desenvolveram ações de enfrentamento ao sexismo e a homofobia – discutir gênero e sexualidade é um perigo necessário. Logo, realizar estas discussões, em rodas de conversa, é um ato educativo para reinventar o diálogo sobre temas imbricados pelo pânico moral: "Es dudoso que una caza de brujas como ésta hiciese contribución alguna a la reducción de la violencia contra las mujeres." (Rubin, 1989, p.155).

 

PROMOÇÃO DE SAÚDE E FORTALECIMENTO COMUNITÁRIO

Em abril de 2018, o Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos, conduziu uma Roda de Conversa no interior do Tocantins sobre a violência contra mulheres. O tema gerador foi o assassinato de uma estudante do campus que abalou toda cidade. Como muitas mulheres e estudantes que ingressam na universidade, ela sonhava construir uma carreira profissional e buscava uma nova vida após a separação conjugal. Em dezembro de 2017, seus sonhos foram interrompidos por uma morte trágica, na forma de um feminicídio. O assassino, que também matou o suposto namorado da aluna, se matou após o crime.

Organizada por estudantes de graduação, do movimento estudantil e do movimento feminista, a ideia inicial da Roda de Conversa era fazer uma homenagem a vítima quatro meses após seu assassinato. A roda contou com a presença de 21 participantes, sendo 17 mulheres e 04 homens, entre estudantes, servidores e professores da universidade,profissionais e membros da comunidade, foi conduzida por uma coordenadora do Núcleo, registrada em diário de campo e teve duração de duas horas.

Os temas giraram em torno do luto precoce e da dor da perda de familiares e amigas/os, da violência que a estudante sofreu durante o casamento, das partilhas cotidianas na convivência, da carta de suicídio deixada pelo ex-marido e de seu impacto na vida da comunidade. Entende-se comunidade como o coletivo de pertença onde as pessoas são chamadas pelo nome e respeitadas, podem viver sua singularidade e exercitar seus direitos como cidadãos, possuindo vez e voz, contando com os outros para sua realização e experimentando, deste modo, uma vivência democrática (Guareschi, 1996).

O posicionamento ativo da população na busca de melhores condições de vida é reafirmado na nova promoção de saúde. Esta macrotendência em saúde valoriza o fortalecimento e a participação comunitária, a autonomia e a emancipação dos sujeitos. A nova promoção da saúde está articulada com o modelo da saúde coletiva, na contrahegemonia do modelo biomédico, colocando a saúde, e não a doença, na agenda das prioridades. Assim, entende-se que é a perspectiva epistemológica, e não exatamente a legislação em saúde, que orienta o direcionamento de ações de promoção de saúde (Silva- Arioli, Schneider, Barbosa, & Ros, 2013).

Presente na roda de conversa, a mãe da estudante estava muito mobilizada emocionalmente, por isso, somente aos poucos, foi se sentindo segura para compartilhar seus sentimentos com o grupo. Contou que sua filha era uma moça jovem, cheia de planos e que o ex-marido era muito ciumento, por isso ela o havia deixado. A mãe relembrou a história da filha, de como ela se casou muito nova, e desde que havia se casado, mãe e família começaram a perceber que ela não tinha amigas/os, não visitava parentes, não aparecia em fotos, vivia em isolamento, sofrendo violência do ex-marido e da sogra, sendo humilhada em público quando decidiu se separar. A vítima era estudante e trabalhadora, concursada no município de outra cidade, e viajava todos os dias para o serviço. Colegas contaram que ela ia de van para o trabalho, e que não aceitava carona com medo da reação do ex-marido.

Seria arriscado, em uma sociabilidade sexista, afirmar que existam condicionantes que tornam uma mulher mais suscetível a um relacionamento violento do que outras. São os homens que, para manter o controle e exercer poder sobre as mulheres, perpetuam a violência garantindo a minimização de seus efeitos reais e simbólicos, por meio da banalização do sexismo e da disseminação da misoginia. Soares (1999) reforça que a mulher aprende, ao longo da relação violenta com parceiro íntimo, a: colocar as necessidades do outro à frente das suas; cultivar uma baixa autoestima; tornar-se defensiva perdendo a confiança em pessoas próximas, ou esperando que alguém assuma o controle de suas vidas; tornar-se facilmente assustada ou sobressaltada, entrando em pânico por motivos aparentemente insignificantes; tornar-se dependente delegando ao outro decisões, ecautelosa, no sentido de conter a raiva do parceiro; sentir-se culpada, superdimensionando sua responsabilidade; viver em isolamento; e perder a esperança que possa fazer algo para sair da relação violenta.

O assassino, após o crime que matou a estudante e o suposto namorado, se matou. As causas de um feminicídio não se devem a condições patológicas do homem que cometeu o assassinato, mas sim ao desejo de posse sobre a mulher, e sua culpabilização por não cumprir o papel de gênero definido para o feminino. "Por esse motivo, considerar o femicídio como uma explosão passional ou atribui-lo à doença do agressor, significa retirar a conotação social e de gênero do crime, reduzindo-o à esfera individual" (Meneghel & Portella, 2017, p. 3081). Assim, o feminicídio é parte do mecanismo de dominação masculina que usa a violência como punição para manter a mulher em condição de subordinação e opressão.

A carta, que era a prova do crime cometido, tornou-se "grande em um lugar pequeno". Passou a ser um instrumento de ameaça a vida de outras mulheres. As/os participantes da roda denunciaram que os maridos da cidade estavam fazendo uso da carta para coagir suas esposas: "Tá vendo o que acontece com mulher que se separa?", diziam. O feminicídio, neste sentido, se apresenta como uma mensagem às mulheres, no sentido de aterrorizá-las e mantê-las submissas (Meneghel & Portella, 2017).

O desafio atual na cidade tem sido estimular o registro de denúncias de violência contra mulheres, haja visto que a atividade policial em contexto interiorano tem meandros distintos no que tange a aplicabilidade da Lei Maria da Penha. Constituem alguns direitos assegurados pela Lei 11.340 de 2006, nos casos de violência contra mulheres: acolhida e escuta qualificada de todos os profissionais da rede de atendimento; medidas protetivas de urgência; acesso prioritário a programas sociais, habitacionais e de emprego e renda; atendimento de saúde e psicossocial especializado e continuado; notificação formal da violência sofrida ao Ministério da Saúde; assistência jurídica da Defensoria Pública; acesso a casa abrigo e outros serviços de acolhimento especializado (Brasil, 2006).

Uma assistente social do município contou que em grupos de mulheres no contexto da saúde é muito comum surgirem comentários sobre a violência nas relações conjugais. Ela se perguntou: "O que fazer para melhorar esses relacionamentos? " Outro participante apontou: "O que fazer para não morrerem mais mulheres?" A reflexão se estendeu para a busca de prevenção. "É preciso inserir o homem na discussão."

No dia seguinte ao assassinato, o Núcleo emitiu uma nota de solidariedade aos familiares, amigos e comunidade acadêmica, e de repúdio ao feminicídio. O enfrentamento da violência contra mulheres implica adotar uma posição clara de que não há justificativa para a violência. O/A profissional precisa ter compreensão da complexidade do fenômeno, que é uma violação sistemática de direitos, e um problema de saúde coletiva e saúde pública, posicionando-se a favor da condenação de todos os tipos de violência contra as mulheres.

Reforçamos ao longo de todo o encontro que não há justificativa para a violência, sugerindo como atividade que cada um/a deixasse uma mensagem escrita para a estudante. A ideia era que as/os participantes construíssem, a partir daquelas mensagens, uma carta, como uma composição coletiva, recontando sua história, através dos olhares e dos sentimentos de quem a conhecia, de quem conviveu com ela, reescrevendo a história que foi distorcida e maculada pelo machismo e pela violência. Uma nova carta, que reuniu mensagens das/os participantes da roda de conversa, foi sendo gerada destacando a história de luta da estudante vítima do feminicídio, visando manter sua memória com as lembranças de amizade, alegria, força e amor espalhadas ao longo de sua vida. Memória recontada "da filha dedicada que partiu cedo demais".

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

"Luto para viver

Vivo para morrer

Enquanto minha morte não vem

Eu vivo de brigar contra o rei"

(Milton Nascimento)

A ação pontual da roda de conversa nos colocou a necessidade de construir estratégias contínuas de diálogo sobre violência contra mulheres na universidade. Os desdobramentos foram articulados em um novo projeto de extensão que será desenvolvido nos próximos períodos letivos, buscando a ampliação do debate com as estudantes deste campus e a comunidade local, bem como a articulação de ações na cidade durante o período do oito de março, data em que celebramos o dia internacional das mulheres, e no mês de novembro, quando se organiza os 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres.

Carneiro (2003) afirma que o movimento de mulheres do Brasil está entre os mais respeitados globalmente, sendo uma referência fundamental nos temas que atravessam as mulheres no plano internacional. Ela também se faz um dos movimentos mais expressivos no país, cuja a potência refletiu em encaminhamentos importantes no processo de formulação da Constituição Federal de 1988, que contemplou muitas das propostas das mulheres, alterando radicalmente o status jurídico das mulheres no Brasil.

Há quinze anos atrás, Carneiro (2003) já afirmava que a reposição da agenda feminista brasileira envolvia reconhecer a autonomia das mulheres, criticar as injustiças do modelo neoliberal, se comprometer com luta pela assistência integral à saúde das mulheres e engajar-se na luta contra todas as formas de discriminação, violência, maus-tratos, assédio, violência e exploração de mulheres e meninas.

Blay (2008) fez uma extensa pesquisa sobre assassinato de mulheres, dedicandose a analisar os julgamentos de tentativas ou homicídios de mulheres, principalmente o contexto de violências que resultam em mortes. Desde a campanha "Quem ama não mata!", protagonizada pelo movimento feminista no ano de 1979, que retomou as reivindicações contra crimes "por amor" dos anos de 1920 e 1930, a exigência por direitos para mulheres ganhou centralidade entre as pautas do ativismo. Nesse período inicia-se mudanças na forma de ver o feminicídio. Todavia, Blay (2008) questiona porquê apesar das mudanças de valores, os assassinatos de mulheres são frequentes. Pergunta esta que não detém ainda resposta, mesmo após décadas de intervenção política e acadêmica frente ao tema.

Transformar o processo de luto em sentido para as lutas sociais tem sido uma constante nos movimentos sociais. Neste texto destacamos, especialmente, as experiências feministas, que em nossos trabalhos no já referido Núcleo interseccionamos com a questões raciais e da população LGBTI (lésbica, gay, bissexual, travestis, transexuais e intersexos). Todavia reconhecemos que os movimentos anticapitalistas, operários e sindicais também possuem constantemente esse esforço de dar outros significados ao processo individual de luto, politizando-a em uma dimensão coletiva capaz de transformá-lo em reivindicações no campo das lutas sociais.

Na epígrafe destacada acima, trecho da música "Caxangá", de Milton Nascimento, conhecida na voz de Elis Regina, vislumbramos essa difícil tarefa de resistência operada nas conexões entre luto e ativismo político. Caxangá, termo referenciando em uma brincadeira infantil, tem raízes culturais assentadas na memória da escravização dos povos africanos e na resistência negra insubmissa aos "patrões" escravocratas a partir das fugas e constituições dos quilombos. Assim, o eu poético do compositor afirma que seria bom trocar de lugar com o patrão, onde o mesmo "tomaria banho de mar" e o outro "trabalhando no sol".

Tomamos emprestado, deste modo, a poesia de Nascimento para uma analogia sobre os riscos e perigos da pedagogia feminista em tempos de projetos como o "Escola sem Partido". O feminismo, em sua resistência político-acadêmica, vive de "brigar contra o rei" enquanto nossa "morte não vem". O rei aqui, é um conjunto de valores, costumes e práticas sociais que tem dizimado as mulheres pelo mero sentido de serem mulheres, como identificase o feminicídio.

Nota-se que a roda de conversa, é a forma e o instrumento para circular histórias, experiências e trajetórias que ilustram as fissuras destas mulheres interditadas e interpeladaspelas violências de gênero em suas vidas. E o feminismo, é o caminho pelo qual, nós mulheres, encontramos para enfrentar a experiência singular transformando-a em coletiva e, portanto, em práxis transformadora e revolucionária. A potência da pedagogia feminista mora em sua capacidade de transformar a dimensão pessoal em dimensão política, com a mesma potência para ocupar espaços universitários e comunitários.

Destarte, a potência que se referiu acima envolve um constante "brigar contra o rei", que se reflete em ações engajadas e comprometidas para disputar a consciência, imaginário e narrativas de sujeitos que historicamente são construídos para naturalizar a dominação masculina, a homofobia, o racismo e a sociabilidade capitalista como formas únicas de vida social. É compromisso do feminismo, e deve ser também da universidade, o enfrentamento a toda forma de violência e violação de direitos, bem como a transformação social e cultural das hierarquias de gênero, raça, etnia, sexualidade e classe social.

 

 

 

Referências

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NOTA SOBRE AS AUTORAS

Cristina Vianna Moreira dos Santos - Professora Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Coordenadora do Centro de Estudos e Práticas em Psicologia (CEPSI/ UFT). Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos (UFT). E-mail: cristina.vianna@uft.edu.br

Bruna Andrade Irineu - Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos (UFT). E-mail: brunairineu@gmail.com

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